Um herói romântico, apesar de tudo e apesar de si, e um cadete de cavalaria:
Sobre A Filha do Doutor Negro
Em A Filha do Doutor Negro(1864),António da Silveira, João Crisóstomo e
Albertina, personagens inscritas sob o signo da modernidade romântica, padecem
do coração: António da Silveira apaixonou-se por Albertina, que, por seu turno,
ama apaixonadamente João Crisóstomo e este aquela. Esta circularidade do desejo
não é sem provocar, como diria N. Luhmann, irritabilidade no sistema social
(patriarcal).
Embora corporifiquem traços muito tipicamente românticos, o certo é que António
da Silveira e João Crisóstomo também evidenciam ressonâncias tradicionais. Para
usar palavras de Habermas, referentes às premissas que substanciam a entrada na
modernidade, ambos, digamos, carecem de "uma estrutura em que o espírito
subjetivo pode emancipar-se da espontaneidade natural das formas tradicionais
de vida" (Habermas, 1990: 89). Noutros termos, manifestam-se enquanto
protagonistas divididos (embora se possa argumentar a desigualdade da divisão
num e no outro, mais favorável à ordem antiga em António da Silveira e mais
romântica no caso do amanuense) entre dois mundos, o do Antigo Regime e o da
modernidade romântica. Isto é, são personagens, pode dizer-se, de transição
(como de resto o doutor Negro). Em sentidos diferentes, como é óbvio, acham-se,
para referir o psicanalista francês Daniel Sibony (cf. Sibony, 1998), numa
desconfortável situação de entre-dois (entre-dois-mundos; na desgastante
condição de um coupe-lien, que impele a franquear o entre-dois; e este entre-
dois significa duas realidades sociológicas em disputa, nenhuma podendo
reivindicar supremacia sobre a outra)[1].
1.
O sentimento amoroso do João Crisóstomo não é desprovido de falhas, na medida
em que se apresenta entrecortado pelas preocupações que o abalam e que vão
ganhando uma relevância de primeiro plano. Sendo assim, e por mais argumentos
aduzidos por Albertina, a verdade é que o amanuense não se conseguirá abstrair
da infâmia de que é vítima: "João Crisóstomo recolhia triste, quebrantado
e doente; é que o olhar petulante dos caluniadores o vexara, e pode mesmo ser
que os mais inocentes reparos o aviltassem" (Castelo Branco, 1971: 239).
Sem eira nem beira, "encarna o herói sem mancha, vítima da pobreza e da
fatalidade" (César, 1971: VIII) e que, em nome do desejo, desafia a ordem
tradicional vigente, como é característico do heroísmo romântico. Porque o
desejo nutrido por Albertina põe em xeque a situação social em que todos os
societários se encontram virtualmente ligados e desligados, e isso de um modo
fortemente normativo e imperativo, por relações de casta ou, se quisermos, de
estatuto social. Quer dizer, não está socialmente previsto, no mundo ordenado e
equilibrado da tradição, avesso a emancipações pessoais, que um amanuense
estabeleça parentesco com a filha do seu patrão.
1.1.
Não é difícil ver na personagem um problema de classe. De facto, João
Crisóstomo não se dá bem com a localização social que o nascimento lhe
reservou. Filho de lavrador, numa sociedade hierarquizada por nascimento e não
por funções (o sistema da diferenciação funcional é próprio das sociedades
modernas), não apresenta saúde condizente com a dureza do trabalho agrícola,
quer dizer, não dispõe da compleição física requerida pelos da sua condição
social, sendo "débil e enfermiço" (Castelo Branco, 1971: 38). Mas
não é só a robustez física que o distingue do perfil do lavrador. Quando
António da Silveira vê João Crisóstomo pela primeira vez, eis a impressão com
que fica:
Era macilento, magro, e menos vulgar de aspeito do que devia esperar-
se do filho de um lavrador do Minho, onde, pelo ordinário, as caras
dos agricultores nos querem parecer pouco mais de rudimentares, como
se a natureza as deixasse configuradas na primeira sessão para voltar
depois e conformar-lhes os relevos. (Id.: 48-49.)
João Crisóstomo, digamos, condiz com o aspeto do herói romântico, não
encarnando os traços do rude ou do pacóvio camponês, apesar de carecer daqueles
bens culturais (leituras romanescas, sobretudo) que costumam configurar a alma
de um protagonista romântico. Avizinha-se, dir-se-ia, apesar evidentemente da
especificidade do contexto camiliano, de um Julien Sorel, filho e irmão de
lenhadores, mas com os quais se não identificava. Tal como o futuro apaixonado
de Mme de Rênal, cuja fragilidade contrastava com a brutalidade imperante no
seu meio familiar, João Crisóstomo apresenta sinais de debilidade física. E
veja-se que a personagem de Camilo, antes de partir para o Porto, solicita ao
pai permissão para ingressar no Seminário, o que tanto pode ser estratégia para
escapar à violência física dos campos como pode ser uma forma, a segunda
possível (a primeira, a ida para o Brasil, fracassou, justamente por causa da
debilidade física da personagem), para resolver o seu mal-estar social na
tentativa de escapar a um destino para o qual não revela a menor vocação (nem,
em boa verdade, a mínima capacidade). Em síntese, avesso à localização social
prescrita pelo nascimento, num contexto ainda desencorajador da mobilidade a
bem da estrita reprodução social, o amanuense ambiciona outra identidade
social, a que lhe possa consentir o eventual mérito do seu trajeto.
1.2.
Outro aspeto reporta-se ao comportamento ativo e temerário. A personagem não
parece pertencer à estirpe daqueles heróis românticos passivos, indolentes,
melancólicos, propensos ao confessionalismo, dominados pela resignação, enfim,
razoavelmente marcados por tendências passivas (e que proliferam no chamado
segundo Romantismo, o do contexto burguês e liberal). Mais próximo deste género
de protagonistas estaria António da Silveira. João Crisóstomo, esse, ajusta
contas com Caetano Alves, matando-o. E antes disso, a comprovar a sua índole
ativa, num momento da novela particularmente dotado de peripécias rocambolescas
dignas de folhetim, deslocou-se a Barbeita disfarçado de mendigo. E lá,
dirigindo-se a Albertina, proclama, com não pouco sentido trágico: "' Se
o céu mos não der, irei buscá-los ao inferno. Dentro de trinta dias, estarei
morto ou contigo" (id.: 115). A declaração é assaz emblemática do herói
romântico, daquele impulso irrefreável que faz com que o protagonista esteja
disposto a tudo para levar em frente o seu irreprimível desejo, que é da ordem
do absoluto. E um herói assim disponível para tudo, arriscando perder a própria
vida, não tem pejo em convocar o inferno (leia-se: a obtenção de dinheiro por
meios ilícitos), se a Providência lhe não proporcionar os meios de que carece
para resgatar a moça de Barbeita. A declaração é interessante por evidenciar no
amanuense, trabalhador honrado e imbuído de uma honestidade irredutível
(devolve, por exemplo, o dinheiro emprestado a Caetano Alves, mesmo sabendo do
imbróglio em que este o enredou), a possibilidade, em caso de absoluta
necessidade ' ou seja: estando em jogo a libertação de Albertina ', de
enveredar por vias menos retas. É a paixão exacerbada a cegá-lo nas convicções
morais, como se percebe. Uma paixão, à boa maneira romântica, dominadora e não
isenta de certa loucura. Eis o que sucede, mal sai do cárcere:
João Crisóstomo, ao escurecer deste primeiro dia de liberdade, entrou
na estrada de Braga, sem saber dar-se conta do intento que o levava,
impelido pelo coração. Era febre precursora de loucura; frenesim como
ele, raras horas, o experimentara no afogado recinto do cárcere (id.:
106.)[2]
O dinamismo viril e o orgulho, refira-se ainda, não invalidam a presença na
personagem de uma forte sensibilidade, consentânea, de resto, com a debilidade
física de que padece desde a juventude.[3]
1.3.
Deve notar-se, enfim, outro traço de carácter correlacionado com a índole
sensível do amanuense e já aludido: a flagrante dificuldade de este se ver
remetido para a condição de marginal social. João Crisóstomo sofre, pois,
enormemente com o facto de a sociedade o repudiar, dando inequívocos sinais de
não suportar as acusações insidiosas de que é alvo. Posto em liberdade, não
aguenta o estigma da marginalidade e, com isso, (d)enuncia uma flagrante
dependência da aprovação social: "Caminhou de rua em rua. Encontrou
pessoas, que o haviam estimado. Ninguém lhe disse: "Deus te
salve!"; ninguém lhe apertou a mão, dando-lhe os emboras de sair vivo dos
ferros" (id.: 105). E uma das razões para tanto é "porque o ficaram
odiando pelo crime de rapto" (id.: 106.). O desamparo, note-se, não se
restringe aos conhecidos, alarga-se à esfera familiar. O próprio narrador,
cheio de comiseração, afirma: "E tão desgraçado na sua primeira noite de
liberdade! Não ter pai que lhe desse agasalho naquela noite, nem irmão que lhe
liberalizasse uma tigela de caldo em sua mesa, na mesa onde ambos haviam
comido, com a mãe comum entre eles, a mãe que os amava por igual!" (id.:
106-107). Apossa-se então do amanuense uma profunda dor. "Chorava o
desamparado lágrimas de travor acerbo, olhando por além fora no caminho de sua
casa, alvejado pela claridade da lua" (id.: 107). Assim destroçado, João
Crisóstomo renega a sua desinserção familiar e o "atroz destino"
(ibid.)[4]. Como se vê, João Crisóstomo não é Simão Botelho. Não imaginamos o
caudal de energia romântica de Simão afetado, ou, pelo menos, afetado assim
devido à reprovação social. Para não falar na relação do amanuense com o pai.
Um pai pouco razoável: é-nos apresentado como sendo autoritário e de má índole.
Movido pela ambição, envia o filho ainda novo para o Brasil, para que este faça
fortuna (este corte com o pai é também um corte com a mãe e com a mãe-pátria).
O filho vê-se obrigado a partir, qual enjeitado necessitado da riqueza dos
trópicos, para adquirir, supõe-se, uma legitimação paterna proporcionável pelo
capital. E, como sabemos, das duas vezes que partirá para o Brasil, não
alcançará fortuna. Quando regressa, por razões de saúde, o "pai, que não
era dos mais razoáveis, e tinha outro filho a quem deveras queria, recebeu-o de
má sombra. João pedia-lhe que o deixasse ordenar; o pai deu-lhe uma enxada, e
mandou-o roçar tojo" (id.: 38). Apesar disto, João Crisóstomo parece
respeitar bastante o progenitor. A Januário chegará a confessar que dias havia
em que chorava por não ter obedecido ao pai (cf. id.: 79). E se da primeira vez
que passa perto da terra natal tende a culpar esse pai pelo destino que a sorte
lhe reservou e apela à mãe, cuja morte lamenta, a verdade é que na segunda vez
que por lá transita, a caminho de Barbeita, sofre por saber que não voltará a
vê-lo. Em suma, ao inverso de Simão, o amanuense parece incapaz de se definir
somente com base numa relação de auto-referencialidade (o "Eu"
voltado para si mesmo na assunção do seu ser e sem concessões para o mundo
exterior), antes se define a partir de uma relação de alteridade: a opinião/
validação social. O caso agrava-se com a condenação judicial. Porque João
Crisóstomo não suportará a propagação social de uma acusação injusta que o
desonra, equiparando-o à condição de delinquente.
1.4.
E se a acusação é perfeitamente injusta, deve-se a injustiça flagrante ao
sistema judicial, aqui e noutras novelas, incapaz de se enclausurar sobre si
mesmo por carecer de isenção. Isto é, a instância judicial não dispõe de
firmeza suficiente para enfrentar a ingerência de outros sistemas sociais
(sistema político, económico, etc.). Efetivamente, os tribunais são o palco de
uma justiça pervertida, como muito bem nota António da Silveira, ao contra-
argumentar, com Voltaire, a razão pela qual João Crisóstomo fazia muitíssimo
bem em permanecer exilado no Brasil: "O seu dileto filósofo [Voltaire]
[ ] escreveu que, se a justiça o arguisse de ter furtado o sino grande de Nossa
Senhora de Paris, ainda que toda a gente estivesse vendo o sino na torre, ele
sairia de França, e lá de fora provaria que não roubou o sino. Da cadeia é que
não" (id.: 218). O comentário diz bem da injustiça da justiça (Caetano
Alves e Benito Rojas serão libertados, João Crisóstomo, não obstante a
flagrante inocência, é condenado). A prestação de Caetano Alves em tribunal, a
acentuar os desvarios da justiça, é péssima: "O magistrado enleara-o tão
engenhosamente que o réu, a cada investida que dava à trama, ficava mais
enredado. Afinal, estupidificado pelo susto, disse que entregava os bens ao
autor, e que o deixassem" (id.: 217). Reação da assistência: "Os
circunstantes riram às gargalhadas da beatífica desistência do homem, e
espantaram-se de um cair de chofre tão redondo à lama dos criminosos
vulgares!" (ibid.). O infeliz desempenho do réu é compensado pelo
dinheiro. Seguindo "alguns experientes deste mundo" que o
admoestaram "a que tivesse mais confiança no seu dinheiro e na valiosa
atividade dos seus amigos" (id.: 221), a personagem não sofre o repúdio
da sociedade, antes se vê maciçamente apoiada por esta:
O rico proprietário, quando a indignação pública fazia estampido, era
já visitado por pessoas de uma tal qual categoria e preponderância.
Destas, alguma, grandemente considerada entre a classe genealógica,
saiu de carruagem à porta dos juízes, a oferecer a sua idoneidade em
fiança do preso. À imitação deste fidalgo agradecido ao seu credor,
outros se ofereceram e empenharam já com o magistrado criminal, já
com o cível. (Id.: 221.)
O facto de pessoas de "categoria e preponderância" visitarem o réu,
entre as quais uma "grandemente considerada entre a classe
genealógica", oferecendo aos juízes "a sua idoneidade em fiança do
preso", e dando o exemplo a outros fidalgos, é denotativo de um sistema
judicial onde "la preuve [est] liée à des rôles" (Luhman, 2001:
52), o que condiz com uma sociedade tradicional, na qual a moralidade é apurada
segundo a notoriedade da escala social a que se pertence[5]. No Antigo Regime,
muito confiado à família e, mormente, às famílias de renome genealógico,
"les membres des couches supérieures de la société jouissent d'une plus
grande crédibilité au tribunal" (id.: 54; cf. também Luhman, 1998: 380 e
415). Tanto assim é que "em caso de processo, o juramento coletivo dos
parentes era suficiente para ilibar o acusado ou, pelo contrário, para provar a
sua culpabilidade" (Michel, 1983: 46), o que contrasta com o direito
moderno, onde cabe ao juiz abstrair-se dos papéis sociais dos que intercedem,
por exemplo, a favor da pessoa julgada. Para recorrer uma vez mais a Luhmann:
[...] il [le juge] ne le fait [tirer son jugement] plus directement à
partir de représentations du vrai et du juste qui se seraient
imposées dans un ordre de la vie sociale qu'il pourrait contempler.
Il peut ainsi opérer à partir d'une distance plus grande et il n'est
pas tenu, dans tous les domaines à ramifications multiples où il doit
rendre une décision, de flairer les príncipes moraux de jugement qui
seraient suscéptibles de créer un consensus. Il peut et doit décider
en tant qu'étranger (als Fremder). (Luhman, 2001: 56.)
Se Caetano Alves, por escrito, incrimina João Crisóstomo, acusando-o de lhe ter
fornecido a nota para falsificação e de ter, inclusive, colaborado com o
contrafator a troco de generoso estipêndio, e se esta denúncia, desconsiderada
inicialmente pelo corregedor, é incriminatória do próprio Caetano Alves, o
certo é que este, em boa verdade, não acaba condenado. Como fica a saber
António da Silveira, "conspiravam a favor de Caetano Alves pessoas de
grande vulto e influência, notadamente o regedor das justiças" (Castelo
Branco, 1971: 232). Mais: "a proteção ao réu era tão evidente e
escandalosa quanto ele estava no gozo de seus bens" (ibid.). Aliás, o
livre uso de bens é a condição justamente imprescindível para o criminoso
comprar influências e, assim, manobrar a justiça a seu favor. Ao todo, Caetano
Alves investirá a não despicienda quantia de cinquenta contos, o "preço
da liberdade" (id.: 252). Desta maneira, o corregedor, convencido da
inocência do amanuense, incrimina-o para estupefação de António da Silveira; e,
no final do processo, declara-o culpado (cf. id.: 251). Quanto a Benito Rojas,
cujos dias na prisão foram regalados (cf. id.: 249), salva-se de ser
extraditado para Espanha graças a Caetano Alves, que corrompe um cônsul
espanhol, do qual dependia a liberdade do falsário, e isto porque "[o
dito cônsul] não tinha motivo algum para ser mais incorruptível que os
outros" (id.: 252). Portanto, através da corrupção, opera-se uma
legitimação social que é o inverso da diferenciação recomendada por Luhmann
para o sistema judicial:
L'essentiel est plutôt de construire une sphère propre de sens de
manière à ce que les processus sélectifs de traitement des
informations provenant de l'environnement puissent être régulés par
des décisions et des règles propres au système, afin que les
structures et les événements de l'environnement ne deviennent pas
automatiquement valides dans le système, mais ne soient reconnus qu'à
la suite d'un filtrage des informations. La différenciation ne peut
donc se réaliser que par l'autonomisation des procédures et sa portée
correspond à celle des possibilités décisionnelles du système.
(Luhman, 2001: 51.)
Manifestamente isto não sucede aqui. O tribunal é largamente permeável a dois
meios de comunicação simbolicamente generalizada: o dinheiro (capital
patrimonial) e o sangue (capital simbólico). E se, no final, os criminosos
acabam de factocastigados, a punição parece obra de uma Providência[6].Não há
como negar queo crime perpetrado pelo amanuense, e com o qual diz recuperar a
honra que a sociedade civil injustamente lhe negou, se substitui à justiça dos
homens e, nessa medida, ocorre uma reparação da injustiça praticada nos
tribunais; e isso nada parece ter a ver com os desígnios da Providência. No
entanto, o narrador compraz-se em explicá-lo, e em explicar os castigos
destinados às personagens aviltantes, a bem de uma efetiva justiça, invocando a
infalível Providência[7]. Em todo caso, isto é, seja Providência ou mera
contigência, a verdade é que a ficção camiliana não carece de justiceiros que
fazem as vezes da Justiça inoperante(em O Senhor do Paço de Ninães, o negro
Vasco mata João Esteves Cogominho; em O Carrasco de Victor Hugo José Alves, o
negro Damião Ravasco ' anagrama quase perfeito de carrasco, repare-se ' acaba
com a vida de Victor Hugo, degolando-o; etc.).
1.5.
A necessidade inquebrantável de João Crisóstomo ostentar uma honra imaculada
não se compadece com o amor. Por "honra" não se entenda, convém
esclarecer, aquele pundonor aristocrático que R. A. Lawton imputou a Simão
Botelho, avizinhando-o dos pundonores de Domingos Botelho e Tadeu de
Albuquerque (vide Lawton, 1964)[8]. Ao arrepio do que defende Lawton, cuja
leitura foi refutada, entre outros, por Jacinto do Prado Coelho (cf. Coelho,
2001: 253-257), Aníbal Pinto de Castro (Castro, 1983: LVI) e, com uma
argumentação a todos os níveis brilhante, por Abel Barros Baptista (Baptista,
2009: 81-112), a honra de Simão Botelho, que o leva a desprezar concessões que
visassem aligeirar-lhe a pena (e, em sentido mais lato, a própria justiça
humana), essa honra decorre de uma superioridade moral (que começa com o
"eu" romântico a lutar contra as crenças, os valores e as
expectativas das instituições da ordem antiga), vale dizer, procede de um
estado de nobreza de alma em confronto aberto com os preconceitos sociais e não
resulta do refluxo da linhagem e do parentesco.
Antes do crime, refira-se, o forte sentido de honra de João Crisóstomo está à
vista, em particular, em dois momentos. O primeiro diz respeito à maneira hábil
como a personagem repudia a oferta de Januário Costa e Silva, que a troco de
seis mil cruzados em moedas de ouro, além da oferta da liberdade, contava
corromper o amanuense, ou seja, fazer com que este prometesse esquecer
Albertina e partisse para longe. Mas prestemos atenção ao segundo momento a que
nos referimos e que se reporta àquela parte da narrativa em que as liteiras de
Francisco Alpedrinha se cruzam, noite alta, com João Crisóstomo numa serra
sugestivamente chamada "Terra-Negra", "por aqueles tempos,
suja de salteadores" (Castelo Branco, 1864: 107). Os liteireiros do
bacharel, avistando o vulto do amanuense, julgam-se cercados por ladrões, o que
muito aflige Francisco Alpedrinha: "' Gritem, gritem à-d'el-rei! ' clamou
o doutor, figurando um ladrão em cada tronco de árvore" (id.: 108). No
tocante ao amanuense, que reconhece de imediato a voz do pai de Albertina, é
dito que "permanecia sentado e imóvel sobre o combro" (ibid.). Daí
o contraste flagrante: os moços do doutor Negro que "bradavam, em grita
desentoada, por socorro" (ibid.); e a serenidade total do amanuense. E
mesmo quando os liteireiros do magistrado lhe dizem que, afinal, ao que parece,
tudo não passa de um único homem, sugerindo a hipótese de o confrontar, o
receio do doutor Alpedrinha não diminui de intensidade: "Vejam lá no que
se metem, que isto é sério e perigoso! ' observou Francisco Simões. ' Eu tenho
aqui meia dúzia de moedas; se esses senhores se acomodarem com isto, dou-lhas,
e que me deixem passar a salvo" (ibid.). Resposta do amanuense, que
continua na mesma, "sem mudar de postura" (ibid.): "' Passem,
que não há ladrões aqui" (ibid.). Reação do pai de Albertina: "O
doutor Negro cuidou ouvir a voz de João Crisóstomo, e tremeu pela vida"
(ibid.). Por essa razão, recomenda aos seus homens que estejam atentos e que se
coloquem do lado das portinholas da liteira, isso a fim de o protegerem em caso
de ataque. João Crisóstomo trata, logo, de afirmar inequivocamente que o
viajante não corre perigo: "' A sua vida está segura, sr. doutor
Alpedrinha [ ]. ' A sua vida é tão sagrada para mim como a de meu pai"
(id.: 109). Por conseguinte, temos João Crisóstomo numa situação de
superioridade relativamente ao doutor Negro, superioridade que se deve entender
não somente no sentido físico (o doutor e os seus moços temem, dada a má fama
do lugar, estarem em presença de bandidos, o amanuense, ainda que só, é senhor
da situação), porém igualmente em termos de superioridade moral. A
impassibilidade do amanuense, o mesmo é dizer, a sua serenidade, em flagrante
contraste com o pavor dos homens de Francisco Alpedrinha, sinaliza um estado de
consciência tranquilo. Recorde-se, a propósito, a impressão que João Crisóstomo
causara em António da Silveira na cadeia da Relação do Porto: "António da
Silveira [ ] [ficou] cativo daquele homem, cujo sossego justificava a pureza da
consciência" (id.: 51). E recorde-se também a inusitada reação da
personagem à carta do cadete, onde se dava conta da acusação vil que pendia
sobre ela: "João Crisóstomo acabara de ler a carta serenamente",
observa o narrador, para acrescentar: "Horribilíssima serenidade!"
(id.: 200) ("Horribilíssima", porque bem depressa a serenidade
cederá lugar às lágrimas). Regressando à cena do encontro noturno, cabe
enfatizar que o amanuense teria motivos de sobra para se vingar do doutor Negro
(mandou-o prender, tentou corrompê-lo, prolongou-lhe o mais que pôde a pena de
prisão), todavia, como quem concede uma graça, João Crisóstomo deixa o pai de
Albertina passar livremente. E com esse gesto ' que pode lembrar ironicamente a
clemência de um patriarca detentor do poder de vida ou morte (patria potestas),
mas que decide poupá-la ', a personagem tende a manifestar um sentido de honra
que o patriarca já não pode reivindicar. Mais ainda se pode dizer (se é que não
se deve dizer): que, em termos de sugestão, o terror do magistrado e, num claro
contraste, a serenidade do amanuense são como que a face visível da falta de
honra do patriarca e da sua presença no moço. Mas pode perguntar-se: e o facto
de fugir, por três vezes, com a filha do magistrado, ousadia que lhe vale a
reprovação social, não é significativo de desonra? Aqui, a resposta pode vir
sob a forma de excerto de um diálogo retirado de Estrelas Propícias, entre
António de Azevedo Barbosa e João Bernardo Taveira. Diz o primeiro isto:
"' Bem: e não entendes tu que seria uma indignidade ir eu perturbar o
sossego do pai de Corina, casando-lhe com a filha, por meio de um rapto ou da
intervenção da justiça?" (Castelo Branco, 1971a: 61). Responde João
Bernardo: "' Não entendo assim a dignidade. Se Corina consentir em ser
raptada para o mais santo dos intentos a que o coração a pode impelir; e, se
ela razoavelmente se não quiser sacrificar à ambição do pai, nem a tua honra,
nem a sua, nem a da família ilustre ou não ilustre, sofrem desaire"
(ibid.).
Pela precedência geracional e pelo poder (simbólico e real) que concentram em
si numa sociedade como a do Antigo Regime, não custa entender que os patriarcas
sejam, enfim, por excelência, depositários da honra. Na verdade, porém,
evidenciam, como é o caso do Doutor Alpedrinha ou de Januário Costa e Silva,
comportamentos pouco veneráveis.
A honra acha-se antes em heróis tipicamente românticos como João Crisóstomo,
como referimos. Em O Bem e o Mal, a certa altura, cruzando-se com Rui de Nelas,
Casimiro de Bettancourt, inadvertidamente, diz: "' Sr. Rui de Nelas, quem
me feriu na batalha foi a espada da honra" (Castelo Branco, 2003: 83)[9].
Assinalemos, no entanto, uma peculiaridade de João Crisóstomo. Sobretudo tendo
presente, novamente, um herói como Simão. No filho do corregedor Domingos
Botelho, o sentido da honra parece estar para lá das contingências sociais.
Simão mantém, pois, uma relação com o Direito que é a de quem não reconhece aos
tribunais legitimidade mínima para avaliarem o seu comportamento associal. O
herói posiciona-se acima dos juízes, reconhecendo como único juiz nada menos do
que Deus. Daí não precisar de validação social. Não sucede o mesmo com João
Crisóstomo. Note-se como este reage à oferta de Caetano Alves de fugir com
Albertina para o Brasil: "O seu pensamento do Brasil, encanta-me, sr.
Chaves! Trabalhar ao lado da mulher que amo, toda a vida! Morrer abençoado dela
e da sociedade! " (Castelo Branco, 1971: 125). Como se vê, o sonho de uma
vida em conjunto com Albertina não se afigura suficiente, sendo necessário
acrescentar outra componente inultrapassável: a bênção da sociedade. Esta
exigência de validade social é típica do Antigo Regime, onde as pessoas existem
não fora mas dentro da ordem social estrita. O desencontro do indivíduo com a
sociedade é, em larga porção, um dos vetores estruturantes do imaginário
mítico-simbólico romântico, como é sabido, e corresponde a uma necessidade
imperativa: afirmar a emancipação, em pleno gozo de liberdade, até aos confins
do absoluto. Não admira que a índole do herói romântico despreze a sociedade e
não raramente a enfrente abertamente sem escrúpulos de ordem moral. A ordem
antiga, essa, inscreve o indivíduo dentro do sistema social e define-o através
dele, sob pena de o punir com uma insuportável marginalidade. Como nota
Luhmann: "La naturalezadel hombre era su moral, sucapacidad de ganar o
perder el respecto en la vida social" (Luhman, 1998: 200). João
Crisóstomo é manifestamente dependente do julgamento social, o que não é
evidente numa personagem como Simão Botelho. Porquê? Provavelmente porque o
filho do Brocas descende da aristocracia de corte por parte da mãe e é filho do
corregedor de Viseu. Quer isto significar uma linhagem com certa relevância e,
como tal, capaz de conferir automaticamente reconhecimento social. Simão pode,
por esse motivo, dar-se ao luxo ' socialmente falando ' de esbanjar prestígio
cultivando alguma marginalidade, que não lhe afeta a relevância social
assegurada pela genealogia um tanto distinta. Por exemplo, "partiu muitas
cabeças" (Castelo Branco, 2004: 27) dos donos de umas vasilhas, vingando
assim o espancamento de um criado de seu pai. A pancadaria (que serve o
propósito de indicar a índole violenta e irrefletida mas também valente e justa
de Simão) não resultou em nenhuma ordem de prisão. Leia-se: "armado de um
fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico
espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira
espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor" (id.: 27). E
as queixas dos feridos de nada valerão. E mesmo depois de Simão cometer um
crime punível com a forca, não falta um juíz de fora a compadecer-se dele. Mas
Simão despreza ajudas e conselhos. Porque despreza a justiça dos homens. João
Crisóstomo é assaz diferente, desde logo por ser permeável ao crivo social.
Como não procede de uma família com bens e não beneficia da proteção de um nome
sonante, a honra, tudo bem considerado, consiste no único bem que socialmente
possui suscetível de o tornar superior aos detentores de património e/ou
linhagem. A honra é assim um capital precioso, capaz de pôr em causa o amor,
como sucede com outros protagonistas camilianos desfavorecidos socialmente,
porém apetrechados de um fortíssimo sentido de honra, não raro manifesto em
posições exageradamente intransigentes. Em Agulha em Palheiro, Fernando Gomes,
a certo passo do enredo, diz a Paulina: "' Vai, minha amiga, e esquece-
me, se quiseres e puderes. O que nunca poderás esquecer é que o homem, que te
não servia para o coração, tinha alguma boa qualidade que há de eternamente
viver em tua memória. Antes esquecido por ti, que desonrado por amor de ti,
Paulina" (Castelo Branco, 1904: 175-176)[10].
E é o caso, apenas para mencionar mais um exemplo, de António de Azevedo
Barbosa (Estrelas Propícias), protagonista sem vínculo genealógico, no entanto,
extremamente honrado e digno, o que lhe vale uma censura do ancião Valentim da
Costa, que lhe repara, com justeza, o excesso de dignidade:
Eu sei bem o que é a dignidade; achei que a sua se manteve sempre na
altura dos mais dignos homens de outros tempos; admirei-o e louvei-
o pelo que outros chamariam demasias de orgulho sob a capa de
independência; agora, porém, é chegada a hora de eu lhe dizer que,
assim como a suave religião se descaminha até ao fanatismo execrável,
assim a briosa dignidade, se perde o rumo do bom juízo, vai dar
consigo nuns excessos rudes, insociáveis e repelentes. A sociedade
aplaude os virtuosos, mas desadora os que fazem de sua virtude uma
tribuna para lhe censurar as fraquezas. O excesso do bem é um mal que
não me aproveita a mim, nem a outrem. Eu quero que António de Azevedo
se mostre alegre para que o mundo não diga que a honra tem uns
pavores interiores refratários ao contentamento. (Castelo Branco,
1971a: 197-198.)
Retornando a João Crisóstomo, cabe sublinhar o facto de a personagem, manchada
na honra, a não ser pela lógica do crime, não ter como recuperar o crédito
social. Fundamentalmente por não dispor de capital. Numa carta endereçada a
Albertina, o amanuense revolta-se contra a organização social rígida e aspira a
uma des-hierarquização: "Eram mal dissimulados prantos, ódios e
vociferações contra a férrea organização da sociedade" (Castelo Branco,
1971: 119). João Crisóstomo, é caso para dizer, envereda por um individualismo
revolucionário, expressão cunhada por Luc Ferry para designar o individualismo
emergente no contexto da Revolução (e antes) e que "se traduit par une
révolte des individus contre la hiérarchieau nom de l'égalité" (Ferry
& Renaut, 1987: 31). Desprovido de recursos, não obstante ter estado no
abundante Brasil (em pequeno e depois de casado), onde outros enriquecem
fartamente (é o caso de Caetano Alves), dir-se-ia marcado por uma inexorável
estrela funesta. Ao assediá-lo, o astuto e aviltante Agostinho José Chaves (sob
o nome falso de Caetano Alves) colocará, com argúcia, a ênfase da argumentação
na falta de dinheiro: "eu sei que vossemecê é um rapaz de boas
qualidades, trabalhador e honrado. Pena é que seja pobre" (Castelo
Branco, 1971: 121). Na palavra "pena" está contida a fatalidade
que, por mero acaso de nascimento, dissociou o dinheiro da pessoa honrada e
trabalhadora que é o amanuense. Ora, como muito bem diz D. Rozenda, em O
Carrasco de Victor Hugo José Alves, "Hoje em dia, não se respeita senão o
dinheiro " (Castelo Branco, 1902:63).Resta-lhe, ele que se
"contorcia[...] na angustiosa impossibilidade de provar sua
inocência" (Castelo Branco, 1971: 256), a possibilidade do crime
justiceiro', com o qual, pelo menos, recupera no íntimo de si mesmo a honra
conspurcada, embora à custa do amor. Veja-se a carta, na cadeia, dirigida a
António da Silveira: "Saldei as contas. Agora posso morrer. Caetano Alves
deve ter empastada no sangue da cara a denúncia que deu ao corregedor. Como a
sociedade, em vez de me vingar, me escreveu na testa o ferrete de ladrão,
vinguei-me eu" (id.: 291). E veja-se o bilhete que, pouco antes de
falecer, escreve a Albertina: "Apalpo a fronte e já não acho o ferrete.
Lavou-mo o sangue do assassino da minha honra. O teu marido não podia morrer
infamado" (id.: 282). E ainda, instantes antes de a morte o levar:
"' Minha mulher, já vês que te deixo a única herança que podia deixar: um
nome sem o ferrete de ladrão. A sociedade perdoará ao homicida " (id.:
288). E de nada adiantaram as súplicas de Albertina para que deixasse Caetano
Alves à mercê "da mão divina da Providência" (id.: 274). Há em João
Crisóstomo, digamos com Slavoj iek, um excesso de vida que dá pelo nome de
"honra", excesso pelo qual a personagem é, muito heroicamente,
capaz de sacrificar tudo o resto, inclusive a sua tão aspirada felicidade com
Albertina:
O que torna a vida digna de ser vivida é o próprio excesso de vida: a
consciência de que existe qualquer coisa em nome da qual estamos
dispostos a arriscar a vida (podemos chamar a esse excesso
"liberdade", "honra",
"dignidade", "autonomia", etc.). Só estamos
verdadeiramente vivos quando estivermos prontos a assumir esse risco
(iek, 2006: 119-120.)[11]
Assim, João Crisóstomo não resiste a querer fazer justiça com as suas próprias
mãos, com tudo o que isso inevitavelmente acarreta de nefastas consequências.
"O primeiro e mais frequente conflito é" ' Hegel dixit' "o
que se trava entre o amor e a honra. Com efeito, a honra possui o mesmo
carácter de infinitude do amor e pode, portanto, opor ao amor um obstáculo
absoluto. O dever da honra pode muitas vezes exigir o sacrifício do amor"
(Hegel, 1958: 251).
2.
António da Silveira não apresenta ambiguidades morais, sendo o único
protagonista de quem se pode dizer, em bom rigor, que possui uma conduta
inexcedível. Dir-se-ia o representante da bondade. Sem mácula, e a troco de
nada, empenha-se em socorrer tanto o pai desgostoso como os amantes em fuga,
ele que começou por nutrir amor pela filha do bacharel, recorde-se. Como
confessa a Albertina:
Foi V. Ex.ª a primeira mulher que os olhos de minha alma viram.
Levei-a em espírito às suaves solidões da aldeia onde nasci, e
imaginei quadros de uma felicidade tão ingénua, e abençoável em Deus,
que cheguei a crer na impossibilidade de renascer para mim um amor
semelhante [que, de facto, não renascerá por mulher alguma; o militar
permanecerá, como sabemos, solteiro]. (Castelo Branco, 1971: 61-62.)
Sabendo não ser correspondido, o cadete, sem demora, substituiu o desejo
amoroso por uma fraterna amizade, estendida de muito bom grado a João
Crisóstomo. O facto de ter sido preterido não desencadeou, muito ao inverso do
que sucede noutras novelas (pense-se, para referir talvez o caso mais radical,
em O Santo da Montanha), um nocivo sentimento de rivalidade mimética que, por
seu turno, descambaria para uma indesejável situação de antagonismo binário,
típica da psicologia sentimental dos triângulos amorosos.
De resto, a bondade de António da Silveira é reconhecida pelo doutor
Alpedrinha. O bacharel considera-o nada menos do que o "primeiro homem
honrado do globo!" (id.: 159). E dele dirá o corregedor: "É um
mancebo na infância do coração, nas primeiras quimeras da vida, não apalpada
ainda pela suja mão da experiência" (id.: 216). E, por sua vez, o
narrador, a certo passo, comentará: "Singular homem este! Aqui fazemos
alto para pedirmos à natureza excecional deste alferes de cavalaria a definição
de semelhante índole, que é uma das raras joias que eu conheço da
natureza" (id.: 51). E numa carta assinada por João Crisóstomo, encontra
António da Silveira estas palavras elogiosas: "Não me ofereço como
exemplo à sua vida, que é a de um justo" (id.: 292). Observe-se ainda,
com mais um exemplo, o que nos é dito, quase a findar a narrativa, e para
documentar o espírito de sacrifício da personagem: "No espaço de cinco
anos de expatriação, comportou pacientemente muitos dias de fome, para não
pedir a seu irmão excedentes às suas legítimas, que montavam a pouco"
(id.: 293).
2.1.
A "natureza excecional" de António da Silveira, diga-se, não é
alheia ao facto de o militar provir de Trás-os-Montes, ou seja, de um espaço
rural supostamente (ainda) impermeável à corrupção citadina. A ideia de pureza
do campo, bastante presente, como sabemos, na ficção camiliana, tende a
configurar António da Silveira na proporção de um bom selvagem e, com isso, na
medida de um herói inscrito sob o signo da moral de Rousseau (o privilégio da
virtude confinado à natureza). Esta presunção aparece na parte em que o doutor
Negro exclama ao cadete: "É um bom moço, sr. Silveira! é o senhor um
coração admirável! ' disse afetuosamente o doutor, apertando-lhe a mão. ' Meu
amigo, está inocente de mais para lidar com este mundo. Fuja destas úlceras. Vá
para a sua aldeia, e esqueça-se de que saiu de lá" (id.: 69). Mas também
se acha presente na tese segundo a qual a ignorância e a virtude andam
emparelhadas, ao passo que o saber (adstrito à cidade) acarreta a perversidade
(Emílio, recorde-se, dispunha até idade avançada unicamente de um livro).
Continua Francisco Alpedrinha, falando contra o saber como se a educação fosse
responsável por si só pelo comportamento da filha, que, saliente-se, recebeu
uma formação esmerada (entre outros saberes, lições de piano e francês):
Guarde esse ótimo tesouro [a virtude] para uma mulher que lhe há de
lá ir ter guiada pela mão do seu anjo bom. Se tiver filhas, não passe
com elas os limites da sua pequena área. Não lhes diga mesmo que
conheceu uma desgraçada desobediente a seu pai. Não as eduque.
Ignorância, que é a virtude: estupidez, que é a felicidade. Trevas,
trevas, meu amigo; que toda a luz de entendimento é uma faísca do
inferno. (Ibid.)
O próprio António da Silveira acaba por adquirir a nítida consciência da
oposição entre o campo (locusadstrito à virtude) e a cidade (locusafeto à
corrupção): "' Vou sair do Porto, sr. doutor: agora sim; é tempo de ir
esconder-me na minha aldeia, e esquecer o que vi e ouvi neste tremedal da
sociedade culta " (id.: 211).
João Crisóstomo, por quem o militar tanto intercede junto do doutor Negro, é,
convirá notar, quem mais se aproxima da virtude de António da Silveira, pelo
agudo sentido de honra por que se rege. Mas há outro aspeto ' refira-se ' que
os aproxima, posto que de modo distinto. É o facto de ambos se avizinharem da
figura de Cristo, o que não raro sucede com os protagonistas camilianos (sobre
a figura de Jesus Cristo no Romantismo ' ou seja: sobre a figura romântica de
Cristo ', veja-seJésus Romantique, notável estudo de Xavier Tilliette, 2002),
por uma razão simples de perceber e que consiste no facto de a figura de
Cristo, humana e divina em simultâneo, simbolizar a unidade com o absoluto, o
que é deveras consentâneo com a filosofia romântica. Como afirma Javier
Hernández-Pacheco: "Jesucristo es el Dios hecho hombre, y en este sentido
es el mediador, el que restablece la unidad fragmentaria del mundo con el
Espíritu Absoluto" (Hernández-Pacheco, 1995: 188). Não surpreende, assim,
que Cristo se tenha tornado numa figura apropriada ao projeto romântico. E
também numa figura implicitamente presente nalgumas personagens de Camilo, que
encarnam, por assim dizer, aspetos imputáveis à figura de Jesus, porém de
maneira diferente, cada qual lembrando Cristo a seu modo. Em O Bem e o Mal,
como nota José Augusto Mourão, "Bastaria cotejar a parte referente ao
processo judicial de Casimiro, sobretudo o interrogatório, para encontrar o fio
intertextual que o liga ao processo de Jesus" (Mourão, 1994: 424). O
mesmo se pode afirmar no que se reporta ao interrogatório do processo judicial
de Simão Botelho, e tudo o que vem depois. António da Silveira, esse, imita
Cristo noutro sentido: além de apelar à imitação do Messias, manifesta um
comportamento cristão (oferece, qual bom samaritano, guarida e amparo ao doutor
Negro, quando este se acha na miséria e esquecido dos amigos de outrora; e,
mais tarde, acode Albertina). Quanto a João Crisóstomo, é colado à personagem
de Jesus, como se o encarnasse, a começar pelo apelido Crisóstomo (derivado de
Cristo) e pelas iniciais do nome completo (J. C.); e dele vem dito a certa
altura que "Custava-lhe já a suportar a cruz, ainda com o ombro de
Albertina lacerado sob o peso dela" (Castelo Branco, 1971: 255; o itálico
é nosso); e o próprio, no momento em que a esposa o procura incentivar,
dizendo-lhe "' Confiança no Altíssimo, filho!", o próprio,
dizíamos, exclamará, numa clara apropriação de uma cena da crucificação de
Cristo: "Está nas mãos dele [Caetano Alves] esta esponja de fel, que se
me não despega da boca!" (id.: 274; o itálico é nosso). Para além disto,
mencione-se também a forma como, prestes a deixar este mundo, João Crisóstomo
evangeliza o materialismo do seu patrão: "e falou na imortalidade da alma
com tanta elevação, subtileza e compungimento, que arrancava prantos, e calava
no ânimo obdurado do argumentador filósofo" (id.: 286); e ainda esta
passagem, intertextualmente correlacionada com o estado de angústia de Cristo
no Monte das Oliveiras, na noite em que o prenderam: "E limpava um suor,
semelhante ao soro do último sangue" (ibid.).
2.2.
Se tivéssemos de categorizar António da Silveira, diríamos que parece provir do
hemisfério dos heróis românticos de tendência passiva. Elena Losada Soler (cf.
Soler, 1991), questionando a existência de um Romantismo heroico-trágico em
Portugal (indagação cuja resposta desemboca forçosamente na personagem Simão
Botelho) e seguindo a distinção de herói romântico proposta por Jan
Bialostocki, fala nesse tipo de herói romântico-trágico no qual filia o
protagonista de Amor de Perdição. É aquele protagonista romântico ativo e
dotado de uma coragem à prova de bala que se insurge contra o (fatal) destino.
Dominado por um avassalador entusiasmo, entrega-se a uma luta titânica (na
senda de Prometeu). A este tipo de herói romântico, próprio do primeiro
Romantismo (o Romantismo de Hegel, de Scheling, de Hölderin e que tem a ver com
a Revolução Francesa), opõe-se o protagonista do segundo Romantismo (correlato
com o contexto de uma burguesia triunfante). Neste caso, o protagonista já não
parece seguir Prometeu, não estando disposto a desgastar-se ao serviço de uma
(inútil) luta titânica. É exemplo suficiente deste (segundo) género de
indivíduo romântico o quase pacato António da Silveira. Pautado nitidamente
pelo pendor confessional, é um herói algo passivo (não obstante ser militar),
intimista e sentimental, numa palavra, dir-se-ia moldado pelos versos de
Lamartine. Eis como vem caracterizado a certa altura da narrativa:
"solitário pensador das fragosas montanhas penduradas sobre o rio
Córrego" (Castelo Branco, 1971:18). O que não é sem lembrar a definição
de Erich Auerbach relativa ao poeta romântico: "é um estranho entre os
homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a solidão e as efusões do
sentimento, sobretudo as de um vago desespero no seio da Natureza"
(Auerbach, [1987]: 228).Não custa ver em António da Silveira um poeta romântico
assim proposto. Tanto mais que é um leitor indolente de clássicos greco-latinos
(Cícero, Horácio, Virgílio), por isso "[que] amava a liberdade à romana,
a liberdade dos Gracos e dos Catões, por amor da qual uns cidadãos se
arrancavam as entranhas como Bruto, e outros ofereciam o pescoço à espada dos
pretorianos como Cícero, e as próprias mulheres se cortavam o seio com o punhal
como Caecina Paetus" (Castelo Branco, 1971: 18-19). Trata-se ainda de uma
personagem marcada por uma forte sensibilidade evocativa das comutações de
sinais de género. Repare-se na reação que apresenta, julgada inusual pelo
narrador, perante o repúdio de Albertina: "O cadete estava de pé; e,
quando em análogas circunstâncias, toda a pessoa discreta e briosa se
levantaria da cadeira para sair, é então que ele se assentou. Justificadamente
o fez; a arte pode estranhar o caso; mas a natureza admite-o: é que sentiu um
tremor e desfalecimento de pernas" (id.: 32).Esta reação mais não é do
que a manifestação do choque provocado por uma rejeição inesperada. Como diria
Luhmann: "cualquier comunicación, por cuidadosa que sea, expresa ciertas
expectativas de éxito que pueden reforzarse masivamente, sobre todo con ayuda
de todos medios de comunicación simbólicamente generalizados: quien declara su
amor se siente casi con derecho a ser amado" (Luhman, 1998: 187). À guisa
de justificação pelo seu comportamento, define António da Silveira, ao
narrador, o seu "modo de ser naquele tempo" (Castelo Branco, 1971:
30): "EU ERA UMA MENINA" (ibid.).
2.3.
Persiste, porém, na personagem um notório apego ao mundo tradicional, como se
nota em excertos como este: "[É] filho dócil e incapaz de sacrificar a
obediência às suas imaginações romanizadas pelos poetas e prosadores
latinos" (id.: 19). Mais: sujeita-se à vida militar sem vocação para
tanto e, pior, alinha num regimento oposto ao das suas convicções, isso tudo
por causa de um tio general, "português à antiga" (id.: 18),
responsável pelo seu ingresso no exército; e vale a pena recordar também a sua
insistência no sentido de Albertina obedecer ao pai (em nome da sociedade e
para pôr cobro ao sofrimento do ancião), a despeito de a saber apaixonada pelo
amanuense. Digamos que António da Silveira, personagem sensível aos afetos e ao
coração, detentor de uma candura que não anda longe da inocência do "bom
selvagem", é igualmente alguém disposto a conservar-se dentro dos
parâmetros da ordem convencionada pela tradição, apesar de a saber inadequada.
No início da novela, na parte do enredo em que Francisco Alpedrinha lhe sugere
que case com a filha, mesmo sem o consentimento dos pais, recorrendo à justiça
em caso de necessidade, António da Silveira retorque (antes de o doutor Negro
lhe cortar a palavra): "' Mas a desobediência " (id.: 26). Nesta
adversativa está contida a repugnância de o jovem cadete desobedecer aos
progenitores. Inversamente, João Crisóstomo e Albertina fizeram o que jamais
faria o militar.
E António da Silveira não só não desobedece aos pais como, ainda por cima,
vira, por assim dizer, filho (obediente) de Francisco Alpedrinha. Dir-se-ia ser
o filho que Francisco Alpedrinha gostaria de ter tido (e o magistrado, repare-
se, não deixa, no fundo, de ser o pai simbólico do militar). Neste sentido, o
cadete cumpre as vezes de Albertina, sendo ele quem cuida do magistrado. Leia-
se esta passagem, numa altura em que já não é possível ao doutor Alpedrinha
escamotear a miséria ' leia-se: expiação[12] ' que o assola:
António da Silveira, captando a confiança do criado, soube que os
recursos escasseavam em casa do doutor. Era já um viver de empenhos
de objetos desvaliosos, que os importantes estavam já vendidos ou
empenhados. [ ] Pediu [António da Silveira] a seu irmão morgado um
empréstimo, e com quanta delicadeza podia conseguiu que a mãe de
Albertina lhe aceitasse o necessário para as despesas de cada mês,
tirando a partido que o doutor seria estranho ao favor que a senhora
lhe fazia de o admitir com liberdade de filho. (Id.: 225; o itálico é
nosso.)
A devoção filial de António da Silveira irá mais longe. Com autorização do
irmão morgado, hospedará o casal Alpedrinha na casa familiar de Trás-os-Montes.
E, qual irmão, será também o cadete (por essa altura coronel), anos mais tarde,
a acudir a Albertina.
Tudo isto é significativo de Tradição e Modernidade. O que o torna num
protagonista de transição: digamos que António da Silveira sentecomo um
romântico, pelas suas manifestas aspirações românticas, mas comporta-secomo um
filho do Antigo Regime, por não se emancipar da tutela parental, não afrontando
os pais, designadamente em decisões a seu respeito, e com as quais discorda.
2.4.
Convém também enfatizar o papel técnico-narrativo da personagem do ponto de
vista da orgânica da diegese. Com efeito, António da Silveira serve, o que não
é pouco, de intermediário entre as partes desavindas; cabe-lhe o papel
imprescindível de estabelecer um elo entre Francisco Alpedrinha e a filha, mas
também entre João Crisóstomo e a opinião pública. Assim, o militar, que não
deixa de lembrar o virtuoso, e também ele mediador, Ladislau Militão (O Bem e o
Mal), funciona como espécie de epicentro informativo. Quer dizer, contacta com
as duas partes indispostas e troca informações. Deste modo, intervém direta e
decisivamente no desenrolar da intriga. Suficientemente cordato e afetivo,
relaciona-se com facilidade tanto com Francisco Alpedrinha como com João
Crisóstomo e Albertina. Acode àquele e a estes com a mesma desenvoltura e, por
vezes, com uma tocante candura. Quando acontece sair de cena (partindo para o
campo de batalha ou refugiando-se em Trás-os-Montes), a narrativa envereda pelo
sumário, o que diz bem da relevância da personagem.
Saliente-se ainda o seguinte: a pertinência de António da Silveira passa muito
pela resolução do conflito que afeta a família do doutor Negro. Constata-se
isso na parte da novela em que o militar planeia uma estratégia capaz de pôr
fim ao conflito que mina a família Alpedrinha, estratégia essa, se a quisermos
ler como tal, correlacionável com a teoria dos jogos desenvolvida pelo
matemático John Nash (cf. Nash 1966). A teoria dos jogos elaborada por Nash, e
para tentarmos resumir, assenta no chamado equilíbrio perfeito. Trata-se de um
equilíbrio suportado por uma regra como esta: "A two-persons bargaining
situation involves two individuals who have the opportunity to collaborate for
mutual benefit in more than one way. In the simpler case, [ ], no action taken
by one of the individuals without the consent of the other can affect the well-
being of the other one" (Nash, 1966: 1; 1950: 155). Supondo uma situação
de competição (leia-se: conflito) entre dois jogadores (J e Ja), como é usual,
cada um tende a convocar estratégias para derrubar o adversário. Nash apregoa
uma solução diferente: a cooperação, baseada em antecipações do que o
adversário fará, com vista a criar um contexto de coexistência equilibrada
entre os jogadores. Acontece isso quando um dos jogadores, vamos supor que
(Ja), usa como resposta ao que prevê ser a estratégia concorrencial de (J) uma
estratégia que se adapta à do adversário, resultando dessa adaptação uma
situação de equilíbrio entre os dois concorrentes, que, deste modo, acabam por
coexistir sem rivalidade, na condição, como é lógico, de o adversário atuar,
por seu turno, igualmente dessa maneira. O objetivo da estratégia, e das
subsequentes, consiste na obtenção de benefícios mútuos, instaurando-se um
equilíbrio perfeito entre os agentes do jogo. Quer dizer, (Ja) joga
estrategicamente a partir daquilo que supõe que (J) jogará, sendo que a jogada
não trará somente proveito a (J), porém igualmente a (Ja), que, por seu turno,
considerará (J) nas jogadas a empreender. É anulado o confronto em prol de uma
atitude cooperativa entre os jogadores. Supondo que o adversário pretende a
nossa peça, ao invés de gastarmos uma jogada a defendê-la, cedêmo-la pura e
simplesmente; e, na nossa vez de jogar, apropriamo-nos então, se possível, de
uma peça do adversário. Desta forma, continuamos equilibrados em termos de
peças e cada um de nós satisfez a sua estratégia. É claro que à medida que a
partida avança o jogo terá de pender para um dos jogadores. Ainda assim, o
equilíbrio perfeito de Nash tem aplicabilidade em numerosos jogos e desportos).
[13]
E como é que isto tudo se aplica ao texto de Camilo? Regressando a António da
Silveira, não é preciso especial clarividência para verificar o quanto o
militar se empenha na procura, precisamente, de um equilíbrio perfeito, com o
qual traria paz à família Alpedrinha. Primeiro, tenta convencer o doutor Negro
a ceder à pretensão de a filha se unir com o ex-empregado, "lá mais ao
diante" (Castelo Branco, 1971: 44), depois, ainda lhe solicita, pelo
menos, a libertação do amanuense (Francisco Alpedrinha contrapõe, como sabemos,
com o receio de que, uma vez liberto João Crisóstomo, Albertina escape do
convento e case), por fim, António da Silveira propõe uma terceira alternativa,
a que, ao que cremos, corresponde a uma tentativa de resolver a crise com um
equilíbrio perfeito: "dê o perdão condicional ao preso; ele que vá do
Porto para longe, e sua filha que volte à companhia do pai" (id.: 46).
Como passo seguinte, o cadete desloca-se à cadeia da Relação do Porto com o
intuito de convencer o amanuense a exilar-se e, com isso, a renunciar (por ora)
a ostentação da relação amorosa. Assim, o militar atua no sentido de criar um
equilíbrio entre todos, do qual resultaria a reconciliação entre pai e filha,
preparando uma jogada baseada numa suposição prévia em relação à atuação do
doutor Negro: que este perdoará ao amanuense, desde que este se exile para
longe de Albertina. E neste cenário pré-definido todos ficam a ganhar.
Para Alpedrinha, seria decerto a maneira menos custosa de recuperar a filha e
de se desembaraçar do indesejado candidato a genro; e se o magistrado
recuperaria a filha, o amanuense recuperaria a liberdade.
E Albertina? Em guisa de resposta, eis mais uma estratégia do cadete com a
finalidade de racionalmente resolver o diferendo com o máximo de ganhos para
cada uma das partes e, novamente, com base numa suposição:
[ ] achava eu de suma conveniência, interesse até da vida de ambos,
que pactuassem entre si um corte completo de correspondência, e
esperassem. O doutor oferece pouca vida, se me não engano; e o senhor
sacrificando-se, sem vexame de coração, dará ao pobre velho a filha,
cuja ausência o mata, e mais tarde voltará a procurá-la, sem o
remorso de ter cavado a sepultura de dois velhos. (Id.: 50.)
Como se constata, António da Silveira, baseado em suposições referentes à
atuação de Francisco Simões, esforça-se por resolver o conflito que opõe o
magistrado à filha; e isso pelo viés de uma situação de equilíbrio perfeito
entre todos os envolvidos, quer dizer, uma situação que ponha fim ao dissídio,
sem (grandes) prejuízos, antes com ganhos (o respeito pela vontade do pai, mas
igualmente, no fim de contas, a concretização do desejo, ocorrendo como que uma
espécie de conciliação possível entre a obediência filial imposta pela
mentalidade do Antigo Regime e a demanda de emancipação exigida pela
modernidade romântica). Neste equilíbrio incentivado por António da Silveira,
todos, ao fim e ao resto, acabariam por conseguir o que acalentam.
O problema está em que António da Silveira não contava decerto com a oposição
de Albertina, que põe de parte qualquer hipótese de solução que solicite o
refúgio do amado em terra distante.
O que, é bom dizer, acarreta uma consequência decisiva no tocante à arquitetura
narrativo-textual: proporciona a irresolução do conflito, sem o qual a intriga
deixaria de prosseguir.