Avaliação nutricional de pacientes com cirrose pelo vírus da hepatite C: a
aplicação da calorimetria indireta
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A cirrose é uma doença hepática crônica, caracterizada por processo difuso que
envolve fibrose, alteração na arquitetura lobular e regeneração nodular(36). A
principal causa de cirrose no mundo ocidental é a infecção crônica pelo vírus
da hepatite C (VHC), associada ou não ao consumo excessivo de álcool(38).
A desnutrição é freqüentemente encontrada nos pacientes com hepatopatia crônica
de origem alcoólica ou não-alcoólica(4, 21, 22, 23, 24, 25, 27), podendo advir
de baixa ingestão alimentar, alteração na síntese, metabolismo e armazenamento
de nutrientes, má-digestão e absorção de nutrientes ou ainda, ser secundária à
hipermetabolismo(18, 35).
A avaliação do estado nutricional deve ser realizada sistematicamente em todo
paciente com doença hepática(2). Os métodos disponíveis são anamnese alimentar,
antropometria, métodos bioquímicos e imunológicos e testes compostos(14, 15,
16). Com freqüência, são de difícil valorização nesta população por
peculiaridades da doença hepática. A avaliação funcional da nutrição através da
dinamometria é simples, barata e eficaz, sendo um método que poderia minimizar
as dificuldades na avaliação nutricional em hepatopatas.
O gasto energético basal (GEB) é a quantidade de oxigênio consumida durante o
repouso, em jejum. A predição do GEB através de equação padrão de Harris-
Benedict (HB), pode trazer resultados seguros em determinadas populações(12),
mas não está validada para pacientes com cirrose, já que existe grande variação
da mensuração do GEB em indivíduos cirróticos, quando comparados a indivíduos
normais(19). Uma alternativa é sua mensuração através da calorimetria indireta
(CI)(17), método que permite determinar com maior precisão o estado metabólico
(41). Não há, de acordo com o conhecimento dos autores deste trabalho, estudo
em nosso meio que tenha aferido o GEB em indivíduos cirróticos pelo VHC,
utilizando a calorimetria indireta, tampouco comparando-a à avaliação
nutricional através da dinamometria.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se estudo transversal em pacientes com mais de 18 anos, com cirrose
secundária ao VHC, em acompanhamento ambulatorial no Serviço de
Gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), RS. O
diagnóstico de cirrose foi baseado em testes clínicos, laboratoriais,
radiológicos e, em alguns casos, histológicos. Excluíram-se pacientes com
hepatocarcinoma e aqueles com histórico de consumo excessivo de álcool, bem
como os indivíduos sem condições de usar o dinamômetro e aqueles com retardo
mental ou alterações neuromusculares nos membros superiores.
A gravidade da doença hepática foi avaliada pela classificação de Child-Pugh
(32) e pelo escore MELD ("model of end-stage liver disease")(7, 36).
A coleta de dados foi realizada de janeiro a abril de 2002, sendo estudadas a
mensuração do GEB através da calorimetria indireta (CI) a estimação do GEB pela
equação de HB e avaliação nutricional. Os indivíduos foram recrutados na
primeira consulta do ambulatório da nutricionista responsável pelo projeto e
compareceram na data e local agendados entre 7 e 9 horas da manhã, em jejum de
12 horas, para realizar os procedimentos.
Todos os indivíduos concordaram em participar do estudo e assinaram o termo de
consentimento informado, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA.
Mensuração da taxa metabólica basal (TMB)
A medição da TMB foi realizada pela manhã, em sala com temperatura ambiente
controlada, baixa luminosidade e sem ruídos, com o indivíduo em decúbito
dorsal, após repouso de 20 minutos. Era fixada em seu rosto uma máscara
conectada ao calorímetro portátil (Teen 100 - Aerosport Inc., Ann Arbor,
Michigan, EUA). O equipamento foi calibrado antes e após cada medida. O consumo
de oxigênio (VO2) e a produção de gás carbônico (VCO2) eram medidos durante 25
minutos com o indivíduo permanecendo deitado e sem se movimentar. A medida da
TMB/minuto em quilocaloria (kcal/min) era obtida através da equação:
kcal/min = {[3,9(VO2)] + [1,1(VCO2)]}
descrita por WEIR(43), com os últimos 20 minutos, observando tempo de
equilíbrio inicial de 5 minutos, cuja média foi multiplicada por 1440 para se
obter a TMB de 24 horas.
Equação de predição
A equação de predição de HB foi utilizada para estimar o gasto energético basal
de indivíduos enfermos. Esta equação desenvolvida, uma para cada sexo, inclui
como variáveis independentes a massa corporal, a estatura e a idade(12).
Avaliação do Estado Nutricional
A avaliação nutricional incluiu avaliação nutricional subjetiva global (ANSG)
(8, 10), aferição da força do aperto de mão não-dominante por dinamometria
(FAM)(2, 42), cujos resultados foram comparados a valores de referência na
população deste estudo(3, 5), inquérito alimentar de 3 dias(34) e antropometria
(peso e altura, índice de massa corporal 'IMC, prega cutânea do tríceps 'PCT e
circunferência muscular do braço 'CMB)(13).
Cálculo da amostra
O cálculo da amostra foi realizado através do programa estatístico "Computer
Programs for Epidemiologists" (PEPI), versão 3.0, com poder de 80%, intervalo
de confiança de 95% e nível de significância de 0,05.
O tamanho da amostra foi determinado em 33 indivíduos, considerando uma
diferença de 250 calorias no GEB medido e estimado, e desvio padrão de 320 e
360 calorias.
Análise dos dados
A apresentação da amostra foi descritiva, na forma de tabelas, como média,
desvio padrão e freqüência. As comparações entre GEB medido pela calorimetria e
o GEB estimado pela equação de predição, seguiram o método proposto por BLAND e
ALTMAN(6) com estimativa da diferença média e seu limite de concordância de 95%
(LC 95%). O nível de significância adotado foi de 5% (a = 0,05). A análise dos
dados foi realizada pelo programa estatístico "Statistical Package for the
Social Sciences", versão 10.0 (SPSS Inc, Chicago, IL, EUA). A comparação das
médias entre o estado nutricional avaliado pela FAM e ANSG e o GEB foi
realizado pelo teste t de Student para amostras independentes.
RESULTADOS
A amostra foi composta por 34 indivíduos com cirrose pelo vírus C, sendo 18
(52,9%) homens e 16 (47,1%) mulheres, com média de idade de 53,7 anos (41 a 70
anos).
Quanto ao grau de doença hepática, 15 pacientes (44,2%) foram classificados
como Child-Pugh A, 12 (35,3%) como B e 7 (20,6%) como C. Apenas quatro (11,8%)
indivíduos apresentaram ascite. Em relação ao escore MELD, 33 (97,1%)
apresentaram valores inferiores a 20. As características clínicas da população
estudada estão descritas na Tabela_1.
Vinte e dois indivíduos (64,7%) responderam e entregaram o inquérito
recordatório e em 19 (55,9%) foi possível utilizar os dados da calorimetria
indireta. Nos 15 pacientes restantes, os níveis de VO2 e VCO2 encontravam-se
abaixo do recomendado, o que possibilitaria a alteração da qualidade dos dados
da calorimetria, motivo pelo qual foram excluídos.
A média da ingestão calórica em 22 indivíduos foi de 1613 ± 374,7 kcal/dia, com
consumo médio de 60,9 ± 20,6 g proteínas/dia. Na Tabela_2 estão discriminados
os valores médios de ingestão diária de macro e micronutrientes, bem como o
percentual do ideal para cada indivíduo de acordo com sexo, idade e gravidade
da doença(12, 25, 30).
Os parâmetros nutricionais estão descritos na Tabela_3. A média de peso dos
indivíduos foi de 70,5 kg e a estatura média de 163 cm, o que correspondeu ao
índice de massa corporal médio de 26,6 kg/m2, onde 13 (38,2%) encontravam-se
eutróficos e 21 (61,8%) com sobrepeso. Quando avaliados pela ANSG, 22 (64,7%)
pacientes estavam bem nutridos e 12 (35,3%) com desnutrição leve. Na avaliação
da PCT, seis (17,6%) pacientes tinham algum grau de desnutrição e na CMB dois
(5,9%) encontravam-se desnutridos. A mensuração da FAM pela dinamometria
demostrou que 27 pacientes (79,4%) encontravam-se em risco nutricional e apenas
7 pacientes bem nutridos. Em relação à desnutrição e gravidade da doença
hepática, a FAM detectou desnutrição em 10 pacientes Child A (66,7%) e em 17
Child B e C (84,5%), enquanto que a ANSG detectou desnutrição em 3 pacientes
Child A (20%) e em 9 pacientes Child B e C (47,4%).
O valor médio (±DP) da TMB medida foi de 1059,9 ± 309,6 kcal em 19 pacientes,
enquanto que a média do valor estimado pela equação foi de 1404,5 ± 150,3 kcal.
Os LC de 95% entre a TMB medida e estimada estão demonstrados no gráfico de
BLAND e ALTMAN (Figura_1). A variação do LC 95% foi de 123 a 812 kcal, com
diferença média de 344 kcal a mais na TMB estimada por HB.
Na Tabela_4, são comparados os achados da TMB estimada e medida em relação à
avaliação nutricional por FAM e ANSG.
DISCUSSÃO
A desnutrição é freqüentemente encontrada em pacientes com doença hepática
crônica e pode influenciar na sobrevida a curto e longo prazo(2). A maior parte
dos estudos avalia pacientes cirróticos independente da etiologia, estudando
etiologia viral (vírus B, vírus C), colestática, alcoólica e outras(1, 2, 11),
o que é inadequado. Existem poucos estudos onde a prevalência de desnutrição é
descrita em cirróticos de origem não-alcoólica(30, 40) e pouco é sabido da
avaliação nutricional e do gasto energético basal em pacientes com cirrose
secundária à infecção crônica pelo VHC, o que foi avaliado no presente estudo.
Os indivíduos estudados eram pacientes cirróticos ambulatoriais, em sua maioria
Child A e B e sem risco de vida apreciável em 3 meses, conforme atestado pelo
escore MELD.
A avaliação nutricional é difícil em pacientes cirróticos, os estudos sugerem
não haver um padrão-ouro para diagnosticar sua desnutrição.
Nenhum paciente foi considerado desnutrido pelo IMC. Ao contrário, a
prevalência de sobrepeso foi alta (62%), talvez influenciada pela retenção
hídrica. Nos pacientes classificados com sobrepeso pelo IMC, encontrou-se
diagnóstico de desnutrição pela ANSG em 38% e pela FAM 85,7%, portanto, o IMC
não parece adequado para avaliar este grupo, o que está de acordo com estudos
recentes(33, 44, 45).
Na ANSG, encontrou-se prevalência de desnutrição de 35,3%. Alguns componentes
da ANSG são qualitativos, como nível de massa muscular e perda de gordura
subcutânea, o que favorece esta avaliação, mas em contrapartida, a estimativa
de perda de peso que faz parte da avaliação é difícil de ser determinada na
presença de ascite e retenção hídrica(1). Vários estudos utilizam a ANSG na
avaliação nutricional em cirróticos, apresentando a desnutrição por ela
avaliada e a evolução clínica de pacientes(31).
Nos pacientes estudados, a prevalência de desnutrição pelos métodos de PCT e
CMB foi baixa 5,9 e 17,6%, respectivamente, indo ao encontro com outros
estudos(1, 2), mas contra outros(33, 36).
A utilidade das proteínas séricas é limitada pela diminuição da síntese
hepática, o que dificulta sua aplicação na avaliação nutricional. Ao contrário
de outros estudos em que foram utilizadas proteínas séricas(33, 38, 44), como
albumina e pré-albumina, este parâmetro não foi avaliado neste trabalho. Boa
alternativa para avaliar a desnutrição protéica é a FAM. No presente estudo ela
detectou 79,4% de desnutrição, o que vai de encontro com outros estudos em
cirróticos(3, 4). Ademais, estudo realizado no nosso meio em 50 pacientes com
cirrose, igualmente demonstrou superioridade da FAM no diagnóstico de
desnutrição, quando comparado a outros métodos(4). O uso da FAM aumentou
consideravelmente o diagnóstico de desnutrição quando comparado à ANSG (79,4 e
35,3%, respectivamente), refletindo provavelmente, a capacidade de diagnosticar
a desnutrição em indivíduos sem quaisquer evidências clínicas.
Em cirróticos, uma simples noite de jejum pode ter efeito negativo na
homeostase e metabolismo energético e induzir a quebra das reservas endógenas
de gordura e proteínas(26). Nos pacientes estudados, a ingestão dietética foi
inapropriada tanto em macro, quanto em alguns micronutrientes (Tabela_2). A
ingestão calórica dos indivíduos ficou em 80% do recomendado, o que certamente
contribui para um estado nutricional deletério. Achados semelhantes foram
descritos por DAVIDSON et al.(9), estudando 52 pacientes cirróticos e
comparados a controles. Outro estudo recente em nosso meio(46) avaliou a
ingestão de 32 pacientes cirróticos internados, com resultados semelhantes. Em
relação aos micronutrientes, encontrou-se inadequação em relação à ingestão de
cálcio, de magnésio, de ferro e, especialmente, de zinco.
A baixa ingestão alimentar é freqüentemente observada em pacientes cirróticos,
independente do estágio da doença. A impressão que se tem é que hábitos
culturais e a falta de orientação especializada induzem a restrições
desnecessárias de proteínas e de gorduras. A restrição de sal e a conseqüente
redução da palatabilidade dos alimentos é mais um fator que interfere na
ingestão. Outro fator que contribui para a inapetência e anorexia destes
pacientes é a baixa ingestão de zinco, que tem sido associada a menor acuidade
do paladar(20). Na presente série observou-se que todos os pacientes tinham
ingestão média de zinco abaixo de 35% da RDA.
O GEB foi medido pela calorimetria indireta nos 34 indivíduos estudados. Foi
possível utilizar seu resultado em 19 pacientes. Nos 15 restantes, o
equipamento de medição não conseguiu captar adequadamente as trocas gasosas,
reduzindo seus valores e alterando a qualidade dos dados.
No presente estudo o GEB medido pela calorimetria indireta, foi mais baixo que
o estimado pela equação de HB, o que está de acordo com alguns estudos prévios
(28, 37). Opiniões diferentes foram descritas por outros autores que
encontraram aumento do GEB medido em relação ao estimado(19, 40). Essas
observações controversas podem ser explicadas pela heterogeneidade da população
de pacientes, por problemas metodológicos associados à medição do GEB e da
avaliação nutricional(40).
Alguns estudos descrevem a presença de hipermetabolismo em cirróticos
desnutridos. No estudo em questão não houve diferença significativa entre o GEB
medido e estimado em pacientes cirróticos bem nutridos e desnutridos.
Na análise pelo método de BLAND e ALTMAN(6) os dados obtidos entre o GEB
estimado e medido não concordam entre si (Figura_1). Estes resultados
necessitam de confirmação com amostras maiores.
CONCLUSÕES
A desnutrição foi freqüente nos pacientes cirróticos estudados e a FAM parece
ser o método mais sensível para o seu diagnóstico. A ingestão calórico-protéica
foi inadequada nesses pacientes. Considerando que o GEB estimado foi superior
ao medido e a necessidade de oferecer um maior aporte calórico a estes
pacientes, a utilização da equação de predição talvez possa substituir o uso da
calorimetria indireta nestes pacientes.
AGRADECIMENTO
Ao Fundo de Incentivo a Pesquisa e Eventos (FIPE) do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, pelo apoio financeiro.