A crise e as instituições
NA RAIZ DA CRISE
A crise de 2007-?, como todas as crises, tem causas profundas e factos
detonadores.
A distinção, nem por ser fluida, deixa de ser útil. De facto, enquanto as
causas profundas são muitas vezes detectáveis e, quando o são, permitem antever
que não se deixará de verificar um ajustamento – a que chamamos crise –, os
detonadores são factos que, por serem relativamente banais, tornam difícil a
sua identificação como sendo aquilo que dá início à crise. Muitas vezes,
inclusivamente, são do mesmo tipo de factos que anteriormente se verificaram
sem que tivesse ocorrido qualquer crise significativa.
A comparação com os sismos pode ser aqui justificada. Enquanto os sismólogos
sabem hoje dizer, pelo estudo da movimentação das placas tectónicas, que se
estão a criar tensões que se ajustarão no futuro através da ocorrência de
sismos de magnitude mais ou menos elevada, a verdade é que não sabem
identificar os factores que em última análise desencadearão esse libertar das
tensões criadas. Daí que os sismos, tal como as crises económicas, possam ser
antevistos mas não previstos, se entendermos como antevisão uma previsão sem
data apontada para a ocorrência do fenómeno.
Este tipo de situação sucede frequentemente em sistemas muito complexos como é
o caso da economia mundial. Uma característica encontrada em muitos destes
sistemas nos mais diversos domínios da realidade (física, química, biológica ou
social) é que pequenas causas provocam grandes efeitos, porque actuam sobre
interacções múltiplas que, num sistema complexo, formam um reservatório de
tensões acumuladas que podem libertar-se com grande intensidade.
Por isso, para analisar a crise actual temos de começar por olhar para as
causas profundas que, neste caso, se podem desdobrar e agrupar em dois grandes
temas: a criação de maior complexidade na economia mundial e – segundo tema – o
acumular de tensões.
Só depois de analisarmos as causas profundas abordaremos os detonadores, ou
seja, o que desencadeou o sismo que desde 2007 afecta a economia mundial.
A CRESCENTE COMPLEXIDADE DA ECONOMIA MUNDIAL
Falar da crescente complexidade da economia mundial é falar da aceleração do
processo de globalização. E, de facto, se considerarmos que um dos aspectos da
complexidade é o da crescente interacção das partes de um sistema, esta
interacção não tem deixado de aumentar entre as economias do mundo desde o
desabar do bloco soviético e da emergência de grandes economias no comércio
mundial, em particular a China e, mais recentemente, a Índia.
Por outro lado, o âmbito da interacção também se alargou, uma vez que, para
além da mais tradicional interacção provocada pelo comércio mundial, ganhou
peso determinante a interacção financeira, que atingiu níveis históricos sem
precedentes por combinação de decisões políticas – liberalização da circulação
de capitais em diversos países e espaços desde os anos 80 do século xx – com o
progresso tecnológico na emissão de dados à distância em tempo real e
praticamente sem limite de quantidade.
Ou seja, se adoptarmos a definição clássica de complexidade de Herbert Simon
(1981, um sistema é complexo se tem múltiplas partes interagindo de forma não
simples), a economia mundial vinha reforçando a sua complexidade, pois as
interacções aumentaram tornando-se cada vez menos simples à medida que os
mercados financeiros e cambiais mundiais se desenvolviam.
Este carácter não simples é, assim, exemplificado, por exemplo, pelo impacto da
especulação cambial e financeira sobre a chamada «economia real», criando
perturbações permanentes na interacção entre as economias sem que seja possível
encontrar uma racionalidade económica ou qualquer outra subjacente. Ou seja, o
cenário de complexidade estava preparado para gerar a acumulação de tensões.
O ACUMULAR DE TENSÕES E A EVOLUÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL
O crescimento do comércio internacional foi um factor significativo na
aceleração da produção mundial que se verificou desde o final da II Guerra
Mundial. Os acordos celebrados a partir de 1947 no âmbito do gatt, foram
permitindo uma redução gradual das barreiras, tarifárias ou outras, ao
comércio.
Por outro lado, os movimentos de integração económica regional, começando na
Europa (cee, 1958, e efta, 1960) mas estendendo-se por outras regiões do globo,
contribuíram decisivamente para a abertura de muitas economias ao comércio
externo. Mas o principal impulso na actualidade veio de dois outros importantes
factos:
• Em primeiro lugar, dos últimos acordos do gatt, em 1994, no âmbito das
negociações do chamado Uruguay Round, que estabeleceram um calendário de
liberalização (quase) total das trocas de mercadorias até 2005. Abrangendo a
grande maioria das economias do mundo, este acordo, cuja efectivação foi
acompanhada pela Organização Mundial do Comércio, que em 1995 substituiu o
gatt, permitiu a liberalização efectiva das trocas da maior parte das
mercadorias industriais.
• Em segundo lugar, e porventura mais importante ainda, foi a emergência, a
partir dos anos de 1980 e com mais intensidade nos de 1990, de grandes países –
que até aí estavam relativamente fechados ao comércio mundial – na cena
económica internacional, tanto como grandes parceiros económicos como
financeiros. Primeiro a China e depois a Índia.
De tal forma este segundo facto é determinante que fez surgir um fenómeno até
agora não estudado pelos economistas
1
Com efeito, a sabedoria tradicional da teoria económica afirmava que as
pequenas economias tinham tendência a ser mais abertas que as grandes
economias. Aliás por razões consideradas óbvias. De facto, uma economia de
pequena dimensão não pode produzir tudo. Tem de se especializar na exportação
de uma variedade limitada de produtos que lhe permita obter as receitas
suficientes do exterior para pagar as importações do que não pode produzir.
Esta especialização leva a que o comércio internacional, numa pequena economia,
represente, em geral, um peso muito superior ao que representa numa grande
economia. Toda esta sabedoria se esfumou, porém, com as grandes economias
emergentes. A China é hoje a terceira maior economia do mundo a seguir aos
Estados Unidos e ao Japão. Em breve, talvez num prazo não superior a cinco
anos, ultrapassará o Japão e tornar-seá a segunda maior economia. É,
provavelmente, no momento em que escrevo, a maior economia exportadora mundial
(em 2007 era já a segunda, mas muito próximo da Alemanha, que era a primeira).
E no entanto, apesar do seu gigantismo, que já não é só populacional, tem hoje
um grau de abertura, medido pela soma das exportações e importações sobre o
PIB, de 66 por cento, que é superior, por exemplo, ao da economia portuguesa
(que é uma economia relativamente aberta) e que é de 58 por cento. A economia
indiana, embora ainda muito atrás, segue rapidamente pelo mesmo caminho.
As consequências deste novo fenómeno fazem-se sentir profundamente nas chamadas
economias ocidentais que têm custos de mão-de-obra incomparavelmente superiores
aos das economias emergentes.
É que estas podem fazer concorrência a custos muito mais baixos em praticamente
todos os sectores da economia. O argumento contrário tradicional é o de que as
economias que arrancam para o crescimento e que, sendo pobres, são dotadas de
muita mão-de-obra barata e pouco qualificada, se podem especializar na produção
de bens que justamente utilizam mão-de-obra pouco qualificada no seu processo
produtivo. Desta forma, as economias mais ricas poderiam especializar-se em
sectores de mão-de-obra mais qualificada, de maior intensidade tecnológica, e
obteriam, para estes sectores, mercados cada vez maiores à medida que os países
mais pobres enriquecessem e comprassem mais esse tipo de produtos.
Mas este argumento tradicional, que é válido quando se raciocina em termos de
pequenas economias abertas, deixa de o ser quando se trata de grandes economias
abertas, com uma grande dimensão populacional, e que, por isso, tendencialmente
podem produzir quase tudo.
Mesmo que a percentagem de técnicos chineses altamente especializados em
relação à população da China seja muito mais baixa do que a dos países
europeus, o facto de a China ter 1300 milhões de habitantes permite que o
número total desses técnicos seja muito maior que o dos técnicos de muitos
países europeus.
As consequências destas situações que, antes do desencadear desta crise, só
estavam ainda no seu início, criavam já, mesmo assim, tensões muito grandes
sobre as economias mais desenvolvidas.
Essas tensões são de dois tipos. Por um lado, as deslocalizações de empresas
para os países emergentes, aproveitando o seu baixo custo de mão-de-obra e a
concorrência comercial, estavam a provocar uma desindustrialização muito
rápida, em particular dos sectores mais expostos à concorrência externa. Por
outro, muitas das maiores economias ocidentais estavam a acumular défices
importantes nas respectivas balanças comercias. Os Estados Unidos vinham a
acumular défices de grande dimensão mas o mesmo, embora em menor grau, se
verificava no Reino Unido, na França, na Itália e em Espanha. A excepção era a
Alemanha que acumulava saldos positivos, mas é bem possível que também a
economia alemã venha a atravessar rapidamente um ponto de viragem em sentido
contrário.
Estes desequilíbrios comerciais têm incidência também no segundo domínio do
acumular de tensões, que é o financeiro.
AS TENSÕES NOS MERCADOS FINANCEIROS E CAMBIAIS
Uma outra causa profunda é a que tem a ver com a evolução dos movimentos de
capitais. A liberalização dos mercados de capitais a partir dos anos de 1980
(na Europa, no início dos anos de 1990) levou a um crescimento muito rápido do
capital financeiro. Mas mais importante ainda foi o crescimento do que se
poderia chamar o capital especulativo, ou seja, dos montantes envolvidos nos
contratos de derivados que passaram de cerca de duas vezes o valor do PIB
mundial, em 2001, para mais de seis vezes, em 2007.
O grande aumento dos movimentos de capitais, independentemente do maior ou
menor peso do capital especulativo, teve duas importantes causas, a saber, o
financiamento dos défices externos e o envelhecimento da população.
O facto de algumas das maiores economias estarem a acumular défices externos
levou à necessidade de financiar esses défices com capitais de países que
registavam saldos positivos no seu comércio. E à cabeça destes, mais uma vez,
está a China. Com uma taxa de poupança das maiores algumas vezes registadas –
51 por cento do PIB –, a China tem utilizado essa poupança em parte para
financiar uma também elevadíssima taxa de investimento na sua economia (44 por
cento do PIB) e em parte para realizar investimentos nas outras economias que
necessitam de financiar os seus défices externos, em particular os Estados
Unidos. Alarga assim a sua influência e permite-lhe crescentemente controlar
alguns sectores-chave da economia americana, podendo, tendencialmente,
organizar e dominar uma verdadeira estratégia mundial relativamente a esses
sectores.
Um segundo aspecto tem a ver com o envelhecimento da população e o
desenvolvimento dos regimes de capitalização da segurança social.
A necessidade de pagar as pensões a um número crescente de participantes leva
os fundos de pensões a tentar obter rendibilidades imediatas e a todo o custo,
contribuindo enormemente para a especulação financeira.
Mas há um segundo aspecto negativo deste desenvolvimento dos fundos de pensões,
agora do ponto de vista económico. É que muitos investidores institucionais
(fundos de investimento e fundos de pensões) compravam cada vez mais empresas
não para obter lucros através de uma gestão normal mas para extrair valor
imediato mesmo com prejuízo da sustentabilidade futura da empresa Tudo isto
contribuiu para reforçar as tensões que as deslocalizações e as falências
resultantes do impacto das economias emergentes estavam a criar.
O impacto dos fundos de pensões é de uma dimensão que desafia a imaginação.
Antes da crise os seus activos eram estimados em 20 triliões de dólares, quase
40 por cento do PIB mundial.
Um outro aspecto de enorme relevância era o desequilíbrio cambial. Face aos
elevadíssimos défices externos dos Estados Unidos e aos saldos positivos da
China, também de grande dimensão, era nítido que o dólar estava sobrevalorizado
e a moeda chinesa subvalorizada. Este tipo de desequilíbrios é sempre propício
ao desencadear de movimentos especulativos contra as moedas que à partida se
encontram sobrevalorizadas. Quando tal sucede, a instabilidade que estes
movimentos trazem perturba o funcionamento da economia e reduz o seu
crescimento. O último destes movimentos especulativos foi o do primeiro
semestre de 2008 em que o dólar se depreciou rapidamente em relação ao euro. No
entanto, o ajustamento não foi duradouro, uma vez que no final do ano o dólar
já tinha recuperado.
Permanece assim uma situação desequilibrada no que respeita ao dólar e muitos
se interrogam se o dólar poderá manter o seu papel mundial nestas
circunstâncias, e quais as consequências que a vulnerabilidade da moeda
americana poderá acarretar
2
. Este é um desequilíbrio que, para já, a actual crise não está a ajustar e que
pode ser uma fonte de crises futuras.
Os sismólogos da economia não tinham, pois, dificuldades em antever a
emergência de uma crise financeira face a este acumular de tensões e a alguns
indicadores especialmente significativos, como o já referido aumento do capital
especulativo na economia mundial. Mas não sabiam prever quando é que ocorreriam
os factos detonadores da crise. Sem surpresa, esses factos tiveram a ver com
uma crise de crédito.
O DETONADOR: A CRISE DO SUBPRIME
Não há, efectivamente, nenhuma surpresa em que uma crise de crédito seja o
detonador de uma crise profunda. O célebre economista americano do final do
século XIX e princípio do século XX, Irving Fisher, chegou mesmo a afirmar, nos
anos 30 do século passado, que todas as depressões económicas começavam com uma
crise de crédito.
Não sabemos se será ou não assim mas na actual crise tal sucedeu efectivamente.
A crise global foi detonada pela chamada crise do subprime nos Estados Unidos.
Tratou-se claramente de uma crise de crédito. As taxas de juro baixas e a
concorrência desenfreada entre bancos levou a um aumento muito grande do
crédito ao sector do imobiliário, o que, por sua vez, fez aumentar os preços do
sector, criando uma bolha especulativa com duas consequências que constituíam
em si próprias uma bomba de retardador:
• Em primeiro lugar, os bancos, na ânsia de aumentarem a sua quota de mercado,
foram emprestando mesmo a famílias que não teriam grande possibilidade de
sustentadamente cumprir os pagamentos dos encargos dos empréstimos.
• Em segundo lugar, o valor excessivo dos prédios, devido à bolha especulativa,
tornava muito provável a ocorrência de grandes perdas de capital para os bancos
quando a bolha começasse a esvaziar, os preços a descer e as hipotecas
começassem a ser accionadas por incumprimento das famílias que tinham contraído
crédito sem efectivamente terem condições para tal.
Note-se entretanto – e isto é de uma grande importância para explicar o rápido
desenvolvimento da crise – que, ao mesmo tempo, os bancos, ao titularizarem as
hipotecas e venderem os produtos financeiros assim criados como aplicações
possíveis para fundos de investimento ou outros bancos, continuavam a dispor de
fundos para alimentar a bolha e transmitiam a outros o risco disfarçado das
hipotecas embrulhadas nessa roupagem da titularização.
Quando a bolha do imobiliário estoirou, por meados de 2007, o castelo de cartas
ruiu com ela. Os bancos viram-se em dificuldades dado que os preços do
imobiliário baixaram e eles tinham hipotecas com base em valores inflacionados.
Na parte em que essas hipotecas estavam titularizadas e tinham sido vendidas a
outras entidades financeiras transmitiram a perda muito longe no sistema
financeiro, começando assim um movimento de bola de neve de perdas sucessivas
dos valores dos activos financeiros.
Finalmente, o valor sem precedentes envolvido nos produtos derivados, a que há
pouco fiz referência, levou as dificuldades financeiras relacionadas com o
subprime a causarem uma sucessão de incumprimentos em cascata, atingindo
valores astronómicos (uma relativamente pequena causa a provocar grandes
efeitos, característica da complexidade) causando a falência de alguns bancos e
instituições financeiras e sendo salvos outros pela acção dos estados.
A perda de valores de activos financeiros provocou, por esse facto, uma perda
de capitais próprios dos bancos e esse tornou-se um factor de redução do
crédito bancário. Não foi contudo o único factor desta redução. O crédito foi
também reduzido pela perda de confiança associada à emergência da crise
financeira e à falência de um banco de referência como o Lehman Brothers, em
Setembro de 2008, o que levou os bancos a começarem a exigir mais garantias
para se precaverem contra possíveis incumprimentos e a disponibilizarem menos
fundos aos outros bancos no mercado interbancário. A quebra assim verificada na
riqueza financeira fez que muitas famílias perdessem um património ou mesmo um
rendimento importante, o que as levou a reduzir o consumo por necessidade ou
para se precaverem de novos choques futuros. Tal sucedeu tanto nos Estados
Unidos como na Europa e o sector automóvel é um dos particularmente afectados
por estas circunstâncias.
A redução do crédito, a perda de riqueza e a queda de sectores como a
construção civil nos Estados Unidos (e posteriormente em outros países, de que
os casos mais impressivos são a Espanha e a Irlanda) levaram a que a crise
financeira se transmitisse à economia real.
Tal tornou-se especialmente nítido ao longo do ano de 2008.
A partir desta transmissão à economia real seguiu-se o conhecido círculo
vicioso. A queda da economia real fez aumentar o desemprego, o que, por sua
vez, leva a reduzir ainda mais as despesas de consumo das famílias, o que faz
quebrar a produção dos sectores produtores de bens de consumo e aprofundar a
crise da economia real e por aí fora. Esta quebra é ampliada pela redução do
investimento, fruto ela própria da perda de confiança no futuro da economia e
das dificuldades em mobilizar capitais, próprios ou alheios.
Como sempre sucede, também, numa crise económica global, o comércio mundial é
especialmente afectado, e assim tem efectivamente sucedido desde 2008.
Gera-se, adicionalmente, um outro círculo vicioso que excede a chamada economia
real. É que a má situação económica provoca mais incumprimentos de devedores e,
portanto, mais desconfiança no sector financeiro, e provoca também novas quedas
nas bolsas e, consequentemente, novas perdas de riqueza que agravam, através de
novas reduções no consumo e no investimento, a situação económica.
Há assim um conjunto de efeitos retroactivos, fruto da complexidade das
ligações entre a economia real e a economia financeira que tornam a crise mais
profunda e de difícil solução. Vamos ver por isso quais poderão ser as
respostas da política económica.
AS RESPOSTAS DA POLÍTICA ECONÓMICA
Quando emerge uma crise financeira, seja ou não através de uma crise de
crédito, uma primeira linha de ataque para evitar que a crise se aprofunde e
chegue à economia real deve basear-se nos instrumentos da política monetária,
fazendo descer rapidamente a taxa de juro e injectando liquidez no mercado para
evitar a falência das instituições financeiras.
No caso da crise actual isso só parcialmente foi feito. Em 2007, a Fed reduziu
a taxa de juro e, no final do ano, em concertação, os principais bancos
centrais injectaram no mercado liquidez em valores sem precedentes. No entanto,
o Banco Central Europeu não desceu a taxa de juro, como veremos mais adiante
Se estas medidas não forem suficientes, e o crédito continuar a reduzir-se
aumentando o risco de transmissão à economia real, o Estado deve injectar
capital nos bancos para estes poderem continuar a conceder crédito e deve ele
próprio abrir linhas de crédito para sustentar as empresas, ao mesmo tempo que,
através de maiores facilidades nos seguros de crédito à exportação, impulsiona
as exportações.
Na presente crise, este tipo de medidas foram, em geral (quando o foram)
tomadas muito tarde, a partir do último quadrimestre de 2008, quando a
transmissão à economia real já era um facto.
Se apesar das medidas tomadas a crise chegar à economia real só há uma política
eficaz para a combater e evitar que se instale uma depressão profunda e o
desemprego aumente para níveis incontroláveis: é a política orçamental.
A política orçamental deve actuar para estimular a procura interna, através do
aumento da despesa e ou redução de impostos (embora seja mais eficaz a
primeira, uma vez que uma descida de impostos não se traduz necessariamente num
aumento da despesa e portanto de sustentação da procura interna). As despesas a
realizar devem ser aquelas que têm maior e mais rápido impacto na procura
interna, em particular certos tipos de investimento público, que estimulem o
sector da construção civil e transferências para as classes de menor rendimento
e para os desempregados, de forma a estimular o consumo.
Tal como a crise se tem desenrolado, a resposta da política económica tem sido
manifestamente insuficiente. Faremos de seguida uma pequena avaliação nesta
matéria.
O QUE TEM SIDO FEITO E O QUE HÁ A FAZER
Abordaremos apenas o caso europeu (Zona Euro). É nítido que a Europa reagiu
tarde e mal à crise. Nenhuma das suas instituições principais está inocente.
Os governos demoraram até Setembro de 2008 para tomarem medidas de sustentação
do sistema financeiro. A Comissão Europeia, ainda no final do primeiro semestre
de 2008, afirmava que a economia europeia estava sólida e o Banco Central
Europeu cometeu provavelmente um dos maiores erros de sempre na política
monetária desde 1929 ao aumentar a taxa de juro no primeiro semestre de 2008
quando a crise era já uma evidência.
Só a partir de Dezembro de 2008, quando era já nítido desde havia alguns meses
que a crise se tinha transmitido à economia, os governos europeus
flexibilizaram enfim a política orçamental, mas de uma forma tímida e
claramente insuficiente, mais apoiada no funcionamento dos estabilizadores
automáticos (isto é, em que o aumento do défice é resultante da própria quebra
da actividade económica, seja através da quebra de receitas, seja através do
aumento de algumas despesas, como os subsídios de desemprego) do que numa
política discricionária e corajosa de estímulo à procura interna.
Falou-se muito da cooperação europeia para ultrapassar a crise. Mas o que
faltou não foi cooperação. Pelo contrário, foi a deficiente orientação das
instituições europeias e as excessivas peias na actuação derivadas da política
de concorrência e de ajudas do Estado e do Pacto de Estabilidade e Crescimento
que impediram os estados de estimularem de forma adequada as suas economias.
Mais vale menos cooperação mas melhor orientação da política económica, do que
a cooperação estreita no erro.
A presente crise acabará por ser ultrapassada, mas, se não houver uma alteração
profunda das instituições de regulação a nível mundial e europeu, novas crises
sucederão num prazo não muito longo.
Basta olhar para as tensões acumuladas a que fizemos referência no início deste
trabalho para tomarmos consciência da insuficiência institucional.
As necessidades de regulação a nível mundial passam, em primeiro lugar, por
regular o impacto dos países emergentes sobre as economias ocidentais, o qual
tem assumido um papel permanente de instabilização das economias mais
desenvolvidas. Assim, à Organização Mundial do Comércio deveriam ser atribuídas
novas funções neste domínio, deixando de ser apenas uma organização preocupada
com a liberalização do comércio mundial.
Um segundo tipo de instituição global deveria ser criado no domínio financeiro.
As principais funções desta instituição seriam as de incentivar a aplicação por
parte das autoridades de normas prudenciais às instituições financeiras, de
emitir normas sobre os activos financeiros aceitáveis para serem tomados por
investidores institucionais, de chamar a atenção das autoridades para alguns
indicadores de acumulação de tensões neste domínio, de certificar agências de
rating e de liquidar os off-shores.
Um terceiro tipo de instituição a nível mundial teria como objectivo a
estabilização dos câmbios, não no sentido de fixar as taxas de câmbio das
diversas moedas entre si, mas de tentar que as variações destas correspondam
não aos humores da especulação mas à variação da real situação competitiva das
economias. Para poder realizar esta missão, a instituição teria de ser dotada
de reservas monetárias suficientes para poder intervir de forma determinante
nos mercados cambiais.
A nível europeu é também necessário um conjunto de medidas a nível financeiro.
Para além do que decorreria da necessidade de dar corpo à regulação global,
seria indicado proceder a uma separação legal entre a actividade comercial dos
bancos (depósitos e crédito) e actividade financeira (aplicação de poupanças em
activos financeiros). Os bancos comerciais ficariam proibidos do exercício de
actividades financeiras e vice-versa e seriam restringidas as aplicações
permitidas dos bancos comerciais em activos financeiros. Assim se reduziria a
possibilidade de uma futura crise financeira se transmitir à economia real
através da quebra dos capitais próprios dos bancos e portanto da quebra do
crédito.
Do ponto de vista monetário, em particular na Zona Euro, deverá ser alterada
profundamente a actuação do Banco Central Europeu reduzindo para níveis mais
razoáveis a sua independência e deixando o objectivo único da política
monetária de ser o combate à inflação, introduzindo-se também, em pé de
igualdade, os objectivos de crescimento e do emprego.
A nível orçamental, deverá ser alterada a filosofia do Pacto de Estabilidade e
Crescimento, permitindo aos estados usarem a política orçamental para combater
o desemprego. Em situações de crise tão profunda como a actual deve ser
permitido o financiamento monetário parcial dos défices públicos de forma a
evitar que as medidas de sustentabilidade financeira e de apoio à economia
real, que implicam aumento do défice público, se traduzam em endividamento
excessivo dos estados.
Finalmente, mas não em último lugar, deve ser instituído a nível da Zona Euro
um sistema – que no presente não existe – que habilite um Estado a tomar
medidas excepcionais para reequilibrar a sua balança de pagamentos face à
ocorrência de défices persistentes e profundos nessa balança.
Tudo isto significa que a Europa, em termos de política económica, deveria ser
outra e muito diferente daquela que o Tratado de Lisboa define ao acolher tudo
o que nesta matéria já vinha no Tratado de Maastricht.
Há boas razões para crer que, se não houver a coragem de, neste particular, se
abandonar o caminho que se vem trilhando, a própria existência da União
Europeia possa estar em risco, dada a forma errada como as suas instituições
foram concebidas e que as torna manifestamente ineficazes e até contraindicadas
para reagir a crises mundiais, mesmo de dimensão inferior à actual.
N O T A S
1
AMARAL, João Ferreira do – «A grande economia aberta». In Estudos em Homenagem
ao Prof. Eduardo de Sousa Ferreira. Lisboa: ISEG/UTL, 2007.
2
Gray, H. Peter – The Exhaustion of the Dollar. Palgrave Macmillan, 2004.
B I B L I O G R A F I A
AMARAL, João Ferreira do – «A grande economia aberta». In Estudos em Homenagem
ao Prof. Eduardo de Sousa Ferreira. Lisboa: ISEG/UTL, 2007.
GRAY, H. Peter – The Exhaustion of the Dollar. Palgrave Macmillan, 2004.
SIMON, Herbert – As Ciências do Artificial. Coimbra: Edições Almedina,
1981.
* É desde 1995 professor catedrático do ISEG, onde lecciona desde 1970. Foi
técnico (1969-1984) e depois director-geral do Departamento Central de
Planeamento (1984-1989) e assessor do Presidente da República (1991-2000). É
autor de vários livros, entre os quais Economia da Informação e do Conhecimento
(no prelo) e co-autor de Introdução à Macroeconomia (2002) e Economia do
Crescimento (2008).
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt