Etnia e raça no desporto beirense da época colonial: O caso dos sino-
moçambicanos
Etnia e raça no desporto beirense da época colonial. O caso dos "sino-
moçambicanos"
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Ethnicity and race in colonial-era Beira sport. The case of "Sino-
Mozambican"
À memória de Chin Hung Chong (Chonguito)
O texto deste artigo é essencialmente uma narrativa sobre a participação
desportiva de pouco mais de uma centena de rapazes e de raparigas sino-
moçambicanos[2] dos anos 50 em diante. É a versão simplificada do capítulo
relativo ao desporto num livro a publicar sobre este sector da população
colonial[3].
Embora algumas modalidades desportivas, sobretudo o ténis de mesa e o futebol,
fossem praticadas no seio da comunidade desde anos mais recuados[4], a
documentação e os testemunhos orais recolhidos revelam o entusiástico
envolvimento desses jovens no desporto federado beirense desde o final dos anos
40.
De facto, foi depois da II Guerra Mundial que sino-asiáticos e afro-
chineses começaram a participar nas actividades desportivas federadas[5] da
população civilizada[6] da Beira. Com pouquíssimas excepções, os indígenas
continuaram afastados do convívio do desporto dos colonos até aos anos 70.
Dos 2 098 amarelos recenseados em Moçambique em 1960, 1 136 eram homens e 962
mulheres. Do total na colónia, 1 027 indivíduos (548 H) habitavam no distrito
de Manica e Sofala, dos quais 968 no concelho da Beira.
A tardia entrada de jovens sino-asiáticos[7] na roda das competições
federadas deveu-se aos seguintes factores: a sua população juvenil só à época
passou a ser numericamente significativa; as sociabilidades e os espaços
urbanos dilataram-se; o apartheid étnico a nível desportivo no seio da
população colona, sobretudo com a saída dos britânicos, começou a atenuar-se
por causa do crescimento populacional da urbe e das mudanças políticas a partir
de 1951[8]. Mas também das próprias modificações nas condições de vida dos
membros da comunidade sino-moçambicana[9], e de um novo associativismo entre
eles[10]. Não obstante, um ou outro sino-moçambicano, em particular afro-
chinês, praticou e competiu antes de 1945 em clubes fundados por colonos
portugueses, mistos ou indo-portugueses.
A influência dos territórios vizinhos sob domínio britânico e da comunidade
anglo-saxónica radicada na Beira e em Lourenço Marques promoveu
consideravelmente a prática desportiva entre os jovens da população
civilizada e dos próprios indígenas. Desenvolveu-se, deste modo, na colónia
um verdadeiro movimento associativo de cultura desportiva. Esse movimento, de
várias modalidades desportivas, teve uma dimensão e impacto consideráveis,
muito maiores do que noutras colónias portuguesas.
Para além das artes (qualquer que fosse o seu domínio: literatura, jornalismo,
teatro ou cinema), relevantes para a pequena população letrada[11] de colonos e
de alguns assimilados[12], a actividade desportiva foi uma ampla escola de
socialização e de cidadania, e a fundação de clubes étnicos, alguns dos quais
sem qualquer ligação aos clubes portugueses, foi o processo da produção e
reprodução das suas identidades culturais, e da representação social local,
embrionária de fervores pela terra.
Para situar correctamente este envolvimento, anotemos o surgimento de clubes
moçambicanos na capital e na cidade da foz do rio Pungué.
Para Lourenço Marques, citemos o Desportivo Lourenço Marques[13], fundado com
dedinhos maçónicos, e de quem José Craveirinha foi um fervoroso associado e
dirigente; o Clube Ferroviário, dos trabalhadores dos portos e dos caminhos-de-
ferro de Moçambique[14]; o Atlético Clube de Lourenço Marques[15], assim
descrito por Honwana:
oposto à Associação Africana havia o Atlético, clube de mulatos, mas
dos chamados mulatos de primeira; constituído pelas poucas famílias
de mulatos com aspirações a aristocracia e nobreza, os mulatos da
Polana, os mulatos doutores e directores, na generalidade, pessoas
que não se identificavam com os outros mulatos. No Atlético havia
casos de mulatos que desprezavam a mãe negra, que nos chamavam
abertamente pretos, e que, tal como o colono, diziam que as nossas
línguas africanas eram línguas de cão. Eles constituíam também
baluartes da discriminação racial, ver um preto num baile do Atlético
era impensável (Honwana, 1989, pp. 118-119).
Também em Lourenço Marques, o Clube do Alto Maé; do Munhanense Azar; o
Mahafil Isslamo (ou Mahafil Issilamo); o Clube Vasco da Gama[16]; o Clube de
Futebol João Albasini
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; o Atlético Maometano, de mestiços muçulmanos; o Beira-Mar, no Chamanculo; o
Clube Desportivo Indo-Português, na Malhangalene; o Operários Goeses, no Bairro
da Central e o Nova Aliança, entre outros.
Para a Beira, historiemos um pouco mais o surgimento de clubes e das
modalidades desportivas: em 1893, o número de ingleses na cidade perfazia 60
pessoas, número relativamente elevado para a época se compararmos com a
restante população civilizada. A grande maioria dos britânicos era composta
por homens, por isso, muito naturalmente, começaram a jogar cricket[18] e
outros desportos do seu gosto, chegando a competir entre si (colonial born
versus home born) e com compatriotas da Rodésia e da África do Sul. Segundo
John Bale, a Inglaterra foi o local que deu o desporto ao mundo (Bale, 1989,
p. 50, apud Nolasco, 2004, p. 31), ou seja, por pressão do processo de
industrialização e sob a lógica do capitalismo, dos polimorfos jogos populares
emergiu o desporto moderno, altamente sistematizado e burocratizado (ibid., p.
31), que se expandiu pelas suas diásporas.
Em consequência, por volta de 1896 os britânicos fundaram o primeiro clube de
que há memória na cidade, o Beira Sports Club, para a prática do cricket, do
ténis, do pugilismo e do football association, com campos de jogos no local
onde, no final da época colonial, seria construído o prédio Vasco da Gama, no
bairro do Maquinino. Anos mais tarde, o Beira Sports Club passou a chamar-se
Beira Amateur Sports Club, que tinha como sede um belo edifício junto desses
campos.
Numa data posterior à criação do Beira Sports Club, os súbditos de sua
majestade britânica fundaram o Beira Yatch Club, que introduziu o desporto
náutico, enquanto a criação do Beira Racing Club trouxe o hipismo. O golf só
apareceu mais tarde, com o Beira Golf Club. Estas modalidades eram praticadas
pelos ingleses. A iniciativa da construção do campo de golfe foi de um grande
entusiasta deste jogo, o coronel Alfred James Arnold, inspector da Companhia de
Moçambique. Aliás, o campo foi construído a expensas suas, mas grandemente
apoiado pela companhia. Para além de ter sido uma excelente obra de saneamento,
o campo deu à cidade bom-nome do ponto de vista turístico, pois passou a ser
considerado um dos melhores na África meridional. Dispunha apenas de 9 buracos.
Nos anos 50, o campo passará a ter 18. A inauguração oficial foi feita pelo
príncipe D. Luiz Filipe, de Portugal, em 1907, embora já nele se jogasse havia
algum tempo.
Pouco sabemos do envolvimento da restante população civilizada nas práticas e
competições desportivas até ao final da Primeira Guerra. Podemos imaginar que a
elite colonial portuguesa fora admitida nos clubes britânicos, praticando com
estes o hipismo, a vela, o golfe e o ténis. Não o cricket, demasiado british,
pelo que só os hindustanos – indo-portugueses e hindus – terão constituído
equipa para confrontos entre si, com compatriotas das colónias vizinhas e,
raríssimas vezes, com os anglo-saxões, à maneira da Índia, de acordo com o que
Arjun Appadurai chamou indianização desta modalidade. Appadurai analisou o
papel do cricket para o nacionalismo indiano, e, sobretudo, para as identidades
comunitárias das populações da Índia. O antropólogo afirmou que o cricket se
desenvolveu como instrumento oficioso da política cultural do poder colonial
inglês. Segundo ele, o cricket comunicou à população indiana valores de elite
britânica vitoriana, a saber, desportivismo, sentido de jogo justo e controlo
pleno da expressão de sentimentos. Este desporto entrou num processo de
indigenização e contribuiu para o processo de descolonização (Appadurai, 2005).
Mutatis mutandis, outras modalidades teriam os mesmos efeitos no tardo
colonialismo em Moçambique.
Foi por volta de 1912 que se ensaiaram as primeiras jogadas de futebol na
Beira, sendo utilizados pelos entusiastas os terrenos na margem direita do
estuário do Chiveve, onde surgiu mais tarde a Praça Henriques Nogueira.
O football association começou a ser praticado na África meridional britânica
na segunda metade do século XIX por britânicos e por boers. Como na Inglaterra,
onde o futebol era prática desportiva das classes trabalhadoras e o rugby das
elites, também aqui o futebol se tornou rapidamente o desporto dos negros e o
rugby das elites brancas. Foram os missionários protestantes que introduziram
esta modalidade desportiva entre os kholwas (negros cristãos) na região de
Durban e entre os mineiros do Rand. Em 1899, uma equipa de negros viajou para o
Reino Unido para disputar uma série de partidas. Foram tratados como atracção
circense e humilhados em campo[19]. Durante décadas, na África do Sul
existiram federações desportivas separadas para brancos, negros e mestiços. Em
1892, foi fundada a primeira federação sul-africana de futebol dos brancos.
Anos mais tarde, foi criada uma federação de futebol das equipas dos negros.
Foi em torno do futebol que nasceu na Beira a ideia da fundação de uma
agremiação desportiva puramente portuguesa. Surgiu deste modo, em 1916, o
primeiro clube de futebol de colonos lusos que, naturalmente, teve grande apoio
de outros residentes; tratava-se do Sport Lisboa e Beira, que se filiou no
Sport Lisboa e Benfica. O Esselbê, como passou a ser designada a agremiação na
Beira, construiu um pavilhão de cimento, todo envidraçado, na fronteira do
bairro do Maquino com o bairro do Esturro, com campos de jogos anexos, paredes-
meias com o futuro aeródromo Pais Ramos.
Entretanto, foram surgindo novas modalidades como o atletismo e o hóquei-em-
campo. Disputavam-se campeonatos, torneios, competições com equipas vindas de
fora, não só de futebol, mas também de cricket[20], e um campeonato rodesiano
de golfe teve lugar no campo do Beira Golf Club, pois era considerado em toda a
região um dos melhores na época. O ténis era uma modalidade desportiva muito
popular entre os colonos. A natação continuou a ser praticada a título de
diversão. O hóquei-em-campo surgiu na Beira por volta de 1932 e o automobilismo
apareceu com as suas gincanas antes da II Guerra, mas desenvolveu-se
particularmente nos anos 60 com a delegação local do Automóvel Clube de
Moçambique.
Como resultado de um desentendimento entre sócios do Sport Lisboa e Beira,
criou-se um novo clube, o Atlético da Beira. Deste clube pouco se sabe. Segundo
Al Pereira[21], a cisão no SLB deveu-se ao facto de alguns não concordarem que
o clube se chamasse Sport Lisboa e Beira em vez de Sport Beira e Benfica e que
o emblema não tivesse a roda da bicicleta, também símbolo do clube encarnado
lisboeta. Terão sido alguns destes dissidentes que fundaram mais tarde o
Sporting local. Um destes fundadores foi Joaquim Picardo, chefe de estação dos
caminhos-de-ferro.
Pouco tempo antes, formara-se o Beira Railway Athletic Club, que seria mais
tarde chamado Clube Ferro-Viário e depois Clube Ferroviário da Beira. Outras
agremiações desportivas foram sendo criadas, como o Centro Recreativo Indo-
Português, dos letrados funcionários públicos, empregados por conta própria, de
profissões liberais, todos das castas hindus mais elevadas, em particular da
xátria (kwshatria, mais propriamente). O Sporting da Beira em 1929. Neste mesmo
ano foi fundado o Clube Desportivo dos Operários Goanos[22], das castas menos
elevadas dos sudras, que se extinguiu pouco depois, reaparecendo volvidos
alguns anos, estando em actividade em 1957.
Esta euforia do desporto beirense prolongou-se por mais de uma dezena de anos.
Outros clubes foram surgindo a partir desta época, considerada de franca
recuperação do desporto local. Foram eles o Clube Helénico da Beira, o Clube
Desportivo da Beira[23], o Tung Hua Athletic[24]Club (vulgarmente conhecido por
Atlético Chinês nos anos 50), o Centro Africano de Manica e Sofala, dos
mestiços, o Clube Náutico da Beira, o Clube Desportivo da Lusalite, o Clube
Recreativo do Búzi, o Centro Hípico da Beira, o Clube Oriental, o Clube
Ferroviário da Manga(depois de 1963) e o Clube Nova Maceira[25].
Antes dos anos 50, também os indígenas começaram a fundar os seus clubes de
futebol. Clube Desportivo Rebenta Fogo, Clube Nova Aliança, Clube Alto Búzi,
Clube Luso Africano, Clube Boavista, Clube 1º de Maio, Clube Unidos, Clube
Trovoada, Clube Sá da Bandeira, Clube Belenenses, Clube Sporting da Zambézia,
Clube Inhambanense e Futebol Clube estavam todos em actividade em 1959. A
seguir desapareceram alguns e surgiram outros, como o Clube Desportivo de
Matacuane.
Assinale-se a marca regional e étnica de todas as colectividades desportivas
beirenses. Desde logo, os clubes britânicos, depois os vários clubes dos outros
colonos brancos[26]. Saliente-se, ainda, o clube desportivo dos sino-
asiáticos de 1947 (formado por jovens nascidos em Moçambique na sua grande
maioria), o Oriental dos sino-asiáticos e afro-asiáticos, dos anos 60, o
Centro Recreativo Indo-Português, o Goanos, de raízes indianas e, por fim, o
Helénico, dos gregos.
A partir dos anos 50, os clubes dos colonos começaram a integrar jogadores
indianos, chineses e mestiços de cruzamentos biológicos diversos.
Desde essa altura, surgiram os clubes indígenas no bairro suburbano da
Chipangara, e, depois, na Missão de São Benedito na Manga[27]. Aqui,
organizaram-se competições no âmbito de uma associação própria, a Associação
Africana.
No espaço suburbano de matope[28] seco, na Chipangara, jogava-se aos sábados à
tarde e aos domingos com bolas fabricadas pelos jogadores.
Era aquele futebol descalço e cada clube tinha o seu campo. Toda a
área estava dividida em campos de futebol. Por cada jogo, a equipa
dona do campo recebia 150 escudos. A polícia aparecia também porque
havia muitos confrontos. Quando uma equipa começava a perder,
começava a barafunda. Mais tarde, nos anos 60, os jogos começaram a
realizar-se nos campos da cidade. Cada espectador pagava 2$50 para o
aluguer do campo e financiar o clube. E também para convidar equipas
forasteiras, incluindo da Rodésia[29].
O Diário de Moçambique chamou a este futebol africano, a 2ª divisão do futebol
beirense[30]. A designação era louvável. Mas para que houvesse uma 2ª divisão
subentendia-se uma 1ª e a passagem de uma à outra, por descida dos últimos da
1ª e subida dos primeiros da 2ª. Ora isso não sucedia. A Associação de Futebol
da Beira, dos civilizados, e a Associação Africana, dos indígenas, eram
realidades distintas. O campo de futebol da Missão de S. Benedito tinha uma
capacidade para 7 000 pessoas sentadas e serviu durante vários anos a
Associação Desportiva de S. Benedito, composta de 29 clubes (Sousa, 1991, p.
161), alguns deles nascidos nos campos da Chipangara.
Como a população civilizada era pouco numerosa para tanto desporto, era
frequente ver o mesmo atleta praticar mais que uma modalidade no mesmo clube ou
em clubes distintos, o que embaraçava as respectivas associações criadas
entretanto para a organização das competições.
A saída da maioria dos residentes britânicos da Beira nos anos 50, devido à
nacionalização do porto (1948) e do caminho-de-ferro (1949), marcou o fim da
rivalidade desportiva que existia entre a comunidade inglesa e outras
comunidades de civilizados. Consequentemente, o nível competitivo baixou nos
primeiros tempos, tendo algumas modalidades desaparecido como práticas
desportivas regulares, casos do atletismo e do ciclismo. Em 1957, só o Centro
Recreativo Indo-Português continuou a praticar o hóquei-em-campo e o cricket.
Assim, o desporto beirense foi vivendo momentos altos e baixos nesses anos pós-
II Guerra. Foi graças à boa vontade de alguns entusiastas que certas
modalidades e clubes se mantiveram. Alguns reestruturaram-se e fundiram-se
(como se referiu para o aparecimento do Clube Desportivo). Entre modalidades
introduzidas ou que se desenvolveram, são de destacar o basquetebol, o tiro, os
desportos náuticos, o hóquei patins, o hipismo, o pugilismo e a luta-livre, as
duas últimas graças ao italiano Marino Beneditto, ao grego Campanis e, mais
tarde, ao português Al Pereira. Os desportos motorizados só se desenvolveram a
partir de meados de 50 com a criação da delegação local do Automóvel Clube de
Moçambique (ATCM) (Couto, 1971, p. 25).
A partir dos anos 50 a população civilizada cresceu substancialmente. O
número de jovens das diferentes origens que compunha esta categoria colonial
(brancos, asiáticos, negros assimilados e mestiços de cruzamentos diversos) já
era importante e povoava os estabelecimentos de ensino médio: liceu Pêro de
Anaia, escola técnica Freire de Andrade, colégios e internatos particulares,
incluindo a escola chinesa. Para 1950, é indicado para Manica e Sofala um total
de 760 amarelos, dos quais 479 do sexo masculino. O número de afro-chineses
de primeira e segunda gerações não foi contabilizado, estes integravam a
categoria dos mestiços[31]. A população da Beira, incluindo a área suburbana,
era de 42 539 indivíduos. Neste ano, os sino-asiáticos de nacionalidade
portuguesa começaram a superar os sino-asiáticos estrangeiros[32]. Em todo o
caso, o número de sino-moçambicanos que, nos anos 50 e 60, praticava desporto
não ultrapassava os cem. Eram jovens que tinham passado ou ainda frequentavam
as escolas portuguesas, sendo alguns deles católicos. Em número significativo,
trabalhavam em empresas não portuguesas, na função pública, em ateliers de
engenheiros e arquitectos portugueses, dando apoio nos estabelecimentos e
negócios familiares[33].
Para ilustrar o que ficou dito sobre a representação étnica e racial no
desporto na Beira, vejamos no quadro seguinte os valores demográficos da sua
composição para os anos 1940-1960.
Muitos dos jovens estudantes dedicavam-se às práticas desportivas nos clubes de
preferência ou de vizinhança, ou nos estabelecimentos de ensino, praticando
aqui modalidades que os clubes não fomentavam, como a ginástica, a esgrima e o
andebol. Alguns dedicavam-se a vários desportos em simultâneo, na escola e no
clube.
Foi neste contexto que, desde o início dos anos 50, com algumas excepções
anteriores, rapazes e raparigas sino-asiáticos e, sobretudo, os afro-
chineses passaram a participar com grande entusiasmo na actividade desportiva
local, quer nas escolas, quer no desporto federado.
No caso dos sino-asiáticos, à semelhança dos gregos e dos indo-portugueses,
para que um maior número de jovens pudesse participar nas competições oficiais
foi criada uma equipa desportiva em 1947 e outra no início dos anos 60. Ambas
foram da iniciativa de jovens amantes do desporto, embora dignitários das
irmandades estivessem presentes no projecto da criação dos dois clubes.
Vejamos a formação dos dois clubes, criados, sobretudo, para a prática do
basquetebol, e acrescentemos a participação de jovens sino-moçambicanos
noutras colectividades beirenses para a prática do basquetebol e de outras
modalidades.
O Atlético Chinês e o Clube Oriental
A 12 de Julho de 1947 foi pedida à administração colonial na Beira por um
pequeno grupo de amigos a autorização para fundar um clube desportivo, sendo
dados a conhecer os estatutos, a sede social e o campo de treinos. O artigo
1º referia que Tunghua Athletic Clube[34] (aliás, Tung Hua Athletic Club) seria
a denominação da agremiação que teria como objectivos o desenvolvimento
intelectual e a prática de todos os desportos atléticos. Os estatutos
acrescentavam, num parágrafo único, que, para o desenvolvimento intelectual, o
clube criaria uma biblioteca e procederia à representação de peças teatrais. No
art.º 3º estipulava-se que as cores representativas do clube nos diversos ramos
do desporto teriam por base o branco, o azul e o vermelho (as cores do
Kwomintang, nota minha)[35]. Segundo o art.º 40º, os proponentes fundadores já
eram nascidos na Beira de pais da primeira geração de imigrantes.
O pedido foi indeferido com a seguinte argumentação:
São já muitos (sete)[36] os clubes de desportos existentes nesta
cidade, pelo que deverá ser difícil garantir uma vida desafogada a
outros que se formem. Mas há outra razão: a colónia chinesa já possui
há muitos anos um clube denominado Chee Kung Tong Club (Clube
Chinês)[37] que tem como sócios a quase totalidade da população
chinesa da Beira e em condições de poder tê-lo. Dos seus estatutos
consta que os mesmos se podem dedicar à prática de jogos desportivos
promovendo também o desenvolvimento intelectual dos sócios e mantendo
escolas e bibliotecas. A meu ver, não deve conceder-se a autorização
solicitada tanto mais que já há anos se criou na Beira outra
agremiação que se denominou Chon Sun Tong[38] a que foi retirado o
alvará há cerca de sete anos, certamente por não satisfazer aos fins
a que se destinou[39].
Apesar da proibição administrativa, criaram o clube. A irmandade Chee Kung Tong
era tudo menos uma agremiação desportiva, como referi, e as novas gerações já
não se identificavam com ela. À semelhança de outros clubes desportivos
étnicos, queriam ter o seu espaço para actuarem a nível federado. Mas a esse
desejo dos jovens associou-se a também o interesse político de delegados locais
do Kwomintang de Chiang-Kai-shek[41], que passaram a actuar através da
Associação de Beneficência, criada em 1946 (por conseguinte, distinta do Clube
Chinês, Chee Kung Tong, de 1922, e comandada por uma outra tríade secreta).
O clube desportivo foi inscrito nas estruturas associativas do desporto
beirense com a designação Tung Hua (ou Wá) Athletic Club, chegando a jogar com
equipamento onde figuravam as iniciais: THAC. Só anos volvidos passou a
designar-se Atlético da Beira, designação não aceite pelas federações
desportivas porque já existia um clube com este nome. Foi com o nome Atlético
nas camisolas (e Atlético Chinês para a população beirense) que competiram nos
campeonatos distritais e provinciais e participaram nos torneios da África
Austral organizados pela representação diplomática de Taiwan na África do Sul,
por ocasião das férias da Páscoa, geralmente através da Overseas Chinese
School, também conhecida como Johanesburg Chinese School.
No início dos anos sessenta foi fundado o Clube Oriental (Clube Nam Wá). Este
clube foi criado por alguns dissidentes do Tung Hua Athletic Club. As
motivações dos descontentes não tiveram uma causa política, nem a pertença a um
local particular de origem na China, embora Tung Wá (oriente da China) e Nam
Wá (sul da China) pudessem querer significar isso. Estiveram presentes
questões de ordem pessoal e familiar e, também, o elevado número de atletas
inscritos no Atlético sem oportunidade de jogar. A ideia de criar este clube
terá começado a germinar num colégio na Rodésia entre estudantes chineses
beirenses. Mas os principais promotores do Oriental foram um ex-professor da
escola chinesa e alguns destacados comerciantes de apelido Yee. O clube foi
oficializado como uma secção do Chee Kung Tong Club e com a mesma sede e
estatutos, como o tinha sido o Atlético. Mas, na verdade, era um clube
desportivo autónomo do velho Clube Chinês. O Oriental tinha um equipamento
preto por oposição ao branco e azul do Atlético. O clube participou em torneios
e campeonatos da Beira.
O Oriental não tinha um campo de jogos. Por isso começou a treinar num terreno
desocupado no bairro do Esturro junto à cantina de um dos Matacopanjas[42], e,
depois, no pátio da escola chinesa. A cantina dos irmãos Fung era a sede e a
sala de exposição das taças do clube.
A participação nas várias modalidades desportivas
O basquetebol foi a modalidade desportiva mais em evidência para os colonos de
todas as praticadas pelos sino-moçambicanos, quer em competições oficiais
quer em jogos amistosos. Em todas as categorias: seniores, femininos e
juniores. Tanto o Tung Hua Athletic Club (Atlético Chinês) como o Clube
Oriental foram essencialmente clubes de basquetebol. Alguns sino-moçambicanos
também praticavam esta modalidade noutros clubes. Em 1959, na equipa feminina
do Sporting da Beira jogavam três sino-moçambicanas, as três irmãs de Sui
Lan, ex-jogadoras do Atlético[43].
O basquetebol é um desporto de equipas que foi inventado no final do século XIX
e se tornou desporto olímpico em 1936. Curiosamente, não era muito praticado
nas colónias vizinhas. Mas em Moçambique teve uma expansão enorme desde os anos
40, tornando-se a modalidade mais praticada em todo o espaço português. Terá
surgido na colónia como prática de mini-basquete nas escolas (associado à
educação física) e nos bairros, onde era compatível para o lazer dos jovens nos
pequenos espaços. Ambas as situações foram aproveitadas pelos jovens sino-
moçambicanos, nas escolas que frequentavam e nos espaços sociais onde viviam.
A primeira equipa de jogadores sino-moçambicanos que participou em
competições oficiais de basquetebol na Beira no início dos anos 50, jogou em
Janeiro de 1951 no Torneio de Abertura de Basquetebol da cidade com o Clube
Helénico, Clube Ferroviário, Sport Lisboa e Beira, Desportivo e Sporting[44].
Apresentaram-se com um equipamento onde estavam marcadas em diagonal na
camisola branca as iniciais do Tung Hua Athletic Club: THAC. Só mais tarde foi
gravada nas camisolas a palavra Atlético, em vez de THAC. O Atléticotinha
também uma equipa de reservas, uma equipa de juniores e uma equipa feminina. Os
treinos realizavam-se no pátio do Clube Chinês (Chee Kung Tong)[45]. Deste
modo, a preparação das três equipas tornava-se muito difícil, sendo sempre dada
a preferência ao núcleo central da equipa de seniores, o que, acrescentado ao
facto de participarem nos treinos muitos jogadores, veio a causar conflitos que
originaram a formação do Clube Oriental.
Nas épocas de 1951/52, 1952/53 e 1953/54, a primeira geração de
basquetebolistas sino-moçambicanos federados distinguiu-se, tanto nos
masculinos seniores, como nos femininos e nos juniores. O Diário de Moçambique
assinalava isso com frequência, enaltecendo os seus principais actores, como
John Ping, da equipa principal masculina, e a capitã Sui Lan da equipa
feminina.
A segunda geração de basquetebolistas masculinos e femininos data dos anos
sessenta. Esta geração já era composta por jovens que tinham feito a escola
primária portuguesa e ingressado na escola secundária. Alguns deles tinham-se
convertido ao catolicismo.
Tanto a primeira como a segunda geração de jogadores obtiveram importantes
êxitos nas várias competições oficiais e amigáveis: torneios de abertura,
campeonatos da cidade, torneios de encerramento e torneios comemorativos. Para
além disto, jogadores e jogadoras integraram as selecções (ou mistos) da Beira
para competir com equipas da capital, assim como com equipas da Rodésia, da
África do Sul e da metrópole[46]. Em 1951, pelo menos dois dos jogadores
seniores, Fone Guine e Fon Lin, foram inscritos pelo Tung Hua Athletic Club
para candidatos a árbitros de basquetebol[47].
O basquetebol era uma modalidade muito popular na Beira nos anos 50 e 60. Os
treinos e os jogos realizavam-se durante a estação quente e húmida, de Novembro
a Março, ao passo que o futebol se jogava na estação seca. Por isso, muitos
jogadores de basquetebol eram, simultaneamente, jogadores de futebol. Os jogos
de basquetebol realizavam-se no campo do Ferroviário (que nos anos 50 ainda era
um campo a céu aberto, só na década seguinte passou a existir um pavilhão
coberto); no primitivo campo do Sport Lisboa e Beira, com bancadas de madeira,
e, depois, no novo campo de cimento, a céu aberto; no campo do Clube da Beira
(ex-clube dos funcionários da Companhia de Moçambique), de cimento e coberto,
que desde o final dos anos 50 foi o Pavilhão da Mocidade Portuguesa; no campo
do Clube Desportivo, a céu aberto e bancadas de cimento e madeira; e no campo
do Sporting, nas Palmeiras. O Atlético, o Oriental, e o Helénico não tinham
campo de jogos para a prática do basquetebol federado.
Geralmente, realizava-se uma sessão dupla: um jogo de juniores ou de femininos
antecedia o jogo dos seniores masculinos. De registar que a assistência era
essencialmente composta por colonos brancos, mestiços e indo-portugueses, sendo
quase nula a presença de negros. A grande maioria era constituída por
funcionários dos caminhos-de-ferro e da administração, empregados comerciais e
trabalhadores por conta própria. Curiosamente, muito poucos sino-asiáticos
assistiam. Raramente estavam presentes mulheres chinesas. Os asiáticos das
primitivas gerações de imigrantes, todos vindos da província de Cantão,
preferiam jogar o Mah Jong e fumar o cachimbo de ópio[48] no Clube Chinês.
O Diário de Moçambique e o Notícias da Beira davam muito destaque à actividade
desportiva beirense. Podia ler-se o seguinte sobre a ausência da equipa
feminina do Atlético Chinês no torneio de abertura de Janeiro de 1951:
Quanto às jovens filhas do Celeste Império, a sua ausência desta
prova, a verificar-se, impedir-nos-á de apreciarmos uma boa técnica,
que sem dúvida são capazes de proporcionar-nos, pois é do domínio
comum a propensão natural da sua raça para actividades desta
natureza, como tem vindo a verificar-se pelas boas contas que de si
tem dado o agrupamento masculino, hoje sem dúvida um dos melhores
apetrechados para a disputa das provas. Consta-nos que por este lado
não será uma questão de preconceito o que impedirá a apresentação das
equipas femininas do Atlético Chinês; a dificuldade aqui é maior, ou
por outra, de resolução menos acessível, pois ela se prende com um
campo onde os indispensáveis treinos se possam realizar. Aqui
deixamos, portanto, o nosso apelo aos restantes clubes para que
facilitem, se puderem, a utilização dos seus campos de modo a que o
campeonato feminino de basquetebol não fique prejudicado pela
ausência de um agrupamento que lhe pode dar um indiscutível brilho
[49].
Cerca de três semanas após a publicação desta notícia, lia-se no Diário de
Moçambique o seguinte comentário a propósito do jogo entre as equipas femininas
do Sport Lisboa e Beira e do Atlético:
Seguido com grande entusiasmo este jogo proporcionou oportunidade de
se verificar como o elemento feminino da colónia chinesa se está a
interessar pela modalidade. Sendo a segunda vez que joga, o grupo já
ontem apresentou elementos perfeitamente equilibrados, combativos e
com fácil domínio de bola. O capitão do grupo, Sui Lan, mostra-se
jogadora de futuro[50].
Mas a imprensa não só noticiava a actividade desportiva e os factos sociais que
a acompanhavam. Em certas ocasiões, empenhava-se em debater assuntos
relacionados com essa actividade. Daí, as por vezes acesas discussões entre o
jornal Diário de Moçambique, de Dom Sebastião Soares de Resende, bispo da
Beira, e o jornal Notícias da Beira, do empresário Victor Gomes[51].
Foi o que sucedeu aquando da visita à Beira da equipa de basquetebol da
Académica de Coimbra, a campeã portuguesa na época de 1950/1951. O jogo
realizou-se a 29 de Março de 1951. A equipa de Coimbra venceu o Atlético Chinês
por 71 a 23, o que espelhava bem o desnível das duas equipas. A propósito, um
articulista do Notícias da Beira escreveu:
também não compreendemos porque se defendia tão acerrimamente a
equipa do Atlético Chinês por parte de algum público, pois, é certo
que a equipa é da Beira, mas não é menos verdade e julgamos o
principal motivo, que é uma equipa estrangeira[52].
O Diário de Moçambique respondeu:
é pena [o Notícias da Beira] estar tão mal informado, pois que os
componentes da equipa do Atlético Chinês são todos naturais da Beira,
com excepção de Wing Fon e, por isso, tão portugueses e beirenses
como muitos dos portugueses que defendiam esta equipa ontem no campo
do Macúti. O que interessa que esse público estivesse a defender o
Atlético Chinês se o estava fazendo correcta e desportivamente? Se
defendia o Atlético defendia o mesmo Atlético que nos tem
proporcionado jogos emocionantes de Basquetebol com as equipas locais
e consequentemente defendia o desporto beirense[53].
Para além da posição da União Nacional no Notícias da Beira e do anti-racismo
do Diário de Moçambique, havia já nalguma população branca, mestiça e
assimilada com sentimentos moçambicanos e fervores pela terra manifestados
no desporto, de que o movimento nacionalista se iria alimentar e que também
Jorge Jardim tentou recuperar no início dos anos 70, pelo que patrocinou a ida
da equipa feminina do Atlético ao campeonato português em Angola e envolveu
algumas raparigas sino-moçambicanas nos seus concursos de beleza.
Por volta de 1958 começou a ser exercida sobre as comunidades sino-asiáticas
da Beira e de Lourenço Marques alguma influência da China Nacionalista por
intermédio do consulado-geral da Formosa em Pretória, na África do Sul, e do
consulado na Suazilândia. No campo desportivo, foi a partir dessa data que
começaram a ser organizados torneios destas comunidades na África Austral
(África do Sul, Rodésia e Moçambique). A da Beira participava com uma poderosa
equipa de basquetebol e com uma equipa ad hoc de futebol. No primeiro torneio
da Páscoa, por ocasião do aniversário do generalíssimo Chiang Kai-shek, o Clube
Oriental da Beira participou no evento. Mas no segundo, estiveram as duas
equipas beirenses, o Atlético e o Oriental. No terceiro, foram selecções dos
dois clubes, uma masculina e outra feminina. Ganharam quase sempre.
Os dignitários da comunidade procuraram habitualmente um bom entendimento com
as autoridades coloniais. Por sua vez, estas, a partir dos anos cinquenta, por
causa dos ventos do emergente nacionalismo africano, quiseram alargar a sua
base de apoio. Mas também a China Nacionalista pretendia estabelecer a sua
influência nas comunidades de além-mar. A Guerra Fria e o anticomunismo do
mundo ocidental foi um óptimo terreno para a Formosa. Mas Moçambique era-
o menos por causa das relações de Portugal com as duas Chinas. Mesmo assim, a
partir da África do Sul, os políticos de Taiwan procuravam marcar a sua
presença. Só que bastantes sino-asiáticos moçambicanos mantinham relações com
a China continental através de Macau e de Hong Kong.
Para os jovens jogadores participantes nesses torneios nos territórios
vizinhos, o interesse estava no passeio e no convívio. A colagem a uma
identidade chinesa nacionalista, procurada pela Formosa através dos seus
consulados na África do Sul e Suazilândia, dos filmes de Hong Kong e Taiwan, da
influência na Escola Chinesa e da literatura (jornais, revistas e folhetos de
Taiwan e Hong Kong), era marginal, interessando sobretudo a alguns dignitários
das tríades. Os jovens sino-moçambicanos viviam com desprendimento, alguns
com curiosidade, o que se passava na China continental. E foi por causa desta
curiosidade, longe das querelas entre os pró-Pekin, de Mao, e os pró-Chiang
Kai-shek, de Taipé, que se manifestaram ruidosamente numa dessas viagens quando
ouviram estupefactos que a China tinha levado a cabo com sucesso o seu primeiro
ensaio nuclear. Esta espontaneidade causou perplexidade nos mais velhos e
embaraço nos organizadores do torneio. Foi a partir desta manifestação que a
PIDE se tornou mais presente entre os sino-moçambicanos. Por isso, e pela
obrigatoriedade do serviço militar, alguns jovens começaram a emigrar para Nova
Iorque, Londres e Hong Kong.
Como se referiu, jogadores sino-moçambicanos passaram a praticar desporto
noutros clubes beirenses. Nas estruturas da Associação de Basquetebol da Beira
participavam alguns como cronometristas e árbitros. Em 1965, realizou-se na
capital de Manica e Sofala o campeonato nacional português de basquetebol
feminino. Participaram no evento as equipas do Centro Desportivo Universitário
da Universidade do Porto (CDUP), do Lubango e Benfica, de Angola, do Desportivo
da Beira e do Atlético Chinês da Beira. Pelo Desportivo e pelo Atlético
participaram jogadoras sino-moçambicanas como Siu Wah, Sui Mei, Chan, Teresa
Kwan, Branca Pack, entre outras.
Ao invés do basquetebol, o voleibol, embora também federado e modalidade
considerada bastante completa e atraente, não merecia muita simpatia e
entusiasmo do público beirense. Era sobretudo uma modalidade de praia[54], das
escolas e dos quintais. Nas competições oficiais, a assistência aos jogos
resumia-se aos participantes e a meia dúzia de pessoas[55]. Mesmo assim, em
1952, realizou-se um campeonato da cidade[56], em que participaram as equipas
do Atlético Chinês, Centro Africano, Centro Recreativo Indo-Português,
Desportivo, Ferroviário, Muçulmanos[57], Sport Lisboa e Beira e Sporting. Como
o voleibol se praticava durante a mesma época do ano que o futebol, na estação
seca, diferente da do basquetebol, que era jogado durante o defeso do futebol,
na estação das chuvas, os clubes que não praticavam o futebol federado, como o
Atlético Chinês e os Muçulmanos, apresentavam no voleibol quase os mesmos
jogadores do basquetebol. Os outros clubes só inscreviam atletas que, embora
pudessem ser basquetebolistas na devida época, não jogassem futebol, para
evitar a prática simultânea de voleibol e de futebol pelos mesmos atletas. Poo
Quin também foi árbitro desta modalidade[58].
Os campos de jogos para as competições de ginásio, como o basquetebol,
voleibol, hóquei patins e ginástica, eram os dos clubes já referidos:
Ferroviário, Sport Lisboa e Beira, Sporting, Desportivo e Pavilhão da Mocidade
Portuguesa, que tinha sido o clube dos funcionários da Companhia de Moçambique.
Os outros clubes tinham apenas precários espaços de treino, usando também para
treino os ginásios do liceu ou da escola técnica e o salão da escola chinesa.
O pingue-pongue, nome popular para o ténis de mesa, foi a mais desenvolvida das
modalidades desportivas praticadas pelos sino-moçambicanos da Beira e de
Lourenço Marques. Onde existisse uma mesa, os jovens rapazes usavam-na para
jogar (já as raparigas não praticavam este desporto). Jogava-se no liceu, na
escola técnica, nas garagens de um ou outro afortunado, nas sedes dos clubes.
Organizavam-se campeonatos ad hoc. John Ping, esquerdino, foi campeão da Beira
nos anos 50. No Torneio de Aniversário do Sport Lisboa e Beira, o Atlético
Chinês venceu 14 partidas e apenas perdeu uma[59].
O badmington era pouco praticado. Mesmo assim, chegaram a organizar-se alguns
torneios com a participação de clubes, do liceu e da escola técnica. O Atlético
Chinês notabilizou-se com alguma facilidade.
Como já foi referido, tanto na Beira como em Lourenço Marques não havia entre
os sino-moçambicanos equipas federadas de futebol que estivessem envolvidas
nas competições locais, como, por exemplo, tinham os indo-portugueses do Centro
Recreativo Indo-Português ou a equipa de Operários Goanos. Só nos anos sessenta
é que a comunidade da Beira participou com uma equipa ad hoc nos jogos de
futebol do campeonato corporativo e, também, com uma selecção de futebolistas
contra uma congénere laurentina.
Os sino-moçambicanos amantes do futebol jogavam nas equipas dos clubes da
cidade como o Centro Recreativo Indo-Português, Ferroviário, Sport Lisboa
eBeira, Sporting e Desportivo. Ping Song foi o primeiro jogador sino-asiático
de futebol na Beira. Jogou pelo Sporting em 1947-1948. Seguiram-se-lhe outros
nos vários clubes, principalmente nas equipas de juniores. Raramente houve
jogadores sino-asiáticos nas equipas de seniores. Só alguns afro-chineses
se afirmariam na categoria principal, como Shéu, que se tornou famoso no
Benfica de Lisboa[60], e os irmãos Manacas, que foram jogadores do Sporting da
Beira e de clubes em Portugal.
No tempo da Companhia de Moçambique e do domínio britânico no desporto
beirense, o ciclismo parece ter tido alguma actividade regular. Mas depois da
II Grande Guerra passou a ser uma actividade ocasional, em datas comemorativas
e festivas ou por ocasião da ida à Beira de corredores metropolitanos, caso da
visita de Alves Barbosa e seus companheiros. Mesmo assim, havia em 1952 uma
Associação de Ciclismo de Manica e Sofala. Em 1956 foi criada uma Comissão
Organizadora de Provas de Ciclismo que, em 1957-1958, levou a efeito algumas
competições. Mas foi entusiasmo de pouca duração[61].
O pugilismo foi uma modalidade muito apreciada no tempo da Companhia de
Moçambique. Segundo Al Pereira, o primeiro combate de boxe realizado na Beira
opôs um maquinista do caminho-de-ferro da Rodésia – que mais tarde chegaria a
governador nobilitado pela coroa inglesa com o título de Sir Roi Walensky – e
um pugilista português, Joaquim Alves[62]. A modalidade reapareceu na Beira nos
anos 40 com pugilistas italianos que abandonaram a África do Sul, onde estavam
como prisioneiros de guerra. Dentre eles, Marino Beneditto fez alguns combates
contra rodesianos no campo de basquetebol do Sporting da Beira, onde Al Pereira
também combateu, em 1947 ou 1948. O mesmo sucedeu em Lourenço Marques com o
pugilista Ludo Huguetto.
A semente lançada por Beneditto – que nunca abandonou o Sporting – germinou.
Neste contexto, um jovem de origem grega chamado Campanis, apesar de nunca ter
combatido na cidade, montou um ginásio no Sport Lisboa e Beira para a prática
do boxe e da halterofilia. Neste ginásio surgiram bons pugilistas amadores,
como Luís Furtado, Miguel Guerra, Wing Wá[63], Bingre, Santana, Freitas, Luís
Chin[64], entre outros.
Wing Wá foi o mais célebre pugilista sino-moçambicano da Beira. Da categoria
dos meio-pesados, combateu com frequência na cidade e na Rodésia no início dos
anos 50. Nesta colónia britânica, quando combatia com um pugilista branco,
usava sempre um nome português de ocasião. Wing Wá tinha um poderoso hook
esquerdo, a sua arma mais temível. Tinha intuição, era duro e valente,
merecendo os elogios da crítica e dos técnicos[65]. Era fogoso e contava com
grande popularidade na Beira entre as comunidades sino-moçambicana e europeia
e entre a população negra, na qual era conhecido por Machado, o rachador. Em
meados dos anos 50 deixou de combater. A falta de incentivos, de uma
alimentação cuidada e deslocações de um lado para outro em trabalho, para
subsistir, tornaram-lhe a existência difícil, o que impediu uma carreira
desportiva[66].
O pugilismo e a luta livre passaram a ser organizados na Beira no final dos
anos 50 pelo ex-pugilista Al Pereira, entretanto radicado na cidade[67].
Dirigiu o ginásio do Sport Lisboa e Beira onde continuou a escola de Campanis,
na qual se inscreveram jovens brancos, negros e mestiços, entre eles Wing Chew.
Este Wing Chew era filho de um mestiço pescador e foi um bom pugilista amador,
ganhando todos os combates que realizou[68].
Em Lourenço Marques, o mais célebre pugilista de origem sino-moçambicana foi
Jorge Tafoi, que era um pintor de cartazes de cinema no Scala. Por essa altura,
o mais famoso boxeur na capital moçambicana era um judeu chamado Beni Levi, que
andava pelo mundo e que se demorou na cidade para trabalhar como capataz na
estiva. Ainda podia ser visto a correr na praia da Costa do Sol nos anos 70.
Outros boxeurs na capital foram Luís Eugénio, mais conhecido por Xangai e
Manuel Matos, um afro-chinês.
Rivalizando com o basquetebol, o hóquei em patins[69] foi a modalidade que mais
amantes do desporto atraía aos campos de jogos da cidade nos anos 50 e 60. O
clubismo era nesta modalidade muito exacerbado, desde logo por os clubes
disporem de jogadores carismáticos, que se tinham distinguido nas competições
internacionais, como Velasco e Candeias, ou por serem clubes de empresas e de
localidades que mobilizavam os seus membros e residentes, como o Clube da
Lusalite, do Dondo, e o Clube Recreativo do Búzi, dos empregados da Companhia
Açucareira e de residentes da localidade do Búzi.
Foi o hóquei patins que, entre 1957 e 1967, mais bairrismo provocou em
Moçambique face ao mundo lusófono e à cultura anglo-saxónica vizinha, com
jogadores de nível internacional como Moreira, Carrelo, Adrião, Velasco,
Boucós, Candeias e alguns mais.
Os sino-moçambicanos pouco estiveram envolvidos neste desporto, só Poo Men
foi jogador de hóquei patins no Sport Lisboa e Beira. Mesmo assim, vibravam por
igual com as vitórias moçambicanas no hóquei. A euforia moçambicana foi enorme
nesses jogos. Sai do âmbito deste artigo a análise deste fenómeno
nacionalista.
Como também não será aprofundada a questão dos sino-moçambicanos praticarem
mais os desportos de ginásio que os outros desportos. Avancemos apenas que isso
esteve relacionado, para os sino-asiáticos, com os lentos caminhos da
integração colonial, através da escolarização em português depois da II Guerra,
e com a participação em modalidades onde podiam actuar como grupo, e em
actividades e espaços mais resguardados do grande público, do futebol, por
exemplo[70].
Em 1957-1958 surgiu no liceu da Beira um licenciado em Educação Física e
Desportos, Loriente Pereira. Até então a actividade desportiva no liceu (como
na escola técnica) era leccionada por um militar graduado ou por qualquer
desportista disponível[71]. O professor Loriente começou pacientemente a formar
uma classe especial de ginástica olímpica, que, passados alguns anos,
apresentou ao público beirense numa das datas comemorativas em que as escolas
participavam, a saber, 28 de Maio, 10 de Junho, 1 de Dezembro. Na primeira
classe, chamada de estilo sueco implementado por Loriente – formação em
xadrez com exercícios coordenados e em ritmo de sequência com comandos verbais
de sons pouco audíveis –, participou Chin Peng Leon. Anos mais tarde, Mah Cock
Quib e Ma Gew participaram numa outra.
Uma destas classes de ginástica, com sino-moçambicanos, deveria ter
participado nos festejos comemorativos dos duzentos anos da cidade de
Joanesburgo a convite de um colégio local. Só que em torno desta participação
registou-se uma segregação a que foram sujeitos os atletas não-brancos do grupo
sem a mais elementar reacção cívica e política por parte das autoridades
administrativas e desportivas portuguesas.
A classe partiu da Beira para Lourenço Marques, ficando os atletas instalados
no Parque José Cabral (hoje, Parque dos Continuadores). Na noite anterior à
partida para Joanesburgo, apareceu no acampamento um grupo de responsáveis
escolares de Lourenço Marques acompanhados por elementos da PIDE para comunicar
os nomes dos atletas que seguiriam viagem, e com palavras de orientação
política para os eleitos. Todos os mistos e chineses ficaram para trás,
vítimas do racismo sul-africano e do racismo lusitano. O incidente causou mal-
estar entre os ginastas brancos da comitiva, tanto mais que alguns conviviam
com as forças progressistas da cidade.
Este incidente voltou a lembrar o ocorrido em 1958, e que permaneceu muito vivo
em Moçambique: a vitória da selecção inter-racial de futebol do Brasil no
campeonato mundial na Suécia. Também o incidente de 1959, quando a equipa
brasileira da Portuguesa de Santos fez uma escala na cidade do Cabo, na África
do Sul. Como a equipa local era formada exclusivamente por brancos, as
autoridades sul-africanas exigiram que a equipa brasileira jogasse apenas com
jogadores de pele clara. Porém, os militantes nacionalistas negros actuaram e
manifestaram a sua indignação junto da embaixada brasileira. A imposição dos
sul-africanos fez que o então presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de
Oliveira, determinasse de imediato o cancelamento do encontro!
O ocorrido teve uma repercussão estrondosa entre a população mestiça e negra de
Lourenço Marques e da Beira, com uma discreta repercussão na imprensa
moçambicana do sector europeu. Só a revista brasileira O Cruzeiro, lida em
Moçambique, fez um enorme eco do acontecimento (como o tinha feito por ocasião
da vitória no Mundial). O semanário O Brado Africano aproveitou o incidente
para elogiar a coerência dos brasileiros, sem, contudo, fazer qualquer alusão à
subserviência das autoridades coloniais em Moçambique. Sempre que uma equipa
desportiva moçambicana se deslocava ao país vizinho, os jogadores de cor eram
expurgados do conjunto (Polanah, 2001, p. 14). Como foi o caso com a classe
especial de ginástica. Isto não era comentado pela imprensa branca. De outra
classe especial faziam parte Ling John e outros atletas não-brancos. Esta
participou em Madrid nalgumas competições.
O atletismo foi uma modalidade muito praticada pelos anglo-saxões na Beira
antes da Segunda Guerra Mundial. Depois da saída dos britânicos só
ocasionalmente se realizaram torneios e campeonatos inter-clubes. Ling Pó,
representando o Centro Recreativo Indo-Português foi 3º numa eliminatória dos
400 metros, de um torneio organizado pelo Clube Ferroviárioem Dezembro de 1952
[72].
A tradição da ginástica e das artes marciais do Oriente teve sempre entusiastas
no seio dos sino-moçambicanos. Nas décadas de 40 e 50, alguns praticavam
variantes de Kun Fu (Chuan de Shaoloin). Nos anos 60, existia um mestre de Tai
Chi Chuan [Supremo Punho Final] à frente de uma classe de cerca de quarenta
pessoas de todas as idades. Nos últimos anos de 1960, alguns jovens sino-
asiáticos criaram uma secção local do Kyokushinkai-Kan, uma variante do
Karaté, vulgarmente conhecida por Karate-Do. Esta escola de artes marciais
surgiu do contacto com uma escola afim existente em Salisbúria, na Rodésia, de
onde vinha periodicamente Ian Harris, que tinha a categoria de cinturão negro e
de mestre graduado[73].
Nos primeiros tempos de actividade na Beira, o núcleo era apenas composto por
sino-asiáticos que treinavam semanalmente no salão de festas da escola
chinesa. Entre eles, o cantonês era a língua veicular, mas o inglês e os termos
japoneses do Kyokushinkai-Kan também estavam presentes. A partir de 1972[74],
esta escola de Karate-Do foi aberta a atletas provenientes de outras etnias e
fenótipos, principalmente de brancos e mestiços. Não havia negros no Karaté.
Estes participavam, sobretudo, nas competições de boxe. A escola chegou a ter
mais de 50 atletas inscritos.
Por essa mesma época existia no Sport Lisboa e Beira uma outra escola de
Karaté, cuja variante era o Shotokai. Esta escola era dirigida pelo mestre
Romano.
Ficaram famosos os combates de apresentação das duas escolas, a solo ou em
confrontos com escolas rodesianas e sul-africanas. Realizavam-se perante imenso
público no Clube da Beira (Pavilhão da Mocidade Portuguesa).
A propósito de um torneio internacional de Karate-Do realizado na Rodésia, a
equipa beirense, em representação do estilo em Moçambique, excedeu todas as
expectativas e embora ficando em último lugar na classificação por equipas,
obteve seis medalhas individuais: Eduardo Sujaque Ping (quatro medalhas – dois
primeiros lugares e dois segundos), Julieta Lee King[75] (uma medalha relativa
a um segundo lugar), e Chin Seu Wing (uma outra, também de segundo
classificado)[76].
Coube ao presidente do Centro de Karate-Do da Beira, Chin San
Tieng, fazer a entrega dos troféus conquistados pelas equipas
participantes. O intercâmbio internacional foi particularmente
profícuo para os beirenses que deste modo adquiriram mais
conhecimento[77].
Só a partir dos anos 40 é que membros da comunidade sino-moçambicana da Beira
se dedicaram à caça grossa[78] como actividade desportiva. Caçavam nos tandos
do Tica, Pungué, Muda, Vila Machado e nas proximidades da Gorongosa. Por razões
de afinidades familiares e de amizade, havia dois grupos principais de
caçadores desportivos, o grupo de Chin Jó e o grupo de Wing Fá.
Eram quase os mesmos indivíduos que se dedicavam à pesca desportiva na baía da
Beira ou na praia do Sengo. Alguns, a certo momento das suas vidas, passaram a
dedicar-se à pesca comercial para o mercado no Inhassoro e Vilanculo, também
nas praias do Inhangau e do Régulo Luís na região da Beira. Pescavam,
sobretudo, peixe pequeno que, seco, se destinava ao comércio indígena[79].
Comentários finais
Até final dos anos 50, as actividades desportivas na Beira estiveram
assinaladas por uma forte carga étnica e racial. Os clubes desportivos que
foram nascendo eram étnicos ou fomentaram identidades regionais ou clubistas
particulares. Havia desporto dos e para os anglo-saxões, como o cricket (sendo
que os indo-portugueses praticavam também esta modalidade) e o golfe, bem como
desporto para a elite dos outros brancos, como o hipismo, modalidades náuticas
e ténis. O desporto tornava-se, assim, uma construção cultural de um tempo e de
uma formação social colonial específica. E essa construção local tornou-se
produtora de identidades socioculturais de expressão territorial, que iria
marcar toda a história desportiva beirense. Todos os desportos praticados na
Beira eram já uma prática globalizada, na medida em que estavam estritamente
regidos por regras internacionais e pelas emoções que eles provocavam de modo
semelhante ao de qualquer parte do globo.
Os imigrantes sino-asiáticos da primeira vaga, coolies, artesãos e
horticultores viveram à margem dessas práticas. Mas os sino-asiáticos e os
afro-chineses nascidos na colónia, embora não participando num primeiro tempo
nas actividades desportivas organizadas pelos brancos, passaram a dedicar-se ao
desporto nas escolas e entre grupos de amigos e vizinhos. Estas práticas
tiveram uma importante influência nos processos de socialização de rapazes e
raparigas, com repercussões na comunidade sino-moçambicana que respondeu com
uma maior abertura das famílias, na produção de um campo de lazer e na
libertação das tensões individuais e de grupo. Contribuiu, por último, para as
mudanças dos comportamentos sociais.
Com a criação do Atlético Chinês em 1947 e do Oriental, no começo dos anos 60,
e com a progressiva abertura dos clubes dos colonos a mistos e asiáticos, os
sino-moçambicanos envolveram-se activamente no desporto beirense. As práticas
desportivas transformaram-se em momentos de convívio e de inclusão social. O
desporto transformou-se num lugar privilegiado de aproximação interétnica, de
integração social e de espectáculo de emoções. No caso dos sino-moçambicanos,
o desporto contribuiu também para a afirmação de uma identidade própria,
beirense e moçambicana.