Consequências do realismo na construção de teoria sociológica
Just don't get too complicated, Eddie (Sociology). When a man gets too
complicated, he is unhappy. And when he is unhappy, his luck runs out. (Raymond
Chandler)
Os sociólogos voltaram, uma vez mais, aos debates metateóricos sobre a sua
disciplina, em termos de crise, de objectivos e propósitos fundamentais, de
núcleos e identidades.1 Vê-se hoje defendida com frequência a ideia de que,
internamente, o campo se está a tornar demasiado fragmentado e de
que,externamente, a procura de conhecimento sociológico está a diminuir. A
nível interno, a disciplina é marcada pelo que Donald Levine (1997: 1) chama
"confusão pluralista". Segundo Irving Horowitz, "a sociologia
degenerou em puro empirismo, deixando de ser guiada por perspectivas teóricas
credíveis" (em Giddens, 1996: 2). Na Suécia, Göran Ahrne (1997: 225)
declara que "decorre na sociologia um processo de fragmentação, abrangendo
teorias e métodos, tal como objectos de estudo" e, na Noruega, Fredrik
Engelstad (1996: 225) escreve que a sociologia está "encurralada entre
compromissos políticos, por um lado, e uma pseudofilosofia atraente, por
outro". Entretanto, em Inglaterra, Nicos Mouzelis (1995: 6) lamenta que
"a teorização sociológica tenha dado lugar a discussões amadoras sobre
temas ontológicos/epistemológicos e a tentativas de reduzir o estudo das
sociedades complexas a investigações sobre a linguagem, o discurso, os textos,
o inconsciente, entre outras". Barry Barnes (1995: 1) assinala o desânimo
provocado pelo facto de aquilo que actualmente existe como teoria sociológica
ser "uma imitação de teoria, um substituto para a teoria, uma amálgama de
crítica, filosofia, taxonomia, história, biografia de teóricos, ou seja,
praticamente tudo excepto teoria propriamente dita".
Como consequência, a sociologia parece envolta num processo de fragmentação.
Claro que este espectro de direcções pode ser entendido como algo interessante
e enriquecedor, um sinal de que a disciplina está na ordem do dia, mas pode
também ser visto como um fenómeno negativo, ou mesmo redutor, no sentido em que
uma possível identidade da disciplina parece dissolver-se. Neste artigo, irei
abordar a questão nesta segunda perspectiva, tomando a fragmentação da
sociologia como um problema. Relativamente, quer ao problema, quer a possíveis
soluções, sustento duas convicções:
· a sociologia precisa decididamente de uma nova filosofia da ciência que
contribua para a sua estabilização, sobretudo fornecendo bases para a criação
de uma plataforma comum e de um objectivo partilhado pelos diversos sociólogos.
· O calcanhar de Aquiles da sociologia contemporânea consiste no seu fraco
desenvolvimento teórico, pelo que a disciplina deve ser reforçada no que
respeita à teoria sociológica(não se limitando a adaptar teorias de outras
disciplinas).2 Torna-se, pois, imprescindível que a sociologia procure ser uma
ciência explicativa, empenhando-se num aprofundamento do conhecimento teórico.
Para isso, é fundamental, primeiro que tudo, uma elaboração teórica do objecto
da sociologia, entendido como demarcação e definição de uma realidade cuja
teoria sociológica pretende explicar, que não é necessariamente a mesma que a
realidade espontaneamente observada, mas que tem a ver com objectos de estudo
ou modelos específicos.3
Nas páginas que se seguem, voltarei um pouco atrás, começando por algumas
considerações sobre a relação actual entre a sociologia e as filosofias da
ciência. Posteriormente, preocupar-me-ei em apresentar uma filosofia
alternativa, ou metateoria, para a sociologia, baseada no realismo crítico, mas
a que chamei "realismo causal" como se verá adiante, o realismo
causal pode ser visto como uma subcategoria do realismo crítico. Por fim, serão
enunciadas e discutidas algumas implicações do realismo causalna sociologia,
dando particular importância à construção de uma estratégia que aumente a
ambição e a capacidade da sociologia em desenvolver teoria.
Devo ainda referir que, originalmente, a ideia deste artigo seria apresentar
uma linha de pensamento, mantendo-se à parte de pequenos detalhes, possíveis
objecções, e por aí fora. (Parafraseando Nietzsche: disponho-me a filosofar com
um machado, não com pinças). Contudo, algumas discussões sobre este tema
mostraram-me que isso é praticamente impossível: objecções-tipo surgem
frequentemente, desviando o debate dos tópicos centrais. Por conseguinte, este
artigo inclui um denso conjunto de notas finais dedicadas à consideração de
alguns comentários críticos. Talvez deva também mencionar que nada de novo será
apresentado seguidamente. Pelo contrário, orientado pelas duas proposições
acima enunciadas, dedicar-me-ei a reorganizar peças de um velho puzzle.
Filosofias da ciência e sociologia
A filosofia de uma ciência constitui a sua superestrutura específica, no
sentido em que determina um quadro teórico através do qual a ciência em questão
é apreendida e compreendida e os critérios científicos são formulados. Uma
estrutura teórica envolve, simultaneamente, limitações e potencialidades.
Define aquilo que é ou não científico, bem como aponta os métodos legítimos, os
tipos de soluções adequadas, os problemas relevantes, etc.; em suma, apresenta
um conjunto de critérios, regras, questões e modos de procedimento. Além disso,
e utilizando a terminologia de Imre Lakatos (1970), uma filosofia da ciência
pode, durante uma fase, desempenhar uma influência estimulante numa determinada
disciplina, passando posteriormente a ter efeitos de estagnação ou até de
degeneração.
O positivismo lógico, formulado pelo Círculo de Viena durante os anos 20,
constituiu uma forte reacção ao neo-romantismo e às tendências especulativas
que marcaram o século XIX, muito influenciados por Hegel. Colocando a ênfase na
verificabilidade empírica, contrapôs-se assim à pura divagação metafísica.
Neste sentido, impulsionou o progresso científico, limitando o alcance do
discurso científico e abrindo, paralelamente, um enorme campo de possibilidades
através da importância dada à ancoragem empírica. Contudo, numa fase avançada
do século XX, o positivismo nas ciências sociais passou a ser sinónimo de
observação, quantificação e medição, com frequência como se fossem "auto-
suficientes" na sua justificação. Ser científico tornou-se uma limitação
associada a um determinado método, segundo o qual a estatística e os programas
informáticos avançados se assumem frequentemente enquanto valores principais da
pesquisa. (Na verdade, a ênfase colocada nas medições e nos números, proposta
por Hume, Kelvin e outros "antimetafísicos", parece ter sido
transformada numa nova doutrina científico-social. Como se a estratégia de Hume
(1748/1999), bem patente no neologismo "Contém esta teoria algum
raciocínio abstracto relacionado com quantidades ou números? Não então,
atirem-na à fogueira", tivesse sido convertida em "Se não é possível
quantificar um dado fenómeno, quantifiquem-no de qualquer maneira"). Uma
das principais explicações para esta tendência reside no desenvolvimento, na
área da informática, de sofisticados programas de análise de dados que
reduziram a metodologia quantitativa a um ramo da estatística. O resultado
parece ser que, como assinala Aage Sörenssen (1998: 238), "a sociologia
quantitativa é actualmente menos informada teoricamente e menos relevante para
o progresso teórico do que era há três décadas atrás". Paradoxalmente, a
ambição antimetafísica ou positivista de ser científico acabou assim, em
algumas situações, por engendrar o seu contrário.
A crítica ao positivismo, a partir dos anos 60, pode ser compreendida de
diversos modos, por exemplo, com base em variáveis socioeconómicas, mas
reflecte também o facto de, em muitas áreas, o positivismo ter deixado de
contribuir para o progresso científico, estabelecendo-se como uma metateoria
dogmática que conduz à estagnação. As reacções antipositivistas pretendiam
assim libertar as ciências dos estereótipos acerca de uma base observacional
objectiva e neutra, de modo a permitir o desenvolvimento de teorias que
"produzissem" novos tipos de observação, quer nas ciências sociais,
quer na física quântica. As críticas empiristas de Thomas Kuhn e, sobretudo, de
Paul Feyerabend ao positivismo e ao racionalismo crítico transformaram-se em
filosofias da ciência extremamente relativistas, por vezes interpretadas como
uma afirmação de que vale tudo, sendo possível que "cem flores
desabrochem".4
Ainda que muito tenha acontecido desde os anos 70, estas duas tradições que,
muito genericamente, resumo aqui ao positivismo e a um conjunto de relativismos
epistemológicos continuam a dominar o campo da sociologia, constituindo pólos
opostos entre os quais se posicionam as discussões acerca da natureza e do
projecto da disciplina. O positivismo está assim inexoravelmente associado ao
que Dag Österberg (1988) chama "estatísticas sociais", e que segundo
o autor devem ser diferenciadas da sociologia com ambições explicativas. O
relativismo desembocou em pós-modernismo, pós-estruturalismo, construtivismo
social e análise discursiva, nas suas versões linguística ou cultural. Comum a
todas estas correntes está a não aceitação de qualquer critério científico, por
vezes pondo mesmo em causa a ligação entre os sistemas conceptuais científicos
e a realidade exterior. Nestes últimos casos, a ciência é entendida enquanto um
conjunto de discursos envolvendo conceptualizações de objectos inexistentes ou
construídos durante o processo científico; o referente acaba por ser apenas
mais uma construção reificante.
Devemos não esquecer que, apesar destas considerações, é extremamente difícil
precisar o que na verdade defendem as correntes "positivistas" ou
"ultra-relativistas", visto ambas serem intrinsecamente vagas.5
Porém, de acordo com a minha perspectiva, o ultra-relativismo deve ser
entendido, em muitos aspectos, como uma reacção ao positivismo, ou pode até ser
visto como a face oposta do mesmo. A nível metodológico, temos assim, por um
lado, a análise de variáveis empíricas e mais genericamente uma ênfase nos
métodos quantitativos e, por outro, análises discursivas, de teor narrativo,
valorizando os métodos qualitativos. Ambas comportam imensas limitações. Se,
num caso, os objectos não-observáveis são ignorados, no outro, qualquer análise
do social baseia-se obrigatoriamente nas motivações subjectivas da acção. Em
termos epistemológicos, enquanto uma corrente demarca o conhecimento científico
de todas as outras formas de conhecimento, a outra nega a existência ou mesmo a
possibilidade de qualquer demarcação; enquanto uma proclama a superioridade da
ciência, a outra sublinha a relatividade e, em última instância, a igualdade de
todas as formas de conhecimento. Em termos ontológicos, enquanto uma tradição é
fenomenológica, a outra tende a aproximar-se do idealismo. Por fim, na dimensão
política, tanto os primeiros positivistas como os relativistas contemporâneos
vêem-se a si próprios enquanto radicais, se bem que é discutível que o sejam.
Além disso, pelo menos hoje em dia, o positivismo é frequentemente conotado com
o elitismo e com o etnocentrismo, enquanto a não aceitação relativista da
possibilidade de um conhecimento superior parece minar todas as possibilidades
de uma crítica racional da sociedade, conduzindo-nos de volta aos velhos tempos
do "poder absoluto e inquestionável". No seu último livro, Feyerabend
(1995: 152) é explícito quanto a estas duas limitações: "O objectivismo e
o relativismo não são apenas vulneráveis enquanto filosofias, mas fornecem
também orientações desadequadas para um entendimento cultural bem
sucedido".
Requisitos metateóricos
O quadro atrás descrito leva-me pois a considerar que, actualmente, tantoo
positivismo como o ultra-relativismo têm consequências negativas para o
desenvolvimento da sociologia. Deve-se notar que ambas as correntes são
inspiradas por ciências e filosofias exteriores à sociologia, em parte por
influência de uma concepção das ciências naturais(aliás, bastante mal
informada), em parte devido à filosofia pós-estruturalista de raiz neo-kantiana
ou nietzscheana. Contudo, urge à sociologia pensar seriamente no seu próprio
projecto a partir dos seus conhecimentos e necessidades. Através dos tempos, a
sociologia conquistou uma maturidade que lhe permite hoje em dia impor-se
autonomamente, assegurando ao seu conhecimento uma certa especificidade. Neste
sentido, torna-se necessária uma concepção de sociologia enquanto ciência que
não impeça quer a investigação quer a imaginação sociológica, e que, ainda
assim, promova uma certa unidade em torno de determinados objectivos gerais.
Nenhuma das filosofias da ciência existentes permite responder a esta
necessidade, daí que seja preferível utilizar o conceito de
"metateoria", localizado a meio caminho entre a filosofia geral das
ciências e uma dada ciência em particular. Concretamente ao nível da
sociologia, que tipo de exigências devem ser requeridas a uma superestrutura
desse género? De seguida, desenvolvo três requisitos que, na minha perspectiva,
são fundamentais:
Uma metateoria deve ser tão simples e directa quanto possível, sem com isso
deixar de ser sofisticada, isto é, tomando obrigatoriamente em consideração as
descobertas básicas da filosofia da ciência, como a tese da dependência teórica
dos factos, da existência de paradigmas ou da inexistência de critérios
absolutos de verdade e de selecção das teorias, e relacionando-as com as
condições e necessidades da disciplina empírica. Afirmar que uma metateoria
sociológica deve ser simples e directa significa que não deve conduzir a
intermináveis estudos filosóficos, mas sim constituir uma plataforma que
oriente os investigadores relativamente ao objectivo geral da sua disciplina
(ver a continuação abaixo). A sociologia é uma disciplina intelectual e deve,
na verdade, continuar a sê-lo, mas fundamentalmente dentro do seu próprio
domínio demasiada diversidade implica uma complexidade impossível de gerir,
acabando a disciplina por run out of luck.
Uma metateoria sociológica deve, tendo em conta a situação fragmentada que
caracteriza o presente da disciplina, permanecer imparcial face às teorias e
métodos existentes, ou seja, deve defender o pluralismo teórico e metodológico.
Simultaneamente, deve também definir objectivos e condições gerais para a
disciplina, mantendo-se à parte de teorias e métodos específicos.
Uma metateoria deve enfatizar a dupla relevância, disciplinar e social, das
investigações sociológicas. Podemos imaginar estes dois objectivos enquanto
pólos de um continuum. As pesquisas sem relevância social lidam com
enigmasinternos e esotéricos. Ainda que em alguns casos esse tipo de
investigações também seja crucial, o corpo principal da sociologia deve incidir
sobre temas de importância social e política. No pólo oposto, situam-se
trabalhos sem relevância disciplinar, como relatórios públicos ou artigos
politicamente influentes, escritos por sociólogos, mas nos quais não é possível
discernir quaisquer competências sociológicas em última instância, qualquer
pessoa os poderia ter elaborado. A maior parte dos estudos sociológicos deve
assim encontrar uma posição de equilíbrio entre estes dois pólos.
Realismo causal
Permitam-me, neste momento, uma breve apresentação daquilo que designei por
"realismo causal". A denominação permite distinguir esta proposta de
outras teorias, rotuladas de realismo ingénuo, realismo empírico, realismo
científico, neo-realismo ou realismo crítico. Apesar das inúmeras influências,
nomeadamente do realismo crítico, a alternativa que apresento comporta algumas
diferenças significativas.6 Começarei então por enunciar os princípios gerais
do realismo causal. Posteriormente, desenvolverei três dos seus conceitos
principais: causalidade, mecanismo e realidade estratificada.7 Por fim,
procurarei discernir algumas das consequências relativas ao modo como a
sociologia deve ser concebida, bem como relativamente às áreas de pesquisa
fundamentais, de acordo com esta metateoria e com os seus conceitos-chave.
Princípios do realismo causal
Os debates filosóficos a propósito das múltiplas variantes do realismo (ou
materialismo) e do idealismo parecem perpetuar-se e, na verdade, não existe
qualquer método, filosófico ou de outra natureza, que lhes possa pôr um ponto
final. Manter-me-ei assim afastado deste debate interminável, enunciando os
três princípios ou axiomas do realismo causal:
1 princípio ontológico: existe uma realidade independente das nossas
representações ou da nossa consciência dela;
1a princípio ontológico para as ciências sociais: existe uma realidade
social independente das nossas representações ou da nossa consciência dela;
2 princípio epistemológico: é possível adquirir conhecimentos relativos a
essa realidade;
3 princípio metodológico: todo o conhecimento é falível e corrigível.
Voltarei a estas questões mais tarde. Por agora, é importante assinalar que o
princípio 1 pretende colocar um ponto final nas discussões gerais sobre se
existe realmente uma sociedade, se ela apenas é produto exclusivo da mente
humana e por aí adiante. Todavia, este princípio não pressupõe que apenas
exista a dimensão "material". Basta recordarmos a definição
durkheimiana de factos sociais. A realidade social é material e mental. Por
outro lado, o princípio 2 responde às questões sobre a possibilidade genérica
da sociologia, declarando ou assumindo que teorias como as de Marx, Weber,
Durkheim ou outras mais actuais dizem realmente qualquer coisa acerca dos seus
objectos de estudo; ou seja, afirma a existência de um conhecimento sociológico
genuíno. Por fim, o princípio 3 toma em consideração os progressos da filosofia
da ciência durante as últimas décadas, nomeadamente os referidos princípios da
indeterminação, dependência teórica, inexistência de critérios de veracidade
absolutos, a existência de paradigma, entre outros. Além disso, o princípio 3
admite que os conceitos científicos possam não ser construídos a partir de um
referente externo ou real. No entanto, a questão referencial não é uma questão
axiomática ou filosófica que possa ser resolvida a priori,como parecem
acreditar muitos dos defensores do construtivismo social. Pelo contrário, é
algo que deve ser minuciosamente investigado a nível empírico, caso a caso.
Causalidade
A resposta mais simples à questão do objectivo último da ciência é a de que
procura fornecer explicações causais de efeitos. Os efeitos podem ser
virtualmente qualquer coisa e dizer respeito a fenómenos como o sol desaparecer
no horizonte, pedras caírem ao chão, grupos sociais cooperarem ou competirem,
pessoas adoecerem, estarem alegres, etc. As explicações podem ser de vários
tipos, desde complicadas equações matemáticas a simples declarações de que um
determinado acontecimento precedeuum dado efeito.
Apesar de poder parecer evidente, na verdade, esta afirmação é extremamente
controversa no âmbito da sociologia. As razões desta polémica emanam de
anteriores filosofias da ciência. (Realmente, do ponto de vista do senso comum,
uma das ideias mais notáveis, quer na filosofia da ciência tradicional, quer na
sua versão moderna, é a dupla negação, positivista e fenomenológica, do
conceito normal de causalidade). O conceito positivista de causa a teoria da
regularidadedesenvolveu-se a partir do famoso tratado de David Hume, que
define causalidade enquanto a associação entre fenómenos observáveis, de acordo
com a conhecida expressão: diz-se que o fenómeno A constitui a causa para o
fenómeno B, se e só se A e B estiverem ligados no tempo e no espaço, A ocorrer
antes de B e existir uma relação constante entre causa e efeito, A e B.
Relativamente à sociologia, isto conduziu a que sobretudo após o aparecimento
dos programas informáticos de longo alcance - a análise causal se tenha tornado
equivalente ao cálculo da covariação entre variáveis quantitativas, ou seja, à
definição de até que ponto a variação em A (C, D, E, , x) dá origem à variação
em B. Esta concepção de causalidade é, em primeiro lugar, discutível por razões
meramente teóricas, em segundo, restringe a sociologia a um conceito muito
limitado de causalidade e, em terceiro, existem concepções causais alternativas
perfeitamente plausíveis (Ekström, 1994).
Além disso, definir causalidade enquanto regularidades entre fenómenos
observáveis implica rejeitar as teorias sociais clássicas, bem como grande
parte da sociologia contemporânea. Marx, Weber, Durkheim, Parsons, entre
outros, trabalharam com entidades não observáveis geradoras de efeitos
observáveis. O conceito marxista de relações de produção específicas ou a noção
de Freud acerca do inconsciente dizem respeito a estruturas que envolvem
mecanismos causais. Isto para explicar que somos obrigados a rejeitar a maior
parte do pensamento sociológico, a não ser que alarguemos o nosso conceito de
causalidade. De passagem, pode-se notar que, de acordo com o conceito
positivista de causalidade, também uma grande parte das ciências naturais não
seria aceitável, incluindo a lei da gravidade e a teoria da selecção natural.
Ambas se referem a entidades não observáveis capazes de gerar efeitos
observáveis. Para mais, segundo a minha perspectiva, mesmo as teorias clássicas
da sociologia não directamente associadas a análises causais trabalham
implicitamente com modelos causais. Por exemplo, as "genealogias" de
Foucault, as suas análises da(s) história(s) da loucura, do conhecimento, das
punições ou do amor, não são mais do que tentativas originais de identificar
conjuntos muito alargados de estruturas sociais que dão origem a fenómenos
particulares. Tal como este modelo explicativo de Foucault, muitos outros
modelos causais poderiam facilmente ser descritos.
Consequentemente, a noção alternativa defendida neste artigo concebe a
causalidade de um modo mais aberto e "permissivo". Não será este o
espaço adequado para entrar em pormenores sobre esta questão, mas parece-me
importante reter algumas ideias. Em primeiro lugar, a causalidade não deve ser
definida enquanto regularidades universais e normativas entre duas observáveis,
A e B. Podemos entender essa definição apenas como um dos pólos de um
continuum, em que a outra extremidade será algo como "em certas
circunstâncias, é provável que B ocorra", e que diz respeito a situações
em que, por exemplo, uma relação causal apenas algumas vezes se estabelece. A
primeira forma de causalidade ocorre quase exclusivamente na física, as
restantes ciências registam poucas ou nenhumas leis de validade universal. Como
assinala Clark Glymour (1983: 127), a ciência, na sua generalidade, consiste em
explicações causais sem a forma de leis. Em segundo lugar, em termos práticos,
a causalidade ocorre na forma de tendências, em parte porque outras
causalidades podem neutralizá-la, levando a que efeitos esperados ou efeitos
encadeados não se manifestem necessariamente a nível empírico. Por exemplo, um
programa de racionalização lançado por uma empresa pode ser neutralizado por um
forte sindicato de trabalhadores. O corpo humano é frequentemente atacado por
perigosas bactérias, as quais, em geral, são neutralizadas pelo sistema
imunitário. As tendências existem mesmo que os efeitos sejam anulados. Uma base
geral para compreender os conceitos de causalidade e de probabilidade, nos
sentidos que aqui são defendidos, é magistralmente sintetizada por Karl Popper
(1990) na expressão "um mundo de propensões". Em terceiro lugar,
particularmente nas ciências sociais, devemos admitir o conceito de "poder
causal" como dizendo respeito a uma capacidade ou disposição de um objecto
ou actor. Uma bomba possui a capacidade ou poder de explodir. Um ser humano que
trabalhe constitui um poder causal. Caso se encontre desempregado ou não esteja
a trabalhar, isso não significa que não possua o poder causal, ou a capacidade
latente, de trabalhar (Sayer, 1992). A capacidade intrínseca juntamente com a
situação externa gera a propensão. Em quarto lugar, possivelmente como forma de
fazer sobreviver a concepção positivista de causalidade enquanto associação
constante, os textos sociológicos encontram-se repletos de termos de relação
apelativos como "influência", "afecta", "surge
associado a". Contudo, estes termos não devem ser vistos enquanto soluções
inadequadas, mas sim como indicações de problemas que precisam de ser
examinados mais em pormenor. Uma terminologia mais directa, que incentivasse
termos "ousados" como "causa", poderia ser útil para focar
o debate na natureza das relações.
Assim, o conceito de causalidade está intimamente relacionado com os de
compreensão e explicação.8 Uma regularidade observada por exemplo, que os
jovens provenientes de grupos sociais desfavorecidos seguem menos
frequentemente estudos superiores ou que, pelo desempenho de tarefas idênticas,
as mulheres auferem salários mais baixos que os homens, em ambos os casos
apesar da igualdade formal não corresponde como tal a uma explicação. Para
compreender regularidades deste género, é pois necessário identificar os
mecanismos sociais que determinam a manutenção das desigualdades reais. A maior
parte das vezes, isto implica ir além da descrição das regularidades visíveis,
empregando métodos não estatísticos, de modo a analisar componentes que podem
contribuir para os fenómenos que estamos a estudar. Como comenta Nancy
Cartwright (1983: 10): "Se nos restringíssemos às leis de associação,
encontraríamos no comprimento da sombra uma explicação tão credível para o
tamanho da haste da bandeira como o contrário".
Sintetizando esta síntese: em vez de nos basearmos numa rígida filosofia
positivista de causalidade, tentando posteriormente integrar o cepticismo e a
dúvida, poderá ser mais apropriado partir do princípio 2 acima enunciado. Isto
implica reconhecer que a sociologia é realmente susceptível de produzir e
expressar conhecimentos genuínos acerca da realidade social e, em seguida,
reflectir sobre a questão: nesse caso, que tipo de mundo, que tipo de
causalidade e que instrumentos explicativos devem ter lugar? Partimos assim do
próprio conhecimento sociológico e não de princípios filosóficos. Isto
significa que a sociologia não deve ignorar o conceito de causalidade devido à
definição positivista, pois o positivismo não detém o monopólio sobre este
conceito. Pelo contrário, a sociologia deve aceitar relações causais tais como
causalidade estrutural, causalidade expressiva, causalidade recíproca, ciclos
causais retroactivos, causalidade intencional, causalidade funcional e por aí
fora. Na verdade, se queremos continuar a reflectir acerca da sociologia
enquanto ciência, conceitos tradicionais como causalidade, mecanismo,
explicação, cumulatividade, entre outros do mesmo género, devidamente
redefinidos, são indispensáveis.
Em termos ontológicos, esta posição implica que tanto o observável, como a
capacidade causal constituam critérios de existência, sendo esta uma das
principais razões para a denominação "realismo causal".
Mecanismos
A realidade encerra uma infinidade de processos causais. Uma ciência natural ou
social não tem capacidade, nem pretensão, de descrever ou explicar todos eles.
Nenhuma ciência natural pode prever onde vai pousar uma folha levada pelos
ventos de Outono. Aliás, como mostraram os teóricos do caos, os movimentos de
uma borboleta na China podem provocar precipitação em Lisboa. Assim, o
objectivo das ciências naturais não é mais do que procurar identificar os
mecanismos básicos e duradouros nos quais assentam os fenómenos observados. As
ciências sociais encontram-se na mesma situação. Uma pessoa que passeia pelas
ruas de uma cidade é influenciada por inúmeros factores carros em circulação,
montras sugestivas, outras pessoas com quem conversar. A tarefa da sociologia
não pode ser a descrição desta panóplia de factores, mas, à semelhança das
ciências naturais, a identificação das estruturas e mecanismos relativamente
duradouros que, numa maior ou menor escala, produzem os fenómenos observados, o
que coincide, por exemplo, com as análises da interacção social de Erving
Goffman, centradas especificamente nos mecanismos que regem os comportamentos
típicos nos encontros de rua.
Os mecanismos encontram-se incorporados nas estruturas, isto é, são
"estruturalmente dependentes". Uma estrutura é uma configuração de
elementos relativamente duradoura. Uma configuração específica de elementos
determina que alguns acontecimentos sejam possíveis, prováveis ou necessários,
enquanto outros são impossíveis ou implausíveis. No caso das ciências naturais,
podemos dizer que um mecanismo é aquilo em que sebaseia e sobre o qual se
debruça uma lei natural. Por exemplo, o mecanismo de "atracção" é a
base da lei da gravidade. Por outro lado, nas ciências sociais, um mecanismo
pode ser aquilo que está na base de uma associação estatística. Se for
descoberto que penas duras e longas têm como consequência, a longo prazo, o
aumento das disposições para o crime, as condições e processos que originam
esta situação constituem o mecanismo ou mecanismos, e faz parte da tarefa do
criminologista explicar esta relação, através da identificação dos mecanismos
que produzem o referido efeito. Um mecanismo pode assim ser definido como o
modus operandi que faz com que uma situação se transforme (ou não) numa outra.
Realidade estratificada
Como afirmou Louis Althusser, para o positivismo a realidade apresenta-se plana
e homogénea, enquanto na verdade é profunda e complexa. Deste modo, o
positivismo concebe a realidade como uma superfície constituída por fenómenos
identificáveis e observáveis de uma maneira sistemática e relativamente não
problemática. Ao longo da história da filosofia, esta ontologia monista foi
inúmeras vezes posta em causa, além de que o próprio desenvolvimento da ciência
se encarregou frequentemente da formulação de propostas ontológicas
alternativas.
Apesar de se distinguir das ciências naturais em muitos aspectos, parece óbvio
que a sociologia deve ainda assim empenhar-se num estudo aprofundado dos
métodos e das construções teóricas das ciências naturais, de modo a inspirar-se
e a aproveitar alguns modelos para a sua própria actividade. De seguida, irei
apresentar uma descrição sumária do desenvolvimento histórico das ciências
naturais, preocupando-me posteriormente em estudar o processo análogo ocorrido
no âmbito da sociologia.
Outrora o objecto de estudo de um cientista natural era a natureza. Ele era
sempre um homem apreendia assim inúmeros aspectos relativos aos mistérios da
natureza, desde as reacções químicas ou a vida dos insectos às dinâmicas gerais
do universo. Gradualmente, a especialização e a divisão em disciplinas foi
substituindo esta competência enciclopédica até ao cenário actual, em que a
natureza se encontra segmentada por um vasto conjunto de áreas temáticas e
subáreas, correspondendo a um igualmente vasto conjunto de especializações e
subespecializações académicas. Esta divisão não é arbitrária, ou seja, não é
apenas um efeito da competição académica e de decisões políticas. Pelo
contrário, parece existir uma razão histórica, lógica, ou mesmo ontológica,
para essas divisões.
Esta razão consiste na ideia de que a natureza se divide por níveis. Primeiro a
matemática, em seguida a física, a química e a biologia. Estas categorias
genéricas podem ser divididas em subcategorias, dando origem a uma
estratificação evolucionista da natureza em diversos níveis: subatómico,
atómico, molecular, celular, orgânico, etc. A lógica é, primeiro que tudo, que
cada nível é uma condição necessária para a existência dos níveis superiores;
não existem flores sem células, nem células sem moléculas, tão-pouco moléculas
sem átomos. Em segundo lugar, que os níveis inferiores podem proporcionar
explicações parciais para os níveis superiores. Em terceiro, que os níveis
superiores detêm uma relativa autonomia face aos inferiores, isto é, as leis ou
os fenómenos empíricos registados a um determinado nível não são totalmente
redutíveis aos níveis inferiores. Cada nível tem uma existência sui generis.
Por fim, que os níveis superiores constituem as plataformas ou ambientes dos
níveis inferiores, podendo mesmo ter um certo impacto causal nos fenómenos
registados nestes últimos.
Esta perspectiva do objecto das ciências naturais, que pode ser designada por
ontologia de níveis (Bunge, 1973; Johansson, 1989) ou por ontologia
irredutível, centra-se na práxis da ciência moderna, marcada por uma forte
divisão do trabalho pelos diferentes tipos de estruturas, mecanismos causais e
observações. Neste sentido, distingue-se claramente das numerosas tentativas de
reduzir a realidade a um nível último, características dos reducionismos
mecânicos do princípio do século XIX, que desembocaram na noção de uma
linguagem científica únicaproposta pelo positivismo lógico. Os reducionistas
tentavam assim encontrar a fórmula básica, a lei a partir da qual todos os
aspectos da realidade pudessem ser derivados, o último de todos os níveis.
Esta breve retrospectiva tem como objectivo mostrar que a sociologia moderna se
situa numa posição paralela à das ciências naturais nos princípios do século
XIX, i. e., no ponto de ruptura entre o conhecimento enciclopédico e o
reducionismo. Actualmente, existe uma forte convicção, difundida na maior parte
das ciências sociais, segundo a qual a realidade social pode ser reduzida a um
nível, a uma fórmula. Permitam-me que cite alguns exemplos a este respeito.
Karl Popper (1969: 98) explica a sua versão do individualismo metodológico da
forma bem conhecida que passo a enunciar:
Todos os fenómenos sociais, e especialmente o funcionamento de todas as
instituições sociais, devem ser compreendidos enquanto resultado das decisões,
acções, atitudes, etc., dos indivíduos, e por conseguinte nunca nos devemos
contentar com explicações em termos dos supostos "colectivos".
Em suma, todo o social deve ser explicado a um nível individual. Uma posição
antagónica encontra-se, por exemplo, no estruturalismo de Michel Foucault
(1968: 203):
Não é o homem em si mesmo que pensa, mas que é pensado pelo sistema de
pensamento em que acontece estar inserido, não é ele que fala mas que é falado
pela sua língua nativa, ele não determina, antes é determinado pelos sistemas
sociais, económicos, políticos a que pertence. Estas estruturas dinâmicas são
seu guia e seu destino.
Deste modo, o jovem Foucault coloca entre parêntesis os sujeitos individuais:
tudo é explicado pela estrutura.
Estas duas posições exemplificam, respectivamente, o reducionismo descendente e
ascendente. Podem assim ser vistas como pólos opostos do continuum entre micro
e macrossociologia, continuando muito em voga nos dias que correm. Se é verdade
que as perspectivas colectivistas e holistas predominaram na década de 70,
desde os anos 80 que o individualismo metodológico ganhou ascendente. Talvez o
melhor exemplo desta última tendência sejam as teorias de Gary Becker, James
Coleman e a teoria da escolha racional.
Um tema similar refere-se à chamada problemática da acção-estrutura.
Possivelmente a via mais frequente para tentar resolver este problema envolve a
sugestão de uma posição intermédia ou de síntese. Um dos exemplos mais
familiares a este respeito é a teoria da estruturação, desenvolvida por Anthony
Giddens, que através da fórmula "a estrutura é simultaneamente a condição
e o resultado da acção social" pretende alcançar um equilíbrio entre
actores e estrutura através da inclusão de ambos os lados da dicotomia. O mesmo
se aplica ao conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, que se limita a
reformular um problema analítico. Como mostrei num outro contexto, fórmulas
deste género não resolvem o problema, apenas o disfarçam através de uma nova
terminologia. Em vez da análise de um problema complexo, estes textos apenas
nos obstruem a vista (Brante, 1989).
O realismo causal e a sociologia
Tendo enunciado uma base metateórica, passo agora à apresentação de uma
estratégia que visa melhorar a teoria sociológica. Tal como os reducionistas do
século XIX, muitos dos meta-sociólogos modernos parecem empenhados em encontrar
a fórmula básica e abrangente através da qual todos os fenómenos sociais possam
ser explicados. Na minha opinião, estas tentativas de reduzir ou sintetizar
tudo não têm resultados produtivos e estão, provavelmente, votadas ao fracasso.
Constrangem o sociólogo a partir do momento em que o transformam num
malabarista com demasiadas bolas para manejar, demasiado para incluir na
fórmula. Sugiro assim que, de um modo análogo ao das ciências naturais,
procuremos estabelecer uma estratificação por níveis do objecto de estudo da
sociologia. À imagem dos cientistas naturais, que conseguiram compartimentar o
"tecido contínuo" da natureza em áreas de investigação produtivas, os
cientistas sociais deveriam tentar especificar o seu ângulo de análise através
da segmentação do "tecido contínuo" da sociedade, de acordo com os
seus blocos constitutivos.
A estratégia alternativa que proponho combina os conceitos de causalidade, de
mecanismos e de sociedade enquanto realidade estratificada. Em primeiro lugar,
se tomarmos em linha de conta investigações desenvolvidas hoje em dia por
sociólogos e separarmos intuitivamente os níveis de análise implícitos nessas
pesquisas, chegamos à conclusão que a sociologia produz conhecimento a variados
níveis. A questão passa então a ser quantos níveis conseguimos identificar.9
Possivelmente, investigações no futuro irão distinguir sete, catorze ou, quem
sabe, trinta e seis diferentes níveis do social. Esta ideia será adiante
ilustrada através da distinção de cinco níveis na sociologia contemporânea,
segundo o princípio de Occham. Em segundo lugar, abstraindo-nos dos vários
níveis, há que formular uma proposta geral de sociologia teórica aplicável aos
diversos níveis. De acordo com isto, proponho que o objectivo último da
sociologia seja identificar as estruturas sociais albergando mecanismos causais
que geram efeitos empiricamente observáveis. Combinando estes dois passos, será
possível chegar à conclusão que cada nível envolve estruturas específicas e
relativamente autónomas, e que o objectivo da teoria sociológica é mapear os
respectivos mecanismos, para cada estrutura, de modo a poder explicar os
fenómenos sociais.
Esta definição do propósito da sociologia corresponde, em traços gerais, às
definições que Roy Bhaskar avança para o objecto e para o papel da sociologia.
De acordo com Bhaskar (1989: 71-72), o objecto da sociologia são as relações
sociais, e o seu papel é explicar a reprodução e transformação das relações
sociais. (Concordo com a afirmação de Bhaskar de que é demasiado restritivo
estudar apenas as relações entre entidades. O conteúdo das entidades as
componentes que constituem a estrutura é relevante e deve ser incluído no
objecto de estudo. No esboço que se segue, parto da concepção de Bhaskar mas
defendo que o conteúdo das componentes constitutivas varia consoante a natureza
do nível específico). Assim, cada um dos níveis seguintes envolve relações
entre certos tipos de componentes específicas.
A sociologia a diversos níveis
Nível internacional. Trata das relações entre componentes tais como as nações,
as empresas e organizações multinacionais, frequentemente abordadas numa
perspectiva global. Este nível tem sido desenvolvido através de investigações
sobre os conflitos e a paz, o sistema-mundo, a globalização, as relações entre
centro e periferia, a dependência, o imperialismo e o colonialismo. Shmuel
Eisenstadt, Immanuel Wallerstein, Theda Skocpol, Charles Tilly e Manuel
Castells constituem bons exemplos de sociólogos influentes neste nível.
Nível interinstitucional (na prática, sobrepõe-se geralmente ao nível
nacional). Estuda as relações entre componentes tais como as instituições ou
organizações, quase sempre a partir de teorias sobre o desenvolvimento
histórico e social. O objectivo é assim descrever e, em traços gerais,
identificar lógicas institucionais numa perspectiva societal. São, por exemplo,
analisadas estruturas económicas, políticas ou ideológicas, através dos
conceitos de modo de produção e formação social, ou das relações entre estado,
mercado e sociedade civil, ou ainda através do estudo das funções das
instituições, como no esquema "AGIL" de Talcott Parsons ou no modelo
"grid-group" de ligações entre a lógica institucional e a cosmologia,
da autoria de Mary Douglas. Inúmeros autores clássicos elaboraram trabalhos a
este nível, nomeadamente, Norbert Elias, Jürgen Habermas e Nicklas Luhmann.
Nível institucional. Analisa as relações entre componentes tais como as
posições de status formais e informais, os papéis sociais e as posições em todo
o tipo de redes sociais, desde complexas hierarquias das empresas ou do sector
público, a grupos e famílias. A teoria burocrática de Max Weber deu origem a
uma linha de pesquisas, designada por sociologia das organizações, que procura
dar conta das relações internas e externas, bem como dos modos de funcionamento
das organizações. A teoria contingencial, a teoria tecnológica, a teoria
garbage can ou o neo-institucionalismo são bons exemplos deste tipo de
pesquisas. Algumas figuras proeminentes a este nível são Pierre Bourdieu,
Robert Merton, Joan Woodward, Charles Perrow, James March, Johan Olsen e Mark
Granovetter.
Nível interindividual. Inclui as relações entre indivíduos em interacção
directa ou face-a-face. Apesar dos primeiros desenvolvimentos a este respeito
terem surgido pela mão do interaccionismo simbólico, a "descoberta"
deste nível, bem como a principal elaboração teórica sobre os seus mecanismos
fundamentais, devem ser atribuídos a Erving Goffman. Segundo Goffman, a
interacção é responsável por uma ordem sui generis, regulada por leis e
estruturas específicas. Assim, as interacções podem ser entendidas enquanto
rituais, dotados de uma vida própria e que produzem aquilo a que Goffman chama
unio mystico. Esta tese tem sido abordada em diversos campos, como na
etnometodologia ou na análise sociológica da conversação, tendo como objecto de
estudo as condições e regras necessárias para a interacção quotidiana entre
indivíduos. Neste sentido, pode-se considerar que o programa de pesquisa de
Goffman tem sido continuado por autores como Randall Collins, Anne Rawls ou
Jonathan Turner.
Nível individual. Debruça-se sobre as relações entre componentes
interindividuais e sobre a forma como tais estruturas constituem a base para a
autonomia individual e para o desenvolvimento da criatividade. O exemplo mais
corrente deste nível são as pesquisas sobre o self social, nomeadamente a
teoria de Mead acerca das relações entre o "eu", o "mim" e
o "outro generalizado" ou a teoria da dissonância cognitiva de
Festinger. Neste nível deveriam também ser incluídas as teorias pós-modernas da
formação da identidade, bem como as noções de natureza humana e de indivíduo
moderno, fundamentais para a sociobiologia e a teoria da escolha racional.
Recentes contribuições para o nível individual foram elaboradas por Margaret
Archer, Jon Elster e Norbert Wiley, entre outros.
Obviamente, integrando outras disciplinas, esta tipologia pode ser alargada com
a formulação de níveis superiores, em direcção à antropologia, e inferiores, a
caminho da psicologia e da biologia. Além disso, não devemos esquecer que, dado
que deriva de uma identificação das principais áreas de pesquisa em torno das
quais os sociólogos se organizam, esta divisão por níveis não é meramente
indutiva, mas sim historicamente fundamentada. Por exemplo, tendo em conta as
tendências contemporâneas associadas ao processo de globalização e observáveis,
e que se manifestam nas redes económicas globais, no crescente intercâmbio
cultural e nos novos sistemas legais internacionais (como a União Europeia), é
possível que a importância e o interesse do nível nacional diminuam, aumentando
a ênfase no nível global.
Por outro lado, é possível conjugar o eixo vertical dos níveis com um eixo
horizontal, através da aplicação dos conceitos de estrutura e cultura, sistema-
estrutura-agente ou estrutura-discurso-actor a cada um dos níveis, obtendo
assim uma tabela de 10 ou 15 campos, que procura reflectir o facto de a
sociologia incluir um lado objectivo, um outro subjectivo e ainda um outro de
acção.10 O resultado seria algo semelhante ao que procuramos ilustrar na figura
1.
Figura 1 - Matriz de análise
A autonomia dos níveis
A hipótese de pesquisa em que se baseia a divisão acima apresentada é a de que
cada nível é dotado de uma existência sui generis. Uma primeira evidência que
sustenta esta conjectura está simplesmente relacionada com o modo como a
sociologia contemporânea se organiza e estrutura em torno de diferentes níveis,
entendidos como envolvendo objectos relativamente autónomos e não redutíveis. A
autonomia dos níveis reside assim na existência, em cada um deles, de
mecanismos causais não redutíveis de interesse particular para a sociologia.
(Deste modo, ou consideramos que milhares de sociólogos estão totalmente
equivocados, ou pelo menos devemos admitir que a conjectura formulada tem algum
fundamento).
Vulgarmente, os sociólogos que estudam estas questões identificam três níveis,
denominados micro, meso e macro. A minha opção por um modelo de cinco níveis
baseia-se nas seguintes razões. Os indivíduos não existem no vácuo, mas são, em
grande medida, produtos do social. As atitudes, intenções, disposições,
habitus, etc. as características sociais dos indivíduos são inscritas por
meio da socialização. Este self social é um produto, mas também uma matéria-
prima, um ponto de partida para explicar a acção social, razão pela qual
constitui, por si próprio, uma área de pesquisa. Além disso, é também a causa
para o facto de tantos sociólogos terem tentado separar as componentes sociais
das naturais na constituição do ser humano. Estudos sobre o indivíduo enquanto
conjunto de elementos intra-individuais, focando-se especialmente nos
mecanismos causais inerentes e causais entre componentes sociais e de outra
natureza, fazem assim parte daquilo que designo por nível individual.
Por outro lado, "o social" é incorporado no decurso da interacção com
outros seres sociais, tais como os pais ou os pares. A interacção entre
indivíduos é outra área que tem sido muito estudada por sociólogos, em parte
devido ao facto de a interacção per se parecer dar origem a um tipo particular
de comportamentos, orientados por normas e regras próprias, muitas vezes
ritualizados, governando-se assim por mecanismos específicos. Por conseguinte,
optou-se por distinguir também um nível interindividual.
As características dos indivíduos são, em muitos casos, geradas e definidas
pelas suas relações. Neste sentido, é impossível a um indivíduo ser pai sem
filhos, marido sem mulher, empregado sem patrão ou governante sem governados.
Estas relações ou papéis antecedem os indivíduos, que os ocupam isoladamente
por algum tempo, e perduram após o seu desaparecimento. O facto de estas
relações serem anteriores e posteriores a um determinado indivíduo confere-lhes
um estatuto ontológico especial e não redutível. Em virtude de estas relações
definirem e influenciarem as propriedades dos indivíduos, podemos considerar
que possuem poder causal.11
Consequentemente, as relações cristalizadas em instituições, tais como a
família ou a burocracia, constituem estruturas relativamente sólidas. É
perfeitamente admissível estudá-las per se, omitindo os indivíduos concretos
que neste momento as ocupam, ou seja, é possível abstrair-se dos indivíduos e
das interacções directas e estudar os padrões específicos que caracterizam uma
instituição como a família. A este nível, podemos analisar as relações causais
típicas, distinguindo as estruturas familiares, por exemplo, as relações
patriarcais e de autoridade. Situamo-nos assim no nível que designei por
institucional.
A relação familiar típica constitui aquilo a que muitas vezes chamamos uma
instituição social. Esta instituição encontra-se enraizada em outras relações
institucionalizadas o trabalho, a escola, os media e os sistemas de normas,
como as normas familiares. Assim, dado que a instituição família é uma das
inúmeras instituições, podemos abstrair-nos um pouco mais (ou subir mais um
nível) e estudar as relações entre a instituição família e as outras
instituições, sem invocar os papéis específicos que a família encerra, isto é,
podemos estudar relações entre relações institucionalizadas. Aqui situamo-nos
já no nível interinstitucional ou nacional.
É a este nível que, classicamente, se situam as considerações acerca do
"social". Em muitas tradições, o estado-nação é visto como a unidade
básica da análise sociológica, caracterizado por um território definido, uma
identidade cultural e política, uma economia auto-suficiente, um sistema legal
unificado, formando assim um sistema autónomo. Actualmente, o desenvolvimento
mundial subentende a emergência de um outro nível, passando a ser
conceptualizado como autónomo o nível internacional ou global. Diversos
estudos recentes procuram formular um novo "paradigma global" (serão
certamente paradigmas), cujo objecto de estudo envolve estruturas, culturas e
actores internacionais e autónomos. Apesar dos esforços da escola
multiculturalista, o papel da família numa nova ordem global continua por
explorar.
A teoria que acabei de desenvolver não é mais, afinal, que uma codificação
daquilo que os sociólogos realmente fazem. Os níveis podem ser estudados, e são
na verdade estudados, como relativamente autónomos, pois incluem estruturas que
envolvem mecanismos específicos com capacidade causal. Estes objectos de estudo
não podem, contudo, ser totalmente reduzidos, por exemplo, a um conjunto de
elementos individuais.12
Utilizando uma análise a diversos níveis deste género, juntamente com o
reconhecimento de que cada nível contém características específicas, muitos dos
debates metateóricos contemporâneos sobre a relação entre micro e macro, tal
como sobre variadas reduções de um ao outro, poderiam ser resolvidos,
dissolvidos ou, pelo menos, adiados. Se estiver correcta a afirmação de
Jonathan Turner (1988) de que o problema micro-macro não pode ser resolvido
enquanto se souber tão pouco sobre cada um desses níveis, estudos centrados na
identificação de mecanismos causais referentes aos vários níveis podem fornecer
pistas importantes para a resolução desses enigmas.
Os autores clássicos da sociologia, quer os mais antigos, quer os mais
recentes, têm sido frequentemente interpretados como procurando criar
perspectivas consistentes e abrangentes que incluam tanto o nível macro, como o
nível micro. Neste sentido, Marx foi criticado por não ter desenvolvido teoria
na área da psicologia social; Mead foi desvalorizado por não considerar o
contexto, o "pano de fundo", em que decorrem as interacções; e
Parsons foi acusado, em artigos como "Bringing men back in" de George
Homans, de não compreender que os actores são "pessoas de carne e
osso". Contudo, presume-se que Parsons sabia disso, mas o seu objecto de
estudo não incidia sobre esse nível, centrando-se mais ao nível da teoria dos
papéis, ou seja, no nível institucional. Do ponto de vista do realismo causal,
deve-se entender o artigo de Homans não como uma crítica directa a Parsons, mas
como uma declaração de que, naquela época, os outros níveis estavam muito pouco
desenvolvidos. Expressando-o de uma forma mais drástica: no objecto de
conhecimento do nível institucional, os indivíduos não surgem como
personalidades singulares, mas apenas como ocupando posições ou executando
determinados papéis. Isto significa que aquilo que constitui o
"actor" na figura atrás apresentada varia consoante o nível. Por
exemplo, nas teorias sobre instituições, o termo actores designa acções
institucionalizadas, tais como o desempenho de papéis específicos, enquanto as
teorias que exploram as estruturas e desenvolvimentos na esfera internacional
colocam nações, empresas multinacionais, exércitos e afins como actores
principais.
Uma divisão por níveis facilita a comparação sistemática entre o potencial
explicativo das várias tradições, em cada um dos níveis, e torna absurdas as
discussões sobre os méritos de tradições sociológicas que se focam em
diferentes níveis. Por exemplo, torna-se supérfluo debater, entre o
funcionalismo e o interaccionismo simbólico, qual dos dois constitui a
perspectiva sociológica correcta. Basicamente a sua força reside em diferentes
níveis. Do mesmo modo, as controvérsias contemporâneas acerca das teorias do
poder, das teorias dos regimes patriarcais, etc., podem ser consideravelmente
esclarecidas se aceitarmos que o poder e a opressão sexual são fenómenos que se
estabelecem, simultaneamente, a um nível global, nacional, institucional,
interpessoal e individual. Consequentemente, são resultado de vários poderes
causais, isto é, são causalmente sobredeterminados. Disputas acerca de que
poder deve ser definido, por exemplo, como recurso latente accionável ou como
capacidade de fazer outra pessoa agir contra a sua vontade, perdem também a sua
pertinência, considerando uma divisão razoável entre níveis. Em termos gerais,
pode-se dizer que os fenómenos sociais que a sociologia estuda e. g., a
estratificação, as classes, os discursos, o poder, o género, as profissões, o
bem-estar, a doença, o trabalho e por aí fora são processos que actuam e podem
ser estudados a todos os níveis, ainda que através de diferentes ferramentas
conceptuais e metodológicas.
As últimas considerações têm implícita a ideia de que a teoria sociológica
nunca se refere directamente à realidade tal como esta se manifesta a nível
imediato, mas sim a objectos de conhecimento, elaborações teóricas. Isto é
bastante óbvio nas ciências naturais, onde objectos idealizados são utilizados
enquanto pontos de referência (tais como o movimento sem fricção, o movimento
no vácuo, temperatura de zero absoluto, etc.), isto é, o "objecto"
não existe na realidade. A importância de estarmos cientes desta diferença é
drasticamente expressa por Bourdieu quando afirma que, para o sociólogo, a
familiaridade com o universo social é o obstáculo epistemológico por
excelência. A partir desta ideia, teorias bem sucedidas poderão ser aplicadas
de forma a explicar (parcialmente) a realidade.
A relatividade dos níveis
No quadro de análise acima apresentado, os mecanismos podem classificar-se em
dois tipos. Por um lado, temos aqueles mecanismos que concedem autonomia a cada
um dos níveis, por outro, os mecanismos que ligam esses níveis. Não cabe aqui
discutir estes últimos, todavia a título de ilustração podemos referir o
conceito clássico de socialização, termo que engloba vários mecanismos
poderosos que ligam os indivíduos aos outros níveis e que, desta forma,
contribuem para a manutenção da ordem e da integração social. (Na verdade,
existe mesmo uma disciplina que se dedica exclusivamente a estas ligações: a
psicologia social). Permitam agora que me abstraia um pouco mais e sugira uma
forma de compreender, em termos gerais, a relação entre níveis.
Utilizemos as seguintes denominações: o nível que pretendemos estudar
designamos por (E); todos os níveis inferiores a esse (I); e aqueles que se
situam em níveis superiores (S). Referindo-se às ciências naturais, Arthur
Stinchcombe declarou que os mecanismos causais de nível (E) podem ser
identificados através de uma análise das componentes de nível situadas no nível
(I). Certas formas de interacção nos mercados, talvez em particular os
comportamentos assumidos nos mercados abastecedores (devido à sua proximidade
com um "mercado ideal") podem ser compreendidos através da teoria da
escolha racional. Outras interacções, por exemplo, os comportamentos no mercado
conjugal, precisam possivelmente de basear-se em pressupostos diferentes acerca
dos mecanismos que governam as componentes da estrutura. Uma questão
interessante no discurso de Stinchcombe refere-se ao facto de os pressupostos
assumidos relativamente ao nível (I), ou seja, as componentes da estrutura que
pretendemos estudar, não terem que estar em total acordo com a pesquisa
realizada a esse nível. O autor estabelece uma analogia com as ciências
naturais. Certas teorias estabelecidas, como a lei de Boyle, entram em
desacordo com teorias modernas sobre os movimentos moleculares. Ainda assim,
estas leis são aplicadas desde que os desvios no nível inferior (I) sejam
demasiado pequenos para terem alguma relevância no nível (E). De forma
idêntica, segundo Stinchcombe, qualquer bom estudante de mestrado em psicologia
demonstra facilmente que os pressupostos sobre a racionalidade individual em
que se baseiam economistas e sociólogos estão errados, mas simultaneamente
"o pressuposto da racionalidade coloca um economista em posição de
explicar algumas facetas dos comportamentos de mercado" (Stinchcombe,
1991: 368). Uma simplificação dos níveis inferiores, ainda que dentro de
limites razoáveis, pode assim ser útil para o processo de explicação do nível
sobre o qual versa uma determinada pesquisa.
Gostaria de acrescentar à teoria de Stinchcombe a afirmação de que o nível (S),
situado acima do nível (E), reveste-se também de enorme importância causal,
fornecendo o contexto do fenómeno que se pretende explicar. A partir do nível
(S) podemos, por intermédio das teorias sociológicas, chegar às dimensões que
constituem o quadro de referência para os acontecimentos do nível (E), enquanto
o nível (I) nos permite identificar as dinâmicas através das quais o processo
se materializa (Brante, 1994).
Assim, as relações entre níveis podem ser resumidas em três conceitos cruciais,
um para cada nível: componente (I), estrutura (E) e contexto (S). O erro do
individualismo metodológico é reduzir os níveis (E) e (S) ao nível (I), ao
passo que o erro do holismo é reduzir (E) e (I) a (S).
Sintetizando, de acordo com o realismo causal, a tarefa fundamental do
desenvolvimento teórico em sociologia é: a) identificar os mecanismos
específicos de cada nível; e b) identificar os mecanismos que articulam os
vários níveis. Enquanto a primeira explica a autonomia dos níveis, a segunda
explica o modo como os processos micro influenciam as situações macro e vice-
versa.
Um exemplo do nível interpessoal
A fase seguinte desta apresentação do realismo causal e da divisão em níveis
seria ilustrar cada nível com exemplos da teoria sociológica. A escassez do
espaço disponível impossibilita esse passo, contudo talvez seja interessante
uma breve referência a um exemplo do nível cuja autonomia é provavelmente mais
difícil de compreender: o nível interpessoal.
Tal como foi anteriormente referido, muitos dos fenómenos sociais são passíveis
de análise a todos os níveis. Fenómenos como o poder, a estratificação, as
classes, a dominação masculina, o trabalho, o mercado, as profissões, etc.,
manifestam-se em todos os níveis, embora assumam expressões distintas em cada
um deles, sendo estruturados por processos específicos e devendo por isso ser
analisados através de métodos diferentes. Um exemplo já referido é a
instituição da família. A família é um fenómeno global, com um longo passado de
constantes mudanças; foi e continua a ser a principal instituição de
socialização primária; está cercada e regulada por leis e normas informais;
consiste num conjunto relativamente definido de papéis e posições de status; é
central no que concerne à interacção interpessoal e em pequenos grupos; e é
dotada de um considerável poder causal sobre o desenvolvimento da personalidade
dos indivíduos.
A família enquanto sistema de interacção foi analisada na sociologia através de
conceitos como pares de papéis, tríades de papéis, complementaridade,
alternativamente como instituição de opressão, e por aí adiante. Hoje em dia,
porém, o nível interpessoal da família é, sobretudo, analisado por psicólogos e
terapeutas familiares, não só enquanto fenómeno clínico, mas também em termos
teóricos. Segue-se uma simples ilustração do processo típico de análise:
A mulher, que pretende menos intimidade, afasta-se. O homem, desejoso de mais
intimidade, irrita-se e critica-a. Quanto mais ele se irrita, mais ela se
afasta. Quanto mais ela se afasta, mais ele se irrita De fora, observamos uma
interacção circular constante, na qual as tentativas de resolver o problema
apenas dão origem a que o problema se agrave (citação de Helgesson, 1996: 75,
ligeiramente modificada).
Casos deste género podem ser analisados como processos de retroacção, como
exemplos de causalidade recíproca, entre outras interpretações. A questão que
pretendo focar é que existe um contexto institucionalizado (S), que pode ser
denominado casamento ou relação de casal institucional, e que torna o processo
possível. A ordem institucional fornece as macrocondições para a existência do
processo. Além disso, existem duas componentes, dois indivíduos socializados,
que asseguram as dinâmicas ou a energia do processo. Todavia, o processo em si
mesmo é compreensível no seu próprio nível, ou seja, é a interacção per se, as
reacções às acções do outro, que constituem a estrutura responsável por
conduzir o casal para um círculo vicioso, um sistema auto-suficiente. Uma
conversa pode constituir um unio mystico, encerrando os seus participantes num
jogo ritualizado. Neste caso, o critério de autonomia pode ser que cada
participante leve a cabo acções diferentes daquelas que assumiria noutro
contexto ou isoladamente. A própria interacção e o acesso partilhado aos
"factos da situação" (incluindo temperamentos emocionais, normas,
regras, etc.) possuem as suas características específicas que condicionam os
participantes. Por outras palavras, a estrutura não pode ser completamente
compreendida caso seja reduzida à instituição família (S) ou às características
individuais dos participantes (I) foi a interacção enquanto tal a geradora do
efeito. Utilizando a apropriada observação de Anne Rawls (1987: 145):
"Goffman argumenta que existem factos sociais que não são causados pela
rotina, nem definidos pela estrutura social, nem derivam dos indivíduos".
Síntese e conclusão
A sociologia é uma disciplina intelectual e deve, na verdade, continuar a sê-
lo. Porém, o problema que se coloca é se devemos focar demasiado a nossa
atenção em discursos filosóficos acerca, nomeadamente, das possibilidades do
conhecimento. Existe o risco de se desembocar numa situação idêntica à daquele
paciente de Freud que passava o dia a limpar os óculos e acabava por nunca os
usar. É devido a esta razão que, hoje em dia, a simplicidadeem termos
metateóricos se apresenta como uma boa estratégia. Uma boa razão para defender
a simplicidade foi enunciada por Chandler, outra é a de que a sociologia é uma
área tão complexa que os seus investigadores não devem desviar-se demasiado dos
objectivos centrais aliás, dois domínios que requerem um forte investimento
intelectual podem já ser demasiado.
Esta questão pode ser colocada de outra forma. A proposta sugerida neste artigo
supõe que uma metateoria sociológica não deve começar com a questão
epistemológica: "o que podemos nós conhecer com certeza, dado que por
vezes as nossas impressões sensoriais nos iludem e que estamos presos às nossas
categorias linguísticas, teorias e expectativas?" Em vez disso, proponho:
"em que deve consistir aproximadamente a realidade, admitindo que os
sociólogos produzem realmente conhecimento acerca dela?" Enquanto a
primeira questão nos remete para o campo dos ismos e das logias da filosofia
clássica, a segunda proporciona estudos mais empíricos e desenvolvimentos
teóricos. "Primeiro a ontologia, depois a epistemologia" podia, desta
forma, ser um bom lema para a metateoria contemporânea.
Ao longo deste artigo foram sendo referidos de passagem diversos temas, pelo
que pode ser útil proceder a uma síntese das questões fundamentais. Em primeiro
lugar, opôs-se o realismo causal ao positivismo e ao ultra-relativismo.
Obviamente, devemos reconhecer o enorme valor de ambas as propostas a análise
quantitativa de variáveis tal como a descrição factual minuciosa, as
narrativas, os esquemas interpretativos e as grandes classificações são
pressupostos necessários à maioria das ciências. Contudo, o argumento aqui
defendido é que as inclinações actuais tendem a obscurecer o objectivo último
da sociologia, a produção de explicações causais para os fenómenos sociais. Por
conseguinte, devem ser vistas como actividades auxiliares úteis, conduzidas por
uma sociologia que busca as causalidades, e não como objectivos finais por si
próprias. Além disso, devido às suas conotações misteriosas e à sua indefinição
geral, quer o positivismo, quer o ultra-relativismo, tendem a precisar de
desmesurados estudos filosóficos. Pelo contrário, o realismo não é abrangido
por estas implicações, visto os seus pressupostos gerais não serem contra-
intuitivos, mas facilmente aceitáveis do ponto de vista do senso comum. (Na
verdade, penso que o incidente de Sokal nunca teria ocorridono âmbito de uma
plataforma científico-social realista).
O termo "realismo" foi empregue para designar certas proposições
ontológicas, especialmente a de que a sociologia tem um objecto exterior ao
discurso sociológico. A posição aqui sustentada defende assim uma perspectiva
realista relativamente às entidades sociais, mas não em relação às teorias e
modelos sociológicos. Isto é, "factos sociais" tais como
organizações, famílias, interacções, indivíduos, entre outros, existem, são
reais e influenciam o comportamento humano. Qual das teorias ou modelos de
realidade existentes é mais verdadeira ou fornece melhores explicações, isso é
outra questão. Na situação actual, dado que não existe um conceito universal de
verdade, mas apenas alguns paradigmas incomensuráveis (os factos teoricamente
dependentes, entre outros), uma metateoria deve permanecer agnóstica no que
concerne à selecção de teorias, ou seja, recomenda-se um pluralismo teórico
dentro dos limites acima enunciados.13
O realismo implica também uma posição epistemológica que assuma a possibilidade
de, pelo menos em parte, podermos aceder à realidade social, construindo a seu
propósito conhecimento válido, ainda que falível. Uma boa expressão do
princípio básico de uma epistemologia realista é referida por Jane Azevedo
(1997: 65) da seguinte forma: "a validade do nosso conhecimento pretende
ser, pelo menos parcialmente, determinada pelo modo como o mundo se
apresenta".
Na expressão "realismo causal", o termo "causal" é
utilizado de forma a sugerir uma orientação geral para a investigação
sociológica, nomeadamente, a identificação de mecanismos geradores. Não devemos
esquecer que esta sugestão implica que o conceito de causalidade seja resgatado
à tradição positivista. Na verdade, o conceito de causalidade aqui apresentado
difere em muito da definição positivista, visto ser consideravelmente mais
aberto, admitir causas não observáveis, causalidades estruturais, causas que
nunca se manifestam em efeitos observáveis, causas que surgem apenas uma vez,
talvez até causalidade funcional, etc.14
Na segunda parte, comecei por abordar o debate permanente entre individualismo
metodológico e holismo, micro e macrossociologia. Através de uma analogia com
as ciências naturais, sugeri que uma forma de evitarmos esses dilemas é
simplesmente começar por aceitar aquilo que se tem feito na sociologia
contemporânea, isto é, que uma enorme quantidade de trabalho tem sido
desenvolvido a vários níveis, produzindo conhecimento relevante e explicações
plausíveis. Se aceitarmos esta ideia, uma divisão em níveis acaba mais ou menos
por sugerir-se a si mesma. Portanto, na minha perspectiva, a sociologia do novo
século seria beneficiada se recorresse a uma ontologia de níveis e procurasse
identificar objectos de estudo específicos de cada nível. Isto significaria
que, no âmbito da sociologia, novos objectivos de pesquisa teoricamente
informada seriam desenvolvidos para cada nível. Uma divisão por níveis
possibilitaria que o sociólogo se focasse, mais exclusivamente, nos problemas
do nível em que pretende trabalhar. Além disso, facilitaria a comparação entre
modelos explicativos do mesmo nível, impulsionaria a cumulatividade e
conduziria a um aprofundamento das várias teorias. Deste modo, se tivermos como
base comum uma metateoria que, não sendo complicada, se ajuste às necessidades
da disciplina e lhe forneça uma orientação clara e estável, é possível que a
sociologia inverta a sua posição actual, defensiva e fragmentada, adoptando um
papel mais interventivo e socialmente relevante. Aliás, se a sociologia
pretende evitar a perda da sua autonomia, reduzindo-se a estatísticas sociais
e/ou etnologia e/ou quase-filosofia, é indispensável expandir as suas ambições.
A partir da suposição de que "nada é tão prático como uma boa
teoria", os avanços teóricos poderiam promover a transformação da
sociologia numa ciência mais estratégica. Procurando partir desta ideia, uma
divisão por níveis, associada a uma proposta causal, constitui provavelmente
uma das chaves possíveis para a ruptura epistemológica necessária, caso a
sociologia queira ultrapassar o estado actual de Naturphilosophie e tornar-se
uma ciência genuinamente explicativa.
[tradução de Pedro Abrantes; revisão científica de António Firmino da Costa]
Notas
1 Na minha opinião, contudo, é errado dizer-se que a sociologia se encontra
hoje num momento de crise aguda. A situação era aproximadamente a mesma há dez,
vinte ou trinta anos. Obviamente, tudo depende do modo como definimos o
conceito de crise. Recorrendo à definição de Thomas Kuhn, não apenas a
sociologia mas grande parte das ciências sociais estariam em crise há mais de
trinta anos. Como se sabe, a definição de crise de Kuhn constrói-se a partir da
ciência normal. Durante uma crise, os cientistas começam a questionar os
pressupostos básicos da sua disciplina, os seus pressupostos filosóficos e
princípios metodológicos, começando a procurar paradigmas alternativos. A crise
termina quando os fundamentos gerais da disciplina são de novo estabelecidos.
Assim, não julgo que a sociologia alguma vez tenha sido ou possa vir a tornar-
se uma ciência normal, neste sentido. No entanto, é indiscutível que, no final
dos anos 60, a sociologia foi marcada por uma certa anarquia filosófica,
seguindo-se a emergência de uma série de sociólogos sob o lema "que cem
flores desabrochem" uma ramificação de paradigmas da qual ainda não
recuperámos.
2 A nossa identidade deixou de poder residir numa metodologia comum. Os
métodos e técnicas de recolha de dados característicos da sociologia
entrevistas e inquéritos, estatísticas oficiais, elaborações estatísticas, etc.
são hoje partilhados pela maioria das ciências sociais. Além disso, também já
não existe um objecto de estudo particular que assegure a identidade da
disciplina. Os objectos de estudo da sociologia tais como organizações
formais (ciência política), interacção (psicologia), artefactos culturais,
experiências e afins (etnologia), opressão e pobreza (investigação em serviço
social) são povoados por outras disciplinas. Assim, a nossa identidade
reside, ou tem que residir, em perspectivas e quadros de análise particulares e
nos nossos próprios modelos de explicação, isto é, nas teorias sociológicas.
3 Como todos reconhecemos hoje, a realidade é observada não directamente mas
de forma mediata, pelo que se justifica o conceito de "objecto de
estudo", também denominado "objecto mediado",
"problemática", etc. Possivelmente o termo mais simples é
"modelo", ainda que possa dar azo a mal-entendidos, visto
"modelo" ser também utilizado para construções mais contingentes de
sistemas conceptuais. "Objecto de estudo" diz respeito às imagens
básicas e partilhadas de uma disciplina, constituindo a plataforma para o
desenvolvimento de uma escola de investigadores. Assim, refere-se a algo que é
teoricamente elaborado, não se reduzindo à realidade "espontaneamente
observada". O objecto de estudo é um fundamento para a explicação;
parafraseando Foucault, "permite a definição de domínios precisos nos
quais as relações causais podem ser localizadas" (citado por Davidson,
1997: 13).
4 Especialmente Paul Feyerabend tem sido considerado como defensor acérrimo
de um programa relativista e como responsável pela legitimação das subsequentes
filosofias ultra-relativistas das ciências (sociais). No entanto, como é
visível em pequenas observações incluídas em Against Method, de 1975, o próprio
Feyerabend nunca acreditou no relativismo radical, um tema que, aliás, retomou
mais pormenorizadamente no último volume desta obra, datado de 1993.
Basicamente, a sua posição assenta em dois pontos. Em primeiro lugar, ao
contestar a crença na existência do método científico, o autor encontra o seu
antídoto. Por exemplo, o slogan "vale tudo" não foi pensado para ser
levado à letra mas sim para ser utilizado como um remédiocontra o racionalismo
excessivo, um contrapeso à crença ingénua que está na origem da ciência
ocidental. Deste modo, Feyerabend parece ter seguido o lema de Kirkegaard,
segundo o qual para corrigir uma determinada tendência se deve exagerar ao
máximo uma perspectiva na direcção oposta. Em segundo lugar, mostrou que se
devia admitir que "vale tudo" caso se adoptasse uma perspectiva
racionalistaséria e honesta para estudar a história da ciência, o que não se
aplicava a Feyerabend, pois este considerava-se um realista.
5 Segundo um certo prisma, é óbvio que todos os sociólogos são
construtivistas, e a sociedade inteira é uma construção. Isto é, se
argumentarmos que a sociedade ou os fenómenos sociais são construídos, no
sentido em que são criados pelo homem, ou que os seres humanos e as suas acções
são indispensáveis para a existência da sociedade, tudo isto são verdades
triviais e com as quais todos concordam. Se for defendida a ideia de que os
factos científicos são construídos pelos seres humanos, no sentido em que uma
linguagem (estabelecida pelo homem) é necessária para expressar esses factos,
ou que as teorias influenciam aquilo que consideramos serem os factos,
subscrevo-a integralmente. Por outro lado, se for afirmado que os factos
científicos não são mais que construções, possíveis de reduzir a textos,
instrumentos ou afins, terei que discordar. A composição dos factos científicos
é produto de vários factores. Um deles é a realidade. Aliás, pode ser
argumentado que a especificidade da ciência é precisamente que os seus vários
métodos e instrumentos pretendem abrir janelas para a observação sistemática da
realidade. O conjunto dos métodos científicos, juntamente com o sistema de
normas da comunidade científica, é trabalhado para capturar e revelar a
essência da realidade (acerca desta questão, ver também Azevedo, 1997). Além
disso, concordo também com a afirmação de que não existem critérios científicos
absolutos filosoficamente: os critérios científicos são valores que variam
consoante os contextos sociais e históricos. Contudo, caso esta ideia seja
interpretada como implicando que não existem meios de distinguir os
conhecimentos verdadeiros dos falsos, ou mesmo que todos os tipos de
conhecimento são igualmente bons ou maus, isto é, um total relativismo, deixo
de concordar. Como Rorty (1982: 166) assinalou secamente: "O relativismo'
é a perspectiva de que as crenças sobre um certo assunto, ou possivelmente
sobre qualquer assunto, são tão boas como quaisquer outras. Ninguém defende
esta perspectiva". Na minha opinião, a versão mais interessante do
construtivismo, passível de se tornar numa fértil hipótese sociológica, é a de
que certos fenómenos e processos sociais são criados por pré-concepções. O
exemplo mais famoso diz respeito às profecias auto-realizadas de Merton: se as
pessoas acreditam que um banco vai falir, apressam-se a retirar o seu dinheiro
dessa instituição, provocando a sua falência. Se as pessoas acreditarem que
para conseguir bilhetes para um filme popular precisam de os comprar com
antecedência, então terão mesmo que os comprar mais cedo, e por aí adiante.
Schelling (1998) discutiu e exemplificou estes mecanismos. Um mecanismo similar
é descrito por Ian Hacking (1986), segundo o qual: "em alguns casos, as
nossas classificações e as nossas classes conspiram de modo a surgirem
associadas, configurando-se mutuamente". A constituição de partes da
realidade, tais como os doentes mentais ou outros grupos, é gerada, em parte,
consoante as categorias que utilizamos para as definir, distinguir ou abordar.
Já em 1928, W. I. Thomas marcou a agenda construtivista através da sua famosa
afirmação: "se o homem define as situações como reais, elas são reais nas
suas consequências". Porém, dado que é defensável apenas para alguns
casos, esta proposição não deve ser considerada uma lei geral mas sim uma
hipótese, passível de ser comprovada (ou não) na pesquisa empírica.
6 Segundo a minha perspectiva, o realismo crítico é, actualmente, a
filosofia mais promissora para as ciências sociais, pelo que, no âmbito do
presente artigo, poderia ter recorrido a este conceito. O problema do realismo
crítico reside, não no seu conteúdo fundamental, mas na sua terminologia e em
algumas das suas afirmações. O termo "crítico" serve para relacionar
a ciência com um ideal emancipador. Contudo, nem Bhaskar nem outros defensores
do realismo crítico conseguiram estabelecer uma ligação entre realismo ou
ciência críticos e um programa político, seja ele socialista ou emancipatório.
Colocando de forma simples, a principal razão para isso é que não parece ser
possível estabelecer tal associação, excepto no sentido geral de que o
conhecimento adequado das condições e relações causais constitui um instrumento
útil para alcançar certos objectivos desejados. E esse saber não é específico
do realismo, nem de qualquer programa político particular. Ou seja, nem mesmo o
realismo crítico consegue ultrapassar a divisão entre factos e valores. Além
disso, o termo "causal" parece-me um prefixo melhor para o realismo,
no sentido em que o reconhecimento ontológico dos mecanismos causais
subjacentes, não observáveis e geradores constitui uma das fundamentais marcas
distintivas do realismo, face a outras filosofias da ciência.
7 "Realidade estratificada" é também uma expressão muito utilizada
para referir as diferenças entre a dimensão das experiências, a dos
acontecimentos e a dos mecanismos. Existem vários outros conceitos cruciais do
realismo, cujas implicações para a sociologia precisam de ser cuidadosamente
estudadas, tais como os de sistemas abertos e fechados, relações intrínsecas e
extrínsecas, emergência, mecanismo gerador ou outros uma sistematização
destes conceitos encontra-se, por exemplo, em Collier (1994).
8 Não irei, neste artigo, examinar a relação entre compreensão e explicação,
concordando com a ideia de Bourdieu de que "contra a velha distinção de
Diltey, deve-se aceitar que a compreensão e a explicação são uma só", ou
melhor, que a compreensão é o lado psicológico da explicação teórica.
9 É óbvio que as divisões em níveis têm sido discutidas no âmbito das
ciências sociais. Durkheim separou a sociedade do indivíduo, Parsons distinguiu
a personalidade, a sociedade e a cultura, Habermas diferenciou vida quotidiana
(world-life) de sistema, Giddens contrapôs agência e estrutura e George Ritzer
identificou 10 níveis diferentes, só para mencionar alguns. Um dos problemas de
algumas divisões por níveis tem a ver com o facto de não serem sistemáticas, ou
seja, não se basearem numa dimensão, confundindo áreas substantivas com níveis
analíticos. Ritzer, por exemplo, distingue o nível organizacional e o familiar.
No entanto, a "família" constitui uma área de pesquisa que deve ser
conceptualizada como uma forma de organização.
10 Estrutura social refere-se ao objecto de estudo clássico da sociologia:
padrões relativamente duradouros entre "componentes" sociais, por
exemplo, divisões do trabalho (diferenciação) ou relações de dominação e
subordinação, poder, status e prestígio (estratificação). Esquema cultural diz
respeito à chamada ideologia, Weltanschauung, cosmologia ou perspectiva: redes
simbólicas de produção e reprodução de sentido. Enquanto a estrutura social
constituiu o objecto de estudo, por exemplo, das tradições durkheimianas,
parsonianas ou marxistas, a tradição weberiana, o interaccionismo-simbólico, a
etnometodologia e, mais recentemente, os estudos culturais trataram sobretudo a
questão do sentido social. Em geral, ambas as correntes têm definido os seus
campos de investigação enquanto fenómenos relativamente autónomos.
Inversamente, a relação entre estrutura e cultura tem sido o foco de estudo
tradicional da sociologia do conhecimento. Finalmente, actor, agente ou agência
reporta-se às componentes dinâmicas de cada nível (indivíduos, organizações,
estados-nação), estrutural e culturalmente contextualizadas. No vocabulário da
teoria dos sistemas, a dependência mútua entre estas três entidades no seio de
cada nível constitui a base para um quadro conceptual que permita estudar cada
nível enquanto sistema relativamente autónomo.
11 Na sociologia contemporânea, afirmar que os níveis são autónomos não é a
mesma coisa que dizer que os níveis são reais. Na minha perspectiva, contudo,
nada pode ser autónomo se não for, em algum sentido, real. Logo, são os níveis
reais? Em primeiro lugar, deve-se referir que o modo mais simples de escapar a
esta questão é considerar, como Parsons, que os níveis são apenas
"instrumentos analíticos". Essa resposta evita muitas críticas. No
entanto, parece demasiado fácil deixar algumas perguntas por responder (por
exemplo: como pode uma divisão analítica explicar alguma coisa?), pelo que não
optei por essa via. O facto de esta questão continuar a ser um problema é bem
patente no recente livro de Neil Smelser (1997), revelador de uma clara
ambivalência. Por um lado, Smelser sustenta que "não considerar os
constrangimentos dos níveis superiores da organização social é falhar enquanto
sociólogo" (p. 47) e que "é impossível compreender e explicar
acontecimentos, situações, processos ocorridos nas unidades inferiores, sem
fazer referência às ordens superiores da organização social que os
condicionam" (p. 31). Concordo. Porém, no mesmo parágrafo o autor afirma
que "este reconhecimento não deriva de qualquer asserção especial da
realidade, mas deve-se à necessidade de incluir construtos organizadores de
nível superior para elaborar explicações compreensivas", e na página 29:
"Os outros níveis da realidade são analiticamente tão importantes como
em alguns casos até mais importantes que as pessoas" (itálicos
acrescentados). Assim, para Smelser, as macroestruturas parecem ser criações
quer analíticas, quer reais uma clara contradição dos vários sentidos destes
termos. Após tomar contacto com este problema, tal como Parsons, Smelser opta
pela saída mais fácil, a fuga: "não pretendo entrar em todas as
controvérsias e mal-entendidos que têm rodeado estes termos ao longo dos
tempos" (p. 47). Permitam-me que tente responder a esta questão, sem
voltar aos velhos debates entre individualismo e holismo metodológicos e
ontológicos, mas usando uma pequena analogia. Imaginemos um conjunto de
fotografias e mapas se isto fosse uma aula, eu traria alguns acetatos que
correspondem aos cinco níveis da sociologia que enunciei. Primeiro, pensamos
assim numa imagem correspondente ao nível individual: um lisboeta típico
sentado na esplanada do café A Brasileira, junto à estátua de Fernando Pessoa,
no centro da cidade. A fotografia número 2 mostra, entre a multidão que
atravessa o Rossio,dois transeuntes que se encontram e param para conversar,
protagonizando assim "um encontro face-a-face, um ritual de
interacção". A figura 3 é um mapa da cidade de Lisboa, onde se pode ver a
sua organização institucionalizada: emergem os padrões de ruas, prédios,
parques, pontes e rios a estrutura espacial da cidade torna-se visível. A
figura 4 diz respeito a um mapa de Portugal, no qual Lisboa é assinalada e
ligada ao resto do país por estradas e auto-estradas. Por fim, a figura 5 é um
mapa-mundo em que Portugal e Lisboa são ligados ao resto do mundo por rotas
aéreas ou marítimas, por satélites ou outros meios de comunicação, incluindo a
Internet, a televisão e os telemóveis. A questão um pouco disparatada que se
coloca é: qual das imagens é mais verdadeira? Qual delas representa um retrato
mais adequado de Lisboa? A resposta é, obviamente, que todas são verdadeiras,
todas representam a realidade e aquela que é mais adequada depende dos
objectivos e interesses específicos. Nenhuma das imagens pode ser
"reduzida" a outra; todas contêm informação e podem ser úteis para
esclarecer situações práticas e para explicar acontecimentos ocorridos (ou não)
em Lisboa. Gostaria de argumentar que os níveis sociológicos que sugeri têm um
estatuto similar de existência. Por exemplo: numa cidade como Lisboa, somos
forçados a seguir as estruturas da cidade não podemos passar por cima dos
prédios e se tentarmos atravessar a Avenida da Liberdade às 5 da tarde,
possivelmente acabaremos mortos ou na cama de um hospital. Logo, existe um
número de normas materiais e espaciais que têm que ser seguidas ou, antes,
existem objectos físicos que fazem com que nos movimentemos de uma certa
maneira no espaço-tempo de Lisboa. Condições semelhantes prevalecem no espaço-
tempo social, fazendo-nos, ou melhor, forçando-nos fisicamente a seguir
regularidades e normas institucionais ("rotinas",
"costumes") geradas socialmente. Se alguém viver em bigamia é preso,
visto existir uma instituição chamada família suportada por leis repressivas.
Quem tiver comportamentos excêntricos ou desviantes acabará internado num
hospital psiquiátrico. Na verdade, julgo ser este o principal sentido da
recomendação de Durkheim: deve-se tratar os factos sociais como coisas. Assim,
neste sentido, as macroestruturas são reais. Têm fortes consequências,
especialmente visíveis quando são violadas. Exactamente como numa cidade,
segue-se geralmente as vias sociais, torneia-se os edifícios/instituições ou
entra-se neles, evita-se a polícia/ser excluído a vida é governada por
estruturas externas, responsáveis por constrangimentos e possibilidades, sejam
elas físicas ou sociais. Os movimentos individuais não podem ser compreendidos
sem entrar em linha de conta com a estrutura física da cidade. De modo similar,
os comportamentos individuais não podem ser compreendidos sem ter em conta as
estruturas sociais. Esta é a razão pela qual as macroestruturas são reais e
autónomas. Veja-se os textos do filósofo americano John Searle (1998), nos
quais se propõe uma forma diferente de advogar a realidade dos "factos
institucionais".
12 A expressão "conjunto de indivíduos" lembra-me imediatamente a
velha discussão entre holismo e individualismo metodológico ou o debate
anterior entre nominalismo e realismo conceptual. O argumento holista mais
comum neste caso é sem dúvida a afirmação de que o todo é mais que a soma das
partes, o que significa que, por exemplo, uma melodia não pode ser reduzida às
suas notas, uma molécula não pode ser reduzida ao conjunto dos seus átomos, o
comportamento de um leão não pode ser explicado pelas suas células, etc. Não
entrarei nesta questão, porém, gostaria apenas de mencionar que, na minha
perspectiva, o argumento mais forte deste debate é o de que os individualistas
metodológicos não seguem o seu próprio dogma, ou seja, não reduzem os outros
níveis ao individual, mas tentam ir mais além. Individuus significa
indivisível, contudo os individualistas decompõem sempre esta entidade. Segundo
o pós-modernismo, o indivíduo dispersa-se num conjunto de identidades
fragmentadas; a socio-biologia representa-o através de mapas de DNA; para
muitos investigadores em IA, o indivíduo limita-se a ser um computador peludo;
para os defensores da teoria da escolha racional, reduz-se a uma soma de
preferências, conhecimentos e lógica. Todas estas reduções baseiam-se em
entidades intra-individuais não observáveis, pelo que o argumento ontológico de
que "afinal, são apenas os seres humanos que agem, que podem ser
observados, etc. " é apenas uma figura de retórica.
13 Os critérios científicos são valores que mudam consoante o contexto
histórico e social. Contudo, a ausência de um referente arquimediano absoluto
não implica que os critérios científicos sejaminúteis ou que todo o
conhecimento devaser considerado equivalente. Significa antes que os critérios
devem ser vistos como programas de pesquisa à maneira de Lakatos; os critérios
podem ser úteis por algum tempo, relativamente a um determinado assunto.
14 Aceitando este conceito de causalidade, uma famosa diferença entre
ciências naturais e sociais pode ser reformulada. As ciências naturais explicam
os processos e estruturas materiais através de aparelhos conceptuais
específicos de cada disciplina. Ao longo da história, novos conceitos emergem
enquanto outros são preteridos. Uma primeira razão para alguns conceitos serem
rejeitados tem a ver com o facto de eles não se revelarem indicadores de
processos causais reais. Por exemplo, o conceito de flogisto foi rejeitado pela
química nos finais do século XVIII. Este conceito encontrava-se desprovido de
poder explicativo, dado que não designava um fenómeno material. Nas ciências
sociais, pelo contrário, conceitos sem qualquer referência material podem ter
um poder explicativo muito grande, visto que as crenças e as experiências são
dotadas de poder causal. Por exemplo, um conceito como "Deus" refere-
se a uma crença sobre algo que não existe. Simultaneamente, a crença em si
mesma constitui um facto social com enormes repercussões históricas e sociais.
Por outras palavras, tanto os mecanismos causais mentais como os materiais
fazem parte do objecto das ciências sociais, pelo que as explicações mentais,
bem como as materiais, não são apenas bem-vindas mas necessárias. Esta é a
perspectiva a partir da qual correntes sociológicas como o construtivismo
social devem ser compreendidas, ou seja, enquanto teorias centradas na
dialéctica entre a realidade material e a dimensão das crenças mentais ou
conceptuais, no modo como se influenciam mutuamente e se constroem uma à outra.
O denominador comum de ambos é, precisamente, a causalidade, isto é, a forma
como a realidade é construída pelos nossos pensamentos e vice-versa. O problema
de algumas versões modernas do construtivismo é que são construções conceptuais
demasiado focadas num dos lados, acabando por ceder ao mentalismo e ao
idealismo.