Perspectivas históricas do Projeto Genoma e a evolução da enfermagem
HISTÓRIA DA ENFERMAGEM
1. INTRODUÇÃO
Por mais de quarenta anos, enfermeiros vêm atuando como conselheiros e
educadores na área de genética e, conseqüentemente, contribuindo para ampliar o
conhecimento dos profissionais em relação aos aspectos biológicos e
psicossociais do processo saúde-doença, transformando o modo de assistência à
população(1).
Com a finalização do Projeto Genoma Humano, iniciou-se uma revolução no campo
da genética, adentrando-se em uma nova época denominada "Era Genômica", a nova
fronteira para a ciência. Os mistérios do conhecimento do genoma humano apenas
começaram a ser revelados, porém, já se antecipam grandes avanços, trazendo
profundas modificações e implicações para os profissionais de saúde e para o
paradigma atual no qual esses mesmos profissionais não só têm sido educados,
mas também exercem sua profissão(2).
Este artigo tem por objetivo traçar um panorama histórico das principais
transformações que estão ocorrendo na enfermagem, após a finalização do Projeto
Genoma. São apresentadas informações atuais sobre genética, o Projeto Genoma
Humano, pesquisa genômica e sua interface com a prática da enfermagem, assim
como propostas de vanguarda em várias áreas de pesquisa importantes para os
enfermeiros.
2. DA GENÉTICA À GENÔMICA
A genética pode ser convencionalmente definida como a ciência que estuda os
genes, seu funcionamento, os mecanismos através dos quais os traços biológicos
são transmitidos de geração para geração e expressos em um indivíduo(1). O
enfoque tradicional da genética está centrado em alterações cromossômicas,
doenças hereditárias ou síndromes raras, que afetam apenas uma pequena porção
da população como, por exemplo, fibrose cística, anemia falciforme, hemofilia,
as quais são conhecidas como doenças monogênicas por resultarem de alterações
ou mutações em um único gene(3,4). Entretanto, a nova visão da genética amplia
esse conceito, reconhecendo que várias doenças, freqüentes, cujas causas, a
princípio, eram vistas como resultantes do estilo de vida, dieta e fatores
ambientais também podem possuir componente genético e hereditário. Atualmente,
reconhece-se que as interações entre o genoma, ou seja, todo o DNA
(DeoxyriboNucleic Acid ) contido em um organismo ou em uma célula, e o meio
ambiente desempenham papel fundamental no desenvolvimento de muitas patologias,
podendo-se considerar que nove entre as dez causas de morte ou invalidez mais
freqüentes na população têm um componente genético, tornando-se problema de
saúde pública(2).
Os serviços de genética clínica desenvolveram-se centrados no modelo médico
holocêntrico, voltados basicamente para aconselhamento genético pré-natal,
identificação de desordens pediátricas associadas a defeitos congênitos e erros
inatos do metabolismo, assim como doenças crônico-degenerativas de aparecimento
tardio(4). No Brasil, esses serviços ainda são prestados principalmente por
médicos geneticistas, raramente envolvendo especialistas de outras áreas, em
centros de pesquisa ligados a grandes universidades ou em serviços privados,
não sendo inclusos no Sistema Único de Saúde(5).
Avanços genéticos e tecnológicos têm proporcionado entendimento mais abrangente
de como modificações genéticas influenciam a variabilidade entre os seres
humanos e sua predisposição para desenvolver enfermidades como câncer, doenças
cardiovasculares, hipertensão, diabetes, obesidade, doença de Alzheimer entre
outras. Patologias como essas são freqüentemente resultado de complexas
interações entre vários genes e uma variedade de exposições ambientais, as
quais podem disparar, acelerar ou exacerbar o processo de adoecimento(6).
Essa revolução na genética está criando nova demanda para os profissionais de
saúde que consideram a relação de aspectos genéticos com o risco aumentado para
determinadas doenças. Dentre esses profissionais, destaca-se um número
crescente de enfermeiros em todo o mundo que estão incluindo esses
conhecimentos em suas práticas assistenciais, no ensino acadêmico, na pesquisa
e na educação dos seus clientes(4,7).
3. O PROJETO GENOMA HUMANO: PASSADO, PRESENTE E FUTURO
A meta ambiciosa do Projeto Genoma Humano (PGH) era o desenvolvimento detalhado
do mapa físico e genético do genoma humano, determinando a seqüência completa
dos nucleotídeos do nosso DNA. A idéia de seqüenciar todo o genoma humano
surgiu em discussões científicas iniciadas em 1984, porém, foi em 1988 que o
Departamento de Energia e os Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos
conseguiram fundos junto ao Congresso para iniciar o planejamento do projeto.
Os planejadores estabeleceram um período de 15 anos para a finalização do mesmo
e orçamento de três bilhões de dólares. No dia primeiro de outubro de 1990,
iniciou-se oficialmente o PGH nos Estados Unidos, como um projeto internacional
desde o início, envolvendo cientistas do Reino Unido, Alemanha, França, Japão e
China(8).
Em 14 de abril de 2003, o PGH foi anunciado como estando completo, dois anos
antes do prazo inicialmente estabelecido e quatrocentos milhões de dólares
abaixo do orçamento preliminar. O Consórcio Internacional de Seqüenciamento do
Genoma Humano, o grupo que trabalhou no projeto, completou toda a seqüência do
genoma humano com alta qualidade, provendo um poderoso instrumento para o
entendimento da biologia e das patologias humanas. Cientistas têm utilizado
essa ferramenta para identificar genes associados a muitas doenças complexas
como os cânceres de mama, cólon e próstata, diabetes, asma, entre outras(2).
Como todas as áreas, a genômica também tem sua terminologia particular. O termo
genômica, cunhado aproximadamente há 15 anos(3), é o estudo não somente de
genes isolados, mas de funções e interações de todos os genes no genoma de um
ser vivo. A genômica explora as relações entre os genes e o meio ambiente,
geralmente observadas em doenças freqüentes na nossa população. Essas
patologias podem ser consideradas tão comuns que o cuidado genético, nesses
casos, poderá ser suprido envolvendo ocasionalmente o médico geneticista, mas,
sobretudo, os profissionais que atuam na assistência primária à população(4).
A importância da investigação sobre as implicações éticas, legais e sociais da
pesquisa genômica foi reconhecida desde o início do PGH. Com a finalidade de
abranger essas questões, criou-se em 1990 o Programa de Pesquisa de Implicações
Éticas, Legais e Sociais (Ethical, Legal and Social Implications Research
Program, ELSI) como parte integrante do PGH. Esse programa provê nova abordagem
para identificar e analisar esses aspectos em paralelo com a pesquisa em
ciências básicas.Pesquisas financiadas por verbas desse programa têm abordado
diferentes temas, dentre eles incluem-se aplicação de distintas estratégias de
aconselhamento genético, estudos em populações indígenas, o impacto social da
engenharia genética, o estigma de ter uma doença genética, promovendo assim o
uso da genômica para maximizar os benefícios e minimizar os prejuízos de suas
aplicações junto à sociedade(2).
Simultaneamente às publicações que divulgaram a conclusão do projeto genoma, o
Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano (National Human Genome Research
Institute, NHGRI) publicou sua visão para o futuro da genômica, elaborada a
partir de contribuições científicas, que se extenderam por um período de dois
anos de discussões, oficinas e consultas a peritos. Essa visão passou a ser
adotada como um modelo conceitual para pesquisas na área, o qual é composto por
três temas fundamentais: (a) genômica para a biologia, (b) genômica para a
saúde e (c) genômica para a sociedade. Cada um desses temas abrange aspectos
éticos, legais e sociais; educação; treinamento; recursos humanos e
financeiros; desenvolvimento tecnológico e bioinformática (
Quadro1
)(2).
A partir do projeto genoma, várias disciplinas ditas "ômicas" estão surgindo,
ou seja, genômica funcional ou transcriptômica, proteômica e até mesmo
metabolômica, traçando, respectivamente, um paralelo, com a hierarquia
biológica dos processos de transcrição do DNA em RNA; síntese protéica ou
tradução; e síntese de pequenas moléculas ou processos metabólicos. O
significado desses termos e as implicações desses estudos podem ser
exemplificados pela proteômica. As indústrias farmacêuticas têm investido
grandes verbas de pesquisa em proteômica, preocupando-se, a princípio, em
determinar a estrutura, expressão, localização, atividade bioquímica,
interações e funções do maior número de proteínas possível, buscando o
desenvolvimento de medicamentos com bases genéticas, cada vez mais
individualizados(9).
4. ASPECTOS HISTÓRICOS DA ATUAÇÃO DA ENFERMAGEM EM GENÉTICA
Em 1962, foi publicado o primeiro artigo citando a importância da inclusão de
conteúdos de genética no currículo de enfermagem(10) e, durante as décadas de
1960 e 1970, a genética foi conceituada como importante componente da prática
de enfermeiros, especialmente nas áreas de saúde comunitária e enfermagem
materno-infantil(1).
A figura do enfermeiro especialista em genética começou a ter visibilidade nos
anos 80, quando se definiu pela primeira vez a função do enfermeiro geneticista
como um profissional essencial na equipe interdisciplinar de aconselhamento
genético(1).
Um pequeno grupo, composto por oito enfermeiros, envolvidos em ministrar
cuidados na área de genética, organizou-se, a princípio informalmente, e quatro
anos após, em 1988, fundou a Sociedade Internacional dos Enfermeiros
Geneticistas (International Society of Nurses in Genetics, ISONG)(1). Hoje, o
quadro de membros da ISONG abrange os seis continentes, contando com
aproximadamente 400 membros, que atuam na academia, em hospitais, em
instituições privadas, indústrias, em saúde pública e junto a órgãos
governamentais, nas áreas de saúde materno-infantil, genética pré-natal,
genética do câncer, neurogenética, genética cardíaca, genética pediátrica,
doenças metabólicas e educação. O objetivo principal dessa organização é cuidar
da saúde genética da população. Dez anos após sua fundação, durante o Congresso
da Associação Americana de Enfermagem (American Nursing Association, ANA), foi
aprovado o documento The Scope and Standards of Genetic Clinical Nursing
Practice(11), preparado pela ISONG, o qual está atualmente em fase de expansão
e atualização. Esse importante documento determina as normas e diretrizes
norteadoras do exercício de enfermagem na área de genética em todo o mundo,
definindo e estabelecendo níveis de competência profissional para o enfermeiro
atuar na área de genética.
No Brasil, o primeiro profissional nessa área começou a atuar na década de 80
(12) e, desde então, esse número vem aumentando modestamente, com a conquista
de novos cenários para tal prática, e as primeiras publicações nacionais
começam a aparecer(7,12,13). Acredita-se no grande campo que se desvenda para o
enfermeiro geneticista no Brasil, com possibilidades de atuação em diferentes
subespecialidades da genética. Porém nem todo profissional de enfermagem
precisa ser um perito nessa área, mas é essencial que todos os enfermeiros
adquiram conhecimentos básicos para atenderem às novas demandas do cuidado de
saúde baseado em genômica.
O COREN-SP (Conselho Regional de Enfermagem do Estado de São Paulo) já
posicionou-se favoravelmente à atuação do enfermeiro como conselheiro genético,
mediante parecer de sua presidenta Ruth Miranda de Camargo Leifert, exarado
pela Câmara Técnica Assistencial desse órgão, em 3/10/2001, com bases na Lei
7.498 e seu Decreto 94.406 de 08/06/87. Considerando, ainda, o Parecer da
Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras, que essa é uma
atividade de educação em saúde, não implicando na emissão de diagnóstico
clínico, foi emitido por esse Conselho o Parecer de que o enfermeiro, desde que
tenha formação científica específica na área de genética, pode atuar na função
de conselheiro genético. Seguindo o que está determinado pela Lei do Exercício
Profissional de Enfermagem, observa-se que o enfermeiro é profissional único
para atuar como conselheiro devido à sua formação acadêmica com enfoque em
ciências humanas e biológicas, que lhe confere embasamento teórico-prático
suficiente para ministrar atenção holística e assistência integral, aplicados à
genética(13).
5. INTEGRANDO A GENÉTICA E A GENÔMICA NO COTIDIANO DA ENFERMAGEM NO BRASIL
Com o PGH surgiu o cuidado de saúde baseado em genômica, que pode ser definido
como o processo que abrange o diagnóstico, a prevenção e a terapêutica baseados
nos genes, considerando as manifestações de sáude como resultantes de
combinações do genoma humano e de influências ambientais(14).
Esforços coletivos são necessários por parte dos enfermeiros no mundo todo para
assegurar que todos os indivíduos, famílias e populações tenham acesso aos
benefícios para a saúde, provenientes da pesquisa genômica. Isso inclui
esforços para melhorar a educação e o treinamento dos enfermeiros brasileiros.
Embora a enfermagem, enquanto profissão, já reconheça a importância da genética
e da genômica na prática clínica, levantamentos realizados em diversos países
mostram que esses conteúdos ainda são limitados nos cursos de graduação em
enfermagem(14). Em 2003, enfermeiros que participaram da convenção anual da ANA
foram entrevistados e afirmaram que não se sentem habilitados para ministrar
cuidados que envolvam conhecimentos de genética, mas todos concordaram que a
genômica está transformando profundamente a prática da enfermagem(14). No
Brasil, tanto alunos como professores dos cursos de enfermagem ainda possuem
visão bastante conservadora da genética, provavelmente devido ao conteúdo dos
programas atuais, pouco informativos sobre as atribuições próprias dos
enfermeiros nesse cenário e sem direcionamento específico para a prática da
enfermagem em genética. Os paradigmas vêm se modificando, mas o ensino da
genética nos cursos de graduação de enfermagem no Brasil ainda se baseia no
modelo médico. Logo, é urgente a transformação pedagógica e clínica(15).
Assim, pode-se concluir que, infelizmente, ainda falta reconhecimento das
potencialidades e da autonomia dos enfermeiros no campo da genética no Brasil,
contrariamente ao que se observa nos países desenvolvidos. Oportunidades de
educação em genética não estão igualmente disponíveis para todos os enfermeiros
brasileiros, portanto, está sendo realizado um levantamento nacional junto aos
496 cursos de graduação em enfermagem, procurando conhecer o panorama nacional
do ensino de genética para a enfermagem, com o propósito de propor diretrizes
para integração de um currículo mínimo de genética específico para enfermeiros
(5).
6. RECOMENDAÇÕES E DESAFIOS PARA E ENFERMAGEM NA ERA GENÔMICA
No contexto clínico, o enfermeiro é o profissional de saúde que passa maior
tempo em contato direto com o paciente, normalmente sendo o primeiro a notar
características dismórficas em um recém-nascido, a prover informações para
pacientes sobre a natureza de uma doença crônica recentemente diagnosticada, a
contribuir para o repensar de questões levantadas sobre o significado dessa
doença para os próprios pacientes e para seus familiares e a lidar com o
complexo espectro da resposta humana à saúde e à doença(14). Adicionalmente, os
enfermeiros estão presentes em todas as comunidades, sendo elos vitais entre
indivíduos, famílias e o sistema de saúde. Portanto, é junto ao enfermeiro que
os membros da comunidade freqüentemente buscam respostas às suas preocupações e
questões de saúde. Logo, a enfermagem possui imensa contribuição a oferecer,
educando pacientes, famílias, outros profissionais de saúde e o público sobre o
cuidado de saúde baseado em genômica, advogando a favor desses pela segurança e
justiça no uso de tal tecnologia e na coordenação personalizada da assistência
durante todas as etapas da vida(14).
De modo geral, a formação acadêmica do aluno de enfermagem possibilita uma
abordagem holística do cuidado em saúde, considerando aspectos biológicos,
físicos, ambientais, sociais, culturais e espirituais de cada pessoa. Por
conseguinte, essa categoria profissional possui o potencial para assistir à
população(3), vencendo barreiras e evoluindo juntamente com os avanços da
genômica. Na atualidade, é aconselhável ampliar o conhecimento de genética
entre os docentes e, conseqüentemente, dos enfermeiros como um todo; além de
incluir conteúdos curriculares nos cursos de graduação de enfermagem que
abranjam competências baseadas em evidências genômicas. Conhecer os desafios
impostos à enfermagem no processo de formação do aluno de graduação nessa nova
era, possibilita a reflexão e a reunião de esforços no sentido de buscar
caminhos para oferecer um ensino que melhor atenda às necessidades de cuidados
emergentes. Recomenda-se que o profissional de enfermagem seja preparado para
implementar intervenções de enfermagem que promovam a saúde e o bem-estar da
população, considerando as interrelações entre o genótipo de um indivíduo e o
meio ambiente, seu estilo de vida, dieta e intervenções farmacêuticas(6).
Acerca do desenvolvimento de pesquisas nessa área, é fundamental o compromisso
de enfermeiros na condução de pesquisas que abordem temas sobre o impacto da
informação genômica sobre os resultados do comportamento em saúde, o processo
de enfrentamento das doenças genéticas, o compartilhar de informações sobre
essas condições dentro e fora das famílias e a redefinição de papéis frente à
informação genética(5,14).
Colaborar na definição e no desenvolvimento de políticas de saúde que incluam
questões como os limites éticos para o uso da genômica (proteção contra a
discriminação genética, testes genéticos reprodutivos e melhoramento genético);
usar a informação genética para estabelecer programas de saúde pública para
promoção da saúde e prevenção de doenças; bem como colaborar na elaboração de
diretrizes para a proteção, acesso e disseminação da informação genética
constituem, da mesma forma, desafios para a enfermagem pós Projeto Genoma
Humano(6).
A compreensão das novas questões trazidas pela genômica, e de como os pacientes
e seus familiares vêem a si mesmos, à luz dessa nova abordagem do cuidar, é
apenas o início da trajetória que a enfermagem pode percorrer, no Brasil e no
mundo, para fazer a diferença no cuidado à saúde no século XXI.