Doença hepática não-alcoólica: evolução após derivação gastrojejunal em Y-de-
Roux pela técnica de fobi-capella
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLE
Doença hepática não-alcoólica: evolução após derivação gastrojejunal em Y-de-
Roux pela técnica de fobi-capella
Nonalcoholic fatty liver disease: evolution after gastric bypass
Alexandre Coutinho Teixeira de FreitasI, II; Diane Teixeira de FreitasIII;
Mônica Beatriz ParolinI; Antônio Carlos Ligocki CamposI, II; Júlio Cezar Uili
CoelhoI, II
IDepartamento de Cirurgia da Universidade Federal do Paraná
IIServiço de Cirurgia Geral do Hospital Nossa Senhora das Graças
IIIServiço de Nutrição do Hospital Nossa Senhora das Graças, Curitiba, PR
Correspondência
INTRODUÇÃO
A doença hepática não-alcoólica apresenta alta prevalência na população(9, 16).
Ela consiste de várias situações, desde a esteatose hepática e esteatohepatite,
até a cirrose e hepatocarcinoma(20, 32). Atualmente existem evidências de se
considerá-la como processo evolutivo(20). A diabetes tipo 2 e a dislipidemia
são considerados fatores de risco para a doença(21, 23). No entanto, o fator
mais importante é a presença de obesidade(22, 32). Esses fatores, associados à
hipertensão arterial, compõem a síndrome metabólica, observada habitualmente na
doença hepática não-alcoólica primária(23). A doença hepática não-alcoólica
secundária ocorre como conseqüência de cirurgias de derivação intestinal,
rápida perda de peso, nutrição parenteral total, medicamentos (amiodarona),
lipodistrofia e doença de Wilson(23).
Nos Estados Unidos, de acordo com o National Health and Nutrition Examination
Survey III, a prevalência de doença hepática não-alcoólica primária aumenta de
acordo com o índice de massa corporal IMC(16). Outros estudos determinam a
prevalência de doença hepática não-alcoólica em pacientes com indicação de
cirurgia bariátrica. MARCEAU et al.(19) demonstraram prevalência de 86% para
esteatose, 23% para esteatohepatite e 2% para cirrose em 551 pacientes.
O desenvolvimento de esteatose hepática é o primeiro processo na fisiopatologia
da doença. Pacientes obesos apresentam resistência periférica à insulina e
níveis séricos desse hormônio elevados. Isso determina aumento do transporte de
ácidos graxos do tecido adiposo para o fígado desenvolvendo a esteatose '
denominado "primeiro impacto"(10, 11). Nessa fase o fígado encontra-se muito
suscetível a insultos adicionais como consumo de etanol e lipopolissacarídeos
bacterianos e a apoptose torna-se fenômeno mais freqüentemente observado(30,
42). A progressão para esteatohepatite e cirrose não é totalmente esclarecida.
No entanto, o estresse oxidativo e as citocinas são os principais efetores
dessa evolução ' chamado "segundo impacto"(4, 10, 18, 31, 37, 40). Indivíduos
obesos apresentam alta prevalência de apnéia do sono. A hipoxemia intermitente
secundária à apnéia pode participar na fisiopatologia da doença hepática não-
alcoólica interferindo com o estresse oxidativo e resistência à insulina(6, 29,
35). Também deve-se considerar o consumo aumentado de gordura e carboidratos na
dieta, que também interferem no mesmo mecanismo(29, 35).
O presente estudo teve como objetivo avaliar o efeito da derivação gástrica em
Y-de-Roux pela técnica de Fobi-Capella na incidência de doença hepática não-
alcoólica e co-morbidades relacionadas em pacientes com obesidade mórbida.
MÉTODOS
No período de 1° de fevereiro de 2003 até 1° fevereiro de 2004 foram
prospectivamente analisados pacientes com obesidade mórbida atendidos na
clínica privada de um dos pesquisadores. Aqueles com indicação cirúrgica,
operados e com esteatose hepática foram incluídos no estudo. A indicação
cirúrgica foi realizada de acordo com os mesmos critérios atualmente
estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina: a) IMC >40 kg/m2 ou IMC entre
35 e 39,9 kg/m2 associado à co-morbidade relacionada à obesidade; b) obesidade
refratária a tratamento clínico conservador.
No pré-operatório, os pacientes foram avaliados conforme protocolo padronizado
de exames complementares e consultas com especialidades. De interesse para o
estudo determinou-se: idade, sexo, peso corporal, IMC, freqüência das co-
morbidades (incluindo-se história de hepatite B e C), medicações em uso,
hábitos etílicos. Também, resultados de exames complementares: AST, ALT,
triglicerídeos, colesterol total, saturação da transferrina e ultra-sonografia
abdominal. O diagnóstico das co-morbidades foi determinado baseado no relato do
paciente associado à análise dos medicamentos em uso ou através da detecção nos
exames pré-operatórios.
Pacientes com alteração de qualquer uma das provas hepáticas foram submetidos a
biopsia hepática peroperatória. A cirurgia realizada foi a derivação
gastrojejunal em Y-de-Roux pela técnica de Fobi-Capella, por via laparotômica.
No pré-operatório, o diagnóstico de esteatose hepática foi realizado de três
maneiras: a) achado da ultra-sonografia pré-operatória isoladamente; b)
critério de Clark(16) - AST>37 U/L ou ALT>40 U/L (sexo masculino); AST ou
ALT>31 U/L (sexo feminino); ambas as situações na ausência de consumo etílico
importante, hepatite B e C e saturação da transferrina >50%; c) associação das
duas situações anteriores.
Após no mínimo 6 meses de pós-operatório, analisou-se: peso, percentagem de
perda do excesso de peso, IMC, freqüência das co-morbidades, medicações em uso,
os mesmos exames laboratoriais e incidência de esteatose. A percentagem de
perda do excesso de peso (%PEP) foi calculada pela fórmula: %PEP = (peso
inicial ' peso atual / peso inicial ' peso ideal) x100. O peso atual foi
considerado como aquele no momento da avaliação no pós-operatório. O peso ideal
foi baseado no estudo populacional da Metropolitan Life Insurance Company.
Os valores do peso, IMC, colesterol total e triglicerídeos foram analisados
pelo teste t. A freqüência de ocorrência da esteatose e a freqüência de
ocorrência de todas as outras co-morbidades, medicações em uso e freqüência de
alteração de provas hepáticas foram analisadas pelo teste exato de Fisher.
Considerou-se o nível de significância de 0,05 (P <0,05).
RESULTADOS
No período de 1° de fevereiro de 2003 até 1° fevereiro de 2004 foram atendidos
50 pacientes com obesidade mórbida com indicação cirúrgica. Desses, 28 (56%)
foram diagnosticados com esteatose hepática e incluídos no estudo (Tabela_1).
Não houve mortalidade precoce ou tardia no pós-operatório. Os pacientes foram
analisados em média com 230 ± 75 dias de pós-operatório. A %PEP foi em média
64,3% ± 11%. No pós-operatório houve redução significativa do peso médio (P
<0,01) e do IMC médio (P <0,01) (Tabela_2).
Os pacientes apresentaram no pré-operatório 59 co-morbidades (exceto a
esteatose hepática) ' média de 2,07 por paciente (Tabela_3). Não foi detectado
hábito etílico significativo, diagnóstico de hepatite viral ou saturação da
transferrina >50%. No pós-operatório, apresentaram 21 co-morbidades, média de
0,75 por paciente, incluindo-se 6 co-morbidades relacionadas à cirurgia,
ausentes no pré-operatório (Tabela_3). Co-morbidades foram evidenciadas em 25
pacientes no pré-operatório e em 13 pacientes no pós-operatório (P <0,01)
(Tabela_3). Houve redução significativa das taxas de triglicerídeos (P <0,01) e
colesterol (P = 0,01) e da freqüência de ocorrência de hipertensão arterial (P
<0,05) (Tabela_3). No pré-operatório, 15 pacientes usavam algum tipo de
medicamento; no pós-operatório, 8 (P = 0,1). Todos os pacientes usaram
suplementação com complexo vitamínico no pós-operatório, o que não foi
computado. Os medicamentos usados no pré e no pós-operatório estão listados na
Tabela_4.
Em 50% dos casos o diagnóstico da esteatose hepática foi realizado com a
associação da ultra-sonografia pré-operatória e alteração das provas hepáticas
do critério de Clark (Tabela_5). Ao todo, 22 pacientes foram submetidos a
biopsia hepática. Os resultados estão listados na Tabela_6. Houve redução da
incidência de AST (P <0,05) e ALT (P <0,01) elevadas no pós-operatório em
relação ao pré-operatório. Vinte pacientes apresentaram elevação de ALT, AST ou
ambas. Desses, em 95% dos casos a ALT estava mais elevada. A relação ALT/AST
foi de 1,5. No pós-operatório houve redução significativa na incidência de
esteatose hepática (P <0,01), sendo observada em 11 pacientes. O diagnóstico
foi realizado através de ultra-sonografia e ALT elevada em um caso, elevação
isolada de AST em quatro e elevação isolada de ALT em seis casos.
DISCUSSÃO
A obesidade é considerada o fator de risco mais importante no desenvolvimento
de doença hepática não-alcoólica. Acredita-se que a prevalência da doença
esteja aumentando devido ao comprovado aumento da obesidade em diversos países
ocidentais(16). Poucos estudos determinam a prevalência da doença hepática não-
alcoólica em obesos. Ainda, os resultados desses estudos variam de acordo com o
método utilizado para o diagnóstico(16).
Em estudo de pacientes com obesidade no norte da Itália, a prevalência de
doença hepática não-alcoólica foi de 76%(3). Nesse estudo, o método usado para
o diagnóstico foi a ultra-sonografia. Normalmente observa-se fígado
esbranquiçado, brilhante, se comparado com a ecogenicidade renal(12, 17).
Apresenta ainda sombras acústicas posteriores e perda da definição da imagem
dos vasos intra-hepáticos(12, 17). A sensibilidade varia de 67% a 100% e a
especificidade de 77% a 95% para a detecção de esteatose(8, 17, 32, 34). Para a
detecção de fibrose a sensibilidade varia de 57% a 77% e a especificidade de
85% a 89%(8, 17, 32, 34). Trata-se, atualmente, do método de imagem de escolha
para o diagnóstico visto sua praticidade, disponibilidade e custo. A associação
de achados ecográficos com alteração de transaminases confere valor preditivo
positivo de 96% para o diagnóstico de doença hepática não-alcoólica(17).
Os níveis de AST e ALT podem ser utilizados para o diagnóstico(44). Em 65% a
95% dos doentes com doença hepática não-alcoólica, a ALT é mais elevada que a
AST(44). Em contraste, em indivíduos com doença hepática alcoólica
habitualmente a AST é mais elevada que a ALT(24, 32). Outras enzimas hepáticas
como a fosfatase alcalina e a gama-glutamil-transferase estão elevadas em 1/
3 dos pacientes. Normalmente não se observam alterações de albumina, coagulação
e bilirrubinas, exceto quando a cirrose já está presente(12). Os dados do
National Health and Nutrition Examination Survey III (NHANES) analisaram a
prevalência de doença hepática não-alcoólica na população adulta dos Estados
Unidos com três diferentes critérios(16). O critério modificado de Ruhl
considerou o diagnóstico de doença hepática não-alcoólica no caso de ALT>40 U/
L na ausência de hepatite B ou C, consumo significativo de álcool e saturação
da transferrina >50%. O diagnóstico foi positivo em 6,6% dos pacientes com IMC
de 30-34,9 kg/m2 e em 6,8% dos casos com IMC >35 kg/m2. O critério italiano
considerou o diagnóstico nos indivíduos do sexo masculino com ALT >30 U/L e nos
do sexo feminino com ALT >19 U/L na ausência de hepatite B ou C, consumo
significativo de álcool e saturação da transferrina >50%. O diagnóstico foi
positivo em 18,1% dos pacientes com IMC de 30-34,9 kg/m2 e em 24% dos com IMC
>35 kg/m2. O critério de Clark considerou o diagnóstico nos indivíduos do sexo
masculino com AST >37 U/L ou ALT >40 U/L e nos do sexo feminino com AST ou ALT
>31 U/L na ausência de hepatite B ou C, consumo significativo de álcool e
saturação da transferrina >50%. O diagnóstico foi positivo em 9,3% dos
pacientes com IMC de 30-34,9 kg/m2 e em 11,6% dos com IMC >35 kg/m2.
No presente estudo utilizou-se como critério diagnóstico a associação do
critério de Clark com a ultra-sonografia. O diagnóstico de esteatohepatite foi
realizado somente através de biopsia hepática, quando indicada. No seguimento
dos casos utilizaram-se os mesmos critérios.
DIXON et al.(13) realizaram biopsia hepática 25,6 meses após a colocação de
banda gástrica laparoscópica e observaram diminuição da esteatose, da atividade
inflamatória e do grau de fibrose centrolobular.
A síndrome metabólica, ou síndrome X, é causada pela resistência periférica à
insulina(7, 27) relacionada à ingestão de grandes quantidades de carboidratos e
gordura saturada, resultando no aumento dos ácidos graxos plasmáticos e
depósito de tecido adiposo(7, 27). Obesidade é observada em 40% a 100% dos
pacientes, 20% a 75% apresentam diabetes mellitus tipo 2 e 20% a 81%,
hiperlipidemia(7, 27). A doença hepática não-alcoólica está presente em
proporção elevada de pacientes e o foco principal de seu tratamento é a mudança
de hábitos de vida e, principalmente, perda de peso. Perda de 10% do peso já é
suficiente para melhora das transaminases e de outros fatores relacionados à
síndrome metabólica(1, 39, 41, 43). Normalmente observa-se melhora da esteatose
e esteatohepatite, no entanto em somente 50% dos pacientes há melhora do grau
de fibrose(43).
Existe preocupação na literatura médica a respeito dos efeitos deletérios para
o fígado relacionados a grandes perdas de peso em curto período de tempo.
Existem referências a não se exceder perda de 1 kg por semana(1). SLIGTER et
al.(38) descreveram um paciente com esteatose hepática submetido a derivação
gástrica em Y-de-Roux com redução do IMC de 52 kg/m2 para 24 kg/m2 e perda de
30 kg em 1 ano. Houve piora dos níveis de transaminases e a biopsia hepática no
pós-operatório demonstrou esteatohepatite e fibrose hepática graus 1 e 2.
Outro fator importante é a realização de exercícios físicos. Foram observados
benefícios dos exercícios, mesmo na ausência de perda de peso. Ocorre melhora
da sensibilidade à insulina, decréscimo dos depósitos de gordura visceral,
melhor utilização de ácidos graxos pelos músculos e melhora da atividade da
lipase(15). A capacidade de realização de exercícios físicos no pós-operatório
de cirurgia bariátrica é melhorada. O método mais usado para análise pós-
operatória é o sistema BAROS ' Bariatric Analysis and Reporting Outcome System
(28). Nesse método, além da perda de peso e melhora das co-morbidades,
verificam-se cinco aspectos relacionados à qualidade de vida, entre eles a
realização de exercícios físicos. Vários autores demonstram melhora na
pontuação do sistema BAROS após a cirurgia bariátrica, refletindo, entre outros
fatores, em maior capacidade física e realização de exercícios(14, 25, 36, 37).
Fatores dietéticos também são importantes e estão implicados na patogênese da
doença hepática não-alcoólica(5, 26). No seu tratamento os pacientes são
orientados a realizar dieta pobre em gordura saturada, pobre em sal, sem
consumo de bebidas alcoólicas e rica em fibras, vegetais e frutas(2, 33). No
pré e no pós-operatório de cirurgia bariátrica todos os pacientes são
submetidos a avaliação e orientação nutricional. No presente estudo os
pacientes foram acompanhados por nutricionista e orientados a modificar seus
hábitos dietéticos, de acordo com a restrição imposta pela cirurgia. A
derivação gástrica em Y-de-Roux é considerada cirurgia mista em relação ao
mecanismo de perda de peso. Nessa situação predomina mais o componente
restritivo da redução do volume gástrico do que o componente disabsortivo
proporcionado pelo Y-de-Roux. O volume gástrico no pós-operatório imediato é,
em média, de 30 mL. Isso torna necessária uma dieta hipocalórica fracionada e
em pequenos volumes. No decorrer do tempo o volume é gradualmente aumentado.
Síndrome de dumping é freqüente em pacientes que não seguem a dieta
apropriadamente. A derivação gástrica permite que o paciente apresente
saciedade precoce e mesmo redução do apetite, fatores mediados por alterações
neurohormonais.
Neste estudo houve significativa perda de peso com a derivação gastrojejunal em
Y-de-Roux, associada à redução na incidência de esteatose hepática e de outras
co-morbidades. O seguimento médio foi de 230 ± 75 dias. Diversos estudos
demonstram que nesse período ainda não ocorreu a perda de peso máxima possível
com o procedimento. Especulou-se que com períodos de seguimento mais
prolongados obter-se-ia maior perda de peso e, possivelmente, maior redução da
incidência de esteatose e outras co-morbidades.
Conclui-se que ocorre redução da incidência de doença hepática não-alcoólica e
suas co-morbidades em pacientes submetidos a derivação gastrojejunal em Y-de-
Roux.