Praticando o silêncio: intervenção educativa para a redução do ruído em Unidade
de Terapia Intensiva
INTRODUÇÃO
O ambiente da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) tem características
potencialmente danosas tanto aos pacientes e familiares quanto à equipe. Este
ambiente hostil pode gerar consequências a curto e longo prazo, como estresse,
delirium, burnout e síndrome de estresse pós-traumático(1). Entre os principais
componentes ambientais, o ruído é um dos mais marcantes(2). Têm-se detectado
níveis altos de ruído em diversos ambientes hospitalares, como Pronto-Socorro,
Centro Cirúrgico e Enfermarias(3), porém as UTIs fornecem um ambiente único
para que o excesso e permanência de ruído possam ser prejudiciais(4).
O ruído é caracterizado por diferentes sons com diferentes frequências, que
causam efeitos inesperados às pessoas expostas a ele, prejudicando sua saúde
(5). Ou seja, é um som indesejável, desagradável e potencialmente perigoso à
saúde(2).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que o ruído pode causar danos à
saúde das pessoas expostas a ele, como: perturbar o trabalho, o descanso, o
sono, a comunicação dos seres humanos, prejudicar a audição e causar reações
psicológicas, fisiológicas e patológicas nos indivíduos expostos(6). Entre
vários danos fisiológicos, o ruído pode provocar distúrbios cardiovasculares,
redução da saturação arterial de oxigênio, perda auditiva, aumento de secreção
gástrica, estimulação da hipófise e adrenal, alteração do sono fisiológico,
imunossupressão e redução da cicatrização(7).
Vários estudos têm demonstrado a frequência e importância do ruído no ambiente
da UTI(8), embora a maioria dos estudos seja em UTIs neonatais ou pediátricas
(1). Por outro lado, menos tem sido estudado sobre o impacto de intervenções
educativas sobre o nível de ruído neste ambiente(9-10).
OBJETIVO
O objetivo deste estudo foi verificar o nível de pressão sonora dentro de uma
Unidade de Terapia Intensiva geral, em diferentes horários, e avaliar o impacto
de uma intervenção educativa junto à equipe, na redução destes níveis sonoros.
Esta intervenção tinha como foco o ruído, visando a uma mudança de
comportamento dos profissionais, favorecendo a qualidade de vida da equipe
multiprofissional, assim como os pacientes internados.
MATERIAIS E MÉTODOS
Tratou-se de um estudo de intervenção, não randomizado, não cego, controlado (o
próprio grupo serviu como controle), com avaliação antes e depois da
intervenção.
O estudo foi realizado em uma UTI Geral (clínica, cirúrgica, cardiológica e
trauma) que atende pacientes adultos e pediátricos (acima de 30 dias de vida)
de um hospital privado universitário de 150 leitos na Cidade de Cascavel
(estado do Paraná). Essa UTI tem capacidade para 20 leitos, tendo cerca de
1000m2 de área. Tem no seu quadro de trabalho médicos, enfermeiros, técnicos de
enfermagem, fisioterapeutas, secretária, escriturária, psicóloga, assistente de
farmácia e equipe de limpeza. Conta ainda com vários profissionais que
transitam nesse setor, como outros médicos assistentes, profissionais de
radiologia e laboratório, equipe de nutrição, equipe de controle de infecção
hospitalar, de fonoaudiologia, de manutenção, além de estudantes de várias
áreas da saúde. O turno de trabalho é dividido em manhã, tarde e noite. A
relação profissional de enfermagem / paciente é de 1:2, sendo que há duas
enfermeiras supervisoras por turno. Em cada turno há dois médicos, duas
enfermeiras, cinco a sete técnicos de enfermagem e uma fisioterapeuta de
plantão, totalizando de dez a doze profissionais fixos na UTI em cada turno. A
passagem de plantão entre os profissionais costuma ser à beira do leito. As
rotinas de visitas de familiares na UTI são de 3 a 5 visitas por dia (cerca de
15 minutos cada); além disso, os pacientes conscientes, ou em desmame de VM,
têm acompanhantes por cerca de 12 horas por dia.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade Assis
Gurgacz, 089/2010 (Ata 007/10), tendo sido dispensado Termo de Consentimento
aos participantes.
Para a realização da pesquisa, foi utilizado um decibelímetro (aparelho que
mede o nível de pressão sonora em decibéis níveis de audição [dB(A)] da marca
Impac® modelo IP-410 (São Paulo, Brasil). Sua classe de precisão é de ± 3,5 dB
(A). A escala que foi utilizada para a medição do nível de pressão sonora na
UTI foi de 30 a 100 dB(A). O estudo foi realizado em três etapas.
Primeira etapa
Foram coletados os níveis de ruído dentro da UTI com o aparelho decibelímetro,
posicionado a cerca de um metro de distância da cabeça dos pacientes. Foram
estipulados três intervalos de tempo para a quantificação dos níveis de ruído:
das 11h às 11h29, das 12h45 às 13h14 e das 23h às 23h29. Estes três horários
foram escolhidos por representar momentos distintos da rotina da UTI: o
primeiro (11h às 11h29) corresponde à visita de familiares; o segundo (12h45 às
13h14) corresponde a troca de plantão da equipe; e o terceiro (23h às 23h29)
tenta representar um momento mais calmo. Os dados foram coletados de minuto a
minuto, totalizando 30 dados diferentes por cada intervalo. Esse procedimento
foi realizado diariamente, em um período de sete dias.
A coleta do nível de pressão sonora foi realizada por uma acadêmica de
Fonoaudiologia (PG), previamente treinada. Ela se posicionava em pé, ao lado do
leito (no interior do box), a cerca de um metro da cabeça do paciente, portando
o decibelímetro. O equipamento apresentava o valor em um display, medindo de
maneira contínua, mas sem registrá-lo. Durante cada minuto era anotado pelo
pesquisador o valor mais alto neste período, bem como quaisquer eventos ou
acontecimentos que pudessem ser relevantes (como, por exemplo, procedimentos no
paciente, alarmes, intercorrências clínicas, admissão, telefone tocando, etc).
Era feito um rodízio aleatório entre os leitos, sendo um leito (box) a cada
dia, embora o leito pudesse ser repetido.
Essa primeira etapa aconteceu em caráter confidencial a fim de se preservar a
rotina dos profissionais e não haver interferência nos resultados de coleta.
Assim, apenas a chefia médica e de enfermagem da UTI tinham conhecimento do
procedimento. Os outros profissionais foram informados que se tratava de
procedimento de coleta de dados clínicos, de maneira inespecífica.
Segunda etapa
A segunda etapa foi iniciada uma semana após a coleta inicial. Foi realizada
uma intervenção educacional com os profissionais por meio de aulas expositivas
e distribuição de material educativo. Nestas aulas foram abordados assuntos
como: o que é ruído, qual a intensidade de ruído recomendada para hospitais,
possíveis alterações que o ruído pode causar ao paciente e na equipe e quais as
maneiras que esse ruído pode ser minimizado. Também foram feitas nessas
apresentações simulações do ambiente estressor e ruidoso da UTI, em que os
próprios alunos simulavam ser pacientes enquanto escutavam ruídos
característicos de uma UTI. As aulas foram ministradas em conjunto pelos
acadêmicos, pela professora e por médico assistente da UTI.
Nessa etapa foi também feita divulgação por meio de cartazes nos ambientes da
UTI sobre a importância do ruído e suas consequências, bem como estratégias
sobre sua redução. O tempo total dessa segunda etapa foi de duas semanas.
Terceira etapa
A terceira etapa foi iniciada uma semana após o término da segunda etapa;
portanto, cerca de um mês após a primeira etapa (pré-intervenção). Foi
realizada a mensuração dos níveis de pressão sonora novamente, dentro da UTI,
da mesma forma como foram coletados na primeira etapa, sendo realizada pelo
mesmo pesquisador e com o mesmo rodízio entre os leitos. Também a coleta foi
realizada durante sete dias. Nessa fase também foi tentada a realização do
sigilo, porém devido à mobilização gerada pela intervenção da segunda fase
(educativa), a presença do pesquisador foi identificada pela própria equipe
como sendo de coleta de dados relacionados a ruído.
Todos os dados foram tabulados em banco de dados específico, utilizando-se
planilha em Excel® 2007. Foi realizada análise estatística com análise de
pareamento de dados (Wilcoxon signed rank test) dos dados horários da coleta, e
análise de variância para as médias, utilizando-se como significante p< 0,05.
RESULTADOS
O estudo (incluindo coleta de dados e intervenção educativa) foi realizado nos
meses de setembro e outubro/2010. Durante o período de estudo foram coletados
dados de pressão sonora 90 vezes em cada dia, totalizando 630 medidas em cada
período (primeira e terceira fase).
As médias das medidas nos três horários (11h às 11h29, 12h45 às 13h14 e das 23h
às 23h29) são indicadas na Tabela_1. Em ambos os momentos da coleta (pré e pós
intervenção) os valores mais baixos se concentraram no horário noturno.
Quando se comparam as medianas dos dados da primeira com a última coleta, em 57
dos 90 horários houve redução com diferença estatisticamente significante
(gráfico_1). A redução foi mais importante no horário de 11h às 11h29 (15,0%) e
menor no período noturno (11,7%).
A intervenção educativa (segunda etapa da pesquisa) foi realizada por meio de
palestra e distribuição de material educativo. No total participaram da
intervenção educativa 35 profissionais, sendo médicos, enfermeiros, técnicos de
enfermagem, zeladoras, secretárias e nutricionista que trabalham dentro da UTI
do hospital. A adesão às aulas foi de cerca de 30,5 % da equipe de enfermagem e
38,9% dos médicos atuantes na UTI. No entanto, a totalidade dos profissionais
da equipe foi abordada através de pequenas reuniões e distribuição de folders.
Em relação à origem dos ruídos encontrados, foi observado que os maiores níveis
de pressão sonora foram gerados pela equipe que atua na UTI e não pelos
equipamentos de monitoramento, como podemos observar na Tabela_2.
![](/img/revistas/reben/v65n2/a13tab02.jpg)
DISCUSSÃO
A busca por um ambiente menos estressante para a equipe e os pacientes e
familiares é uma das prioridades na terapia intensiva atual(11). Embora haja
dados conflitantes em relação aos familiares(12), tanto pacientes quanto a
equipe claramente são influenciados negativamente pelo ruído ambiental e suas
consequências(13).
A UTI apresenta vários elementos que contribuem para altos índices de ruído
ambiental: os equipamentos de terapêutica e monitorização, particularmente os
alarmes e alertas sonoros; computadores, impressoras, aparelho de fax e
telefones, movimentação de móveis, carrinho de banho, o diálogo dos
profissionais entre si e com os pacientes, etc. Além disso, o tipo de ambiente
em si (fechado e com paredes que refletem o som) pode aumentar o nível e
consequências do ruído(14). No entanto, o principal responsável pelo ruído na
UTI pode ser a própria equipe(15).
A Associação Brasileira de Normas Técnicas(16) recomenda que, em áreas
hospitalares, o máximo de intensidade sonora seja de 35 a 45 dB(A). Para a OMS,
os níveis de som dentro da UTI não devem ser maiores que 35 db(A)(17). Neste
estudo, à semelhança de anteriores(7,13), os valores mensurados excederam, em
todos os horários, estes limites máximos, mesmo no período noturno.
Mudanças estruturais, como alterações ergonômicas, revestimento acústico do
ambiente, e mesmo uso de protetores auditivos, mostraram reduzir o nível de
ruído ambiental ou sua percepção pelos pacientes(10). Contudo, o fator humano
pode ser importante na gênese e manutenção do ambiente estressante na UTI,
particularmente em relação ao ruído(2). Mais importante, tem-se demonstrado que
frequentemente a equipe não tem conhecimento da importância do ruído no
ambiente, bem como ignora seus mecanismos de etiopatogenia(18). Assim, a
educação continuada pode ter um importante papel na redução do ruído na UTI
(10), como o atual estudo mostra.
A intervenção educativa junto à equipe tem sido demonstrado ser eficiente na
melhora da eficiência em distintas situações como diagnóstico e manejo da
sepse, prevenção de pneumonia e prevenção de úlceras de pressão, entre outros
(19).
Estratégias que envolvam a participação dos membros da equipe, como
dramatizações, são mais eficientes em aumentar a aderências a estratégias e
bundles(20). Portanto, esta metodologia utilizada neste estudo pode ter
contribuído para os bons resultados de redução do ruído encontrados. Monsen
& Edel-Gustafsson(9) mostraram melhora do padrão do sono em pacientes de
UTI neurológica após um programa de modificação comportamental com a equipe,
com duração de duas semanas.
Os valores de pressão sonora encontrados neste estudo foram particularmente
altos, principalmente no período pré-intervenção. Mesmo após a intervenção
educativa, a maioria das mensurações ultrapassou 40dB.
Sabe-se que os níveis de ruído entre 55dB a 65dB podem produzir excitações
nervosas e estresse, tornando os pacientes mais sensíveis à dor, fazendo com
que a quantidade de remédios seja aumentada ou seu uso prolongado. Níveis de
ruído acima de 65dB podem levar as pessoas ao infarto, arteriosclerose,
infecção e osteoporose. Acima de 85dB, por tempo prolongado, pode causar
alterações fisiológicas, como a perda auditiva pela degeneração celular da
cóclea, distúrbios neuropsíquico, risco de hipertensão arterial, diminuição da
resistência física e da concentração mental(6). Isto é particularmente
importante neste estudo, já que a mensuração foi feita à cabeceira do leito do
paciente, ou seja, simulando o que cada paciente sente. Por outro lado, o
impacto nos profissionais de saúde pode ter sido mesmo subestimado, já que
alguns ruídos freqüentes (como tampas batendo, telefone tocando e conversas
altas) são em geral mais longe dos pacientes.
Durante a realização desta pesquisa foi observado que o ruído presente na UTI
tem sua origem diversificada, vindo de equipamentos e seus respectivos alarmes,
de causas operacionais, como abrir lixeiro, empurrar carrinho de metal ou de
banho, abrir e fechar gavetas, portas e cortinas, telefones, fax, computadores,
impressoras, celulares, entres outros e causas comunicativas, como conversas
entre funcionários e pacientes. A maior fonte de pressão sonora foi causada por
fatores operacionais e comunicativos.
Os horários de maior intensidade de ruído foram relacionados à visita familiar
e passagem de plantão; por outro lado, o horário noturno apresentou menor nível
de ruído do que as medidas diurnas. Estes achados são similares a encontrados
na literatura(7,13).
Não foi possível verificar, comparando-se os períodos pré e pós-intervenção
educativa, quais fatores foram mais reduzidos e contribuíram para um menor
ruído. Contudo, o fato de a redução ter sido mais intensa nos horários de maior
movimento de pessoas (durante o dia) sugere que a aderência da equipe deve ter
tido um papel preponderante nesta redução do nível de ruído ambiental.
Este estudo tem várias limitações, algumas das quais já expressas acima. A
coleta de pressão sonora foi feita apenas em momentos específicos, o que
poderia ter subestimado o ruído no ambiente. No entanto, como já referido, os
horários escolhidos procuraram refletir os momentos mais significativos: visita
de familiares, troca de plantão (que notoriamente são os horários de maior
nível de ruído) e horário noturno (que corresponde ao momento de menor agitação
dentro da unidade)(7-8).
O tempo decorrido entre a intervenção educativa e a segunda medida foi curto
(cerca de duas semanas). Além disso, o período de intervenção em si foi curto.
Portanto, uma intervenção mais prolongada ou contínua poderia ter efeitos mais
duradouros. Também, não foi avaliado se esta redução do ruído foi persistente
após uma única intervenção educativa.
Um outra abordagem poderia ser da mensuração das consequências do ruído
ambiental nos pacientes e/ou equipe, p.ex. incidência de delirium, burnout ou
PTSD, e o impacto de intervenções educativas. Porém, o desenho deste estudo
dirigiu-se à medida do ruído em si, e não a consequências psicológicas.
CONCLUSÃO
Os níveis de pressão sonora encontrados na presente pesquisa estão acima do
recomendado pelas normas técnicas da ABNT e pela OMS. As principais fontes
sonoras de ruídos foram os fatores operacionais e comunicativos como diálogo
entre profissionais e passagem de plantão, sendo, portanto, passíveis de
redução, mesmo sem mudanças drásticas de engenharia.
A intervenção educativa junto à equipe multiprofissional, através de
conscientização sobre a importância e causas geradoras de ruído, mostrou ser um
importante instrumento para redução do nível de pressão sonora. Estudos
avaliando a eficiência de intervenções mais duradouras poderiam mostrar o
impacto em mantermos um ambiente mais saudável no manejo do paciente
criticamente enfermo.