As interações entre os atores no retorno ao trabalho após afastamento por
transtorno mental: uma metaetnografia
Introdução
O transtorno mental é um importante problema de saúde cujas repercussões também
se expressam no mundo do trabalho, em especial no retorno ao trabalho de
trabalhadores com afastamentos prolongados por transtorno mental. Blank et al.
1 mostraram que entre os anos de 1985-2005, na América do Norte e na
Inglaterra, apenas 50% dos que se afastaram do trabalho por transtornos mentais
por mais de seis meses retornaram ao trabalho.
Para entender a complexidade desse problema, alguns autores têm estudado os
preditores de retorno ao trabalho, que podem ser de várias ordens: pessoal,
ambiental, organizacional e relacional 1. Com base nesse último, Nielsen et al.
2 (p. 807) apresentam a “expectativa quanto ao retorno ao trabalho” como um
preditor do retorno ao trabalho. Os autores explicam que as percepções e
crenças individuais sobre as condições externas e habilidades como preocupações
com o desempenho no trabalho e com as interações com os colegas e outros atores
envolvidos no processo de retorno ao trabalho podem afetar o comportamento do
trabalhador e contribuir para o sucesso ou fracasso no retorno ao trabalho.
Entretanto, as expectativas quanto ao retorno ao trabalho não são determinadas
apenas pela percepção do trabalhador. Com efeito, as interações que se
estabelecem entre os atores sociais envolvidos no processo de retorno ao
trabalho também podem alimentar essas expectativas.
Gewurtz & Kirsh 3 ressaltam que o apoio e a compreensão de colegas e de
supervisores podem ter um papel crucial na manutenção, desempenho e satisfação
no emprego. Andersen et al. 4 destacam o papel que os profissionais de saúde
podem ter ao reforçar a identidade de doente no trabalhador afastado e o quanto
isso pode contribuir para o retardamento e a baixa eficácia no retorno ao
trabalho. MacEachen et al. 5 apontam os conflitos na relação entre o
trabalhador que retorna e o médico, sobretudo nas discordâncias quanto ao
momento de retornar ao trabalho. Esses autores assinalam ainda o papel dos
sindicatos nos processos de negociação dos ajustes no ambiente de trabalho e
evidenciam o papel dos supervisores no êxito do retorno ao trabalho pela
proximidade que os mesmos têm com o trabalhador que retorna.
Contudo, são escassas as revisões qualitativas que tratam da problemática que
cerca as interações entre os atores no retorno ao trabalho de trabalhadores com
transtornos mentais 3,4,5. O desenvolvimento de sínteses qualitativas pode
clarificar essas interações e com isso sistematizar conhecimento sobre essa
problemática.
Dessa forma, questiona-se como a literatura científica aborda as interações
entre os atores sociais envolvidos no processo de retorno ao trabalho após
afastamento por transtornos mentais. Mais especificamente: (i) Quais os temas
relacionados às interações entre os atores sociais envolvidos no retorno ao
trabalho que emergem na literatura científica? (ii) Quais os facilitadores ou
obstáculos para o retorno ao trabalho na literatura científica?
Considerações metodológicas
Nossa proposta metodológica filia-se à abordagem denominada como metassíntese
qualitativa, a qual é utilizada para sintetizar estudos qualitativos,
objetivando oferecer novos insights sobre um tema particular 3.
A metaetnografia é um conjunto de técnicas e princípios que tem como
característica principal o fato de ser indutiva e interpretativa, ao invés de
agregativa, pois parte dos casos particulares, retendo sua singularidade e seu
holismo, e chega à síntese através da tradução recíproca. Isto implica examinar
os principais conceitos presentes no conjunto de artigos através de um processo
comparativo 4,6,7. MacEachen et al. 5 ressaltam a utilidade da metaetnografia,
pois por meio da abordagem indutiva é possível transcender diferenças nas
metodologias qualitativas e nos paradigmas epistemológicos, garantindo uma
visão abrangente do conjunto da literatura examinada.
Processo de busca e critérios de inclusão
Com a assistência de uma bibliotecária uma busca sistemática, foi conduzida
usando bases de dados eletrônicas norte-americanas e europeias para identificar
estudos de natureza qualitativa revisados por pares e publicados em inglês.
Incluíram-se também bases que indexam estudos realizados na América Latina e
Caribe, sobretudo aqueles publicados nos idiomas português e espanhol. Ao
final, chegou-se ao seguinte conjunto: BIREME, SciELO, PsycInfo, CINAHL,
Scopus, EMBASE, Social Sciences Abstracts e Web of Knowledge (Figura_1).
Figura 1 Fluxograma do processo de busca elegibilidade e inclusão.
MacEachen et al. 5 assinalam que as boas práticas de retorno ao trabalho foram
implementadas na América do Norte e na Europa durante a década de 1990. Isso
justificou a busca de artigos publicados entre 1990 e 2014. Foram selecionados
artigos que continham as seguintes palavras chaves ou seus correlatos: retorno
ao trabalho, transtorno mental e metodologia qualitativa (Figura_2). Busca
manual e listas cruzadas de referência dos principais artigos também foram
adicionadas.
[/img/revistas/csp/v31n11//0102-311X-csp-31-11-2275-gf02.jpg]
Figura 2 Processo de pesquisa: palavras-chave e combinações de palavras-chave.
Neste estudo a compreensão de Young et al. 8 que entende o retorno ao trabalho
como um processo dinâmico, influenciado por diferentes fatores em distintos
momentos e de maneira não linear foi adotada. O processo pode ser dividido em
quatro etapas, que vão desde a recuperação funcional, com o trabalhador ainda
fora do trabalho (Off work), passando para a fase de reinserção no trabalho
(Re-entry), na qual se devem observar os ajustes necessários no trabalho
compatíveis com a capacidade do trabalhador a fim de que o mesmo mantenha o
emprego e realize as atividades de forma satisfatória. Na etapa seguinte
(Maintenance), o trabalhador se esforça para manter os objetivos e metas a
serem alcançados no trabalho diário e já considera a possibilidade de
progressão. Na última etapa (Advancement), o trabalhador qualifica-se para
tarefas e responsabilidades maiores, almejando uma promoção.
Este modelo desenha o retorno ao trabalho a partir de uma ação combinada dos
atores sociais envolvidos nesse processo, já que este envolve não só o
trabalhador e outros agentes no local de trabalho, mas inclui ainda outras
relações que extrapolam o chão de fábrica. Logo, retorno ao trabalho além de
conceito foi também critério para a busca e seleção dos artigos que embasaram
esta metassíntese 8.
Sustentamos que transtornos mentais são produto e expressão, no indivíduo, de
relações de poder, contradições sociais, dilemas existenciais e conflitos
culturais. Isto implica compreender os transtornos mentais como subjetivações
que se manifestam por rupturas no processo de adaptação psicossocial, expressas
pelo pensamento, sentimento e comportamento, cujos resultados variam conforme
as dimensões de ordem sociocultural, psicológico-subjetiva e biológico-
cerebral9.
Embora a racionalidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM) e da Classificação Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID) negligencie a espessura biopsicosociocultural do
adoecimento mental 10, bem como a singularidade da experiência do sujeito em
prol de supostas neutralidade, universalidade e objetividade do diagnóstico
psiquiátrico 11, optamos por incluir as nomenclaturas adotadas nesses manuais,
pois as mesmas representam uma base comum nas produções científicas na área da
saúde.
Entretanto, optamos aqui por restringir o escopo dos transtornos mentais aos
diagnósticos de transtorno de humor (F30 a F39), transtornos neuróticos e
relacionados ao estresse (F40 a F43) com base na CID-10 12, por serem estes os
de maior prevalência e estarem geralmente associados a licenças que culminam
com retorno ao trabalho ao invés de aposentadoria precoce 13.
A seleção dos estudos envolveu ainda os seguintes critérios de inclusão: (a)
estudos baseados em pesquisas qualitativas; (b) estudos que abordam o retorno
ao trabalho relacionado a transtornos mentais; (c) estudos nos quais os
participantes retornaram ao trabalho após transtornos mentais e/ou outros
interessados nesse processo; (d) os estudos focalizaram interações entre atores
sociais no contexto do retorno ao trabalho de pessoas com transtornos mentais.
Metassínteses qualitativas recentes 3,4,14 têm adotado modelos de avaliação de
qualidade dos estudos entre seus métodos de seleção dos artigos. Vale observar,
no entanto, que o uso de critérios de qualidade para a seleção dos artigos para
metassínteses tem sofrido críticas importantes 6,15. A mais relevante mostra
que as diretrizes de avaliação da qualidade dos artigos qualitativos tendem a
valorizar modelos hegemônicos de pesquisa que não refletem a totalidade de
possibilidades existentes. Dessa forma, mesmo refinados estudos poderiam ser
descartados por não se enquadrarem nos critérios elegíveis 15,16.
Concordamos, portanto, que a pluralidade pode conferir força às evidências
quando se faz uma revisão 6,16. Deste modo não adotaremos critérios de
avaliação de qualidade dos estudos selecionados, mas utilizaremos procedimentos
sistemáticos que fundamentem as decisões e escolhas, o que deverá maximizar o
rigor do trabalho realizado.
Dois autores com experiência em pesquisa qualitativa e no campo da saúde do
trabalhador selecionaram os artigos e, nos casos em que não houve consenso, um
terceiro avaliador contribuiu na tomada de decisão final. Procedimento
semelhante foi adotado em outras metassín- teses 3,4,14.
Análise dos dados
Noblit & Hare 7 propõem três estratégias possíveis para sintetizar estudos
qualitativos: (1) Tradução Recíproca como Síntese, na qual de forma interativa,
cada estudo é examinado em relação às suas semelhanças; (2) Síntese de
Refutação, quando o exame de cada estudo é orientado para que desacordos entre
eles sejam identificados; (3) Síntese de Linhas de Argumento, que objetiva
desenvolver uma interpretação abrangente do todo (organização, cultura etc),
baseada nas linhas de argumento construída nos sucessivos estudos. Nesta
revisão adotou-se a Tradução Recíproca como Síntese pois os estudos
investigados apresentavam diversas similaridades entre si, o que recomendava
que fossem aferidos pelo movimento constante de escrutínio e comparação das
ideias e conceitos contidos nos estudos originais7.
O desenvolvimento de uma metaetnografia envolve três ordens de organização e
análise dos dados. Nesse estudo a primeira ordem envolveu a identificação dos
conceitos contidos nos principais achados dos artigos originais. Nosso estudo
priorizou as descrições das interações entre os atores sociais no contexto do
retorno ao trabalho 7. A segunda ordem correspondeu ao processo interpretativo
a partir da comparação dos achados que emergiram em pelo menos dois estudos
originais 3,4,7. A terceira ordem ou síntese consistiu numa reinterpretação dos
conceitos de segunda ordem em relação às questões que guiam o objeto de estudo.
O processo foi guiado por alguns fundamentos da teoria fenomenológica tais como
a experiência significativa, o ser no mundo e o mundo da vida, além da teoria
sociológica sobre a ação. Utilizamos ainda o conceito de reabilitação
psicossocial para oferecer uma epítome da literatura examinada, o que será
melhor esclarecido na discussão dos achados 7.
O sistema de gestão de referências Mendeley 1.12.1 versão livre para Windows
(http://www.mendeley.com) foi usado para gerenciamento dos artigos. O software
Nvivo 10 (QSR International; http://www.qsrinternational.com/) foi utilizado
para organizar tematicamente os conceitos extraídos dos artigos originais, bem
como para a análise comparativa entre esses conceitos 17.
Resultados
Após a fusão dos resultados obtidos nas oito bases de dados e retirada das
publicações duplicadas, a busca ativa rendeu 619 artigos. Desses, 16 artigos
foram selecionados segundo os critérios de inclusão previamente mencionados
(Figura_1). Vale ressaltar que a maior parte dos estudos encontrados referiu-se
a países como Holanda, Dinamarca, Suécia, Reino Unido e Canadá, nações do
hemisfério norte, economicamente desenvolvidas e centrais. Uma síntese das
principais características e conceitos de primeira ordem identificados nos
artigos selecionados está representada na Tabela_1.
Tabela 1 Descrição dos artigos selecionados e dos conceitos de primeira ordem.
Autores (país) Objetivos Participantes Coleta de dados Método de análise Conceitos de primeira ordem
Holmgren & Compreender como mulheres licenciadas devido a estresse relacionado ao Gerenciamento da carga de trabalho; Tipo ideal de funcionário bem sucedido;
Dahlin Ivanoff trabalho percebem e descrevem as possibilidades e obstáculos para retorno ao 20 mulheres com licença de saúde inferior a 6 meses devido a estresse Grupo focal Método descrito de modo sucinto citando Krueger (1998) Crenças do outro sobre desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho;
18 (Suécia) trabalho relacionado ao trabalho Valores relacionais no trabalho; Papel dos níveis gerenciais; Relações entre
empregado e empregador
Caveen et al. 30 Entender as diferenças no ambiente de trabalho, mais especificamente, nas Enfermeiros de saúde ocupacional, gerentes de caso de incapacidade, Estudo de múltiplos casos combinando métodos Categorização, tematização e triangulação propostas por Miles &amPercepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Compromisso público dos
(Canadá) práticas de gestão da incapacidade, e refletir sobre como essas diferençasmédicos assistentes ou diretores ou membros da equipe de recursos humanos quantitativos e qualitativos – grupos focais e Huberman (1994) gerentes com o retorno ao trabalho; Acomodações no retorno ao trabalho; A
podem contribuir para variações nos resultados do retorno ao trabalho entrevistas mediação no retorno ao trabalho; Clima de desconfiança no retorno ao trabalho
Crenças do outro sobre desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho;
Saint-Arnaud et O objetivo do estudo foi compreender melhor os fatores envolvidos no processo 25 mulheres e 12 homens que estavam afastados do trabalho devido a um Valores relacionais no trabalho; Imagem negativa do trabalhador pelos
al. 24 (Canadá) de reinserção no mercado de trabalho de pessoas que estavam afastadas após u problema de saúde mental entre 1998-2001 Entrevistas Análise de conteúdo e temática segundo L’Écuyer (1990) e Bardin (19colegas; Papel dos níveis gerenciais; Relações entre empregado e empregador;
distúrbio de saúde mental Suporte do profissional de saúde no retorno ao trabalho; Clima de
desconfiança no retorno ao trabalho
Oostrom et al. Descrever o processo de ajustamento do “protocolo de intervenção Funcionários com licença médica recente por transtorno mental, Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Papel dos níveis
32 (Holanda) participativa no local de trabalho” para trabalhadores com licença médica supervisores e profissionais de saúde ocupacional Entrevista combinada com grupo focal Mapa de intervenções segundo Bartholomew et al. (2001) gerenciais; Qualidades do mediador do retorno ao trabalho
devido a estresse relacionado a transtorno mental
Gerenciamento da carga de trabalho; Tipo ideal de funcionário bem sucedido;
Verdonk et al. Examinar como as mulheres interpretam seus papéis no trabalho, durante a Crenças do outro sobre desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho;
21 (Holanda) licença médica, e após o seu retorno ao trabalho 13 mulheres que sofriam de estresse psicológico relacionado ao trabalho Entrevista individual Teoria fundamentada nos dados de campo (grounded theory) Juízo moral sobre o trabalhador que retorno ao trabalho; Imagem negativa do
trabalhador pelos colegas; Papel dos níveis gerenciais; Importância da
expertise dos profissionais de saúde
Cowls & Explorar como a reconstrução traumática pode influenciar o trabalho do Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Suporte do profissional
Galloway 28 indivíduo que sofreu trauma fora do ambiente de trabalho e também explorar 25 trabalhadores afastados com diagnóstico de depressão, ansiedade e Entrevista semiestruturada feita por telefone Teoria fundamentada nos dados de campo (grounded theory) de saúde no retorno ao trabalho; A mediação no retorno ao trabalho; Suporte
(Canadá) quais intervenções no retorno ao trabalho são valorizadas pelos clientes co estresse pós-traumático para recaídas; Abordagens cognitivas no retorno ao trabalho; Estratégias de
história traumática enfrentamento no retorno ao trabalho
Crenças do outro sobre desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho;
Pittam et al. 25 Explorar as percepções dos principais interessados sobre o impacto do serviç 22 clientes do serviço; 4 médicos clínicos; 4 especialistas em Entrevista semiestruturada combinada com grupo Método descrito de modo sucinto citando Pawson & Tilley (1997) Relações entre empregado e empregador; Papel do mediador no retorno ao
(Reino Unido) Richmond Fellowship aconselhamento do emprego focal trabalho; Ação dos níveis gerenciais no retorno ao trabalho; Qualidades do
mediador no retorno ao trabalho
Crenças do outro sobre desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho;
Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Valores relacionais no
Lemieux et al. Documentar as percepções dos supervisores sobre os fatores que facilitam ou 11 supervisores que foram responsáveis pela condução do retorno ao Entrevista semiestruturada Análise de conteúdo trabalho; Comportamentos desagradáveis no retorno ao trabalho; Papel dos
23 (Canadá) dificultam o retorno ao trabalho de trabalhadores com transtorno mental trabalho de um ou mais trabalhadores com transtorno mental níveis gerenciais; Ação dos níveis gerenciais no retorno ao trabalho;
Relações entre empregado e empregador; Expertise dos profissionais de saúde;
A mediação no retorno ao trabalho; Papel do mediador no retorno ao trabalho
Gerenciamento da carga de trabalho; Percepções do supervisor sobre o retorno
ao trabalho; Juízo moral sobre o trabalhador que retorno ao trabalho; Valores
Noordik et al. Descrever as barreiras para retorno ao trabalho segundo a percepção dos 10 mulheres e 4 homens com diagnóstico de transtorno mental que voltaram Entrevista semiestruturada Teoria fundamentada nos dados de campo (grounded theory) relacionais no trabalho; Papel dos níveis gerenciais; Clima de desconfiança
13 (Holanda) trabalhadores ao trabalho com 80% das horas de trabalho no retorno ao trabalho; Relações entre empregado e empregador; Suporte do
profissional de saúde no retorno ao trabalho; Qualidades do mediador no
retorno ao trabalho
Olivier et al. Identificar e descrever quais as consequências na vida laboral e pessoal de Entrevista semiestruturada; autorrelato chamado Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Valores relacionais no
26 (Brasil) trabalhadores no retorno ao trabalho após um período de licença médica 12 mulheres e 10 homens afastados do trabalho no período de 2006-2008 de livre narrativa Análise de conteúdo trabalho; Suporte da família e rede ampliada; Rejeição ao trabalhador com
transtorno mental
Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Valores relacionais no
Hatchard et al. Avaliar as barreiras e facilitadores que afetam o auto-direcionamento por 4 mulheres e 1 homem com transtorno do humor, estresse pós-traumático e Entrevista semiestruturada Abordagem fenomenológica interpretativa trabalho; Suporte do profissional de saúde no retorno ao trabalho; Atitude
22 (Canadá) parte do trabalhador no retorno ao trabalho após doença mental aguda depressão acolhedora no retorno ao trabalho; Ceticismo por parte dos colegas; Confiar
nos colegas de trabalho; Suporte da família e rede ampliada
Hees et al. 27 Identificar as perspectivas dos principais atores interessados sobre o que Grupo focal; entrevista semiestruturada por Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho; Valores relacionais no
(Holanda) constitui sucesso no retorno ao trabalho após afastamento por transtorno Trabalhadores afastados, supervisores, médico do trabalho e pesquisadores telefone Análise qualitativa e quantitativa combinada e análise de conteúdo trabalho; Crenças positivas do supervisor sobre o trabalhador que retorno ao
mental trabalho
Muijzer et al. Explorar os fatores relevantes para o retorno ao trabalho através da
31 (Holanda) discussão de um caso de solicitação de benefício por incapacidade após Especialistas em trabalho do Instituto de Seguridade da Holanda Grupo focal Informação não fornecida Relações entre empregado e empregador
retorno ao trabalho
Nielsen et al. Explorar a experiência da licença de saúde e subsequente retorno ao trabalh 16 mulheres afastadas do trabalho, que tinham solicitado benefício por Gerenciamento da carga de trabalho; Crenças do outro sobre desempenho do
19 (Dinamarca) de mulheres com transtorno mental transtorno mental Entrevista semiestruturada Teoria fundamentada nos dados de campo (grounded theory) trabalhador no retorno ao trabalho; Percepções do supervisor sobre o retorno
ao trabalho; Suporte do profissional de saúde no retorno ao trabalho
Vries et al. 29 Ampliar o conhecimento sobre fatores pessoais e ambientais modificáveis que Percepção negativa do supervisor sobre o trabalhador; Crenças sobre a
(Holanda) impedem o retorno ao trabalho após licença de saúde de longo período por Supervisores, médico do trabalho e empregados com licença de saúde Grupo de discussão Mapa conceitual (concept mapping) personalidade do trabalhador que retorno ao trabalho; Crenças do outro sobre
transtorno depressivo maior desempenho do trabalhador no retorno ao trabalho
Gerenciamento da carga de trabalho; Crenças do outro sobre desempenho do
trabalhador no retorno ao trabalho; Juízo moral sobre o trabalhador que
Corbière et al. Ampliar a compreensão sobre os fatores relacionados ao retorno ao trabalho 12 homens e 11 mulheres representantes sindicais com experiência no retorno ao trabalho; Percepções do supervisor sobre o retorno ao trabalho;
20 (Canadá) dos trabalhadores afastados devido à depressão, na perspectiva dos acompanhamento de retorno ao trabalho Grupos focais Análise temática Valores relacionais no trabalho; Papel dos níveis gerenciais; Atitude
representantes do sindicato acolhedora; Comportamentos desagradáveis; Relações entre empregado e
empregador; Suporte do profissional de saúde no retorno ao trabalho; Papel do
mediador no retorno ao trabalho
Com base nas questões da investigação chegou-se a um consenso entre os
pesquisadores, o qual resultou nos seis conceitos de segunda ordem que se
seguem:
1) A experiência relacionada ao desempenhodo trabalhador no processo de retorno
ao trabalho
Os artigos evidenciam que o desempenho dos trabalhadores no retorno ao trabalho
parece sofrer uma influência direta das crenças que o trabalhador que retorna
ao trabalho tem sobre ele mesmo, bem como das ideias que os outros expõem sobre
ele e sobre o seu retorno ao trabalho. Essas experiências afloram como:
fraqueza por não conseguir gerenciar sua carga de trabalho 18,19,20;
desconfiança em si próprio em função de não suportar bem as exigências do
trabalho 18,21; descrédito por não lidar bem com suas próprias expectativas de
ser um funcionário bem sucedido 18,21; melindres em relação às reações dos
outros quanto ao seu retorno ao trabalho 21,22; opressão por se sentir forçado
a satisfazer as expectativas dos outros 13,20,21, e, por fim, a impressão de
estar sendo julgado pelos demais sobre a sua capacidade de trabalho 20,23.
Esses elementos podem causar mais apreensão e perturbações sobre o processo de
volta ao trabalho 20, sentimento de vergonha e culpa 21, necessidade de
isolamento 20, criação ou reforço de imagem negativa do trabalhador com
transtornos mentais 21,24 e descrédito quanto à capacidade de ser acolhido e
cuidado no local de trabalho 18. Com base nesses achados, a experiência
relacionada ao desempenho no retorno ao trabalho caracteriza-se como um
obstáculo de difícil superação no processo de retorno, pois parece configurar-
se como um ethos, ou seja, um modo de ser predominante nas atitudes, valores e
sentimentos dos indivíduos de uma comunidade.
Os estudos revisados oferecem algumas estratégias de enfrentamento contra as
crenças que pairam sobre o desempenho no trabalho: (a) oferecer feedback
positivo quanto à confiança na capacidade e competência atual para a realização
das atividades, destacando os pontos fortes e as habilidades que o trabalhador
possui 18,25; (b) oferecer ajuda para a revisão das expectativas pessoais de
desempenho 20; (c) trabalhar na autoaceitação da condição atual, a fim de
produzir os ajustes necessários para sustentar o esforço de se reconectar com
os colegas de trabalho 22; (d) implementar ações afirmativas no local de
trabalho, como falar do transtornos mentais que sofreu 22; (e) aprender a lidar
com as emoções e sentimentos relacionados às exigências do trabalho13; (f)
promover a discussão sobre o desempenho nas atividades profissionais entre os
atores envolvidos no retorno ao trabalho de empregados com transtornos mentais
22; e (g) refletir e ressignificar os múltiplos sentidos incorporados em
relação à ética do trabalho 21.
2) O impacto da relação com os colegas no retorno ao trabalho
Os estudos apontam para algumas expectativas sobre o modo de agir que se
estabelecem entre os colegas e o trabalhador que retorna. O trabalhador que
retorna espera do colega atitudes como: escuta atenta e dedicada 18, ter
atitude acolhedora 20,22, predisposição para entrar em contato com o
trabalhador afastado mesmo no período de licença 20, oferecimento de ajuda
sincera nas tarefas e compreensão nas acomodações 20. As atitudes valorizadas
pelo colega em relação ao trabalhador que retorna são: não ter medo de pedir
ajuda aos colegas 22e confiar em seus colegas 22. O resultado disso é um
aumento da autoestima e da fé na própria competência 18, o fortalecimento da
identidade e o reconhecimento do status social de trabalhador 20 e o
fortalecimento da sensação no trabalhador de que pode contar com um ambiente
favorável para o seu retorno ao trabalho 24.
A construção do apoio no local de trabalho é desfavorecida por atitudes que
prejudicam as relações entre os colegas e o trabalhador que retorna,
destacando-se aqui: o escárnio, a piada, a cobrança excessiva 26, a recusa em
trabalhar com quem sofreu um episódio de transtornos mentais 26 e o ceticismo
por parte dos colegas 22. Alguns autores destacam a curiosidade excessiva dos
colegas com relação ao tabu que cerca a confidencialidade da informação médica
20 e as atitudes interesseiras daqueles que recebem bem o trabalhador que
retorna porque querem repassar imediatamente para ele a carga de trabalho que
assumiram 24. Outros fatores dizem respeito ao próprio trabalhador e se
caracterizam por agressividade e explosão emocional antes do afastamento, ou
mesmo no período de retorno ao trabalho 20,23 bem como o simples fato de
possuir um distúrbio psiquiátrico 24.
Tais elementos podem reiterar a rotulação da incapacidade e ampliar a falta de
confiança para gerir o trabalho e prosseguir no processo de retorno ao
trabalho22,26. Podem ainda catalisar situações estressantes para o trabalhador
que volta ao trabalho 20. O estigma apresentado pelos colegas em relação ao
distúrbio psiquiátrico grave parece não favorecer o contato prévio ao
retorno24. Ademais, as atitudes interesseiras dos colegas podem produzir
pressão sobre o trabalhador que ainda não se sente capaz de assumir
integralmente a carga de trabalho 24. Daí ressalta- se a importância de se
investir nas estratégias de preparação do momento de chegada, sobretudo a fim
de estabelecer ou restabelecer as vias de conexão entre as pessoas, objetivando
mitigar conflitos no local de trabalho 23.
Os estudos trazem recomendações que podem ser úteis para favorecer a relação
entre o trabalhador que retorna e seu colega: (a) organizar uma reunião
preparatória que anteceda a data do retorno ao trabalho. E em tese esta reunião
pode possibilitar ao trabalhador que retorna expressar seus medos, buscar
soluções para as acomodações necessárias, sem com isso quebrar o sigilo sobre a
condição clínica do trabalhador20,23; (b) produzir um plano de comunicação
compartilhado que ofereça à equipe que recebe o trabalhador com transtornos
mentais o nível de informação necessária, capaz de ajudar a planejar as ações
na relação com o trabalhador que retorna 23. Reivindica-se também a necessidade
de compreender melhor o papel que o contexto de trabalho orientado para a
máxima eficiência e para o desempenho com reflexo na produtividade impõe no
sentido de minar a oferta de apoio genuíno para a reintegração de trabalhadores
com transtornos mentais 24.
3) Da percepção à ação: o modus operandi do supervisor no retorno ao trabalho
Os estudos apontam para a relação entre o que o supervisor pensa sobre o
trabalhador que se afasta e retorna ao trabalho por transtornos mentais e a
maneira como o supervisor age no processo de retorno ao trabalho.
Ordinariamente o supervisor formula uma ideia positiva sobre o transtornos
mentais, admitindo que o afastamento não é sinal de que a pessoa é preguiçosa,
louca e ineficiente na realização das tarefas de trabalho 22. O resultado disso
é que o supervisor oferece apoio e direcionamento para o trabalhador no
processo de retorno ao trabalho, o que pode resultar em sucesso na volta à
atividade laboral 22,27.
Para Hees et al. 27 o fato de o supervisor crer que o empregado seja capaz de
lidar com a carga de trabalho, sugere uma perspectiva positiva em relação à
capacidade do trabalhador, mas pode também traduzir-se em aspirações próprias
da ética produtivista, como a vitalidade para o trabalho e cumprimento de
tarefas, parâmetros de normalidade usualmente adotados no mundo do trabalho e
que precisam ser relativizados nos casos em questão. Na opinião de Lemieux et
al. 23, quando o trabalhador retorna é comum o conflito entre as expectativas
de produção normal e o conceito de retorno gradual ao trabalho com limitação de
tarefas, a necessidade de acomodações e a adoção de tempo parcial de trabalho.
Muitas vezes quem está no centro desse conflito é justamente o supervisor,
obrigado a cuidar dos interesses do capital enquanto tenta transformar o local
de trabalho em um ambiente “terapêutico”23.
A visão positiva que o supervisor tem do empregado que retorna após afastamento
por transtornos mentais pode ter sido facilitada pelo diálogo franco e aberto
sobre os problemas psicológicos que motivaram o afastamento do trabalho 27,
pelo investimento no contato prévio com o trabalhador durante o afastamento
para oferecer apoio e manter a comunicação durante esse período e pela
percepção que o supervisor adquire quanto às expectativas positivas que o
próprio trabalhador tem sobre seu retorno ao trabalho 23. Lemieux et al. 23
acrescentam que o espaço de diálogo aberto configura-se como um excelente
momento em que o supervisor pode aproveitar para esclarecer todas as mudanças
ocorridas na organização, discutir a programação de trabalho e oferecer
treinamento para a adaptação mais fácil às mudanças ocorridas no trabalho.
Segundo Cowls & Galloway 28, quando o supervisor passa por um programa de
retorno ao trabalho que envolve diálogo e parceria, nota-se pré-disposição para
executar o planejamento do retorno e realizar os ajustamento recomendados.
Por sua vez, a visão negativa do supervisor sobre o empregado que retorna é
explicitada de duas formas. A primeira, pelas suas preconcepções sobre o
funcionamento da personalidade do empregado acometido por transtornos mentais
que retorna. Nessas estão incluídos o sentimento de inferioridade, a baixa
autoconfiança e a personalidade esquiva e dependente 20,23,29. A segunda diz
respeito ao juízo negativo sobre a competência do funcionário caracterizada por
um atributo pessoal de fraqueza e incapacidade de gerir o trabalho sem novas
recaídas e por não perceber no trabalhador posições afirmativas quanto à
vontade de retornar ao trabalho 20,27,30. O resultado disso pode confluir no
ceticismo quanto à veracidade do diagnóstico de transtornos mentais 22,23, no
preconceito que rotula o trabalhador como fraco e incompetente a quem não se
pode dar crédito e, ademais, a descrença na possibilidade de êxito do processo
de retorno ao trabalho 20,21.
Lemieux et al. 23 sugerem maior abertura e compartilhamento de informações
entre os profissionais de saúde e recursos humanos e os supervisores, a fim de
minimizar as influências das percepções antecipadas sobre o retorno ao
trabalho. Além disso, os autores recomendam capacitação do supervisor para
conduzir o processo de retorno ao trabalho, não apenas pelo prisma das
acomodações, mas também dos demais fatores que interferem no retorno ao
trabalho.
4) O papel sinérgico ou antagônico dos níveis gerenciais
Alguns autores abordam os esforços adotados pelos níveis gerenciais em assumir
a reintegração e o acolhimento do funcionário que retorna como política
institucional. Os representantes dos níveis gerenciais podem desempenhar um
importante papel através do envio de comunicações coletivas dando ciência do
compromisso da empresa no retorno ao trabalho a todos 30. Apesar do seu
evidente caráter político, este tipo de envolvimento muitas vezes é tido como
puramente administrativo e refere-se apenas aos aspectos relacionados às
acomodações 20,30,31. Ainda assim, a medida pode servir como importante
ferramenta de empoderamento do discurso dos profissionais responsáveis por
conduzir o processo de retorno ao trabalho na empresa, na hora de negociar com
funcionários e gerentes resistentes ao processo de retorno ao trabalho 30.
Contudo, Caveen et al. 30 advertem que as comunicações coletivas podem ser
entendidas como ferramenta de coação imposta pelos níveis gerenciais, que pode
trazer prejuízos para o êxito do processo de retorno ao trabalho.
Para Corbière et al. 20, o envolvimento poderia ser ainda mais próximo, com os
níveis gerenciais reunindo-se com o trabalhador que retorna e os demais
interessados para traçar, negociar e implementar o plano de retorno ao
trabalho. Lemieux et al. 23 concordam com essa afirmativa chamando este agir de
“ação concreta”, na qual, a despeito de diferentes valores e expectativas, os
atores negociam planos comuns. Um possível impacto direto desse tipo de ação
por parte dos gerentes seria a possibilidade de minimizar as exigências e
preocupações por desempenho por parte de quem volta, pelos colegas e
supervisores 23. Este tipo de ação, mesmo sendo bem vista pelos empregados,
ainda não é devidamente acolhida e utilizada pelos empregadores 25. Cabe
assinalar que os estudos avaliados não esclarecem os motivos pelos quais os
níveis gerenciais não adotam estes procedimentos como válidos e capazes de
colaborar no bom êxito do retorno ao trabalho.
Os níveis gerenciais podem ter um papel negativo quando nas suas ações sobre o
processo de retorno ao trabalho não estão embutidos elementos como o
acolhimento e a compreensão 18,25,30, quando as ações são permeadas pelo
preconceito e rotulação do trabalhador que se afastou por problemas mentais
18,20,21, quando há um questionamento espúrio sobre a autenticidade da doença e
da integridade do trabalhador, gerando um clima de desconfiança 13,24,30,
quando os níveis gerenciais usam mecanismos, principalmente as seguradoras,
para pressionar a volta antecipada do trabalhador através do envio frequente de
cartas e telefonemas, quando aumenta a frequência com que os trabalhadores
devem apresentar os relatórios médicos aos representantes dos empregadores e
finalmente quando se contestam, de forma abusiva, as datas de licença
prescritas pelos médicos que assistem ao trabalhador afastado 23,24. Esses
aspectos podem abrir espaço para a quebra de confiança do trabalhador para com
os níveis gerenciais trazendo para dentro do processo de retorno ao trabalho o
rancor e a indignação 24, além do sentimento de desamparo e negligência21,
elementos que podem prejudicar o retorno ao trabalho.
Segundo Pittam et al. 25, algumas medidas importantes podem ser adotadas para
minimizar as barreiras que podem advir dos níveis gerenciais. Primeiro,
promover processos de comunicação direta entre o trabalhador afastado e os
níveis gerenciais, a fim de que as barreiras citadas acima possam ser
minimizadas. Segundo, contar com atores externos ao trabalho que possam
intermediar o diálogo entre trabalhador e empregador e garantir que o processo
seja o mais equânime possível.
5) O suporte dos profissionais de saúde extrapola o ambiente de trabalho
Profissionais de saúde tradicionalmente oferecem às pessoas que se afastam um
importante suporte para estabilizar clinicamente os seus sintomas, na esperança
de diminuir as chances de recaídas 23,28. Destaca-se também o papel que esses
profissionais têm em tornar o trabalhador mais consciente de seus problemas e
das dificuldades no seu local de trabalho e com isso garantir um tempo adequado
para tratar dessas questões antes de retornar ao trabalho 13,20,23,28. Para
isso utilizam-se abordagens cognitivas baseadas em estratégias de enfrentamento
como a adoção de comportamentos úteis para evitar conflitos, estabelecer
limites adequados à sua condição e, por fim, o treinamento de habilidades e
competências que possam ser transferíveis para o local de trabalho, a exemplo
do gerenciamento da capacidade de pedir ajuda 13,28.
Ressalta-se ainda que o suporte do profissional de saúde extrapola o escopo do
trabalho pois considera os elementos estressores que estão contidos no convívio
familiar 22, fornece manejo para lidar com as companhias de seguro e serviços
de seguridade social 21,22, ajuda o trabalhador a olhar para dentro de si na
tentativa de melhor autoentendimento e das questões pessoais que permeiam as
suas relações, o que envolve a possibilidade de estabelecer limites adequados
não só no trabalho, mas também na vida pessoal 19,21,28 e, por fim, promove
suporte para o desenvolvimento de um estilo de vida saudável e equilibrado
23,28. Esses elementos conferem integralidade ao processo de retorno ao
trabalho, bem como fortalecem a responsabilização por parte dos profissionais
de saúde e o vínculo entre eles e o trabalhador que retorno ao trabalho. Esse
conjunto de fatores pode favorecer a continuidade do processo de retorno ao
trabalho.
6) O papel do mediador no retorno ao trabalho
O “mediador” atua como interlocutor entre os agentes no processo de retorno ao
trabalho por possuir uma posição influente no local de trabalho. Os mediadores
são denominados como gerente ou gestor de caso, coordenador de retorno ao
trabalho, conselheiro de emprego, mas também estão designados na figura dos
representantes dos sindicatos e de instituições de apoio e proteção do
trabalhador 13,20,23,25.
Corbière et al. 20 apresentam o mediador como um ator importante que pode
acompanhar o trabalhador no contato com os profissionais de saúde, fornecendo
mais informações a esses profissionais sobre o local de trabalho. Lemieux et
al. 23 assumem posição semelhante, caracterizando o mediador como uma espécie
de mentor, alguém que se liga ao trabalhador e oferece um suporte externo.
Ressaltam ainda que muitas vezes este suporte não pode ser oferecido por outros
membros da equipe de trabalho pela falta de imparcialidade ou pela dificuldade
do profissional de saúde de se fazer presente no local de trabalho. Noordik et
al. 13 apontam o mediador como um articulador das várias ações, iniciativas e
suportes oferecidos para o trabalhador que retorna.
Pittam et al. 25 sugerem que o papel do mediador deve ser dotado de elementos
como escuta, imparcialidade, individualização da abordagem, empoderamento,
encorajamento e orientação. O mediador precisa desenvolver, no trabalhador,
estratégias de aumento da confiança, destacando seus pontos fortes e
habilidades, permitindo assim rever e reforçar as crenças do trabalhador sobre
sua capacidade laboral 13,25. O mediador pode ainda habilitar o trabalhador a
qualificar melhor o seu discurso perante o empregador nos processos de
negociação por acomodação e outros processos correlatos; capacita também o
trabalhador a identificar a fonte dos seus problemas a fim de que ele possa
escolher as medidas adequadas para resolver essas questões e, finalmente, deve
trabalhar numa perspectiva que possa levar o trabalhador a olhar para além das
suas perspectivas atuais de carreira ajudando-o a identificar habilidades e
aptidões diferentes 25,32.
Não obstante a importância do papel do mediador, algumas dificuldades são
apontadas: (i) geralmente não está no escopo das atribuições do mediador
negociar as condições de trabalho; (ii) a imparcialidade é uma tarefa complexa
e depende da dinâmica envolvida na posição que o individuo assume perante a
empresa e o empregado; e (iii) a individualização da abordagem, apesar de útil
para pensar os casos em particular, pode embotar a visão sobre problemas de
ordem coletiva, que carecem de negociações mais amplas e intervenções que
abarquem a todos sob as mesmas condições ou riscos. Ainda assim, Oostrom et al.
32advogam pela necessidade de agentes que medeiem as relações durante o retorno
ao trabalho.
Os autores sugerem que esses indivíduos incorporem os valores capazes de tornar
o retorno ao trabalho menos burocratizado e hierarquizado, que a mediação não
deve se estabelecer como um nova ordem de poder atuante no retorno ao trabalho
e que a figura do mediador não deve substituir os importantes processos de
empoderamento dos trabalhadores para negociarem suas próprias necessidades. Seu
papel, quando necessário, precisa primar por desenvolver e organizar um plano
de comunicação capaz de horizontalizar e articular dialeticamente as
perspectivas dos atores sobre o retorno ao trabalho 23,30.
Discussão
Com base nos conceitos de segunda ordem acima descritos, nos constructos sobre
a reabilitação psicossocial e em alguns fundamentos teóricos da fenomenologia e
da sociologia 33,34,35 foi possível consolidar a literatura revisada em duas
sínteses. A primeira diz respeito ao ethos do desempenho no retorno ao trabalho
e a segunda mostra o retorno ao trabalho como catalizador de novos modos de
vida.
O ethos do desempenho no retorno ao trabalho
Os estudos analisados evidenciam que as expectativas de desempenho ocupam um
lugar central nas relações entre os atores no contexto do retorno ao trabalho e
podem denunciar a forma como construções sociais sobre o desempenho no trabalho
configuram um escopo mais amplo sobre o qual devemos conceber o retorno ao
trabalho.
Nesta revisão adotamos a noção de experiência significativa proposta por
Schutz34, definida como aquela que, por um ato de reflexão, é apreendida,
distinguida, colocada em relevo, diferenciada das outras. Vale dizer, cujo ato
reflexivo a torna objeto da atenção enquanto experiência constituída, acabada,
já vivida, que está no passado, mas que contém vivências do presente e
antecipações futuras. A experiência significativa nos permite entender a
expectativa de desempenho no trabalho. Pois traduz-se na interação entre as
percepções do trabalhador sobre o seu desempenho no presente, mas que também é
mediada pelas impressões de desempenho no passado e pelas antecipações que o
próprio trabalhador tem sobre o que será o seu desempenho no futuro, sem com
isso minimizar a influência que os aspectos relacionais e de contexto exercem
sobre essas percepções.
Ademais, o conceito de “mundo da vida” parece útil para esclarecer o lugar que
essa expectativa ocupa no contexto do retorno ao trabalho, pois o “mundo da
vida” não é concebido como o mundo da atitude natural – mundo que já foi
interpretado por outros. Ao contrário, é um mundo intersubjetivo, objeto de
nossas ações e interações, mundo que precisa ser dominado, transformado de tal
forma que seja possível concretizar o que se pretende realizar nele, entre
nossos semelhantes 34.
Dessa forma as expectativas de desempenho não representam um componente passivo
no processo de retorno ao trabalho. Ao contrário, as expectativas agem sobre o
retorno ao trabalho, afetando-o, modificando-o e também produzindo resistências
que podem culminar em novas atitudes 34.
Por outro lado, a expectativa de desempenho, mais do que um jogo intersubjetivo
de relações, parece denunciar a construção de um tipo ideal de trabalhador,
que, alheio às condições materiais e imateriais do trabalho e de sua capacidade
de produzir ou não adoecimento, precisa permanecer fiel a certos credos como
produtividade, competência, manutenção do reconhecimento e da legitimidade de
trabalhador eficiente segundo os modos de produção vigentes 35,36.
Contudo, as esperadas disposições sobre o desempenho também parecem denunciar a
incapacidade do sistema produtivo de cuidar daqueles cujo desempenho é
distinto. Então, parece ser mais fácil reforçar o processo disciplinar sobre o
que é ser um “trabalhador produtivo”, ou seja, um tipo ideal que assimila e
responde aos desafios impostos pela produção 35, ao invés de aceitar a condição
do trabalhador que adoeceu, de reforçar a sua identidade de trabalhador e de
produzir mudanças nos processos produtivos para que o trabalhador possa
desempenhar apropriadamente sua função no trabalho.
Por fim, a despeito da importância das estratégias de enfrentamento
apresentadas nesta síntese, muitas vezes parecem reforçar uma crença na
individualização do problema, deixando de fora as condições e estruturas da
produção social do trabalho na constituição das expectativas de desempenho.
O retorno ao trabalho como catalizador de novos modos de vida
A noção fenomenológica de “ser no mundo” 37 aplicada às interações entre os
atores envolvidos no retorno ao trabalho nos auxilia a examinar estas
interações não como algo que apenas compõe o mundo do retorno ao trabalho, mas
como elementos constituintes desse mundo, portanto capazes de revelar o que o
retorno ao trabalho é. Com base nisso, no conteúdo da interpretação de segunda
ordem e no aporte teórico fornecido pela reabilitação psicossocial,
argumentamos que o retorno ao trabalho pode se constituir como catalizador de
novos modos de vida.
Os achados revelaram que as interações entre os atores sociais envolvidos no
retorno ao trabalho tratam de temas como suporte no local de trabalho, estigma,
identidade, empoderamento e legitimação da experiência de transtornos mentais,
dentre outros. Na perspectiva fenomenológica, esses temas podem ser entendidos
como sentidos de ser do retorno ao trabalho 37. Vale ressaltar, entretanto, que
esses sentidos clamam por outras formas de manejo do retorno ao trabalho que
não estão integralmente contidas nos modelos de retorno ao trabalho vigentes.
Assim, os temas acima reiteram a complexidade do retorno ao trabalho, que não
pode ser encarado apenas como um processo técnico, singularizado e
burocratizado, voltado para recobrar algo que se perdeu e que deve ser
recuperado, no sentido do retorno à normalidade após um episódio de sofrimento
psíquico 38. O retorno ao trabalho precisa ser entendido numa perspectiva
reabilitadora, que não ignore os avanços que as abordagens biomédica e
ecológica trouxeram, mas que avance para um retorno ao trabalho que inclua
novos modos de viver e trabalhar e que incorporem uma perspectiva crítica.
Propomos portanto, a ampliação da autonomia do trabalhador, centrada na
capacidade do mesmo de elaborar projetos, isto é, ações práticas que modifiquem
as condições concretas de sua vida, incluindo o trabalho. Isto se aplica ao
manejo do ambiente de trabalho, ao aprimoramento de competências no trabalho e
na vida cotidiana e à introdução de estratégias para promover a melhoria da
qualidade de vida, de modo que a subjetividade do trabalhador possa enriquecer-
se. Esses também são fundamentos da reabilitação psicossocial, que trazem para
a discussão sobre o retorno ao trabalho a adoção de estratégias de manejo
voltadas para o trabalho e para o cotidiano de microcontextos como a família e
a comunidade 33.
Ademais, este estudo revela ainda que aspectos relacionais, tais como o
respeito, o relacionamento interpessoal, a validação da identidade e da
experiência do trabalhador, o acolhimento, o escutar o outro e o partilhar de
experiências vividas na vida cotidiana, cuja presença é capaz de facilitar o
retorno ao trabalho, abrem espaço para inferir a pertinência do conceito
derecovery (recuperação) na construção de novos modelos de intervenção no
processo de retorno ao trabalho relacionado a transtornos mentais39.
Na literatura há pelo menos duas formas distintas de compreender o processo
derecovery. Uma centrada na remissão dos sintomas e restabelecimento de um
funcionamento anterior ao momento do aparecimento do transtorno 39. A outra,
vinculada ao modelo psicossocial, nos parece mais apropriada para articular as
ações de retorno ao trabalho, pois é tida como um processo complexo e dinâmico,
que envolve componentes individuais, mas que também é influenciada pela
qualidade das relações e interações entre o indivíduo, seus pares e os
contextos envolvi- dos 39,40. Observa-se ainda, nessa última abordagem, uma
ênfase importante no protagonismo e empoderamento do sujeito que experimenta
uma vivência de sofrimento psíquico, o que condiciona a forma como ele
interfere, individual e coletivamente, na sua busca por inclusão na sociedade
em geral e, em particular, no mundo do trabalho.
Pontos fortes, desafios e limitações do estudo
O método metaetnográfico mostrou-se à investigação de nossas perguntas de
pesquisa e nos possibilitou identificar seis conceitos de segunda ordem que
forneceram um relevante ponto de partida para compreender a complexidade dos
múltiplos fatores que condicionam as interações entre os atores sociais no
retorno ao trabalho de pessoas com transtornos mentais tal como discutida na
literatura. Com isso, foi possível identificar estratégias de enfrentamento
para alguns dos problemas encontrados nas interações entre os atores no retorno
ao trabalho. Isso investe este trabalho de um cunho pragmático que o aproxima
tantos de atores que desejam refletir mais teoricamente sobre este objeto, como
também dos que desejam pensar o cotidiano da assistência e da reabilitação de
trabalhadores que sofrem de transtornos mentais.
Acreditamos que alguns procedimentos como a assessoria de uma bibliotecária no
processo de seleção das bases de dados e busca dos artigos, bem como o
tratamento dos dados a partir do software NVivo 10, aprimoraram os processos de
validação das informações geradas, pois tais procedimentos asseguraram a
auditagem de controle sobre esses processos 41.
Concordamos com Andersen et al. 4 que indicam que a insuficiente descrição dos
contextos nas pesquisas qualitativas constitui-se num desafio importante para a
realização de metaetnografias. Isto porque normas socioculturais e
legislativas, conflitos socioeconômicos e políticos, bem como as relações de
interesse e de poder, traduzidos no mundo do trabalho podem produzir impacto
sobre a experiência das pessoas que sofrem de transtornos mentais e retornam ao
trabalho e, portanto, precisam ser adequadamente consideradas. Assim, poderemos
alcançar um melhor entendimento sobre as múltiplas facetas que envolvem o
fenômeno do retorno ao trabalho de pessoas que sofrem de transtornos mentais.
Dentre as limitações deste estudo destacam- se dois aspectos: primeiro, a
variedade de diagnósticos incluídos, os quais podem ter provocado algum viés na
seleção dos artigos. Segundo, o tempo de afastamento do trabalho que, embora
seja um importante preditor para o retorno ao trabalho 1, variou
significativamente dentre os estudos incluídos e, em alguns casos não chegou a
ser explicitado nos mesmos.
Apenas um estudo brasileiro respondeu aos critérios de inclusão. Vale alertar,
portanto, que inferências para a realidade brasileira, ou mesmo entre os países
do hemisfério norte a partir dos resultados obtidos devem ser feitas com
parcimônia.
Implicações para estudos futuros
Esta revisão adotou as etapas de retorno ao trabalho propostas por Young et
al.8, que nos permitiram verificar que poucos estudos examinaram as etapas
denominadasMaintenance e Advancement (manutenção e progresso), sugerindo a
necessidade de seu maior detalhamento e futuras pesquisas.
Outros aspectos também nos parecem prementes: os estudos mostram que os níveis
gerenciais não se dispõem a construir e discutir com os trabalhadores o plano
de retorno ao trabalho. O mesmo ocorre em relação ao papel da família no
processo de retorno ao trabalho nos casos de transtornos mentais, que não tem
sido satisfatoriamente investigado, apesar da sua importância reiterada em
alguns estudos. Ambos os aspectos precisam ser examinados em maior detalhe.
Consideramos ainda que seja promissor aliar os avanços concernentes à abordagem
biomédica e ecológica às práticas contemporâneas vinculadas à reabilitação
psicossocial, o que nos leva a encorajar futuras pesquisas que utilizem o
conceito de reabilitação psicossocial para ampliar a compreensão sobre
eventuais obstáculos ou facilitadores no processo de retorno ao trabalho.
Agradecimentos
Ao Prodoutoral/UFPB pela bolsa de estudo e a Capes pela bolsa sanduíche
(processo no99999.002786/2014-01) dadas ao primeiro autor. A School of
Occupational Therapy da University of Western Ontario pela estrutura e
acolhimento oferecidos no doutorado sanduíche. A Natalia Yanaina Rivas Quarneti
da Universidade da Coruña pelas discussões que enriqueceram este trabalho. A
Sara Chaves da Silva Neves pelas leituras que fez nos manuscritos e pelo apoio
pessoal dado para o bom êxito dessa pesquisa.