Avaliação no estágio curricular de administração em enfermagem: perspectiva
dialética
INTRODUÇÃO
Ao considerarmos cenários de mudanças cada vez mais dinâmicas e complexas,
percebemos que as questões do nosso tempo são outras, os caminhos e avanços das
ciências e tecnologias também mudaram e hoje, muitas inovações fazem parte do
nosso cotidiano.
O papel da universidade, nesse contexto, é um espaço privilegiado que
possibilita a dinâmica de (des)construção e reconstrução do conhecimento. A
"universidade sempre esteve vinculada ao conhecimento, embora tenha
perdido a maior parte de suas energias criativas em equivocadamente
"transmitir" conhecimento, sem perceber, por vezes, que só
transmitimos informação"(1).
Ressaltando o contexto educacional no qual estamos imersos, percebemos que
muitas inovações fazem parte do nosso cotidiano, e mesmo vivenciando fatos que
parecem irrefutáveis, sabemos que tudo é passível de questionamentos, o que nos
remete à reflexão da ação docente.
Devemos considerar que mesmo sabendo que existem coisas e fatos irrefutáveis,
tudo é passível de questionamentos. Então, qual é a nossa tarefa como
educadores? Propor caminhos para que os modelos que não conseguem mais
compreender nosso mundo e suas múltiplas realidades sejam alterados.
Nossas ações, de maneira geral, têm sido centradas na análise dos produtos e
não dos processos, desconsiderando que a aprendizagem, por ser processual,
precisa ser acompanhada conti-nuamente (2).
Deste modo, quando analisamos a metodologia de ensino e avaliação presentes no
cotidiano universitário, percebemos estruturas educacionais muito arraigadas em
modelos tradicionais, caracterizadas pelo dogmatismo e pela postura acrítica
frente à realidade vivenciada, permitindo certa passividade do ponto de vista
pedagógico.
Para romper esse modelo, é necessário, dentre outros, que o professor considere
as diferentes interpretações dos outros atores do processo de ensino-
aprendizagem, ou seja, os estudantes(3). A finalidade é promover o estudante a
um papel ativo e responsável para seu crescimento.
Nesta direção, o projeto político pedagógico do Curso de Graduação em
Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) tem
como objetivo possibilitar a formação de enfermeiros críticos e reflexivos da
realidade onde se inserem.
Considerando a concepção de Estágio Curricular como a oportunidade de vivência
prática em contexto organizacional real, e a metodologia dialética adotada na
disciplina Estágio Curricular de Administração em Enfermagem do bacharelado
dessa Escola, podemos afirmar que essa disciplina tem proporcionado aos
estudantes, professores e preceptores, um modelo de educação mais participativo
e reflexivo, pois extrapola a orientação do fazer técnico, preocupando-se com a
crítica visando a transformação da realidade.
Vislumbrando promover uma análise dessa disciplina e contribuir com a docência
no que se refere a mostrar a aplicação prática de um modelo teórico, este
relato de experiência tem por objetivo descrever o desenvolvimento da
disciplina Estágio Curricular de Administração em Enfermagem do bacharelado
dessa Escola, tendo por base a perspectiva dialética do processo ensino-
aprendizagem.
Na Metodologia Dialética o conhecimento é construído pelo sujeito na sua
relação com os outros e com o mundo, na qual professores e alunos trabalham,
refletem e reelaboram os conteúdos, tornando a aprendizagem real e
significativa(4).
Na teoria dialética o conhecimento é construído em três grandes momentos: a
síncrese, a análise e a síntese cuja tarefa pedagógica do professor é mediar as
fases de mobilização, construção e síntese do conhecimento. Nestas etapas,
busca-se, portanto, favorecer a concepção do conhecimento por meio da
problematização, da dúvida e da crítica, propiciando o uso da criatividade na
resolução de problemas, criando situações construtivas e significativas,
desenvolvendo, assim, múltiplas competências.
Esta abordagem foi adotada no planejamento, desenvolvimento e avaliação da
disciplina, a qual é semestralmente oferecida pelo Departamento de Orientação
Profissional da EEUSP no 8º. semestre do curso, com carga horária total de 315
horas.
A disciplina tem por metas desenvolver o processo de trabalho de gerenciamento
em enfermagem no campo de prática; exercitar o papel de gerente de enfermagem
na gestão de serviços de enfermagem e desenvolver autonomia e segurança para
inserção igualitária nos diferentes grupos multiprofissionais.
A consecução destes objetivos está vinculada à mobilização das competências do
saber conhecer, saber fazer, saber ser e saber conviver, adquiridas no decorrer
da formação do curso de graduação nos diferentes níveis de atenção à saúde. De
modo gradual, o estudante experimenta situações que envolvem conhecimentos já
adquiridos, oportunizando a aplicação desses conhecimentos em situações novas
e, assim, desafiando-o a alcançar aquilo que ainda não tem domínio.
O programa da disciplina contempla duas mesas redondas com os temas:
"Entidades de classe" e "Mercado de trabalho: oportunidades e
perspectivas para os enfermeiros" antes da inserção dos estudantes em
campo de estágio.
Em seguida, os mesmos são inseridos no campo onde desenvolvem os seguintes
conteúdos: Reconhecimento da unidade campo de prática e sua inserção na
instituição e dessa no Sistema Único de Saúde; Estrutura organizacional;
Políticas, propostas e modelos assistenciais; Políticas e Gerenciamento de
recursos humanos, físicos, materiais e de custos; Planejamento; Supervisão;
Liderança e Ética no gerenciamento.
MOBILIZAÇÃO PARA O CONHECIMENTO: PLANEJA-MENTO E ESTRATÉGIAS DA DISCIPLINA
Em consonância com a metodologia dialética, a disciplina planeja e desenvolve,
no campo de prática, as condições necessárias para que o graduando integre-se à
realidade e, assim, atue como agente social de mudanças no processo de trabalho
de enfermagem.
Na fase de mobilização do conhecimento, compete ao professor despertar,
provocar e sensibilizar o estudante para o processo pessoal de aprendizagem,
tendo em vista a articulação da realidade com o objeto a ser apreendido,
considerando-se a prática social como um elemento relevante em todo o processo
(2,4). Utilizou-se um instrumento norteador para o reconhecimento da
instituição composto dos seguintes itens: caracterização da instituição e
inserção no Sistema Único de Saúde; identificação das políticas, filosofia,
missão e objetivos institucionais; administração dos recursos físicos, humanos,
materiais e financeiros.
Para complementar esse reconhecimento e favorecer a visão global e analítica da
realidade, foram realizadas visitas à serviços de apoio: farmácia, nutrição,
comissão de controle de infecção hospitalar e serviço de arquivo médico e
estatístico, discutindo-se a interface gerencial entre essas áreas e o serviço
de enfermagem.
Ainda na fase de mobilização, os sujeitos elaboram as primeiras representações
mentais do objeto a ser estudado(4). Neste sentido, é fundamental promover um
clima de acolhimento do estudante no campo a fim de favorecer sua inserção no
ambiente e integração com a equipe multiprofissional.
Para proporcionar uma vivência da realidade e interação com a equipe, a
disciplina prevê a distribuição de um estudante em cada uma das unidades no
campo de estágio.
A supervisão direta do estudante no campo de estágio fica a cargo do enfermeiro
responsável pela unidade, ao qual compete mostrar todas as ações por ele
desenvolvidas, estimulando o aluno a executar e analisar sua própria atuação.
Para acompanhamento dessas atividades acadêmicas, os departamentos da EEUSP
dispõem de enfermeiros especialistas, que colaboram com os docentes em
atividades de supervisão dos estudantes em diferentes cenários de prática,
discutindo temas concernentes ao estágio, avaliando o cronograma semanal de
atividades, a identificação do perfil da clientela da unidade e as atividades
do estudante no campo. Outro espaço de discussão contempla a participação
desses sujeitos em discussões que emergem das necessidades dos alunos em campo
de prática.
No decorrer do estágio, o discente desenvolve um estudo de caso relativo aos
aspectos assistenciais, administrativos, éticos, legais e educativos envolvidos
no processo de trabalho da unidade.
O estudante, após as orientações para a prática, é encaminhado ao campo de
estágio, onde atuará por, aproximadamente, dez semanas, com jornada de 30 horas
semanais, distribuídas das 7 às 13h, ou conforme escala estabelecida,
previamente, pelo estudante, em parceria com o enfermeiro chefe e o docente,
contemplando as necessidades da unidade e os objetivos referentes à disciplina.
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EXPERIÊNCIA NO CAMPO DE ESTÁGIO
Nessa fase, acontece a imersão do sujeito em seu objeto de estudo, a elaboração
de relações complexas e o desenvolvimento de sua práxis(2,4). Nessa perspectiva
de construção do conhecimento, adotaram-se estratégias sustentadas por alguns
pressupostos, a saber: significação visa estabelecer vínculos entre os
conteúdos com o contexto de vida do estudante, articulando-se suas necessidades
de aprendizagem com os objetivos propostos pela disciplina de Estágio
Curricular; problematização o estudante, imerso na realidade, elege uma
situação-problema que mereça ser investigada; práxis é estimulado à prática
reflexiva e ativa; criticidade percepção crítica da realidade buscando a
essência dos processos; continuidade-rupturare-elaboração do objeto por meio da
análise; historicidade destacar que a síntese de cada momento é fruto de um
processo histórico que pode ser superado por novas sínteses; totalidade
articulação do conhecimento adquirido com a realidade.
Para contemplar esses pressupostos, é imprescindível que os agentes do processo
(professor, enfermeiro e especialista) elejam estratégias que estimulem,
facilitem e permitam ao estudante a superação de uma visão inicial caótica e
superficial do objeto para uma visão mais profunda e ampliada(2).
No campo da prática, o estudante vai incorporando o processo de integração e
vivências, as relações com os membros da equipe multiprofissional, as
percepções acerca do trabalho da equipe e, dessa forma, intera-se ao novo
grupo. Nesse processo, ao apresentar sentimentos de pertença, ele reconhece,
gradativamente, o trabalho do enfermeiro na sua magnitude, desenvolvendo as
competências de trabalho nas dimensões assistencial e gerencial.
Concomitantemente, o estudante passa a realizar a Sistematização da Assistência
de Enfermagem (SAE), identificando a complexidade dos pacientes e as atividades
necessárias a serem desenvolvidas pela equipe de enfermagem.
Nesse percurso da aprendizagem, o estudante tem uma dimensão da teoria e da
práxis com suas congruências e divergências e que trazem à tona conflitos que
serão um potencial de discussão junto aos docentes e enfermeiro especialista
nos momentos de supervisão.
SÍNTESE DO CONHECIMENTO PROCESSO DE AVALIAÇÃO
Nessa fase, o estudante supera as etapas anteriores de apropriação e análise do
conhecimento e realiza a sistematização expressa acerca do objeto apreendido e
a consolidação dos conceitos, constituindo-se uma visão provisória, visto que a
construção do conhecimento é dinâmica e está em constante movimento.
A supervisão é um elemento gerencial que deverá contribuir para a construção da
síntese do conhecimento, pois consiste na apresentação sistemático-dialógica do
conteúdo, contrastando-o ao cotidiano, num "exercício didático da relação
sujeito-objeto pela ação do aluno e mediação do professor. É o momento da
efetiva construção do novo conhecimento"(5).
Nessa ótica, a supervisão do estágio, com vistas a facilitar o momento de
síntese do conhecimento, aconteceu em três encontros para articulação da teoria
e prática. Assim, partindo-se de situações vivenciadas no campo de prática,
discutem-se as dimensões ético-político e gerenciais envoltas às possíveis
causas, influências e soluções de problemas identificados. Essa estratégia cria
um estilo coletivo e colaborativo na construção do conhecimento para a formação
do estudante.
Nesses encontros, os estudantes foram estimulados a exercitar a co-
responsabilidade com o campo, sendo partícipes na organização do serviço, no
processo de trabalho, na tomada de decisão, planejamento, coordenação e
avaliação da assistência prestada em parceria com os enfermeiros e os docentes.
Este contexto de supervisão facilitou e revelou, por meio do relato dos
estudantes, os conhecimentos técnicos, o compromisso ético com o campo de
estágio as dificuldades nas relações de trabalho, a consciência social e de
cidadania. Esses conteúdos expressos podem ser objetos discursivos para a
avaliação do conhecimento adquirido.
O método de avaliação dos discentes na disciplina contempla estudo de caso,
participação em grupos para discussão do desenvolvimento das atividades
relacionadas à prática profissional, bem como escolha de uma situação-problema
e implementação de um Planejamento Estratégico Situacional (PES); durante e ao
final do estágio, realizam-se auto-avaliação e avaliação do desempenho
discente, que envolvem os próprios estudantes, os docentes e enfermeiros do
campo de estágio.
Buscando apreender do estagiário suas habilidades prévias fundamentadas
teoricamente, identifica-se aquilo que ele deseja fazer e o que ele ainda
precisa saber, ou que competências necessita desenvolver, os docentes
responsáveis pela disciplina elaboraram instrumento de avaliação, pautado nas
competências gerenciais e ético-políticas do enfermeiro(6).
Esse instrumento foi entregue ao estudante e ao enfermeiro que o acompanhou
desde o início do estágio, permitiu que ambos tivessem conhecimento das
competências a serem desenvolvidas, o que, também norteou o planejamento das
ações para consecução dos objetivos da disciplina.
Sendo assim, a avaliação, como parte integrante do processo de aprendizagem
compreensiva e significativa, possibilitou o diálogo crítico dos estudantes
sobre os problemas que encontraram ao realizarem suas tarefas.
Compreendendo a avaliação de modo processual, o enfermeiro chefe foi orientado
pelos docentes a participarem das orientações, correções e reforços na medida
em que surgiam os questionamentos e dúvidas dos estudantes. Nessa perspectiva,
o estudante deve assumir a responsabilidade de avaliar o campo e as condições
para o seu desenvolvimento, manifestando-se continuamente.
A auto-avaliação é indispensável nesse processo, pois o avaliado (estudante)
tem a oportunidade de desenvolver sua capacidade crítica e refletir acerca de
seus limites e possibilidades(6).
Avaliar a aprendizagem deve ser um ato amoroso, inclusivo, dinâmico e
construtivista, partindo do acolhimento da realidade tal como ela se apresenta.
Acolher o educando passa, então a fazer parte da conduta do avaliador que
precisa ter essa disposição de acolhimento desprovido de pré-julgamentos e
aberto a tudo que se apresenta(7).
Dessa forma, a avaliação deve ser holística e globalizadora, analisando os
fatores intervenientes no processo de ensino-aprendizagem. Deve ser
consideradas as diferentes perspectivas e interpretações dos atores envolvidos,
contribuindo para a análise da própria avaliação, a meta-avaliação, não se
limitando aos aspectos intelectuais da pessoa do estudante, mas considerando as
dimensões afetiva, social e ética(3).
Assim, é fundamental que a avaliação assuma uma vertente questionadora e
transformadora da práxis, a fim de analisar e melhorar essa mesma ação: trata-
se de um processo de reflexão-ação-reflexão(8-9).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A avaliação da aprendizagem, na perspectiva dialética, valoriza as relações
interpessoais e a participação dos sujeitos envolvidos, por meio do acolhimento
e estabelecimento de vínculos em todo o processo.
O professor detém um papel importante em todo processo dialético de ensino-
aprendizagem, que é o de coordenar, propor critérios para a consecução,
estabelecer parcerias com os estudantes, propor e, se necessário, rever prazos
e o tempo para o desenvolvimento de ações. É preciso estar aberto à diversidade
e às diferenças individuais e culturais, valores e crenças dos sujeitos
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, valorizando-se os vínculos
afetivos e as efetivas amorosidades, possibilitando, dessa forma, o diálogo
consensual e a construção do conhecimento.
Assim, ao propormos o desenvolvimento de um estágio na perspectiva da
metodologia dialética baseada na idéia de que o conhecimento é construído pelo
sujeito nas suas relações com os outros e com o mundo, favorecemos a concepção
do conhecimento por meio da problematização da práxis, propiciando o uso da
criatividade na busca de soluções, criando situações construtivas e
significativas, desenvolvendo múltiplas competências e diminuindo a dicotomia
teoria e prática.