Estratégias pedagógicas para o desenvolvimento da competência ético-política na
formação inicial em Enfermagem
INTRODUÇÃO
A formação inicial em Enfermagem vem sendo instada a responder ao desafio de
formar profissionais competentes para o trabalho em saúde. A Resolução do
Conselho Nacional de Educação (CNE) / Câmara de Educação Superior (CES) nº 03,
de 07 de novembro de 2001, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais
do Curso de Graduação de Enfermagem, definiu o perfil profissional a ser
formado: enfermeiros generalistas, humanistas, críticos e reflexivos, o que
leva a questionar quais os significados atribuídos à crítica e à reflexão, para
além do senso comum(1).
Para o desenvolvimento do perfil profissional almejado, é preciso aprofundar as
questões referentes ao processo ensino e aprendizagem. Se há necessidade de
formar enfermeiros competentes nas dimensões técnica, científica, ética e
política, sujeitos sociais com capacidade de atuar em contextos de incertezas e
complexidade, pergunta-se: que estratégias pedagógicas podem ser utilizadas
para esse fim?
Esta reflexão teórica objetiva evidenciar estratégias pedagógicas para o
desenvolvimento da dimensão ético-política da competência profissional. Para
discutir essas estratégias será abordada a competência profissional, em
especial sua dimensão ética e política, e será destacada a teoria da reflexão
crítica na ação e sobre a ação, proposta pelo educador urbano norte-americano
Donald Schön.
Sua importância reside em problematizar a dimensão ética e política da
competência profissional e propor caminhos pedagógicos para favorecer seu
desenvolvimento na formação inicial em Enfermagem, a fim de romper um círculo
vicioso de justificativas para a ausência de postura crítica e reflexiva por
parte dos profissionais.
A NOÇÃO DE COMPETÊNCIA PROFISSIONAL
Competência é um vocábulo de origem latina, que tem dois sentidos: pode ser
compreendida como a faculdade atribuída a alguém para apreciar e julgar um
pedido ou questão como, por exemplo, "o juiz é competente para julgar esta
causa", ou ainda como "conhecimento, capacidade ou habilidade da pessoa em
resolver problemas, realizar uma atividade"(2).
Competência é sinônimo de "saber fazer bem feito" e possui dupla dimensão:
técnica e política. A primeira refere-se ao domínio de conteúdos, técnicas e
estratégias. A segunda diz respeito ao aspecto valorativo da atuação, o
posicionamento profissional. E a mediação entre essas duas dimensões é
realizada pela ética(3).
Além de conhecimentos teóricos e práticos, o exercício profissional requer
qualidades, capacidades, habilidades e atitudes relacionadas a esses
conhecimentos, que conformam a competência(2).
O relatório da Conferência Internacional sobre Educação para o século XXI,
coordenado por Jacques Delors, menciona que o que torna um profissional
competente é articulação dos quatro pilares da educação: saber-conhecer, saber-
fazer, saber-ser e saber-conviver(4).
A formação baseada na competência compreende a articulação desses pilares:
aprender a conhecer e aprender a fazer, para poder agir sobre o contexto em que
se vive; aprender a viver em coletividade, a fim de participar da vida em
sociedade e colaborar com todos os seres humanos, e aprender a ser, que engloba
os três saberes anteriores(4). As dimensões ética e política da competência
profissional integram elementos do aprender a ser e a conviver, expressos nas
atitudes e valores, no modo de lidar e resolver as diversas situações complexas
encontradas no mundo do trabalho.
Na formação em Enfermagem, o aprender a fazer é bastante destacado. Contudo,
para ser competente, não basta ao profissional ter conhecimentos e habilidades
para fazer seu ofício. É preciso saber fazê-lo bem, o que implica querer fazer
e poder fazê-lo, em face de limites e possibilidades do contexto em que realiza
a ação profissional(3).
A intencionalidade é um componente essencial na ação ético-política. Para que
uma ação seja qualificada como competente é de suma importância a decisão do
que fazer com o saber, para que o saber e o saber-fazer não tenham sentidos
isolados. A intencionalidade presente no saber-fazer distancia a educação de
uma suposta neutralidade(3). O posicionamento ético-político do profissional,
aliado ao comprometimento social, é uma atitude fundamental para o
desenvolvimento da competência profissional nos diferentes contextos do
trabalho em saúde.
A AÇÃO EDUCATIVA NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA
COMPETÊNCIA PROFISSIONAL
Para favorecer o desenvolvimento da dimensão ético-política da competência
profissional, com a finalidade de intervenção na realidade social, a educação
precisa ser propulsora do desenvolvimento humano, constituída por um processo
contínuo, amplo e profundo de preparação dos indivíduos ao longo da vida.
No processo de ensino e aprendizagem, a comunicação precisa ser considerada em
seu sentido verdadeiro para sustentar e desenvolver a relação entre estudantes
e docentes, implicando, por parte do professor, atitudes em que a sensibilidade
e a emoção são instrumentos para ampliar as formas de pensar, investigar e
cuidar, estimulando o potencial criativo dos educandos e sua auto-
governabilidade, a manifestação de suas opiniões, fortalecendo o
desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e do respeito mútuo(5).
No processo de desenvolvimento da dimensão ético-política da competência
profissional, educador e educando ocupam papel importante no cenário da
instituição de ensino. O professor é um co-gestor do processo de ensino e
aprendizagem dos estudantes e atua como mediador entre o conhecimento
disponível e as exigências da prática profissional, além de ser uma referência
ética e política para os estudantes. Estes, por sua vez, são protagonistas do
seu processo de formação e observam os exemplos dos profissionais que atuam nas
instituições de ensino e nos campos de estágios.
Toda prática educativa requer a existência de sujeitos que, ensinando, aprendem
e que, aprendendo, ensinam. Disso decorre o cunho gnosiológico da educação, uma
vez que a finalidade última dos processos educativos é o conhecimento, no
sentido formativo e informativo. Nossas concepções estão estreitamente ligadas
à Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia (do grego gnôsis, conhecimento) e fazem
parte do que anteriormente se denominava Filosofia da Ciência e, mais
contemporaneamente, de uma área multidisciplinar chamada Epistemologia (do
grego epistéme, ciência)(6).
A prática educativa também é diretiva e política, dado que a atividade do
professor não é neutra e tampouco circunscrita à transmissão dos conteúdos. Os
educadores apresentam uma autonomia relativa na interação entre escola e
sociedade(6). Essa relação propõe uma unidade dialética, um ensino em que o
papel de condutor do professor e a atividade do estudante acontecem em uma via
de mão dupla(7).
A prática docente crítica envolve um movimento dinâmico e dialético entre o
fazer e o pensar sobre o fazer. Uma prática docente baseada em um saber
espontâneo resulta em saber empírico, fruto da experiência, mas sem
rigorosidade metodológica(7). A consciência da dimensão ética e política da
ação docente na prática educativa pode auxiliar no processo de ensino e
aprendizagem.
É necessário possibilitar que a curiosidade ingênua do estudante transforme-se
em crítica, em curiosidade epistemológica(8), por meio da reflexão sobre a
prática, pois é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que é
possível aperfeiçoá-la para o futuro.
O processo de ensinar para a mudança envolve esforços e atitudes tanto dos
educadores quanto dos educandos. É um processo que depende do professor
sustentar seus conteúdos com elementos históricos, nexos internos, pesquisas
científicas e relacioná-los com os contextos onde tais conteúdos apresentam-se.
E depende da atitude ativa do estudante atribuir sentido e significado ao que
aprende a fazer, interrogando-se continuamente sobre o porquê de determinada
ação.
O processo de ensinar e aprender restrito ao universo técnico não é suficiente
para superar, no sentido dialético do termo, os padrões estabelecidos e as
formas consagradas de pensar e fazer. Somente a reflexão crítica, aliada ao
compromisso genuíno com a sociedade, pode ser agente de mudanças
socioculturais. "Transformar a experiência educativa em puro treinamento
técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício
educativo: o seu caráter formador"(8).
A NOÇÃO DE REFLEXÃO CRÍTICA
Na ação profissional, como no aprendizado, a experiência geralmente é
visualizada, compreendida e descrita em termos basicamente cognitivos. Isto
ocorre especialmente no contexto do aprendizado, em que a ação segue modelos
técnico-racionais de entendimento. No aprendizado reflexivo, as respostas
cognitivas são importantes, porém os pensamentos e os sentimentos também devem
ser considerados, pois estão interconectados às ações, por meio de caminhos
altamente complexos(9).
A reflexão crítica envolve a exploração dos sentimentos, que constituem uma
parte importante das experiências vividas e, assim como os pensamentos e as
ações, auxiliam formar a experiência particular. Os sentimentos influenciam a
motivação para agir e, consequentemente, o processo cognitivo(9).
A reflexão sobre os pensamentos e as experiências oferece a oportunidade de
mudar o que pensamos e fazemos. Situações passadas podem ajudar a solucionar
desafios futuros. Para isso, é preciso passar pela experiência, registrá-la e
retornar a ela, de modo a compreender mais profundamente os eventos ocorridos e
ser capaz de utilizar entendimentos anteriores para maneiras novas e mais
efetivas de agir para o futuro(9). Para que o processo reflexivo sobre a ação
ocorra, é necessário reconhecer crenças, atitudes e valores e conectá-los à
experiência. Para isso, é preciso considerar os espaços mental, emocional e
físico no qual a complexidade de pensamentos, sentimentos e ações adquire
sentido.
O processo da aprendizagem reflexiva é denominado por Schön de "reflexão na
ação". Segundo Schön, professor norte-americano de estudos urbanos e educação,
há um conhecimento tácito nas ações que é demonstrado espontaneamente, como,
por exemplo, ao andar de bicicleta. Ao descrever o conhecimento tácito que é
subjacente à ação, ocorre um processo de reflexão(10).
A reflexão na ação é significativa para o evento porque ocorre no momento em
que o indivíduo está realizando a ação e ainda há a oportunidade de fazer a
diferença no local e no momento, pois ocorre ao mesmo tempo em que a ação está
em execução, sem interrompê-la, porém com breves instantes de distanciamento
(10).
Difere da reflexão sobre a ação, que ocorre após a ação ter ocorrido e permite
mudar apenas as ações futuras. A distância do evento passado permite examiná-lo
como um observador da própria experiência, o que favorece a construção da
competência, particularmente a dimensão ético-política Em situações não
familiares ou incertas, a reflexão na e sobre a ação é importante para fazer
alterações e mudanças nas ações presentes e futuras(10).
ESTRATÉGIAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA REFLEXÃO CRÍTICA NA FORMAÇÃO INICIAL EM
ENFERMAGEM
Na saúde, o desenvolvimento do processo de análise e reflexão deveria permitir
aumentar o entendimento sobre relatos empíricos e teóricos complexos, de modo a
responder aos problemas de saúde não somente em termos técnicos, mas também em
termos de crenças e valores próprios do campo profissional(9).
Para o engajamento na reflexão, dois requisitos cruciais são identificados:
primeiro, é necessário um relato claro e objetivo da experiência que está em
reflexão e, segundo, é preciso atribuir sentido e significado ao que foi
realizado. A escrita reflexiva faz uso destes tipos de questões para estimular
pensamentos e reações.
Durante a formação, os estudantes podem produzir relatos por escrito das
experiências vividas, compondo um diário de campo ou um portfólio reflexivo. Um
diário escrito envolve elementos de reflexão e registra as experiências
significativas tão logo quanto possível. Também pode ser útil incluir, além da
descrição da ação, questões como: como você se sentiu com a experiência? Foi
boa ou ruim? O que você aprendeu com ela? Você poderia ter feito de outra
maneira?(9)
A distinção entre o diário de campo e o portfólio reflexivo é que este último é
uma atividade realizada com menos imediatismo, que propicia ao estudante a
oportunidade para construir uma resposta à experiência e analisá-la, além de
dar a estudantes e professores a oportunidade de realizar uma avaliação mais
sistemática, envolvendo a integração entre teoria e literatura para o
entendimento do quê e por quê aconteceu(9).
A narrativa escrita é uma alternativa utilizada para promover a reflexão e o
aumento da autoconsciência. Uma pesquisa qualitativa envolvendo trinta e dois
estagiários de nove programas de residência médica, acompanhados ao longo de um
ano, foi realizada para determinar o impacto da narrativa escrita sobre a
reflexão. A cada oito semanas, os estagiários registraram por escrito suas
experiências. A narrativa revelou-se estratégia útil, que pode ser incorporada
pelos educadores na residência, uma vez que permite a reflexão. Nesse estudo em
particular, em que estagiários foram incentivados a repensar seus valores
essenciais e prioridades, alguns demonstraram que o exercício de escrever sobre
experiências difíceis promove maior autoconsciência e induz à reflexão(11).
Em um levantamento bibliográfico realizado na Biblioteca Virtual em Saúde
(BIREME) usando os descritores portfólio reflexivo (PR) foram identificados
doze artigos (um em duplicidade), dentre o período de 2008 a 2012, sendo que
cinco estudos que tiveram como participantes estudantes de Enfermagem apontaram
o PR como um instrumento de autorreflexão da aprendizagem(12-16).
Em um estudo brasileiro realizado sobre o uso do portfólio reflexivo na ótica
de docentes de Medicina e Enfermagem de uma instituição de ensino superior que
utiliza metodologias ativas de aprendizagem, este foi visto como um instrumento
inovador, que requer dedicação dos docentes, estimula a reflexão dos estudantes
e permite seu acompanhamento pessoal e profissional(14).
Dois estudos sobre a percepção do uso do portfólio reflexivo por estudantes de
medicina revelaram que, embora seja um instrumento de aprendizagem ativa, os
estudantes têm dificuldades para identificar sua contribuição para o
desenvolvimento da capacidade reflexiva(17-18).
Outra investigação realizada com graduandos de Enfermagem considerou o
portfolio um instrumento de reflexão que exige tempo e habilidades de escrita
(16). Sua utilização por estudantes não habituados pode causar impactos
negativos inicialmente(14). Daí a necessidade da mediação realizada pelo
docente no intuito de fornecer feedbacks, enriquecer a narrativa com novas
perspectivas, salientar lacunas, apresentar alternativas. Somente nessa
condição o portfólio tem finalidade de reflexão ou de avaliação formativa.
Se bem utilizado, o portfólio é uma estratégia relevante para a formação
reflexiva, possibilitando ao estudante conhecer seu processo de aprendizagem e
praticar a reflexão-ação-reflexão. É um valioso instrumento de mão dupla porque
permite ao docente verificar o desenvolvimento do estudante em todos os
aspectos da competência profissional - técnica, ética e política, e possibilita
ao estudante um processo de progressão, construção e reconstrução das várias
dimensões de sua competência profissional.
O importante é que os estudantes lidem com suas experiências formativas de
forma ampla e profunda, tendo a oportunidade de discutir com seus professores e
também com os profissionais dos serviços de saúde as diferentes formas de
encaminhamento de um problema ou questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo reflexivo é cada vez mais valorizado na prática educativa. Sua
finalidade é formar profissionais criativos, curiosos epistemologicamente e
capazes de transformar a realidade. Entretanto, poucos são os textos que fazem
referência a como favorecer o desenvolvimento da dimensão ético-política da
competência na formação em saúde.
A articulação do referencial teórico de competência que se desenvolve na ação
com a vertente teórica da reflexão na ação e sobre ação permite aproximações
para a construção de posturas e atitudes comprometidas socialmente.
Partindo das noções de competência e sua dimensão ético-política, a presente
reflexão teórica destacou estratégias pedagógicas como possibilidades para o
desenvolvimento da competência ético-política na formação inicial em
Enfermagem. Fundamentadas na teoria da reflexão na e sobre a ação, estratégias
tais como o portfólio, o diário de campo e as narrativas escritas permitem
produzir um relato claro e objetivo da experiência e atribuir-lhe sentido e
significado.
Para desenvolver atitudes ético-políticas, o registro por escrito de
experiências vivenciadas pelos estudantes no ensino prático em campo e o
acompanhamento desses registros por parte dos professores podem se revelar um
círculo virtuoso entre o pensamento crítico e reflexivo e ação ético-política
de futuros profissionais de saúde.
Muitas vezes, o ensino prático em campo é visto como mera aplicação de um saber
disciplinar. Contudo, a prática em saúde é sempre interdisciplinar, o que lhe
confere uma característica integradora de conhecimentos e habilidades de
distintas áreas disciplinares, aliada a atitudes ético-políticas tão
necessárias à competência profissional em Enfermagem.