Aneurisma da Artéria Renal: cirurgia renal ex-vivo - a propósito de um caso
clínico
INTRODUÇÃO
Os aneurismas da artéria renal (AAR) são raros (0,01 ' 1%)[1,2], correspondendo
a 22% dos aneurismas viscerais[2]. Tipicamente são únicos e unilaterais (90%).
A maioria é assintomática e o seu diagnóstico é, frequentemente, incidental,
por métodos de imagem[3]. Quando sintomáticos, manifestam-se por: hipertensão
(80%) de início precoce (antes dos 35 anos), dor, hematúria, podendo cursar com
quadro de choque hipovolémico, se em ruptura.[3]
As causas mais frequentes são a aterosclerose e as anomalias congénitas,
nomeadamente, a displasia fibromuscular. Raramente, surgem no contexto de
dissecção, traumatismo, coartação da aorta ou Síndrome de Marfan.[3,4]
A incidência entre sexos é igual, excepto nos casos secundários a displasia
fibromuscular, em que é mais frequente no sexo feminino. O tratamento cirúrgico
do AAR está indicado quando: diâmetro superior a 2 cm; aneurisma em expansão ou
dissecante; hipertensão renovascular; sintomas locais (dor, hematúria);
embolização distal; estenose significativa da artéria renal. [1,2,3,4] O risco
de ruptura do AAR é superior na displasia fibromuscular e na gravidez.[1,3]
A displasia fibromuscular é uma doença vascular, de etiologia idiopática, não
aterosclerótica e não inflamatória, que afecta, principalmente, mulheres jovens
(entre 15 a 50 anos), com baixo risco cardiovascular.[3] As artérias atingidas
com maior frequência são a artéria carótida interna (ACI) e a artéria renal, no
entanto, já foi descrita em quase todos os leitos arteriais. O segmento da
artéria renal frequentemente mais afectado pela displasia fibromuscular é o
médio-distal do tronco principal. O padrão angiográfico típico é em "colar de
pérolas".[3]
CASO CLÍNICO
Doente de 43 anos, sexo feminino, nuligesta. Hipertensão arterial diagnosticada
aos 26 anos, medicada com a associação de valsartan e hidroclorotiazida, sem
outros factores de risco cardiovascular.
Recorre ao Serviço de Urgência por diminuição da sensibilidade na hemilíngua
direita há três dias, disartria e disfagia. Nega náuseas, vómitos, perda de
consciência ou outros défices neurológicos. Sem história de traumatismo ou
episódios prévios semelhantes.
Ao exame objectivo salienta-se parésia isolada do nervo hipoglosso direito,
sopro sistólico grau III/VI da artéria carótida direita e sopro sistólico grau
III/VI no flanco abdominal direito.
Analiticamente, sem alterações da função renal, sem hematúria ou proteinúria.
O ecodoppler carotídeo e vertebral revela tortuosidade das ACI, com aceleração
de fluxo, sem estenose hemodinamicamente significativa.
Durante a realização da angiografia cerebral identifica-se um aneurisma do
segmento intra-cavernoso da ACI direita | FIGURA 1 | e dois aneurismas na
porção distal da artéria renal direita | FIGURA 2 |, com as seguintes
dimensões: 22,4x23,2mm e 11,0x8,5mm.
| FIGURA 1 | Angiografia cerebral: aneurisma do segmento intra-cavernoso da ACI
direita.
| FIGURA 2 | Angiografia renal: AAR direita. A sua localização no segmento
distal da artéria renal principal é a favor do diagnóstico displasia
fibromuscular.
Na angiografia selectiva da artéria renal direita obtém-se projecções em
antero-posterior e oblíquas, para melhor avaliação das relações anatómicas das
artérias renais.
Após discussão multidisciplinar, decide-se, numa primeira fase, pelo tratamento
cirúrgico dos AAR direitos, para controlo da hipertensão arterial; protelando-
se o tratamento do aneurisma da ACI.
Opta-se por submeter a doente a um auto-transplante renal, segundo a técnica
descrita:
> Abordagem retroperitoneal, nefrectomia, envolvimento do rim em compressa
embebida em solução salina a 4°C e perfusão do rim com soluto eurocollins® a
4ºC.
> Colheita de grande veia safena (GVS) do membro inferior esquerdo e confecção
de conduto em espiral, para prolongamento da veia renal direita | FIGURA 3 |.
| FIGURA 3 | Procedimento cirúrgico: colheita de GVS e confecção de conduto em
espiral .
> Aneurismectomia e angioplastia cirúrgica com patch de GVS da artéria renal
principal | FIGURA 4 E 5 |.
| FIGURA 4 | Procedimento cirúrgico: aneurismectomia.
| FIGURA 5 | Procedimento cirúrgico: angioplastia cirúrgica com patch de GVS;
prolongamento de ramo da artéria renal com segmento de GVS invertida, re-
implantação da artéria renal principal.
> Aneurismectomia, angioplastia cirúrgica com patch de GVS, prolongamento de
ramo da artéria renal com segmento de GVS invertida e re-implantação da artéria
renal principal na GVS | FIGURA 4 E 5 |.
> Prolongamento da veia renal com conduto espiralado de GVS | FIGURA 6 E 7 |.
| FIGURA 6 | Procedimento cirúrgico: prolongamento da veia renal com conduto
espiralado de GVS.
| FIGURA 7 | Procedimento cirúrgico: reconstrução da artéria e veia renais;
comparação entre o diâmetro dos AAR e da artéria renal principal.
> Secção da artéria hipogástrica direita, anastomose termino ' terminal (T-T)
entre prolongamento de GVS da artéria renal e artéria hipogástrica | FIGURA 8
|.
| FIGURA 8 | Procedimento cirúrgico: anastomose T-T artéria renal ' artéria
hipogástrica direita; anastomose T-L veia renal ' veia ilíaca externa
direita.artéria renal principal.
> Anastomose termino - lateral (T-L) entre veia renal prolongada com conduto
espiralado de GVS e veia ilíaca externa | FIGURA 8 |.
> Re-implantação do ureter na bexiga.
O tempo total de isquemia renal fria foi de 75 minutos e o enxerto reperfundiu
homogeneamente. O pós-operatório decorreu sem intercorrências, com alta
hospitalar ao sexto dia.
O exame histopatológico da parede aneurismática comprovou o diagnóstico de
displasia fibromuscular da média.
Aos seis meses de follow-up a doente encontra-se assintomática, com controlo
tensional apenas com restrição salina e sem alterações da função renal.
Aguarda tratamento do aneurisma da ACI.
DISCUSSÃO
No tratamento do AAR deve considerar-se as diferentes técnicas cirúrgicas:
cirurgia in-situ (pontagem, angioplastia), cirurgia ex-vivo, procedimentos
endovasculares (stenting, endoprótese, embolização) e nefrectomia.[3,5,6] Os
factores determinantes são o tempo previsto de isquemia renal e a necessidade
de uma adequada exposição da lesão.[3] Um período máximo de isquemia renal
quente de 20 minutos é considerado seguro, no entanto, até períodos mais curtos
podem precipitar disfunção renal.[1] Quando se prevê um tempo de isquemia renal
quente superior a 45 minutos Calligaro K. e Dougherty M. defendem a utilização
de medidas de protecção renal, podendo-se optar por cirurgia renal ex-vivo[3].
Até ao momento, não está provado qual a melhor técnica de protecção renal.[1,2]
Vários autores defendem o tratamento endovascular em AAR simples e proximais.
[2,6,7,8] AAR complexos, múltiplos, com atingimento de pequenos ramos distais
poderão beneficiar da cirurgia renal ex-vivo.[3,5,7]
Em 1967, Ota descreve o primeiro caso de reparação ex-vivo de lesão da artéria
renal, por hipertensão renovascular.[9]
Várias publicações de cirurgia renal ex-vivo de AAR demonstram baixa
morbilidade e mortalidade, bons resultados a longo prazo, melhoria ou cura da
hipertensão arterial em 50 a 100% dos casos (taxas superiores nos casos de
displasia fibromuscular).[3,4]
Com a experiência obtida com transplante renal de dador vivo, os autores
consideram que a cirurgia renal ex-vivo deve ser sempre ponderada no tratamento
de lesões complexas da artéria renal distal e seus ramos.
CONCLUSÃO
A cirurgia renal ex-vivo é um procedimento seguro e eficaz para lesões
complexas da artéria renal. Ao ser realizado por cirurgiões experientes, tem
uma morbilidade e mortalidade sobreponíveis a outras técnicas cirúrgicas.