O Suicídio: reavaliando um clássico da literatura sociológica do século XIX
"Eu interrompi minhas conferências para devotar-me completamente ao livro
que estou preparando sobre O Suicídio. Eu espero que quando ele apareça as
pessoas terão uma melhor compreensão da realidade do fenômeno social sobre o
qual elas não concordam comigo, porque o que aí eu estudo é a disposição social
para o suicídio(le courant social au suicide), a tendência dos grupos sociais
para o suicídio, isolada de suas manifestações individuais (por abstração
certamente, porque a ciência não isola seu objeto de nenhuma outra
maneira)."Durkheim em carta para Bouglé, datada de 16 de maio de 1896
(Lukes, 1977:193).
O suicídio como tema de estudo
"Era 3a feira, 6 de julho (1886), cerca de 8 horas da manhã, ele estava
aprontando-se para sair para o liceu. Ele estava ... saindo quando, rapidamente
mudando de idéia, ele disse: 'Eu devo pronunciar uma palestra, porém não estou
suficientemente preparado. Eu devo subir outra vez e olhar novamente minhas
anotações'. Ele entrou em sua sala, no segundo andar, tomou seu livro de
anotações e sentou-se na beirada de uma janela muito baixa sem parapeito, que
facilmente induzia à vertigem. Ele fez um rápido e imprudente movimento,
característico dele, e perdeu o equilíbrio. Poucos minutos depois ele estava
caído no pátio interno, seu livro de notas ao seu lado." (Durkheim, 1887,
apud Lukes, 1977:51).
Foi dessa forma que Émile Durkheim registrou a morte de um de seus mais íntimos
e queridos amigos Victor Hommay no necrológio que a ele dedicou, publicado
noL'annuaire de l'association des anciens élèves de l'École Supérieure, em
1887. Ao relatá-la, Durkheim (1887, apud Lukes, 1977:51) descreve-
a como"um miserável e trágico acidente", mas, como é visto por muitos
estudiosos, entre eles Lukes (1977), a morte de Hommay não foi um acidente;
ele, em verdade, cometeu suicídio.
Não se trata aqui de detalhar a personalidade triste e solitária e as
dificuldades de Hommay, que poderiam ter potencializado o seu desejo de morrer,
e sim de lembrar que Durkheim ficou profundamente abalado pela morte trágica de
seu amigo. Lukes (1977:191), ao reconstituir os motivos que teriam levado
Durkheim a se dedicar ao tema do suicídio, salientou que essa morte "com
certeza afetou-o profundamente e pode muito bem ter influenciado não somente
seu interesse pelo assunto, mas também a sua explicação, pelo menos em sua
forma 'egoística'". Há, como salienta este analista da obra do sociólogo
francês, outros motivos menos pessoais. Em realidade, quando Durkheim (1982)
publica, em 1897, O Suicídio: Estudo Sociológico, ele já havia dedicado ao tema
um artigo, datado de 1888, sobre as relações entre suicídio e natalidade, e o
terceiro curso de sociologia por ele ministrado, em 1889-1890, teve o suicídio
como tema central.
Acompanhando os pontos básicos levantados por Lukes (1977), referentes aos
motivos que podem explicar esse interesse pelo suicídio, além de inscrever-se
em suas idéias sobre as funções morais da família, verifica-se que muitos deles
são inerentes a uma preocupação mais geral sobre o tema, assim como refletem
uma preocupação que foi específica do projeto sociológico que Durkheim
perseguia.
1) Desde o século XVIII o suicídio vinha sendo estudado como um problema moral,
para, no século XIX, ser visto como um"crescente problema social a exigir
explicação", nas palavras de Lukes (1977), que retoma as análises feitas
por Douglas (1970). Segundo este autor, o estudo estatístico do suicídio foi
entendido pelos pesquisadores e teóricos como um estudo da moralidade,
incluindo-o na categoria geral das estatísticas morais, junto com outros
eventos como assassinato e outros crimes. "Assumia-se", segundo
Douglas (1970:8), "que o suicídio era um problema moral e implicitamente
que qualquer teoria sobre o suicídio deveria incluir os aspectos morais do
suicídio como um dos fatores básicos". O acúmulo de informações
estatísticas proporcionou, de outro lado, que se estabelecessem inúmeras
correlações, juntamente com o levantamento de hipóteses. Estas irão relacionar
taxas diferenciais de suicídio a fatores sociais, tais como: ocupação,
urbanização, religião, mudança social, como também a fatores não sociais:
hereditariedade, raça, clima e a questão não resolvida se o suicídio era ou
não relacionado à desordem mental. No mais, nas palavras de Lukes (1977:192):
"Havia também uma concordância geral que aceitava que a escalada das taxas
globais de suicídios eram devidas à passagem da ordem tradicional a uma nova
ordem e ao crescimento do industrialismo".
2) O suicídio parecia aos investigadores um objeto concreto e específico,
"particularmente adequado", como escreve Durkheim (1970:37). Além
disso, estava associado diretamente não somente a várias instituições, como a
família, mas à sociedade como um todo.
3) Para Durkheim, o tema propiciava a possibilidade ímpar de poder demonstrar
os princípios por ele estabelecidos em seu tratado metodológico, escrito em
1895, As Regras do Método Sociológico.
4) O tema oferecia a Durkheim a possibilidade de ilustrar uma das formas pelas
quais se manifestava a malaise geral que afetava a Europa, sugerindo,
inclusive, os remédios para vencê-la.
5) Para o sociólogo francês, constituía um exemplo suficientemente significante
para estabelecer a compreensão científica da sociologia como uma disciplina
independente. Explicar sociologicamente um evento individual que parecia
depender quase exclusivamente de fatores pessoais, psicológicos, mas que
expressava uma forma de dissolução dos laços que unem os homens, possibilitava
entender quais os laços que os levam a se associarem.
Como tão bem sintetiza Douglas (1970), foi com base em uma longa tradição do
pensamento europeu sobre o suicídio que Durkheim desenvolveu o seu trabalho: a
ênfase sobre o caráter imoral do suicídio, a utilização das fontes estatísticas
como um instrumento básico, a importância dos fatores extra-individuais na
regularidade das taxas de suicídio. De outro lado, não pode ser minimizado o
esforço desenvolvido por Durkheim a fim de elaborar um modelo que integrasse a
teoria e os dados, não somente sistematizando algumas das preocupações
anteriores, mas colocando o objeto de estudo numa perspectiva que ressaltasse a
sua maneira de interpretar a sociedade dentro de um referencial que tinha a
dissolução social como questão básica.
A obra
O Suicídio foi publicado pela primeira vez em 1897, quando Durkheim tinha 39
anos de idade e já havia escrito dois trabalhos fundamentais em sua carreira de
pesquisador: as duas teses de doutorado, que datam de 1893 De la Division du
Travail Social: Étude sur l'Organisation des Sociétés Supérieures eLa
Contribution de Montesquieu a la Constitution de la Science Sociale, esta
última escrita em latim , e aindaLes Règles de la Méthode Sociologique, de
1895, conjunto de uma série de artigos aparecidos no ano anterior e que saiu
como livro com ligeiras modificações e prefácio. Como escreve Mitchel (1973),
De la Division du Travail Socialé um título desorientador, porque, embora trate
da divisão do trabalho e tente dar uma explicação sobre o tema, o que
fundamentalmente interessa ao autor é encontrar uma explicação para a
solidariedade social na sociedade moderna. Procura caracterizar os dois tipos
ideais de solidariedade: a mecânica, encontrada nas sociedades menos
desenvolvidas, e a orgânica, típica das sociedades industriais, onde predomina
a divisão de trabalho. Como Durkheim irá assinalar no prefácio da segunda
edição deste livro, de 1902, o principal motivo que este trabalho levanta é
aquele das relações entre a personalidade individual e a solidariedade social.
Pergunta o sociólogo: "O que explica o fato que, na medida em que se torna
mais autônomo, o indivíduo torna-se mais intimamente dependente da sociedade?
Como pode ele ser pessoalmente mais desenvolvido e ao mesmo tempo mais
socialmente dependente?" (Durkheim, 1902, apud Lukes, 1977:139). Esta era
uma pergunta que Durkheim já havia formulado em seu primeiro curso, ministrado
em 1887-1888, intitulado Solidariedade Social, no qual questionava a natureza
da própria solidariedade social ao perguntar "quais são as fronteiras que
unem os homens uns aos outros?". Lukes (1977:139) lembra que este problema
permaneceu central na obra de Durkheim durante toda a sua vida, citando,
inclusive, que em carta que escreveu a Bouglé, o sociólogo afirmava: o
"objeto da sociologia como um todo é determinar as condições para a
conservação das sociedades". Não constitui objeto deste trabalho avançar
na análise da questão da solidariedade social, mas situá-la como fundamental no
pensamento de Durkheim presente em seu estudo sobre o suicídio. De outro lado,
cumpre assinalar que o período que antecede a investigação sobre o suicídio foi
extremamente original do ponto de vista metodológico. Assim, além dos trabalhos
citados anteriormente, Durkheim escreve, em 1896, um artigo sobre a proibição
do incesto e suas origens, aplicando à sociologia o método de análise de dados
etnográficos, lançando no estudo sobre o suicídio a aplicação do método
estatístico. É claro que a importância deste trabalho, considerado "uma
monografia exemplar" (Rodrigues, 1978:24), "um dos melhores exemplos
da 'teoria de médio alcance' " (Merton, 1968:63), "um modelo de
pesquisa social" (Selvin, 1958, apud Rodrigues, 1978:24), não se limita à
aplicação do método estatístico. Por outro lado, é preciso saber no que a
teoria sobre o suicídio é incompleta, pois, no dizer de Lukes (1977), esta é a
mais fundamental e frutífera crítica ao trabalho de Durkheim.
A obra é constituída das seguintes partes: introdução, onde se situa a
necessidade de constituir o objeto de estudo, definindo objetivamente o que é
suicídio, a fim de pesquisar apenas as condições que virão constituir o fato
determinado que o autor chama de "taxa social dos suicídios" e não
todas as condições que possam ser contadas na gênese dos suicídios
particulares; primeira parte os fatores extra-sociais; segunda parte causas
sociais e tipos sociais; terceira parte o suicídio como fenômeno social em
geral.
Durkheim inicia o seu extenso trabalho pela discussão e delimitação do conceito
de suicídio: "Chama-se suicídio todo o caso de morte que resulte direta ou
indiretamente de um ato positivo ou negativo, praticado pela própria vítima,
sabedora de que devia produzir esse resultado" (Durkheim, 1982:16). Não se
confunde com a tentativa, que seria "o ato assim definido, mas
interrompido antes de resultar em morte" (Durkheim, 1982:16). Somente é
possível quando se tem uma representação antecipada da morte, excluindo,
portanto, nesse trabalho, tudo que diz respeito ao suicídio entre animais. Logo
em seguida, passa a considerar por que o suicídio torna-se objeto de interesse
para o sociólogo, perguntando: "Considerando que o suicídio é um ato da
pessoa e que só a ela atinge, tudo indica que deva depender exclusivamente de
fatores individuais e que sua explicação, por conseguinte, caiba tão somente à
psicologia". Continua: "De fato, não é pelo temperamento do suicida,
por seu caráter, por seus antecedentes, pelos fatos de sua história privada que
em geral se explica a sua decisão?" (Durkheim, 1982:17-18). Não sendo este
o enfoque a ser dado ao estudo, explica que "se em lugar de vermos no
suicídio apenas eventos particulares, isolados uns dos outros e que exijam,
cada um deles, exame em separado, considerarmos o conjunto dos suicídios
cometidos em dada sociedade durante um dado espaço de tempo, iremos verificar
que o total assim obtido não é a simples soma de unidades independentes, um
todo de coleção, mas que constitui por si mesmo um fato que é novo esui
generis, com unidade e individualidade, e pois com sua natureza própria, e que,
além disso, essa natureza é eminentemente social" (Durkheim, 1982:18). Ao
levantar dados sobre a França, Prússia, Inglaterra, Saxônia, Baviera,
Dinamarca, de 1841 a 1872, o autor afirma que "para uma mesma sociedade,
desde que a observação se restrinja a um período não muito extenso, essa cifra
é quase invariável" (Durkheim, 1982:18). Às variações, Durkheim associa
alguma crise que atinge passageiramente o estado social, como, por exemplo, o
que se deu no ano de 1848. Nesta data ocorre uma brusca diminuição em todos os
estados europeus. Em intervalos mais longos de tempo, verifica-se que ocorrem
mudanças mais graves, que são bruscas e paulatinas, no sentido de que as taxas
elevam-se, afirmam-se, acentuam-se e por fim estabilizam-se. Neste primeiro
momento do seu trabalho, Durkheim afirma: "Cada sociedade tem, portanto,
em cada momento de sua história, uma predisposição definida para o suicídio.
Mede-se a intensidade relativa dessa tendência tomando-se a relação entre o
número global por mortes voluntárias e a população de todas as idades e de
ambos os sexos. Designaremos esse dado numérico por taxa de mortalidade-
suicídio peculiar à sociedade considerada. É calculada, em geral,
proporcionalmente a um milhão ou a cem mil habitantes" (Durkheim, 1982:
19).
Para o autor, a taxa de suicídios constitui "uma ordem de fatos una e
determinada; é o que sua permanência e variabilidade, simultaneamente,
demonstram". Por intermédio dessa taxa expressa-se uma tendência e, seja
qual for o juízo sobre o assunto, o fato é que "cada sociedade está
predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias".
De forma clara, expõe o objetivo do trabalho: "Nosso intuito não é, pois,
o de fazer o rol mais completo possível de todas as condições que possam contar
na gênese dos suicídios particulares, mas pesquisar apenas aquelas que virão a
constituir o fato determinado que chamamos de taxa social de suicídios".
Fixa, então, como irá encarar o assunto: "O fenômeno por explicar só pode
ser atribuído a causas extra-sociais de grande generalidade ou a causas
propriamente sociais" (Durkheim, 1982:23).
Toda a primeira parte do estudo é dedicada aos fatores extra-sociais, dentre os
quais inclui loucura, raça, hereditariedade, clima, temperatura, sazonalidade e
a imitação. Em vista de muitas afirmações vigentes em sua época sobre a relação
loucura-suicídio, Durkheim desmonta esta relação, mas, antes, desenvolve uma
classificação de suicídios cometidos por loucos, ou seja, "para saber se o
suicídio é um ato próprio dos psicopatas, impõem-se determinar as formas que
ele assume na alienação mental e ver depois se os psicopatas são os únicos a
quem ele afeta" (Durkheim, 1982:30). Durkheim irá se referir aos tipos de
suicídio maníaco, melancólico, obsessivo, impulsivo e automático e a sua
conclusão é que não existe nenhum estado psicopático que mantenha com o
suicídio uma relação regular e incontestável. Da mesma forma, não encontra
relação com os estados psicológicos normais, raça e hereditariedade, nem com
fatores cósmicos e imitação.
No Livro II, Durkheim irá tratar das causas sociais e tipos sociais, dividindo
o tema nas seguintes partes: método para determinar as causas e os tipos
sociais; os diversos tipos de suicídio: egoísta, altruísta e anômico;
conclusão, com uma classificação morfológica sobre as formas individuais dos
diferentes tipos de suicídio.
Em realidade, esta parte do estudo de Durkheim constitui o cerne da sua
proposta, que fica claramente definida quando afirma, tendo por base a análise
até então empreendida, que: "Concluímos, de fato, que existe, para cada
grupo social, uma tendência específica ao suicídio que nem a constituição
orgânico-psíquica dos indivíduos nem a natureza do ambiente natural explicam.
Resulta disso, por eliminação, que essa tendência deve depender de causas
sociais e constituir por si mesma um fenômeno coletivo; inclusive, certos fatos
que examinamos, sobretudo as variações geográficas e periódicas do suicídio,
nos levaram expressamente a essa conclusão" (Durkheim, 1982:106). Ao optar
por uma classificação etiológica do suicídio, o autor diz ser impossível uma
classificação segundo as suas formas ou características morfológicas, pois
haveria necessidade de um grande número de casos particulares.
Assim, parte para uma construção metodológica na qual "podemos constituir
os tipos sociais do suicídio, não ao classificá-los diretamente segundo as suas
características de antemão descritas, mas classificando as causas que os
produzem" (Durkheim, 1982:107). Buscam-se as condições sociais de que
dependem, que são depois grupadas, conforme as semelhanças e diferenças. Dessa
forma, o fenômeno será conhecido através de suas causas e não apenas de suas
características, ou seja, como diz Durkheim, em uma construção de caráter
etiológico. De outro lado, é importante destacar que, para Durkheim (1982:108-
109), se quisermos entender o suicídio como fenômeno coletivo, "teremos de
encará-lo desde o início sob a forma coletiva, isto é, através de dados
estatísticos. A taxa social é o que temos de tomar diretamente por objeto de
análise; é preciso ir do todo às partes". Sua recomendação, ao final desta
colocação metodológica, é a seguinte: "Para isso, deixando de lado, por
assim dizer, o indivíduo enquanto indivíduo, seus motivos e suas idéias,
indagaremos imediatamente quais são os estados dos diferentes meios sociais
(credos religiosos, família, sociedade política, grupos profissionais etc.), em
função dos quais o suicídio varia. Só depois, voltando aos indivíduos,
estudaremos de que modo essas causas gerais se individualizam para produzir os
efeitos homicidas por elas implicados" (Durkheim, 1982:112).
Volta-se, então, o autor, para analisar os três tipos de suicídio que
constituem o ponto central de sua pesquisa.
Na primeira parte, analisa o que denomina de suicídio egoísta, estabelecendo
três pressupostos: O suicídio varia na razão inversa do grau de integração da
sociedade religiosa. O suicídio varia na razão inversa do grau de integração da
sociedade doméstica. O suicídio varia na razão inversa do grau de integração da
sociedade política. Para tal, estuda as informações referentes ao número de
suicídios entre os estados protestantes, mistos (católicos e protestantes),
católicos, católicos gregos, concluindo que "em toda parte, sem exceção,
há muito mais suicídios entre os protestantes do que entre os adeptos dos
demais credos" (Durkheim, 1982:115). Acrescenta que não adianta invocar a
excepcionalidade da Noruega e Suécia, que apresentam um número moderado de
suicídios. Explica que há diferenças entre as populações da península
escandinava e a Europa Central e que as taxas de suicídio são baixas nesses
países. No caso dos judeus, a taxa é menor do que a dos protestantes, mas ainda
é inferior à dos católicos. Para Durkheim, o fato de serem populações mais
intelectualizadas e viverem nas cidades seria a razão de terem maior inclinação
ao suicídio do que os participantes de outras religiões e, assim, ficarem
alheios à religião que praticam. Porém, conservam, em vista de todas as outras
religiões, as mais baixas taxas. Lembra o autor que tanto o catolicismo, quanto
o judaísmo são extremamente severos em relação ao suicídio, e que a única
diferença essencial entre catolicismo e protestantismo é que este admite o
livre exame das escrituras em grau muito maior. Escreve: "... o
protestantismo participa mais na elaboração da sua crença (...). Chegamos pois
a um primeiro resultado: a propensão do protestantismo pelo suicídio deve estar
em relação com o espírito de livre exame que anima esta religião"
(Durkheim, 1982:119). Este livre exame é efeito de outra causa: o abalo das
crenças tradicionais, que tem como conseqüência a possibilidade de se
multiplicarem as cisões. Desta forma, conclui-se que o maior número de
suicídios no protestantismo decorre do fato de que esta é uma religião menos
fortemente integrada do que a católica.
É interessante a associação feita por Durkheim (1982:122) entre o livre exame e
o gosto pela cultura. "A ciência, de fato, é o único meio de que dispõe a
livre reflexão para atingir seus fins. Quando crenças ou práticas irracionais
perdem a sua autoridade, para encontrar outras impõe-se apelar para a
consciência esclarecida cuja forma superior é a ciência." Pelas suas
informações, os protestantes são mais instruídos e se suicidam mais e restaria
responder a questão: "Será certo que a necessidade de instrução, na medida
em que corresponde a um enfraquecimento da fé comum, aumenta como o
suicídio?" (Durkheim, 1982:124). Junta a esta questão uma análise das
profissões liberais onde se nutre o gosto pela ciência e a vida intelectual é
mais intensa. Constata que maior grau de instrução e maior número de suicídios
mantêm relação, como, também, ocorre em maior número entre homens do que entre
mulheres: "Ora", como escreve Durkheim (1982:126), "ela é também
muito menos instruída".Sua conclusão é de que o suicídio aumenta com o
progresso da ciência, mas "não é a ciência que determina este aumento. Ela
é inocente e nada seria mais injusto que acusá-la; o caso dos judeus é
demonstrativo disso". Neste caso "o homem procura instruir-se e se
mata porque a sociedade religiosa de que é membro perdeu coesão; mas não se
mata porque é instruído" (Durkheim, 1982:128).
Uma outra conclusão desta parte é sobre a função profilática da religião sobre
o suicídio. Neste aspecto, sintetiza a questão da seguinte maneira: "A
influência benfazeja da religião não se deve, pois, à natureza específica das
concepções religiosas. Se ela protege o homem contra o desejo de se destruir,
não é porque lhe pregue, com argumentos peculiares, o respeito por sua pessoa,
mas porque é uma sociedade". Explica, também, que "o que constitui
essa sociedade é a existência de certo número de crenças e de práticas comuns a
todos os fiéis, crenças que são tradicionais e, por conseguinte,
obrigatórias" (Durkheim, 1982:129).
Na parte seguinte, Durkheim trata de outros dois aspectos relacionados ao
suicídio: a vida da família e a sociedade política.
Constata que os celibatários se matam menos que os casados e procura confrontar
esta observação de que o casamento e a vida familiar aumentam a probabilidade
de suicídio. Correlaciona as taxas para cada idade, comparando, por exemplo, os
celibatários, os casados e os viúvos de 25 a trinta anos de idade, somente
quando possível obterem-se tais informações, pois, de um modo geral, as
publicações oficiais não fornecem esses dados. Nesse momento, Durkheim criou o
que denominou coeficiente de preservação número que indica quantas vezes
menos as pessoas se suicidam num grupo em comparação com outro considerado na
mesma faixa etária. Foi baseado nessas constatações que desenvolveu quatro
leis: 1) Os casamentos muito precoces têm uma influência agravante sobre os
suicídios, sobretudo no que se refere aos homens. 2) A partir dos vinte anos,
os cônjuges dos dois sexos se beneficiam de um coeficiente de preservação em
relação aos celibatários. 3) O coeficiente de preservação dos casados em
relação aos celibatários varia com os sexos. 4) A viuvez diminui o coeficiente
dos cônjuges dos dois sexos, porém, o mais das vezes, não o suprime
completamente.
Para explicar essas leis, Durkheim (1982: 143) lança mão do seguinte argumento:
a imunidade ao suicídio que as pessoas casadas desfrutam deve-se ou à
influência do meio doméstico, ou ao que se pode chamar seleção matrimonial. A
sua conclusão é que "a imunidade dos casados em geral se deve à influência
da sociedade familiar, mas não à da sociedade conjugal, que beneficia
inteiramente os homens, e só em parte as mulheres".
O terceiro aspecto analisado por Durkheim nesta parte de seu estudo é referente
à relação entre suicídio e sociedade. Revendo casos históricos, observa que o
suicídio surge quando a velha organização da comunidade é abalada, por exemplo,
Grécia e Roma, e mesmo na França, nas vésperas da Revolução. Ao citar uma
investigação de Morseli sobre o fato de que no momento das grandes comoções
políticas não ocorre aumento de suicídios, Durkheim mostra, mediante dados, que
na França, em vários momentos, e mesmo em outros países da Europa,
especialmente em 1848-1849, quando a crise é geral, em toda a parte diminuem os
suicídios. Para Durkheim (1982:161), nem todas as crises políticas ou sociais
influem sobre as taxas de suicídio, mas "só influem as que excitam as
paixões". No final, explica: "Não é à crise que se deve a salutar
influência (...), mas às lutas causadas pela crise. Forçando os homens a se
unirem para enfrentar o perigo comum, o indivíduo pensa menos em si mesmo e
muito mais na coisa comum. Compreende-se, de resto, que essa integração possa
não ser meramente momentânea, mas sobreviva às vezes às causas que a suscitaram
imediatamente, sobretudo, quando é intensa".Ao retomar os três aspectos
tratados, o autor chega à conclusão geral de que "o suicídio varia na
razão inversa do grau de integração dos grupos sociais a que pertence o
indivíduo". Irá também caracterizar o papel do egoísmo como origem do
suicídio. Declara: "Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele
(indivíduo) pertence, menos ele dependerá deles, e cada vez mais, por
conseguinte, dependerá apenas de si mesmo para reconhecer como regras de
conduta tão-somente as que se calquem nos seus interesses particulares. Se,
pois, concordarmos em chamar de egoísmo essa situação em que o eu individual se
afirma com excesso diante do eu social e em detrimento deste último, podemos
designar de egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma
individuação descomedida" (Durkheim, 1982:162). Ao enfatizar a força do
individualismo, não apenas por favorecer a atuação de causas suicidógenas, mas
por ser por si mesmo uma causa desse gênero, Durkheim (1982:167) apresenta dois
pontos finais quanto ao suicídio egoísta. O primeiro é que às sociedades
"inferiores" (sic) este tipo de suicídio é mais ou menos totalmente
estranho, e o segundo é que causa um impacto menor sobre a mulher, no caso a
solteirona ou viúva, que por terem uma "sensibilidade antes rudimentar do
que muito desenvolvida" e por viverem "mais que o homem fora da vida
comunal, esta vida exerce menor influência sobre ela: a sociedade lhe é menos
necessária porque ela é menos impregnada de sociabilidade".
No capítulo que trata do suicídio altruísta, Durkheim (1982:168) afirma
inicialmente: "Se, como acabamos de ver, uma individuação excessiva leva
ao suicídio, a individuação insuficiente produz os mesmos efeitos. Quando
desligado da sociedade, o homem se mata facilmente, e se mata também quando
está por demais integrado nela". Para o autor, este tipo de suicídio é
endêmico em sociedades inferiores, e depois de exemplificar com casos
históricos, classifica-os em três categorias: 1) suicídios de pessoas que
chegaram ao limiar da velhice ou adoeceram; 2) suicídios de mulheres por
ocasião da morte do marido; 3) suicídios de clientes ou servidores ao ensejo da
morte dos seus chefes. Esclarece que há o suicídio altruísta obrigatório, como
há o facultativo, e, ainda, o suicídio altruísta agudo, do qual o suicídio
místico é o melhor exemplo. Se estes casos caracterizam as sociedades
primitivas, no dizer de Durkheim, eles aparecem nas estatísticas utilizadas
quando o autor verifica o aumento dos suicídios no exército: os militares se
suicidam um pouco mais do que os civis da mesma idade e de iguais condições. A
hipótese é que muitas causas levariam a crer que a vida militar deveria
preservar do suicídio são pessoas selecionadas rigorosamente do ponto de
vista da saúde e pertencem a um grupo com alto esprit de corps. Portanto, não
podem ser explicados como pertencentes ao tipo egoísta, e sim do tipo
caracterizado por"uma fraca individuação ou do que designamos por
altruísmo" (Durkheim, 1982:183). O terceiro tipo de suicídio estudado por
Durkheim é o anômico. Como em toda a sua pesquisa, o autor inicia apresentando
uma série de dados. Os primeiros dizem respeito às relações crise ou
crescimento econômico e propensão ao suicídio.
Conclui o autor que tanto as crises industriais ou financeiras, como as de
prosperidade, têm o mesmo resultado: aumentam os suicídios, e explica dizendo
que esta relação se dá porque são crises, isto é, "perturbações da ordem
coletiva" (Durkheim, 1982:193). Na argumentação de Durkheim, quando das
crises econômicas ocorre como um déclassement, e os indivíduos atingidos passam
para uma situação inferior à até então ocupada, impondo-lhes uma série de
restrições e "todos os frutos da ação social ficam perdidos no que se
refere a eles: têm de refazer a sua educação moral" (Durkheim, 1982:199).
Sendo este um processo não imediato, leva os indivíduos a não se ajustarem às
novas condições. O mesmo se aplica se a crise é motivada por um brusco aumento
de poder e riqueza, despertando todo tipo de cobiça, no "exato momento em
que as normas tradicionais perderam a sua autoridade. O estado de desregramento
ou de anomia é pois reforçado pelo fato de que as paixões estão menos
disciplinadas no preciso momento em que teriam necessidade de uma disciplina
mais rígida" (Durkheim, 1982:200). Para Durkheim, as atividades
industriais e comerciais são as que registram mais suicídios, estando quase no
mesmo nível que as carreiras liberais, ao passo que as taxas são mais baixas na
agricultura. Comparando patrões e empregados, afirma serem os primeiros mais
atingidos que estes últimos. Após estes exemplos, situa a anomia como sendo um
fator regular e específico de suicídios nas sociedades modernas, sendo
diferente dos outros tipos, pois "depende não do modo como os indivíduos
estão presos à sociedade, mas da maneira como esta os rege". O suicídio
anômico "decorre de que as atividades dos homens estão desregradas e que
isto os faz sofrerem" (Durkheim, 1982:204).
Volta-se, então, para analisar os suicídios que ocorrem quando da viuvez, tema
já tratado anteriormente. Neste ponto explica que a causa deve-se à anomia
doméstica. Estuda também o suicídio entre divorciados, que se matam entre três
a quatro vezes mais que os casados e nitidamente mais que os viúvos. Para
Durkheim, é o estado de anomia conjugal, produzido pela instituição do
divórcio, que explica o desenvolvimento paralelo dos divórcios e dos suicídios.
Como diz, não pretende afirmar que o afrouxamento das relações conjugais seja
exclusivamente devido ao estabelecimento legal do divórcio, pois a anomia
matrimonial pode existir na opinião pública sem estar ainda consignada na lei.
No capítulo seguinte, analisa as"Formas individuais dos diferentes tipos
de suicídios" (Durkheim, 1982:222-236). Coloca em evidência que os tipos
sociais que propõe correspondem aproximadamente a tipos psicológicos. Assim, ao
suicídio egoísta corresponde apatia e secundariamente melancolia; ao altruísta,
energia passional ou voluntária e sentimento do dever; ao anômico, corresponde
irritação, desgosto e como variedade secundária, queixas contra a vida etc. Há,
ainda, a possibilidade de tipos mistos combinando os três tipos elementares.
No capítulo em que estuda "O elemento social do suicídio", Durkheim
(1982:237-259) tece considerações para reforçar a sua posição de que "de
todos os fatos por nós estudados resulta que a taxa social dos suicídios só se
explica sociologicamente". Ao prosseguir nesta afirmação, diz:"É a
constituição moral da sociedade que determina a cada instante o contingente das
mortes voluntárias. Existe, pois, para cada povo, uma força coletiva, de
determinada energia, que impele os homens a se matarem". Reafirma também,
em relação às condições individuais, que:"Os movimentos que o paciente
realiza, e que, à primeira vista, parecem só exprimir o seu temperamento
pessoal, são, em realidade, a conseqüência e o prolongamento de um estado
social que manifestam exteriormente". A constância da taxa social seria
suficiente para demonstrar a exatidão da afirmação e mais uma vez volta a
afirmar que"a causa geradora do fenômeno escapa forçosamente a quem só
observa casos isolados, pois é exterior aos indivíduos. Para descobri-la é
preciso colocar-se acima dos suicídios isolados e enxergar o que lhes dá
unidade".
Dois outros aspectos são discutidos por Durkheim quando estabelece as relações
do suicídio com outros fenômenos sociais: se deve ser classificado entre os
atos permitidos pela moral e suas relações com os crimes e outras contravenções
penais. Segundo o autor, o suicídio é classificado entre os atos imorais e deve
ser reprovado. Entre os diversos pontos apresentados por Durkheim na relação
suicídios e homicídios, destaca que, embora sob alguns pontos estes dois
fenômenos estejam em concordância, há claros contrastes entre eles. Enquanto na
França, Prússia e Itália aumentam os suicídios, diminuem os homicídios, e a
intensidade máxima dos dois eventos não ocorre no mesmo ponto do tempo; o
suicídio é muito mais urbano que rural, ao passo que o contrário se dá com o
homicídio; são os homicídios muito mais freqüentes nos países católicos que nos
protestantes. Para Durkheim, as contradições encontradas entre os dois eventos
deve-se a existirem diferentes tipos de suicídio, dos quais alguns mantêm certo
parentesco com o homicídio e outros, não.
Durkheim (1982:289-314) finaliza o seu livro com um capítulo intitulado
"Conseqüências práticas". Para ele, o suicídio havia se transformado
em "um fenômeno patológico que se torna cada vez mais ameaçador".
Pergunta, então, como afastá-lo. Mediante penas cominatórias? Certamente que
não, pois"não será graças a dispositivos legais que se há de despertar a
nossa sensibilidade moral". Pergunta, também, sobre o papel da educação,
como meio de assegurar o fortalecimento da moral e, conseqüentemente, conter o
fenômeno, ou, como queriam alguns, desenvolvendo convicções. Para ele, isto
levaria a atribuir à educação um poder que ela não possui. Também não se
poderia buscar na sociedade política e mesmo na sociedade religiosa a função de
"lembrar permanentemente ao homem esse salutar sentimento de
solidariedade", através do qual a vida readquiriria sentido e lhe daria
maior proteção. Pergunta, ainda, se a profilaxia contra o suicídio não poderia
se dar pela família. Responde: "Mas seria ilusão acreditar que bastará
diminuir o número de celibatários para conter o avanço do suicídio". Para
Durkheim, "além da sociedade confessional, familiar, política, uma outra
há de que até agora não tratamos: trata-se daquela constituída pela associação
de todos os trabalhadores da mesma categoria, todos os cooperadores da mesma
função, o grupo profissional ou a corporação". Além de ver a atividade
profissional como o núcleo fundamental é permanente, existe em todos os
lugares e exerce sua força pela maior parte da existência , de onde podem
emanar os novos valores, e a cooperação como necessária à crescente divisão do
trabalho, Durkheim acredita que a restruturação dos grupamentos locais e a
"descentralização profissional", que multiplicaria os centros de vida
comum, sem romper a unidade nacional, poderiam deter o avanço do suicídio
contemporâneo, do mal-estar de que padece a própria sociedade.
Comentários
Tendo rejeitado os argumentos extra-sociais que teriam alguma influência sobre
o suicídio, as disposições orgânico-psíquicas, internas aos indivíduos, tanto
normais, como anormais, as características do ambiente físico, e o processo de
imitação, Durkheim, por meio da combinação da prova estatística e argumento
dialético, vai procurar comprovar as suas hipóteses. Lukes (1977:205) assinala
que a explicação de Durkheim foi "realmente uma tentativa de responder a
questão: que relações explicativas existem entre as formas de vida social e os
atos individuais de abandoná-la?". No comentário deste autor, embora a
tentativa não tenha sido coroada de completo êxito, a teoria de Durkheim tem
tido uma imensa influência no que se refere à teoria sociológica específica
sobre o suicídio. Ao citar Giddens (1981), cujas críticas ao trabalho de
Durkheim, na década de 60, são bastante contundentes, lembra que pouco se
avançou na teoria sobre o suicídio após O Suicídio, mesmo porque as explicações
dadas, posteriormente, são formuladas de maneira menos precisa, não oferecendo
maior contribuição à sua teoria.
Voltando ao texto de Giddens (1981), vejamos quais os pontos críticos
considerados por esse autor. Em primeiro lugar, avalia que a análise de
Durkheim não demonstra que os fatos não sociais não influem sobre as taxas de
suicídio, ou que, agindo de forma combinada, não possam vir a ter influência
sobre o suicídio; a única constatação é a de que esses fenômenos não sociais
não explicam as diferenças nas referidas taxas. Outro ponto é a demasiada
confiança de Durkheim nas estatísticas oficiais, como medida exata da
distribuição do suicídio. Para Giddens, mesmo as diferenças encontradas entre
diferentes regiões de um único país podem resultar das divergências na
avaliação da prova do suicídio. O autor vai buscar nos argumentos apresentados
por Douglas (1970) a validação das suas críticas, quando afirma: "Uma taxa
de suicídio é mais que um índice de incidência de atos de autodestruição. É um
fato social em si mesmo; conseqüência de um conjunto complexo de eventos que
envolvem numerosos atores sociais: parentes, amigos, médicos, polícia,
magistrados, encarregados de investigar casos de morte suspeita, etc."
(Giddens, 1981:87). Cita, ainda, o fato de Durkheim não ter se preocupado em
estudar as tentativas de suicídio, que, para Giddens, são fundamentais para
compreender os atos suicidas consumados.
Do ponto de vista da construção teórica, os autores apontam que, em essência,
Durkheim estava interessado em especificar teoricamente três tipos de causa
social egoísmo, altruísmo e anomia , cada tipo representando um conjunto de
fatores associados, relacionando-os com altas ou ascendentes taxas de suicídio
(Lukes, 1977). O esquema teórico de referência da qual deriva esta tipologia
relacionava-se à concepção durkheimiana de moralidade e solidariedade social. É
de fundamental importância, como foi visto na síntese do seu trabalho, que para
ele o suicídio era a antítese da solidariedade. Esclareça-se, também, que os
tipos de suicídios foram usados pelo autor para distinguir distintas correntes
suicidógenas. No comentário de Aron (1982), estas correntes que atravessam a
sociedade, originando-se não no indivíduo, mas na coletividade, são a causa
real e determinante do suicídio. Prossegue Aron (1982:315), retomando uma idéia
central do trabalho de Durkheim: "As causas reais dos suicídios são, em
suma, forças sociais que variam de sociedade para sociedade, de grupo para
grupo e de religião para religião. Emanam do grupo e não dos indivíduos
isoladamente".
Dentre os estudos críticos, deve-se citar o de Ritzer & Bell (1981), que
submetem a obra de Durkheim a uma interrogação: seria ela o exemplo de um
paradigma sociológico integrado? A resposta é que, embora tenha tratado
praticamente de todos os níveis da realidade social, mesmo considerando alguns
de maneira muito fraca, o problema básico do ponto de vista de um paradigma
integrado é a irregularidade. Acrescentam a essa crítica o seguinte: "Uma
outra fraqueza é a falta de uma dialética; ou um modelo de sistema; há grande
interesse no impacto das macroestruturas sobre os fenômenos de nível micro, mas
os efeitos realimentadores são largamente ignorados" (Ritzer & Bell,
1981:989).
Um outro comentário que se torna necessário é o referente à distribuição dos
suicídios. Segundo os dados da pesquisa de Durkheim, para a França, Prússia,
Inglaterra, Saxônia, Baviera e Dinamarca, as taxas médias de suicídios por cem
mil habitantes eram as seguintes: de 1841 a 1846 8,5; de 1849 a 1855 10,1 e
de 1856 a 1860 11,2. Isto não somente demonstra uma taxa constante durante
longos lapsos de tempo, como também permite verificar que se apresentava com
menor variabilidade do que outros fenômenos demográficos, por exemplo a
mortalidade geral. Durkheim constatou que no decurso de três períodos: 1866-
1870, 1871-1875 e 1874-1878, não só ocorreu o aumento do suicídio em todos os
países, como também conservaram os seus coeficientes de aceleração. Para a
França, as taxas nesses períodos foram as seguintes: 13,5; 15,0 e 16,0 por cem
mil habitantes. Atualizando os dados, para a França, a cada cem mil habitantes,
entre 1950-1976, a taxa foi de 15 e, em 1993, 21, conforme Philippe (1993).
Segundo dados recentes da World Health Organization(WHO, 1994), em 1993, a taxa
média anual mundial de suicídios era de oito por cem mil habitantes, porém a
sua distribuição entre os países era bastante variável: Hungria: 38,6; Sri
Lanka: 35,8; Finlândia: 29,8; Suíça: 22,7, que apresentam as taxas mais
elevadas, e países como o Brasil, com cerca de quatro suicídios por cem mil
habitantes. Voltando aos dados referentes à França, verifica-se que a
mortalidade por suicídios não somente cresceu, como modificou a sua
distribuição, no que se refere às categorias sócio-profissionais. Tanto os
dados levantados por Durkheim, como por Halbawachs, mostram que, na segunda
metade do século XIX, as taxas eram maiores para as carreiras liberais.
Durkheim (1982) encontra na França, de 1878-1887, a cifra de trezentos
suicídios por milhão de pessoas de cada profissão; Halbawachs (1930), para o
período de 1861-1865, entre os liberais e os que vivem de renda, encontra o
valor de 389. Este autor cita que, entre as profissões agrícolas, o número era
de 131 e, entre as industriais e comerciais, 196. Todd (1981:55), ao retomar as
estatísticas dos suicídios profissionais, afirma que: "No curso do século
que precede a guerra de 1914-1918 não é a miséria material que provoca o
desespero absoluto. Não se pode explicar simplesmente o crescimento geral da
freqüência do suicídio pelos padrões da vida econômica". Como este autor
irá analisar, na segunda metade do século XX ocorre profunda modificação, o
coeficiente de mortalidade por suicídio, por cem mil homens de 45 a 54 anos, de
1966-1971, era de 18,7 para os pertencentes aos quadros superiores e
profissionais liberais; 49,3 para os operários especializados; para os
agricultores proprietários, 72,2; para os trabalhadores manuais, 93,7; para os
assalariados agrícolas, 98,1. Corroborando esta situação, Philippe (1993:10),
do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale, dizia que o
suicídio é atualmente "um mal mais freqüente nos meios rurais e populares
que entre os privilegiados. De fato, observa-se que o risco de suicídio mantém-
se paralelo ao das mortes em geral: um operário vive menos que um membro de
outras profissões".
Há cem anos, Durkheim escreveu um trabalho que, no dizer de Aron (1982:308)
"tem o rigor de uma dissertação acadêmica. Começa por definir o fenômeno;
continua com uma refutação das interpretações anteriores; estabelece uma
tipologia; e, com base nessa tipologia, desenvolve uma teoria geral do fenômeno
considerado". Nesse sentido, é exemplar. Não precisamos citar as suas
Regras do Método Sociológico (Durkheim, 1960), pois elas são evidentes neste
trabalho. Tanto assim, que é em outro trabalho de sua autoria La Contribution
de Montesquieu à la Constitution de la Science Sociale que se pode buscar uma
raiz importante para compreender a elaboração desta sua investigação. Nessa
tese, ele afirma: "Interpretar as coisas, não é mais do que dispor as
idéias que nós possuímos, segundo uma ordem determinada, que deve ser a mesma
que a das coisas. O que pressupõe que, nas próprias coisas, essa ordem exista,
isto é, que se descubra séries contínuas, cujos elementos estejam ligados entre
si de tal maneira que um efeito sempre resulte da mesma causa e não possa
provir de outra. Que se suponha, ao contrário, destruída a necessidade desse
liame causal, os efeitos poderiam se produzir sem causa ou em seguida a uma
causa qualquer, tudo se tornaria apenas caprichoso e fortuito; ora, o que é
caprichoso não é suscetível de interpretação" (Durkheim, 1953:88-89, apud
Fernandes, 1959).
Ao transpor esta citação para o trabalho sobre o suicídio, reafirma-se que a
preocupação básica de Durkheim era a construção metodológica. Nesse sentido,
Fernandes (1959) considera que há três importantes contribuições metodológicas
oferecidas por Durkheim. A primeira refere-se à seleção da base empírica; a
segunda diz respeito à formação da inferência indutiva e a terceira refere-se à
verificação da inferência indutiva. Esta constitui uma das maiores dificuldades
da sociologia pela impossibilidade de realizar a experimentação propriamente
dita, e Durkheim adotará como meio adequado para a ministração da prova o
método das variações concomitantes. Segundo Fernandes (1959:88): "Talvez
seja esse o ponto mais fraco de sua teoria da investigação sociológica".
Inegavelmente, a metodologia utilizada por Durkheim, apesar das críticas que se
fazem à utilização das estatísticas, como já apontado, constitui um dos pontos
altos do seu estudo. Porém, como salienta Aron (1982), algumas controvérsias
levantaram-se em relação à validade das relações estabelecidas por Durkheim,
como as tratadas por Halbwachs (1930). Para Durkheim, os protestantes suicidam-
se mais freqüentemente do que os católicos porque a força integrativa do
catolicismo é maior do que a do protestantismo. Para Halbwachs, há a
necessidade de verificar se os dois grupos religiosos vivem em zonas agrícolas
ou em cidades e se têm modos de vida diferentes. Isto alteraria a força do
valor integrativo das religiões. Douglas (1970:127), ao analisar o estudo de
Halbwachs, coloca em evidência que: "Ele acreditava que diferenças nas
relações familiares, religião, tipos de ocupação, grau de escolaridade e
posição sócio-econômica eram todas meramente aspectos das diferenças
fundamentais entre os modos de vida urbano e rural. E ele acreditava que era a
diferença fundamental nas formas de vida urbana e rural que explicava muitas
das diferenças na distribuição social do suicídio". Halbwachs pôs este
ponto em evidência quando mostrou que as taxas de suicídio decresciam quando se
passava das áreas com populações mais densas e relativamente urbanizadas para
as menos populosas, rurais e montanhosas. Tem sido apontado que nem sempre é
muito claro o significado de modo de vida. Em geral, segundo Douglas (1970),
refere-se ao que hoje chamaríamos de cultura, ou seja, significados que são
partilhados e transmitidos, mas não chegam, como no caso de Durkheim, a
delinear tipos de representações coletivas, tais como egoísmo-altruísmo e
anomia-fatalismo.
A questão do significado introduz a principal crítica feita por Douglas (1970)
aos estudos sobre o suicídio, e a abordagem da hipótese estatística, ou
abordagem positivista, levou-o a elaborar uma abordagem teórica das ações
suicidas como ações sociais. Defende que o importante é distinguir os situated
meanings dosabstract meanings, pois os primeiros são fundamentais para
descrever formas de ação social, básicas para o estudo do suicídio. Como
referido por Boudon & Bourricaud (1993), a abordagem biográfica e
qualitativa defendida por Douglas (1970) seria brilhantemente desenvolvida por
Baechler (1975), para quem "pode-se interpretar o suicídio como uma
resposta a uma situação: todos os suicídios resultariam do fato de que o
suicida deixou-se prender numa armadilha. O suicídio, portanto, deve ser
interpretado como uma solução 'estratégica' dada pelo indivíduo a problemas
existenciais" (Baechler, 1975, apud Boudon & Bourricaud, 1993:551).
Não se pode deixar de citar o trabalho realizado por Besnard (1976), que
procedeu à circunstanciada análise do livro de Baechler (1975), no qual se
explicita um claro projeto antidurkheimiano, embora o exame crítico da obra de
Durkheim ocupe somente quatro páginas, num total de 650. Mas, como lembra
Besnard (1976:314), esta análise de Baechler é "pontuada aqui e ali de
sarcasmos contra as correntes suicidógenas ou outras interpretações 'pueris' ou
'cômicas' de Durkheim". Para Besnard (1976), embora seja necessário
interrogar sobre a validade das estatísticas oficiais, não se podem aceitar sem
controle os argumentos que conduziriam a renunciar a qualquer esforço para
cercar o problema. Na mesma linha de argumento, Todd (1981:248) escreve:
"Imperfeita, a taxa de suicídio é, na prática, muito superior em qualidade
a outros indicadores sociais mais freqüentemente utilizados, como o produto
nacional brutoper capita. Com efeito, é muito mais fácil dissimular a riqueza
(numa declaração de renda) do que fazer desaparecer um cadáver. Não se pode,
pois, colocar em questão o valor da 'taxa de suicídio' sem abandonar de um
salto toda uma gama de indicadores econômicos, desde a renda nacionalper
capitaaté a taxa de investimentos".
Constantemente citado como exemplo de estudo epidemiológico, um dos pontos
críticos apontados pelos epidemiologistas é que o uso de dados agregados
provoca um erro metodológico denominado falácia ecológica, ou seja, a produção
de inferências causais sobre comportamentos individuais com base em dados
agregados ou grupais (Robinson, 1950; Selvin, 1958). Entre os estudos que
procuraram mostrar o valor epidemiológico das estatísticas de suicídio, cite-se
o de Sainsbury (1972). Nesse trabalho, o autor estudou as taxas de suicídio da
Inglaterra e País de Gales, de 1901 a 1961, por sexo e grupos etários, assim
como as taxas de um grupo de países, no período de 1921-1923 a 1952-1954,
tendo, também, correlacionado as taxas de suicídio de imigrantes nos Estados
Unidos com as taxas de seus países de origem. Neste caso, a correlação
encontrada foi considerada altamente significante, tendo sido concluído que as
diferenças que aparecem nas estatísticas entre os países não se devem a
diferentes processos no relato das mortes. Ponto alto deste trabalho é o
referente à possibilidade, de um lado, de utilizar as estatísticas no estudo
epidemiológico do suicídio, discordando das afirmações de Douglas (1970), e, de
outro, de evidenciar ser altamente produtivo para o estudo do suicídio a
combinação da abordagem epidemiológica e do estudo de caso.
Por sua vez, os psiquiatras, quando analisam as relações entre suicídio e
doença mental, não chegam a um consenso. Uma detalhada análise crítica sobre as
fontes psiquiátricas utilizadas por Durkheim foi realizada por Berrios &
Mohanna (1990). O argumento apresentado por esses autores não é o de que
Durkheim não tenha levado em conta os trabalhos dos alienistas, ou "negado
que a desordem mental, significados e intenções fossem importantes
particularmente para o suicídio 'egoísta', mas que ele estava enviesado na
escolha de suas fontes psiquiátricas, e como conseqüência pintou um quadro
distorcido da história das idéias psiquiátricas sobre o suicídio no século XIX
na França" (Berrios & Mohanna, 1990:1). A idéia apontada pelos autores
de que Durkheim teria sido seletivo e idiossincrático na escolha de seu
material e terminologia é contestada por Lloyd (1990), quando, ao comentar o
texto de Berrios & Mohanna (1990), afirma que para o sociólogo francês
havia, certamente, mais "o desejo positivista de estudar as taxas, as
regras e tipos do fenômeno social do que inquirir sobre (desconhecida)
intencionalidade individual"(Lloyd, 1990:594). Nesta linha de crítica ao
texto de Berrios & Mohanna, Youssef (1990:750) também assinala que
"Durkheim estava escrevendo uma teoria sociológica sobre o suicídio e não
um texto psiquiátrico". Considerando-se as controvérsias que ainda existem
em relação ao tema das relações doença mental/suicídio, recorremos ao texto de
Mello (1992:64), que ao fazer um recente levantamento bibliográfico sobre o
assunto, aponta que "o número de autores que não admitem tomar o suicídio
isoladamente como critério de doença mental é tão significativo quanto os de
opiniões contrárias". Para Mello (1992:65), "na falta de um contexto
sintomatológico que permita o diagnóstico psiquiátrico, não enquadraríamos o
ato suicida, automaticamente, como patognômico de doença mental".
As questões sobre o suicídio, suas causas, fonte de dados, abordagens teóricas
e metodológicas não se encerram com estes comentários. Trata-se, sem dúvida, de
um tema que ultrapassa os limites de um único campo do conhecimento, mas, do
ponto de vista sociológico, o texto de 1897 de Durkheim é um exemplo de
integração de teoria e dados. Mesmo os seus críticos reconhecem a engenhosidade
e o brilho com que realizou este trabalho. Symonds (1991), ao revisar o texto
do sociólogo francês, não somente fala da sua relevância, como cita que recente
busca na base de dados do Sociological Abstracts revelou que este trabalho é
citado em 189 das 1.490 referências, e 1.485 vezes no total.
Por outro lado, os suicídios estão classificados entre as mortes por causas
violentas, juntamente com os homicídios, acidentes e envenenamentos, tornando-
se importante fenômeno para avaliar, juntamente com outras estatísticas vitais,
a situação de bem-estar de uma sociedade, e como um problema de saúde. Novas
metodologias e abordagens não retiram do trabalho de Durkheim o seu
pioneirismo, que ainda suscita inúmeras possibilidades de análise para os
pesquisadores sociologicamente orientados, os quais hoje contam com melhores
estatísticas e com o desenvolvimento de análises quantitativas não existentes
na época em que Durkheim realizou a sua pesquisa.