Metaplasia intestinal especializada de esôfago distal na doença do refluxo
gastroesofágico: prevalência e aspectos clínico-epidemiológicos
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A metaplasia intestinal especializada (MIE) pode ser classificada, de acordo
com os achados endoscópicos e histológicos, em três grupos: Barrett longo (BL),
Barrett curto (BC) e metaplasia intestinal da cárdia (MIC)(17, 33, 38). O
esôfago de Barrett (EB) é uma doença adquirida que ocorre em aproximadamente
10% a 13% dos indivíduos com doença do refluxo gastroesofágico (DRGE),
representando condição pré-neoplásica(13, 14, 15, 17, 18, 32, 33). É
caracterizado por substituição do epitélio escamoso estratificado pelo
metaplásico colunar especializado, contendo células caliciformes(12, 38).
Resulta da agressão ácida crônica e está diretamente relacionado ao
desenvolvimento do adenocarcinoma de esôfago(12, 28, 32). A incidência desta
complicação chega a até 0,8% na MIE(17, 21, 35, 37).
Biopsias realizadas em epitélio de aspecto endoscópico róseo-salmão,
independentemente de sua extensão, que ao exame histológico revelem a presença
de MIE com células caliciformes, fornecem o diagnóstico de EB(37, 38), que pode
ser classificado em curto, menor do que 3 cm de extensão, e longo, cuja
extensão é maior ou igual a 3 cm(1, 32, 33). Biopsias realizadas imediatamente
abaixo da junção escamocolunar (JEC) são capazes de revelar MIE, mesmo quando o
EB sequer é suspeitado endoscopicamente(36). Este achado pode representar MIC,
que ainda é objeto de discussões quanto à etiologia(24, 33, 36, 41). Há uma
associação bem definida entre EB, mesmo de segmento curto, e o adenocarcinoma
de esôfago, porém a associação com MIC ainda não está bem definida, sendo
citada pela literatura como possível, não estando claro se o risco entre as
duas entidades é equivalente e se merecem a mesma vigilância endoscópica(10,
29, 33, 37).
Cronicidade da DRGE, sexo, idade, raça, consumo de tabaco e álcool são fatores
envolvidos no desenvolvimento da MIE de esôfago distal.
Os objetivos deste estudo foram determinar a prevalência de MIE, BL, BC e MIC
em pacientes encaminhados à realização de endoscopia digestiva alta (EDA)
devido a sintomas da DRGE, e comparar a distribuição dos fatores clínico-
demográficos entre os pacientes com e sem MIE e entre os com EB e MIC.
METODOLOGIA
Pacientes
De abril a outubro de 2002, o Serviço de Endoscopia Digestiva do Hospital de
Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR), Curitiba, PR, avaliou
1.677 pacientes adultos, encaminhados do ambulatório para realização eletiva de
EDA, por indicações clínicas diversas. Destes, 428 foram referidos devido a
sintomas de DRGE. Foram convidados a participar do estudo aqueles que não
apresentaram critérios de exclusão, que eram: idade menor que 18 anos,
diagnóstico prévio de EB (independentemente da extensão), imunossupressão,
acalásia, câncer, varizes de esôfago, coagulopatia ou qualquer outra condição
clínica que contra-indicasse biopsias de esôfago, bem como hemorragia digestiva
alta, demência, incapacidade de compreender ou assinar o termo de consentimento
e recusa formal em participar do estudo.
Dez pacientes preencheram critérios de exclusão. Houve 16 perdas e 402
pacientes foram incluídos para avaliação endoscópica e histológica. O estudo
foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos do Hospital e os
pacientes assinaram termo de consentimento informado, sendo esclarecidos
previamente a respeito do estudo e sua finalidade.
Questionário aplicado e dados clínicos
Questionário padronizado foi aplicado por um dos investigadores a todos os
participantes do estudo para identificar sexo, idade, raça e sintomatologia
relacionada à DRGE e consumo de álcool e tabaco.
Protocolo de endoscopia e biopsia
Todos os exames foram realizados por médicos do Serviço de Endoscopia Digestiva
do HC-UFPR, utilizando-se videoendoscópios Fujinon Série 200 e Olympus Evis CV-
100. O exame endoscópico avaliou os principais pontos de referência do esôfago
distal em relação à arcada dentária superior: pinçamento diafragmático, junção
esofagogástrica (JEG) e JEC ou linha Z. Foi documentada também, a presença ou
ausência de hérnia de hiato e de esofagite, classificada conforme Savary-Miller
(25).
Considerou-se BL a presença de mucosa de aspecto róseo-avermelhado,
circunferencial ou não, com 3 ou mais cm de extensão, ou linguetas que se
projetassem proximalmente a partir da JEC. Com extensão menor do que 3 cm,
esses achados foram definidos como BC.
As biopsias de esôfago foram realizadas com pinças de abertura de 6 mm. A
coleta do material foi efetuada nos quatro quadrantes da luz do órgão, 1 cm
abaixo da JEC e em todas as linguetas de mucosa róseo-avermelhada que se
projetavam acima da junção. Nos casos de mucosa de aspecto róseo-avermelhado
circunferencial extensa, as biopsias foram realizadas nos quatro quadrantes com
intervalos de 2 cm. A cada 10 pacientes incluídos, foi efetuado controle de
qualidade interno.
Os pacientes com MIE foram divididos em três grupos: 1) MIC, quando
endoscopicamente não se observava EB, mas a histologia revelava MIE; 2) BL,
quando o exame endoscópico demonstrava epitélio róseo-avermelhado > 3 cm de
extensão em esôfago distal e a histologia revelava MIE, e 3) BC, quando a
endoscopia demonstrava epitélio róseo-avermelhado < 3 cm e histologia
confirmava achado de MIE.
Avaliação histopatológica
As biopsias foram fixadas em formalina 10% e encaminhadas ao Serviço de
Anatomia Patológica do HC-UFPR e avaliadas por patologistas que tinham
conhecimento do protocolo deste estudo, porém desconheciam os laudos
endoscópicos. As lâminas foram coradas pela hematoxilina-eosina e submetidas ao
método de análise histoquímica PAS-alcian blue pH 2,5. Diagnosticou-se MIE na
presença de células caliciformes coradas em azul pelo alcian blue. Para
controle de qualidade interno, 80 lâminas foram selecionadas aleatoriamente e
reavaliadas por um patologista da equipe, que desconhecia os achados
endoscópicos e histológicos prévios. Para controle de qualidade externo destas
80 lâminas, 40 foram selecionadas aleatoriamente e revistas em outro serviço.
Metodologia estatística
Utilizou-se o teste paramétrico t de Student, e os não-paramétricos comparação
entre duas proporções" (através do "software primer of biostatistics"), Qui-
quadrado e exato de Fisher (pelo "software" Epi-Info). O nível de significância
(probabilidade de significância) adotado foi menor que 5% (P < 0,05).
RESULTADOS
Quatrocentos e dois pacientes completaram o estudo. O erro amostral foi
estimado em 4,9%, ficando garantida a representatividade da amostra. Do total,
131 (32,6%) eram homens e 271 (67,4%) mulheres, 377 (93,8%) eram brancos e 25
(6,2%) não-brancos. A média de idade foi de 50,1 anos (18 a 86 anos).
Quando se considerou o aspecto endoscópico, 35 (8,7%) apresentaram achados
sugestivos de BC e 4 (0,99%) de BL. Hérnia de hiato esteve presente em 44
(59,5%) com e em 200 (61%) sem MIE. Esofagite erosiva foi encontrada em 40
(54,1%) com e em 180 (54,9%) sem MIE.
À histologia, 74 (18,4%) apresentaram MIE em esôfago distal: 2 (0,5%) com BL e
13 (3,2%) com BC. Os 59 (14,7%) sem achados endoscópicos compatíveis com
Barrett foram definidos como MIC. Destes, 18 (30,5%) tinham exame endoscópico
normal e 41 (69,5%) apresentavam alterações diversas (Tabela_1).
Com relação àqueles com MIE, 43 (58,1%) eram do sexo feminino e 31 (41,9%)
masculino. A idade média foi de 54 anos (25 a 79 anos), havendo predomínio para
a raça branca, com 67 (90,5%) indivíduos.
Os dados demográficos são apresentados nas Tabelas_2, 3, 4. Não houve diferença
significativa entre os grupos com e sem MIE para nenhuma das variáveis.
Os portadores de MIE foram avaliados à parte, com o objetivo de identificar
diferenças de comportamento entre o subgrupo portador de Barrett curto ou longo
(EB) e o subgrupo portador de MIC.
Quanto ao sexo, houve tendência para o masculino em relação ao EB: 10 (66,7%)
(P= 0,0594) homens apresentando a doença contra 5 (33,3%) mulheres (Tabela_4).
Naqueles com MIC, tendência para o sexo feminino: 38 (64,4%) contra 21 (35,6%).
Não houve diferença estatisticamente significativa entre EB e MIC quanto à
média de idade, raça, sintomatologia e consumo de álcool e tabaco.
Em relação ao tempo de sintomas, nove (60%) com EB relatavam cronicidade há
mais de 5 anos e 33 (55,9%) com MIC, entre 1 e 5 anos.
Quanto aos achados endoscópicos, 12 (80%) com EB possuíam hérnia de hiato e 8
(53,3%) esofagite. Todos os pacientes com EB apresentavam algum tipo de
alteração à endoscopia e o achado endoscópico de maior prevalência foi a
combinação de BC e hérnia de hiato. Em 69,5% dos exames endoscópicos daqueles
com MIC havia algum tipo de alteração e o aspecto mais comumente observado foi
o da combinação de hérnia de hiato e esofagite (Tabela_4).
DISCUSSÃO
Admite-se que, no Brasil, a DRGE possua características semelhantes às dos
demais países ocidentais, com prevalência na população geral entre 20% e 40%
(19, 22, 23, 26).
O EB, que por seu caráter pré-neoplásico se reveste de grande importância como
complicação da DRGE, tem prevalência na população geral variando de 0,41% a
0,89%, elevando-se para 10% a 13% entre indivíduos com DRGE(9, 12, 15, 17, 18,
27, 29, 31, 32). A alta prevalência neste grupo, a predominância no sexo
masculino e na faixa etária acima de 40 anos dão diretrizes para o rastreamento
de casos sugeridos nos consensos atuais. Em paralelo, discutem-se as
características e o papel da MIC, ou seja, da MIE sem aspecto endoscópico de
EB.
A população do presente estudo foi representativa dos pacientes que procuram os
ambulatórios deste serviço especializado, universitário, em Curitiba, com
queixas compatíveis com o diagnóstico clínico de DRGE, que são rotineiramente
encaminhados para realização de EDA.
A prevalência de MIE encontrada de 18,4% foi mais elevada do que aquela
descrita por HIROTA(17) (13,2%), ao analisar 889 pacientes. A distribuição
entre os três grupos mostrou prevalência menor de casos de EB (BL: 0,5% contra
1,6%, BC: 3,2% contra 6%) e maior de casos de MIC (14,7% contra 5,6%). O mesmo
ocorreu na comparação com SHERMANN et al.(34) e outros autores que utilizaram
sempre a presença de sinais endoscópicos de DRGE, como esofagite para definir a
inclusão. Os dados do HC-UFPR aproximam-se aos de CAMERON et al.(2, 4, 5), que
adotaram critérios de inclusão semelhantes, baseados na sintomatologia dos
pacientes, ou seja, ampliando a população com acometidos de doença não-erosiva.
No entanto, CAMERON et al.(5) encontraram prevalência ainda maior de MIC (22%).
A literatura sugere que o BC pode ser até 3 vezes mais prevalente que o BL(8),
o que foi igualmente observado na presente casuística. MORALES(24), que também
encontrou maior prevalência de MIC, relata que, embora este achado seja
relativamente comum, a displasia nesta situação é rara e sugere que o
rastreamento através de biopsias da cárdia deve ser limitada a protocolos de
estudo.
O perfil do grupo com e sem MIE foi semelhante com relação a idade, sexo, raça
e consumo de álcool e tabaco. Embora não haja diferença estatisticamente
significativa, é curioso observar que os acometidos de MIE apresentam média de
idade superior à dos não-acometidos, em cerca de 5 anos.
Também no que diz respeito aos sintomas investigados, os resultados concordam
com os da literatura, não sendo detectada diferença estatística que permita
associar sua apresentação e duração à presença ou não de MIE.
Os pacientes com BL e BC foram reagrupados (EB) para fins de comparação
estatística de seus dados com os daqueles acometidos de MIC.
O EB é descrito como doença do sexo masculino e da raça branca, mas há relatos
do aumento da incidência em mulheres e negros americanos(12, 17, 29, 33, 34),
nestes particularmente em relação ao BC(42). Já a MIC parece não ter relação
com sexo, idade ou raça, de acordo com CHALASANI et al.(6). No grupo com EB
predominou o sexo masculino (66,7%) e no grupo com MIC o feminino (64,4%),
revelando tendência (P= 0,0594) no que se refere ao EB. Todos os casos de EB
ocorreram em brancos.
A prevalência do EB aumenta com a idade e alcança patamar por volta da sétima
década de vida, com média de idade de 63 anos(3, 11, 12, 34). Neste estudo a
média de idade dos pacientes com EB foi de 57,5 anos (34 a 73 anos). Nos
pacientes com MIC foi de 53,6 anos. Os testes não mostraram diferença entre EB
e MIC. Chama a atenção a média de idade mais baixa para o aparecimento de EB se
comparado com a literatura norte-americana.
LAGERGREN et al.(20) demonstraram forte e provável relação causal entre DRGE e
adenocarcinoma em indivíduos com sintomas de longa data. CAMERON et al.(3) não
relacionaram a freqüência e a intensidade destes com a presença do EB, mas a
cronicidade. CHALASANI et al.(6) encontraram MIE somente naqueles com sintomas
de DRGE no mínimo 2 vezes por semana. Indivíduos com sintomas por 5 anos ou
mais têm importante aumento na incidência de EB e adenocarcinoma(4, 36, 39).
Na presente casuística, 9 (60%) pacientes com EB relatavam tempo de sintomas
compatíveis com DRGE por mais de 5 anos e 33 (55,9%) daqueles com MIC, entre 1
e 5 anos. Em ambos os grupos, o sintoma predominante foi a pirose
retroesternal. Nenhum dos sintomas, sua intensidade ou duração pôde ser
correlacionada ao EB e a MIC como elemento preditivo, aspectos semelhantes aos
descritos pela maioria dos trabalhos da literatura médica(7, 16, 31).
Há controvérsias em relação ao consumo de álcool e tabaco e a presença de MIE,
pois HIROTA(17) encontrou maior prevalência de tabagismo no BL (69%) do que no
BC (49%). Van SANDICK et al.(38) demonstraram maior prevalência de EB entre
aqueles com história de tabagismo. CHALASANI et al.(6) não evidenciaram
associação entre MIE e uso de cigarro ou álcool. Segundo SHERMANN et al.(34),
pacientes com MIE usavam mais freqüentemente cigarro e álcool. Na população
estudada 79,7% daqueles com MIE não utilizavam tabaco e 51,4% não ingeriam
álcool. No grupo específico da MIC também não houve correlação. Entre os
portadores de EB, 73,3% utilizavam álcool.
Os estudos de SHERMANN et al.(34) e HIROTA(17) mostraram prevalência aumentada
de hérnia de hiato em pacientes com MIE associada à DRGE. CSENDES et al.(8)
encontraram prevalência aumentada de erosões, ulcerações e estenose entre
pacientes com BL, assim como prevalência de MIC mais alta nas DRGEs com
esofagite. WESTON(40), entretanto, não demonstrou associação entre hérnia de
hiato ou esofagite com BC. Aqui não se encontrou correlação entre hérnia hiatal
e esofagite com a presença de MIE, conforme outros estudos(18, 36).
CONCLUSÃO
Em pacientes com sintomas de DRGE a prevalência de MIE foi de 18,4%, BL 0,5%,
BC 3,2% e MIC 14,7%. O EB mostrou-se pouco prevalente entre indivíduos com
DRGE, enquanto a MIC obteve valores mais expressivos.
Em relação ao sexo, houve tendência de maior número de homens com EB e mulheres
com MIC. Não há correlação entre sintomas da DRGE e a presença de MIE. Neste
estudo, pacientes com EB apresentaram mais hérnia de hiato e esofagite em graus
mais intensos do que os com MIC, mas estes achados não são preditivos da
presença de MIE.
Não se encontrou relação estatisticamente significativa entre tabagismo e
álcool e a presença de MIE.