Acontecimentos de vida stressantes, psicopatologia e resiliência em
adolescentes institucionalizados e não-institucionalizados
A institucionalização é uma resposta social às situações em que o
desenvolvimento integral do menor está em risco, sendo uma medida de promoção e
proteção alternativa à família de origem.
De acordo com o relatório da Eurochild(2010), cerca de um milhão de menores na
União Europeia encontram-se em situação de acolhimento. Em Portugal, em 2011,
encontravam-se sob medida de acolhimento 8.938 menores, dos quais 379 residiam
na Região Autónoma da Madeira (ISS, 2012).
O impacto da institucionalização sobre o adolescente pode ser entendido com um
fator de risco ou de proteção. Para Siqueira e Dell'Aglio (2007) os estudos não
são ainda esclarecedores acerca dos benefícios ou malefícios do acolhimento
institucional. No entanto, as características da institucionalização têm
sofrido mudanças ao longo do tempo ao nível das políticas sociais, dos motivos
de acolhimento, e do funcionamento das instituições.
Os motivos que conduzem à institucionalização são fatores de elevado risco,
como sejam, a pobreza, o maltrato e a separação das figuras parentais. Estes
fatores são definidos por Friedman e Chase-Lansdale (2002) como stressores que
perduram por longos períodos de tempo e que limitam os processos normativos
intrapessoais. Ainda, a representação que a sociedade tem acerca da
institucionalização pode refletir-se de forma negativa no desenvolvimento das
crianças e dos adolescentes institucionalizados (Arpini, 2003).
Todavia, os adolescentes institucionalizados podem adquirir competências que
contribuam para superar a adversidade e para reconstruir as suas trajetórias de
vida na presença de fatores de resiliência. Assim, os vínculos fortes com a
família e relações positivas na escola e comunidade, fortalecem os recursos
internos do adolescente (Matos, Simões, Figueira, & Calado, 2012).
MÉTODO
Participantes
Participaram dois grupos de 40 adolescentes: um grupo de institucionalizados
(31 raparigas e 9 rapazes) e um grupo de 40 adolescentes da população geral (24
raparigas e 16 rapazes), com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos
(institucionalizados: M=14,43, DP=1,71; não-institucionalizados: M=14,30,
DP=1,04), residentes na Região Autónoma da Madeira. A maioria dos adolescentes
institucionalizados frequentava o 2º ciclo de escolaridade (62,5%), a seguindo-
se o 3º ciclo (27,5%) e por último, o secundário (10%), enquanto a maioria dos
adolescentes não-institucionalizados frequentava 3º ciclo (95%), 2,5% o 2º
ciclo e 2,5% o secundário. Uma percentagem elevada do grupo institucionalizado
reprovou pelo menos uma vez (75%), 22,5% apresentava absentismo escolar,
enquanto a maioria dos adolescentes não-institucionalizados nunca reprovou
(70%) e 20% apresentava absentismo. Relativamente à estrutura familiar, a
maioria dos adolescentes institucionalizados eram oriundos de famílias
monoparentais (65%), 27,5% pertenciam a famílias intactas e 7,5% pertenciam a
famílias de recasamento, enquanto a maioria dos adolescentes não-
institucionalizados vivia em famílias biparentais intactas (75%), 22,5% em
famílias monoparentais e 2,5% em famílias de recasamento.
Material
Foi aplicada a escala de resiliência HKRAM ' versão 6.0 (Constantine, Benard,
& Diaz, 1999), o Youth Self Report (YSR) (Lemos, Vallejo, & Sandoval,
2002), o Inventário de Situações de Vida Stressantes (SVS) - versão reduzida
(Oliva, Jiménez, Parra, & Sánchez-Queijiga, 2008), um questionário para
caraterização de adolescentes institucionalizados, adaptado de Lemos (2007) e
um questionário de dados sociodemográficos e familiares para adolescentes não-
institucionalizados, adaptado de Nunes, Lemos e Guimarães (2011). A HKRAM
avalia os vários recursos que os adolescentes podem apresentar a nível externo,
interno e de promoção de resiliência, através de 58 itens organizados em três
escalas: Recursos Externos, Recursos Internos e Response-set Breakers. A
consistência interna da HKRAM é excelente tanto para a amostra dos adolescentes
institucionalizados (a=0,93) como para a amostra dos adolescentes não-
institucionalizados (a=0,92).
As Escalas de Competências e de Problemas de Comportamento do YSR foram
utilizadas para recolher informação junto dos adolescentes. A versão utilizada
é assim constituída por 103 itens que correspondem a subescala dos Problemas
Internalizantes e a dos Problemas Externalizantes, orientadas para deteção das
síndromas centrais do YSR proposta por Lemos, Vallejo e Sandoval (2002). Os
Problemas Internalizantes envolvem problemáticas relacionadas com conflitos
consigo próprio e os Problemas Externalizantes dizem respeito aos conflitos
entre o indivíduo e o seu contexto social. A consistência interna do YSR é
excelente tanto para a amostra dos adolescentes institucionalizados (a=0,94),
como para a amostra dos adolescentes não-institucionalizados (a=0,91).
O Inventario de Sitaciones Estresantes y de Riesgo (ISER), de Hidalgo,
Menéndez, Sánchez, López, Jiménez, e Lorence (2005) é originalmente constituído
por 29 acontecimentos de vida stressantes. Utilizámos uma versão de 25 itens,
traduzida por Nunes e Lemos (2010) sobre acontecimentos escolares, familiares,
com os pares e individuais. O SVS apresentou uma consistência interna de a=0,76
para a amostra dos adolescentes institucionalizados e de a=0,73 para os não-
institucionalizados.
O questionário de Caraterização dos adolescentes institucionalizados
(adaptado de Lemos, 2007) integra maioritariamente questões fechadas e visa
recolher dados específicos acerca do adolescente institucionalizado, acerca do
seu contexto familiar, institucional e escolar.
O Questionário de dados sociodemográficos e familiares é constituído por 25
questões de resposta fechada e tem como objetivo a recolha de informação
sociodemográfica, familiar e escolar acerca dos adolescentes não-
institucionalizados.
Procedimento
Primeiramente foi efetuado um pedido de autorização a duas instituições de
acolhimento de menores e a uma escola pública do concelho do Funchal.
Posteriormente, os questionários foram aplicados em contexto de sala de aula.
Nas instituições estes foram aplicados por um técnico superior de educação e
por uma das investigadoras.
RESULTADOS
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas ao nível da
resiliência total entre os adolescentes institucionalizados e os adolescentes
não-institucionalizados (t=-1,58, p=0,118), aos recursos externos (t=-1,59,
p=0,117), aos recursos internos (t=-1,30, p=0,199) e aos response-set breakers
(t=-1,04, p=0,303) (Quadro_1).
Nos resultados referentes à psicopatologia observámos diferenças
estatisticamente significativas entre os dois grupos no total dos problemas de
comportamento (t=3,33, p=0,001), nos problemas internalizantes (t=3,02,
p=0,003) e nos problemas externalizantes (t=2,76, p=0,007), com os adolescentes
institucionalizados a apresentarem médias mais elevadas (Quadro_2).
Os resultados relativos aos AVS apontam que no grupo de adolescentes
institucionalizados o mínimo de AVS é 0, o máximo é 20 e a média é 7,55
(DP=4,43), enquanto que o grupo de adolescentes não-institucionalizados o
mínimo é 0, o máximo é 12 e a média é 4,73 (DP=3,39). O Test tde Student sugere
que existem diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos no
total de AVS (t=3,21, p=0,002) e em alguns AVS específicos: Divórcio ou
separação dos pais (t=2,77, p=0,007),Mudança de algum familiar próximo
(referente ao núcleo familiar) (t=2,18, p=0,032), Mudança de escola (t=2,93,
p=0,004), Engano ou traição do namorado(a) (t=2,41, p=0,018) e ter sofrido
Doença grave ou acidente importante (t=2,55, p=0,013) (Quadro_3).
Os resultados sugerem que em ambos os grupos existem relações estatisticamente
significativas e positivas, entre o total de AVS e os problemas
psicopatológicos, como mostram os Quadros_4 e 5.
DISCUSSÃO
Os adolescentes institucionalizados apresentavam mais acontecimentos de vida
stressantes e mais problemas psicopatológicos. No entanto não encontrámos
diferenças estatisticamente significativas na perceção dos recursos de
resiliência entre os grupos.
A resiliência é parte de um processo que não pode ser separado do percurso
desenvolvimental dos adolescentes (Luthar, Cichetti, & Becker, 2000). Neste
sentido, os adolescentes institucionalizados são geralmente marcados por
condições de vida adversas devido a situações familiares pautadas por
acontecimentos de vida stressantes e negativos, que implicam uma probabilidade
acrescida de surgimento de problemas psicopatológicos (Li, Nussbaum, &
Richards, 2007).
Os resultados relativos à resiliência obtida pelos adolescentes
institucionalizados sugerem a presença de fatores protetores nas suas vidas.
Estudos sobre menores institucionalizados indicam que os processos de
resiliência estão presentes quando existe uma rede de apoio, como seja equipas
suportivas na instituição e na escola (e.g. Tomazoni, & Vieira, 2004). O
apoio psicossocial dos profissionais pode contribuir para o desenvolvimento da
capacidade de lidar com as adversidades, promovendo caraterísticas de
resiliência e um desenvolvimento adaptativo (Siqueira & Dell'Aglio, 2007).
Os resultados relativos aos problemas psicopatológicos são consonantes com a
literatura, que refere que os menores institucionalizados parecem estar mais
sujeitos a maior risco de problemas sociais, psicológicos e comportamentais
(e.g. Li, Nussbaum, & Richards, 2007). Os problemas psicopatológicos na
adolescência estão associados a vulnerabilidade psicossocial na família (Sabbag
& Bolsoni-Silva, 2011). Contudo, os problemas relacionais, comportamentais
e psicológicos dos adolescentes que vivem em contextos de risco podem persistir
posteriormente a mudança para um ambiente de baixo risco (Marinkovic &
Backovic, 2007). Assim, a manifestação de psicopatologia tem de ser
contextualizada, primeiro no ambiente familiar e posteriormente, no ambiente
escolar e comunitário (Lemos, 2007).
Também os resultados relativos aos acontecimentos stressantes corroboram outros
estudos comparativos (e.g. Poletto, Koller, & Dell'Aglio, 2009) que indicam
que os menores institucionalizados relatam mais acontecimentos de vida
stressantes ao nível do contexto escolar e familiar. Os AVS podem fomentar
estratégias e competências (Grant et al. 2006) ou, ao invés, tornar o indivíduo
mais vulnerável a psicopatologia ou outros resultados indesejados (Friedman
& Chase-Lansdale, 2002).
As relações estatisticamente significativas e positivas entre os AVS e os
problemas psicopatológicos no grupo dos adolescentes institucionalizados
sugerem que os primeiros promovem tendencialmente problemas de comportamento
(Oliva et al. 2008).
Os resultados deste estudo podem ser explicados à luz do modelo construtivista,
a subjetividade do conceito de resiliência remetendo para diferenças a nível do
seu significado em diferentes culturas e contextos, realçando-se os constructos
individuais e do grupo de referência social (Ungar, 2004). Então, podemos
considerar que embora os adolescentes institucionalizados e os não-
institucionalizados estejam inseridos na mesma cultura, o seu contexto mais
próximo (microssistema) difere - uns vivem institucionalizados e outros em
família. Este fator, juntamente com um percurso de vida marcado por muitos AVS,
pode explicar o facto de os adolescentes institucionalizados não apresentarem
significados de resiliência e de saúde divergentes dos de adolescentes não-
institucionalizados.
Finalmente, importa identificar as limitações do presente estudo.
Primeiramente, a impossibilidade de fazer generalizações a partir dos
resultados obtidos, devido ao tamanho da amostra. Em segundo lugar, o desenho
transversal do estudo impede que se possam fazer ilações causais. Por último, o
instrumento de avaliação de resiliência carece de adaptação aos adolescentes
institucionalizados, uma vez que não avalia diretamente o envolvimento dos
adolescentes na instituição de acolhimento. Um estudo futuro deverá centrar-se
na análise do impacto da institucionalização na infância a longo prazo.