O patriarcalismo possível: relações de poder em uma região do Brasil escravista
em que o trabalho familiar era a norma
Introdução
Em seu artigo polêmico, Mariza Corrêa (1994, p.15-42)1 resumiu as mais
contundentes críticas ao conceito de família patriarcal produzidas pela
historiografia brasileira. A autora enfatiza o exagero de se imputar a todas as
áreas e grupos da sociedade colonial brasileira, bem como a todas as épocas, a
hegemonia de um modelo mais apropriado para definir a prática de um grupo
restrito da elite colonial ' o de senhores de engenho de açúcar de Pernambuco.
Corrêa traça um quadro da diversidade econômica e social do largo território
que constituía os domínios portugueses na América, entre os séculos XVI e XIX '
realidade que não poderia ser acomodada nos estreitos limites do engenho ou da
fazenda. Para ela, Gilberto Freyre e Antonio Cândido recuaram para o interior
da instituição dominante num certo momento do Brasil colonial e, assumindo o
olhar dos senhores brancos e suas famílias, negaram a possibilidade de
autonomia aos demais grupos da sociedade nascente. Segundo a autora, a família
patriarcal pode ter existido e seu papel ter sido extremamente importante,
apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa grande o
processo total de formação da sociedade brasileira. Melhor seria aceitar que
ela foi, de fato, um instrumento disciplinador (CORRÊA, 1994, p.24-34).
Nessas críticas, Marisa Corrêa baseou-se especialmente em dados produzidos por
estudos sobre população e família, a partir da década de 70, os quais
destacaram a existência, de acordo com as regiões econômicas e a condição
social das populações, de múltiplas formas de composição domiciliar, de um
grande número de domicílios nucleares e de mulheres chefiando famílias.2
Questionando a validade dessas evidências, no entanto, já se argumentou que,
se as famílias coloniais eram mais ou menos extensas, [...] eis um
dilema de pouca relevância nos trabalhos de Freyre e Cândido. E
quernos parecer, ainda, que a maior ou menor concentração de
indivíduos, fosse em solares, fosse em casebres, em nada ofuscava o
patriarcalismo dominante, a menos que se pretenda que, pelo simples
fato de não habitarem a casa-grande, as assim chamadas famílias
alternativas viviam alheias ao poder e aos valores patriarcais, o
que ninguém seria capaz de afirmar, seguramente (VAINFAS, 1989,
p.110).
De todo modo, nos anos 80 e 90, inúmeros historiadores destacaram a vigência,
no passado brasileiro, de modalidades de relações consensuais entre iguais,
conhecidas e aceitas pela comunidade, pelos parentes e por autoridades civis e
eclesiásticas, que estariam na origem da constituição de outras formas de
família que não aquela de nítidos traços patriarcais.3
Eni Samara (1998, p.8) sintetizou toda a polêmica, ao indicar que os
pesquisadores em geral se dividem em dois grandes modos de ver: Dain Borges e
Angela Mendes de Almeida, por exemplo, entendem a ordem patriarcal como um
grande modelo ideológico e paradigmático de família; outros, como Muriel
Nazzari, Alida Metcalf e Darrel Levi, ressaltam suas ambigüidades nos diversos
contextos regionais, suas transformações ao longo do tempo e seus limites
quando a raça e a classe são colocadas em questão.
Mesmo em trabalhos mais recentes o tema persiste, numa evidência do quanto as
formulações de Freyre marcaram fundo a historiografia nacional. Silvia Maria
Brügger (2002, cap. 1), por exemplo, a partir da noção de patriarcalismo como
um conjunto de valores e práticas que colocam a família no centro da ação
social, reitera sua presença em Minas ou em qualquer outra parte da Colônia ou
do Império.
No presente artigo, procura-se discutir mais esse tema, partindo-se do
princípio de que a apropriação do patriarcalismo de Freyre apenas como um
conjunto de valores e práticas que colocam a família no centro da ação social,
ou como um ideal disciplinador, presente nos diversos ambientes escravistas do
Brasil ao longo de toda a sua história, não é útil para a ampliação do
conhecimento. Apreendido de uma ou de outra maneira, o patriarcalismo pode
tornar-se um conceito genérico de dominação que pouco ou nada esclarece acerca
de contextos específicos.
O patriarcalismo de Gilberto Freyre, concebido a partir do estudo dos engenhos
de Pernambuco, tem grande força teórica porque sintetiza a arquitetura do poder
gestado no conjunto das relações que ligavam os principais chefes da elite
econômica aos seus familiares, aos seus (muitos) escravos, e à população de
livres pobres que habitavam seus domínios e o entorno. Isso não significa
afirmar a ausência de diferenças no interior da família senhorial, da
escravaria e do grupo de livres pobres. Afinal, uma das características
fundamentais de sociedades com traços de Antigo Regime é que nelas a mobilidade
social não se resume a passagem de um estamento a outro. A ascensão social
ocorre, em geral, no interior dos grupos (FERREIRA, 2005, p.68-69). Sobretudo
quando se trata de locus sociais aparentemente pouco hierarquizados, não se
podem deixar de lado essas (outras) relações de poder.
Ao longo deste texto, procurou-se recuperar ao menos parte das redes de poder
que organizavam hierarquicamente homens e mulheres livres na freguesia de São
José dos Pinhais (PR), que, na passagem do século XVIII para o XIX, era uma
região de agricultura de subsistência e de abastecimento, onde a população
cativa era pouco relevante, do ponto de vista demográfico, e mesmo a elite
tinha dificuldades em incorporar terras, escravos e dependentes aos seus
domínios. Sugere-se, aqui, que a noção de família patriarcal, tal como
aparece em Casa-Grande & Senzala e em outros clássicos da nossa
historiografia, não se constitui como o melhor modelo de análise desse locus
social, embora nele as relações de poder também apresentavam uma conformação
patriarcalista.
A análise foi realizada a partir do cruzamento de dados sobre composição
domiciliar, produção e posse de terras, presentes nas Listas Nominativas de
Habitantes 'censos realizados regularmente na Capitania de São Paulo na
passagem do século XVIII para o XIX ' e no Inventário de Bens Rústicos
'levantamento das propriedades rurais da mesma capitania, produzido em 1818. No
processo de elaboração, foi particularmente útil o princípio formulado por
Fredrick Barth (2000, p.128-130), de que as estruturas mais significativas da
cultura ' ou seja, aquelas que mais conseqüências sistemáticas têm para os atos
e relações das pessoas ' talvez não estejam em suas formas, mas sim em sua
distribuição e padrões de não-compartilhamento.
A freguesia de São José dos Pinhais
O vilarejo de São José dos Pinhais fazia parte da porção meridional da
Capitania de São Paulo, território que mais tarde formou o Paraná. Esta região
começou a ser explorada pelos portugueses já no século XVI, no entanto a
ocupação foi mais efetiva somente a partir de 1570-1580, quando ali se
encontrou ouro aluvional. Em 1617, no litoral, foi fundada a vila de Paranaguá,
que se tornou em centro da então recém-criada Capitania de Nossa Senhora do
Rosário de Paranaguá. A partir do início do século XVIII, o ouro das Minas
Gerais eclipsou a modesta produção local e, em 1711, a região passou à condição
de comarca da Capitania de São Paulo. Muito antes da decadência aurífera,
porém, os mineradores avançaram pela Serra do Mar até o planalto, onde fundaram
novos núcleos populacionais, como os de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais
(Curitiba) e de São José dos Pinhais (na região contígua a Curitiba), povoações
iniciadas ainda no século XVII.
À medida que se exauria o ouro, os habitantes do planalto voltaram-se para a
agricultura, a pecuária e o tropeirismo. Estas duas últimas atividades
rapidamente se vincularam à economia do Centro-Sul, em face da grande demanda
por alimentos em Minas Gerais. No século XVIII, o alto preço do gado nas Minas
contribuiu para a multiplicação das fazendas de criação e de invernagem, a
maioria delas nos Campos Gerais, especialmente após 1730, quando foi aberto o
Caminho do Viamão, que ligava o Continente do Sul a Sorocaba, passando
necessariamente pelo Paraná. Graças a essas atividades, incrementou-se a
ocupação do planalto paranaense, em direção ao oeste, e Curitiba desenvolveu-se
como centro importante, disputando com Paranaguá a hegemonia econômica e
política local, até se tornar sede da Comarca, em 1812.
Simultaneamente à criação e à invernagem, a população do planalto,
especialmente aquela estabelecida em Curitiba e seu entorno (inclusive São José
dos Pinhais), produzia milho, trigo, feijão e mandioca, atividade que garantia
o abastecimento regional e dava suporte ao setor de exportação. Nessa região,
as propriedades eram em geral menores do que as dos Campos Gerais, compondo-se
sua paisagem agrária principalmente de sítios agrícolas e, de quando em quando,
uma fazenda. Ali a população de escravos e agregados era menos numerosa, se
comparada à presente nos Campos Gerais, e o trabalho familiar adquiria maior
peso.
A produção de dependentes
No período analisado, a população livre de São José dos Pinhais, e de boa parte
da região do Paraná, caracterizava-se pelo expressivo contingente de não-
brancos. De acordo com os dados dos mapas populacionais, para seis anos entre
1798 e 1830, era tímida a presença de negros na população livre da freguesia
(até 1,5%), porém, a proporção daqueles identificados como pardos variou entre
22% e 49,5% (COSTA e GUTIÉRREZ, 1985, passim).
Do conjunto dos livres, eram poucos os que podiam ter escravos: em 1782, 80,6%
dos 160 domicílios do vilarejo não eram escravistas; em 1803 estes constituíam
79,9% das 319 unidades domiciliares, chegando em 1827 a 83,6% (de 587
domicílios). Do seleto grupo de escravistas, 58% tinham apenas de um a quatro
cativos em 1782; em 1803 esse grupo chefiava 66% dos domicílios com escravos,
aumentando para 75% em 1827. A participação das escravarias médias ' cinco a
nove cativos ' diminuiu sensivelmente no período (de 29% para 27,4% e depois
para 24%), e reduziu-se mais ainda a de grandes escravarias (mais de dez) ' de
12,9% para 6,5% e finalmente para apenas 1% (Tabela_1). Conforme já se anotou,
Curitiba e principalmente São José dos Pinhais foram os casos mais extremos da
representatividade do pequeno plantel escravista no Paraná no século XIX
(PENA,1999, p.30).
Como em outras partes do Brasil Meridional, alguns domicílios de São José dos
Pinhais tinham agregados entre os seus membros. Este específico grupo social há
muito vem sendo observado pela historiografia. Oliveira Vianna, por exemplo,
escreveu que as três classes fundamentais das regiões rurais do Centro-Sul eram
a família senhorial, os agregados e os escravos. Sobre os agregados este autor
sublinhou que constituíam uma sorte de colonos livres.
Habitam fora dos perímetros das senzalas, em pequenos lotes, em
toscas choupanas, circundantes ao casario senhorial, que do alto da
sua colina, os centraliza e domina. [....] Essa é a origem da classe
dos agregados ou moradores do domínio. Ela é o refúgio a que se
ocolhem os peninsulares, de estração plebéia, sem meios para
requererem sesmarias, lançados na agitação colonial e postos defronte
da escravaria dos grandes domínios. [...] Porém, logo essa plebe
entra a receber o transbordo das senzalas repletas, as récovas da
escravaria, o sobejo da mestiçagem das fazendas. [...] O elemento
branco acaba afundando-se nessa ralé absorvente que, um pouco mais
tarde, se fará o peso específico da população dos moradores (OLIVEIRA
VIANNA, 1987, p.65-67).
Embora o autor acabe por considerar indivíduos de condição muito variada numa
mesma categoria ( agregados), o fato é que na caracterização acima, e para além
de seu conteúdo elitista, Oliveira Vianna anuncia uma disposição em pensar
aquela sociedade rural de modo a incluir a imensa faixa de sua população que
não era escrava nem escravista.
Muito tempo depois, em um trabalho voltado exclusivamente para o tema, Eni
Samara (1997, p.42) procurou definir melhor a categoria agregado. A partir de
pesquisa sobre a vila de Itu, na passagem do século XVIII para o XIX, a autora
afirma tratar-se de uma sorte de homens, mulheres e crianças que tinham em
comum o fato de não possuírem terras ou casa própria, tendo, portanto, que se
ajustar aos proprietários das áreas rurais ou urbanas, dentro dos mais
diferentes tipos de relações.
Por seu lado, Carlos Bacellar enfatiza que a agregação era sintoma de uma
sociedade em que alguns segmentos, por diversas razões, não encontravam
condições de se estabelecer autonomamente. Buscava-se, assim, trocar trabalho
por teto e comida, ou instalar-se de favor em terras de outrem. Muitos
agregados eram indivíduos solitários e extremamente pobres e desenraizados, mas
também podiam ser chefes de família que detinham, inclusive, a posse de um ou
dois escravos. Também variava o status do agregado no interior de um domicílio
ou de uma propriedade: ele podia ser um idoso, um inválido ou uma mulher
sozinha com filhos pequenos, podia ser um exescravo com parentes no plantel do
chefe do fogo, ou mesmo um migrante recém-chegado à espera de oportunidade de
ascensão social. Mas também podia ser o filho recém-casado, o irmão ou o pai do
chefe do domicílio (BACELLAR, 2001).
Nas listas nominativas de São José dos Pinhais, aparecem três categorias de
indivíduos livres agregados a alguns dos domicílios: parentes não nucleares,
expostos e pessoas sem vínculos de parentesco com o chefe do fogo (estes, os
que mais sistematicamente são identificados, nas listas nominativas de São
José, pelo termo agregado e, portanto, assim serão referenciados daqui por
diante).
Em 1782, cerca de 4% dos 848 livres que viviam em São José dos Pinhais estavam
agregados em domicílio alheio; eles eram pouco mais de 5% das 1.689 pessoas
livres, em 1803, e 3,7% (dos 2.795 livres), em 1827. Sobre expostos e parentes,
não se dispõe de dados para 1782, pois nesse ano as informações da lista de
habitantes apresentam muitas lacunas quanto a estes quesitos. Ainda assim,
sabe-se que pelo menos 10% da população livre da freguesia vivia sob uma destas
condições em 1803 e 4,2% em 1827. Nesse último ano, os números podiam ser ainda
maiores, uma vez que os dados são menos precisos do que os da lista de 1803.
Entretanto, considerando-se os índices obtidos, a população livre formada por
agregados, parentes e expostos correspondia a 15% em 1803 e a 8% em 1827,
lembrando que são anos em que a participação da população cativa era de 13% e
de 9,2%, respectivamente.
Não eram poucos os domicílios com agregados, parentes e/ou expostos em São José
dos Pinhais. Eles tinham presença marcante, especialmente em 1803. Dos 160
fogos da freguesia, 10% tinham agregados em 1782; nada menos que 18,5% dos 319
domicílios registrados em 1803 e cerca de 12% das 587 unidades recenseadas em
1827. Em 1803, 23,2% dos domicílios tinham pelo menos um parente não-nuclear ou
um exposto, sendo este índice de 9,7% em 1827. No entanto, não é provável que
eles estivessem presentes em menor número, ao menos não tanto, em 1827. Tudo
indica ser este mais um caso de sub-registro. No conjunto dos domicílios do
vilarejo, cerca de 30% tinham ao menos um membro que não pertencia à família
nuclear em 1782. Esse índice era de 62% em 1803 (lembrando que esta é a Lista
com informações mais precisas) e de 38% em 1827 (Tabela_2).
Em São José, o grupo formado pelos agregados era marcadamente feminino: nos
três anos observados 2/3 dele eram compostos por mulheres, enquanto na
população livre não-agregada elas representavam a metade. O grupo também era
mais jovem: a idade média dos agregados era de 22,6 anos em 1782, 19,7 anos em
1803 e 17 anos em 1827. Já para os livres não-agregados, a idade média era, nos
respectivos anos, de 24,2, 20,8 e 19,6 anos. Contudo, em relação à população
livre não-agregada, apenas em 1782 havia uma proporção maior de crianças entre
os agregados. A principal característica desse grupo era a pequena proporção de
idosos (especialmente em 1803).
Este quadro não difere muito do encontrado em Itu, por Eni Samara, e a autora
afirma que o mesmo era regra geral na Capitania de São Paulo. No conjunto dos
recenseamentos paulistas iniciados na segunda metade do século XVIII, era
grande o número de mulheres solteiras e viúvas, muitas vezes com filhos, que se
agregavam às famílias locais. No entanto, apesar da relativa freqüência com que
aparecem crianças agregadas nos fogos, eram mais numerosos os agregados adultos
(SAMARA, 1977, p.55-60).
Em São José dos Pinhais, a maior parte dos fogos com agregados abrigava apenas
um ou dois deles, e em nenhum fogo havia mais do que sete. Embora existissem
agregados em domicílios escravistas, esta situação era mais comum naqueles sem
cativos (que constituíam 75% dos fogos com agregados em 1782, quase 70% em 1803
e 64% em 1827), e a maior parte dos agregados encontrava-se neste tipo de
domicílio (85% em 1782, 63% em 1803 e 61% em 1827).
No entanto, por esses mesmos dados também se infere que, conforme se reduzia o
contingente cativo na freguesia, mais os escravistas incorporavam agregados. Em
outras palavras, a possibilidade de homens e mulheres pobres de atrair
agregados provavelmente se reduzia quando os escravistas (homens e mulheres de
maior poder econômico e político no interior do vilarejo) passavam a se
interessar mais por aquela mão-de-obra, devido à dificuldade em adquirir
cativos.
Os dados referentes a Itu, estudados por Eni Samara, tendem a reforçar a
hipótese. Como já indicado, a autora observou esta vila no momento de expansão
da economia açucareira. Ela percebeu que a larga penetração de mão-de-obra
escrava relegava a segundo plano a mão-de-obra livre nas grandes fazendas, e
que os agregados concentravam-se mais nas propriedades de lavoura de
mantimentos e nas unidades domiciliares da vila. Em 1798, em um bairro onde se
localizavam grandes propriedades canavieiras, a pesquisadora não computou
nenhum agregado e os escravos representavam 83% dos moradores, enquanto na rua
do Ouvidor, no mesmo ano, 32% dos moradores eram agregados e menos de 11%
escravos. Os índices levantados para os demais bairros e ruas de Itu seguem
praticamente o mesmo padrão. Por esta razão, Samara depreende que os agregados
eram utilizados como mão-de-obra, nas áreas de lavoura comercial, somente em
períodos de carência de escravos. Além disso, quanto mais crescia a população
cativa na região, mais se reduzia a de agregados: entre 1785 e 1829, a
proporção de escravos aumentou paulatinamente de 25% até 55%, enquanto a dos
agregados, que no início do período correspondia a cerca de 10% da população,
passou para apenas 4% em 1829 (SAMARA, 1977, p.43-47 e 73-74).
Também as informações reunidas por Roberto Guedes Ferreira reforçam a assertiva
apresentada neste artigo. A vila de Porto Feliz, vizinha a Itu, no século XIX
viu crescer significativamente sua população cativa, devido à expansão da
economia canavieira. Entre 1798 e 1818, os escravos representavam entre 31% e
36% da população total do lugar. Desde então, este porcentual subiu para 40% em
1820 e 45% em 1824, chegando a 51% em 1829. Em movimento inverso, a proporção
de agregados na população total, que girava em torno de 11% entre 1798 e 1820,
decresceu para 9,5%, em 1824, e para apenas 5%, em 1829. Além disso, 36,5% dos
fogos registrados em 1820 tinham agregados, diminuindo para 30,6% em 1824 e
para 19% em 1829. Finalmente, em 1818, os domicílios escravistas que também
agregavam livres representavam 12,5% do total de fogos da vila e 38,5% dos
fogos escravistas, passando para 8% e 26%, respectivamente, em 1829. Do mesmo
modo, 48,5% dos agregados de Porto Feliz estavam em fogos escravistas em 1798,
índice que caiu para 45% em 1829.4
Para o agregado, estabelecer-se em domicílio alheio podia funcionar como
estratégia de sobrevivência. Em estudo sobre a Lapa, Maria Luiza Andreazza
(2002, p.10-11) observa que muitas mulheres, especialmente as mães-solteiras,
por certa fase da criação dos filhos, agregavam-se a um domicílio, à espera de
condições para alçar autonomia. Em São José dos Pinhais isso também não deveria
ser incomum, pois, como se viu, era grande o número de mulheres, crianças e
jovens nesse grupo. Uma outra razão foi apontada por Bert Barickman (2003,
p.167-209), que estudou os plantadores de mandioca do Recôncavo baiano, quando
sugere que, apesar de a região contar com uma fronteira aberta, nem todos os
homens pobres se interessavam em desbravar novas terras, preferindo permanecer
agregados de algum engenho, onde teriam acesso mais fácil ao mercado para
vender sua produção excedente. Com estes exemplos, pretende-se salientar,
enfim, que a perda da autonomia era o preço a pagar pela possibilidade de viver
da melhor maneira possível, até conseguir alçar a uma melhor condição. Ainda
que nem sempre isso acontecesse, talvez muitos agregados acreditassem que tais
expectativas poderiam ser mais facilmente concretizadas sob a proteção de
homens mais poderosos.
A esse respeito, Eni Samara (1977, p.69-71) indica o potencial conflito que
mediava tal relação de dependência, ao sugerir que a falta de serviço na
fazenda e a abertura de novas áreas para o plantio ou mesmo novas
possibilidades de trabalho na vila de Itu, nos séculos XVIII e XIX, pode ser
uma das explicações para a instabilidade residencial dos agregados: num ano
estão num domicílio, no outro já não se encontram mais lá. Dessas palavras,
pode-se deduzir que, se em algumas situações reafirmar a submissão podia ser
boa estratégia, em outras, sair de uma relação de dependência para outra era
mais eficaz.
Como já mencionado anteriormente, além dos agregados, uma parcela dos membros
de alguns domicílios de São José dos Pinhais era formada por parentes não-
nucleares, ou por expostos. Esta última categoria era comumente encontrada nas
inúmeras vilas e freguesias do Brasil, na época. A condição dos expostos era,
em geral, bastante dúbia, ora inseridos nos domicílios como se filhos fossem,
ora distinguidos por sua específica condição, ora tratados como agregados. A
própria forma como foram recenseados em São José dos Pinhais dá uma dimensão
dessa dubiedade, pois aparecem expostos apenas em 1803, e certamente eles
existiam em 1782 e em 1827, já que a exposição era comum no vilarejo,5 mas
provavelmente foram contabilizados como filhos ou como agregados. Em 1803 foi
indicada a presença de 41 expostos em São José dos Pinhais (21 homens e 20
mulheres), crianças e jovens quase todos.
Os parentes não-nucleares presentes nos fogos da freguesia de São José dos
Pinhais, no período, eram predominantemente mulheres e crianças. Nos dois anos
aqui observados, as mulheres eram em geral irmãs, mas também mães, tias,
sogras, noras e cunhadas; as crianças eram sobrinhos e principalmente netos (a
prole, sobretudo, das filhas solteiras ou viúvas vivendo com os pais).
Tomando apenas o ano de 1803, observou-se que 13% (42 de 319) das unidades
domiciliares possuíam dez ou mais membros. Destas, em sete (16,3%) viviam
apenas famílias nucleares, e as demais adotavam estratégias de composição
mista. Desse conjunto, além dos parentes nucleares, em 22 dos fogos havia
escravos, 17 abrigavam agregados e 15 tinham parentes não-nucleares ou
expostos. No mesmo ano, dos 277 fogos com até nove membros, 168 (61%) eram
nucleares (ou de solitários) e os demais apresentavam composições mistas, sendo
que em 52 existiam parentes ou expostos, 38 abrigavam agregados e em 37 havia
escravos.6
Tudo indica que as unidades com número menor de pessoas tinham esta
característica exatamente porque suas chefias não conseguiam atrair muitos
dependentes. E esta dificuldade era mais real em relação a escravos, um pouco
menos no que se refere a agregados e menor ainda quanto a parentes. Já as
unidades mais extensas garantiam esta característica preferencialmente com
escravos, mas também com agregados e, em menor grau, com parentes não-nucleares
(Gráfico_1).
Quadro semelhante foi encontrado em Paranaguá. Dos 99 fogos que, em 1803,
tinham dez ou mais integrantes, apenas 18 (18,2%) eram formados somente pela
família nuclear; dos 888 fogos com menos de dez integrantes, 585 (65,9%) tinham
esta conformação. Dos domicílios com menos de dez membros, em 19% havia
parentes não-nucleares, 15,5% abrigavam agregados e 13,4% tinham escravos. Dos
domicílios com dez ou mais membros, 78,8% possuíam escravos, em 30,3% havia
agregados e 17,2% abrigavam parentes não-nucleares.7 Portanto, nessa vila do
litoral paranaense, onde no período a participação de cativos era maior do que
em São José dos Pinhais, a preferência pela mão-de-obra cativa, por parte dos
mais poderosos, era ainda mais evidente.
Acrescente-se que a capacidade de reunir pessoas no domicílio aumentava de
acordo com a idade. Em São José dos Pinhais, ainda tomando como base o ano de
1803, apenas 1,7% dos fogos com chefia de até 30 anos possuíam dez ou mais
integrantes. Para os domicílios com chefias entre 31 e 50 anos, essa proporção
correspondia a 11,4% do total e, para aqueles com chefes de 51 anos ou mais,
era de 26,2%. Ao longo do ciclo familiar mudavam também as condições de
arregimentação de dependentes, pois nos primeiros anos da constituição de
domicílio autônomo (chefes com até 30 anos) aparentemente havia maior
dificuldade para atrair parentes não-nucleares e agregados (Gráfico_2).
Por fim, vale a pena pensar o acolhimento de expostos, parentes e, sobretudo,
agregados, em São José dos Pinhais, no âmbito da discussão de uma prática
costumeira na Europa dos séculos XVII e XVIII, qual seja, a circulação dos
filhos, um fenômeno que ficou conhecido pela expressão life-cycle servant,
cunhada por Peter Laslett (BURGUIÈRE, 1998, p.37).
Muitas vezes tal prática tinha finalidade pedagógica e, em algumas regiões, era
freqüente mesmo entre os ricos, que trocavam de filhos para que adquirissem
competência e conhecimentos. No entanto, os autores em geral concordam que o
costume esteve mais disseminado em regiões e meios desfavorecidos, pois
permitia aos camponeses pobres verem-se livres de uma parte do fardo familiar,
ao mesmo tempo em que proporcionava a outras famílias um complemento de mão-de-
obra, especialmente enquanto seus filhos eram de tenra idade (BURGUIÈRE, 1998,
p.38).
É provável que tal quadro pudesse ser eventualmente encontrado em São José dos
Pinhais, notadamente no caso de parentes. Porém, ainda que o vilarejo tivesse
poucos escravos, é provável que ali a prática da agregação de não-parentes era
menos um signo da existência de uma comunidade camponesa8 e mais um índice de
diferenciação escravista. O principal argumento a reforçar tal afirmativa
talvez seja a designação da cor das pessoas: 74% dos agregados foram
identificados como pardos ou negros em 1803; índice que se ampliaria para 82%
em 1827. Ademais, dos 23 agregados brancos de São José em 1803, 22 estavam em
fogos chefiados por brancos e todos os 19 agregados brancos, em 1827, viviam em
fogos com chefia branca. Já entre os 63 não-brancos que em 1803 eram agregados,
apenas 24 residiam em fogos de não-brancos e, em 1827, apenas 26 dos 84 estavam
estabelecidos em domicílios de chefia não-branca.
Por fim, observe-se que, embora os agregados mais comumente encontrados na
freguesia fossem crianças e jovens, o perfil dos domicílios em que viviam
difere muito do que geralmente se encontra em fontes européias. Apenas para
citar alguns exemplos, esse era o caso de Angélica, uma parda de seis anos, que
estava agregada no domicílio do lavrador José Martins de Brito, um branco de 49
anos, casado e com seis filhos entre 5 e 22 anos (domicílio 21, Lista de 1803).
Ou ainda, dos jovens Sypriano (12 anos), Manoel (11 anos), Anna (dez anos),
Francisca (nove anos) e Antonia (seis anos), todos pardos, agregados na casa de
Camilio de Lima, fazendeiro branco, de 29 anos, casado, sem filhos e
proprietário de 11 escravos (domicílio 189, Lista de 1803).
Também não era incomum a agregação de pardos e negros livres casados com
escravos do domicílio. E ainda alguns agregados poderiam ter outros laços de
parentesco com escravos dos domicílios ' além do nuclear ', os quais, no
entanto, muito dificilmente podem ser recuperados pelo historiador.
Em alguns fogos talvez houvesse a agregação de forros, o que não é especificado
de forma sistemática pelas listas de São José, entretanto, a historiografia tem
acentuado a grande ocorrência de agregação de forros ou livres de cor,
especialmente mulheres idosas ou jovens com seus filhos pequenos. De fato, essa
situação foi encontrada nas treze indicações de agregados forros em listas
nominativas de Paranaguá (nove em 1783 e quatro em 1830). Como enfatizou
Manuela Cardoso da Cunha (1985, p.48-51), a esperança da manumissão (...)
passava pela dependência pessoal do senhor, ou eventualmente de outro senhor.
Ainda conforme a autora, o que a alforria revela é uma expectativa de
transformar o escravo num cliente, agregado.
Os dados até aqui apresentados permitem inferências que transcendem a mera
identificação de uma morfologia doméstica, uma vez que se referem a práticas
sociais importantes, fornecendo subsídios que possibilitam avançar no
entendimento do funcionamento de uma sociedade escravista, por certo, mas com
poucos escravos.
A presença de agregados (principalmente), expostos e parentes nos domicílios de
São José dos Pinhais (e de outras vilas e freguesias da Capitania de São Paulo)
sugere a releitura das relações de poder em sociedades escravistas, pois indica
a generalização de uma específica prática patriarcalista entre os livres. Nela,
alguns eram mais bem-sucedidos ' aqueles com maior poder econômico e político
para tornar um estranho sua propriedade ou seu dependente '; os menos poderosos
perseguiam o mesmo objetivo, embora raramente tivessem condições de exercer seu
poder de mando para além da parentela. A análise dos dados sobre atividade
econômica e posse de terras, no item a seguir, deve contribuir para a
clarificação do que até aqui foi exposto.
Atividades econômicas e propriedade das terras
No período, como já mencionado, a população da freguesia de São José mantinha-
se basicamente do fruto do trabalho na agricultura e na criação, o que era
característica de toda a região de Curitiba e seu entorno. Os dados sobre
atividades econômicas, presentes nas listas nominativas, ajudam a completar
esse quadro.
A lista de 1803 traz a ocupação do chefe do domicílio bem como suas exportações
no ano.9 Considerando-se esses dois elementos (isto é, classificando como
artesão e lavrador, por exemplo, um chefe de domicílio que se identificou como
sapateiro e exportou farinha de trigo; ou como lavrador e pecuarista um chefe
de domicílio que tenha declarado ser lavrador, mas também exportou toucinho e
bois), foram obtidos os seguintes resultados: dos 319 chefes dos fogos, 291
(91%) indicaram exercer algum tipo de atividade agrícola; destes, quase 70%
declararam plantar apenas para o próprio sustento. Os demais, além de garantir
a subsistência, conseguiram gerar excedentes para o mercado.
Da pecuária (criação de vacum) ocupavam-se pelo menos 25 chefes de fogos, cerca
de 8% do total (em geral também lavradores), e quase todos declararam ter
exportado parte da produção naquele ano, sendo que apenas dois homens foram
identificados como proprietários de fazendas. Nesta lista foram ainda
recenseados um minerador, três indivíduos ocupados na extração de erva-mate,
dois tropeiros,10 dois fazendeiros11 e 15 jornaleiros. Também se faz referência
a ocupações mais ligadas ao meio urbano (artesãos, serviçais, eclesiásticos,
militares, etc.), a nove chefes de domicílios que estariam no Sul (talvez
conduzindo tropas ou negociando) e a cinco que viviam de esmolas.
A lista de 1827 é muito pobre em informações, pois nela consta apenas a
ocupação. Por esta razão, para fins de comparação, preferiu-se utilizar os
dados da lista de 1818, na qual, além da ocupação e da exportação, aparece a
produção de cada domicílio. Nesse recenseamento, dos 494 chefes de fogos, 417
(84,4%) dedicavam-se à lavoura e 146 (29,5%) à pecuária. De todos eles, foi
possível apurar que apenas sete correspondiam a proprietários de fazendas, 196
venderam parte de sua produção e 317 (56%) produziram apenas para o seu próprio
sustento. Entre os chefes de domicílio da freguesia, havia 26 apanhadores de
erva-mate, dez fazendeiros e quatro capitães do mato. Também foram registrados
alguns artesãos, eclesiásticos, profissionais liberais, etc., além de 24
pessoas identificadas como pobres ou mendigos. Ainda consta na lista que 12
indivíduos estavam no Sul e 13 na guerrilha.
Em 1803, os domicílios que declararam vendas de produtos agrícolas tinham em
média 1,3 cativo; para os que informaram plantar apenas para o próprio sustento
essa média era de 0,5. Em 1818, quando o porcentual de escravos havia caído na
freguesia, a desigualdade no interior desse grupo de lavradores se manifestava
ainda mais claramente: as sete fazendas tinham em média seis cativos; os
lavradores que declararam vendas possuíam em média um escravo (estas duas
categorias, juntas, tinham em média 1,3 cativo); e os que produziram para o
próprio sustento dispunham de apenas 0,1 cativo, também em média.
Todavia, a mão-de-obra da freguesia não se restringia aos escravos. Em 1803,
aqueles que plantavam apenas para o sustento abrigavam em média 0,2 agregado e,
para os que venderam parte de sua produção, essa média correspondia a 0,3. Em
1818, quando era menor a participação de escravos na freguesia, a diferença
acentuou-se, com uma média 0,1 agregado para os que plantavam para o sustento e
de 0,4 para os que venderam parte da produção (incluídos aí os grandes
proprietários).
Parece que existia, de fato, uma relação diretamente proporcional entre volume
da produção e número de pessoas integradas ao domicílio, pois, até mesmo no que
se refere aos parentes (nucleares ou não) e aos expostos, os lavradores com
produção excedente apresentavam, em média, um número maior de pessoas em seus
domicílios: 5,7 em 1803 e 5,0 em 1818, contra 4,8 e 4,5 dos outros lavradores,
nos respectivos anos.
Para o século XVIII, os dados sobre as formas de aquisição das terras no Paraná
estão esparsos e são imprecisos. Sabe-se que na região as sesmarias eram
requeridas através da prática de alegar posse anterior. A ocupação pura e
simples e a usurpação também eram formas muito comuns de obtenção de terras.
Para 1818, tem-se um quadro mais detalhado, graças à existência de um censo de
terras realizado em toda a Capitania de São Paulo: o Inventário de Bens
Rústicos. Horácio Gutiérrez, que estudou esse documento na parte relativa ao
Paraná, aponta para a existência, em toda essa região, de grande número de
pequenas propriedades, particularmente no litoral e nas áreas mais urbanizadas
do planalto, voltadas basicamente para a agricultura de alimentos e o
autoconsumo. No entanto, ressalta o autor, havia uma altíssima concentração da
propriedade da terra no Paraná, pois, enquanto as propriedades com até 100ha,
perfazendo 64% do total, representavam apenas 1,6% da área total, propriedades
acima de 5.000ha, correspondendo a 2,4% do número total, apropriavam-se de
66,6% da área ocupada (GUTIÉRREZ, 2001, p.217).
Manipulando os dados do Inventário de Bens Rústicos de Curitiba (em que está
incluído o registro das propriedades de São José dos Pinhais), foi possível
confirmar e também detalhar tal quadro. Das 872 propriedades registradas em
sete companhias de ordenanças,12 524 (60%) tinham menos de 100ha, ocupando
apenas 3,4% das terras (14.390,9ha de um total de 422.831,5ha). Apenas 11
propriedades possuíam mais de 5.000ha (1,2%), no entanto ocupavam 32% do total
de terras (135.641,0ha).
Especificamente para a região de São José dos Pinhais (3 a e 7 a companhias de
ordenanças de Curitiba), encontrou-se o seguinte quadro: 115 propriedades com
até 100ha compunham 56% do total de 205 propriedades e ocupavam pouco menos de
4% da área total. Já as propriedades com mais de 4.000ha (não foram registradas
propriedades com mais de 5.000ha) eram apenas quatro (perfazendo cerca de 2% do
total de propriedades), ocupando 70% da área total na freguesia.
É possível matizar esse quadro, em duas direções. Por um lado, porque na região
não era incomum que uma só pessoa tivesse duas ou três propriedades não
contíguas. Embora na freguesia de São José não tenham sido registradas
propriedades com mais de 5.000ha, na manipulação dos dados identificou-se
registro de pessoas com mais de uma propriedade. É o caso do Capitão Francisco
da Costa, que possuía três propriedades, que, juntas, perfaziam um total
5.880,6ha. Além disso, não é improvável que alguns proprietários, especialmente
os grandes, também possuíssem terras e escravos em outras freguesias do
planalto e do litoral. Esta possibilidade parece ainda mais plausível quando se
verifica que, em São José dos Pinhais, foram registradas oito propriedades
cujos donos viviam em Santa Catarina, São Francisco, Paranaguá, Antonina ou
Sorocaba.
Por outro lado, das 205 propriedades da freguesia de São José, 27 estavam em
nome de escravos. Na verdade, não há como decifrar exatamente o que isso
significa, pois a identificação é ambígua. Tem-se apenas a indicação de que,
nessas terras, as pessoas estabelecidas eram os escravos de fulano de tal.
Como na lista nominativa do mesmo ano foram encontrados apenas quatro
domicílios integrados somente por escravos, pode-se supor que aquelas terras
eram ocupadas coletivamente por libertos e seus descendentes, ainda que não
necessariamente fossem legalmente suas. Ocorre que, juntas, tais propriedades
perfaziam o não desprezível índice de 22,4% da área total, chegando uma delas a
medir pouco mais de 2.900ha. Talvez isso explique, ao menos parcialmente, a
discrepância entre o número de propriedades e o de domicílios: foram
registradas 215 propriedades na freguesia em 1818, no entanto, na lista
nominativa do mesmo ano, foram recenseadas 494 unidades domiciliares. Logo,
pode-se deduzir que muitos desses domicílios seriam ocupados por aqueles negros
e pardos livres, embora certamente existissem inúmeras propriedades em nome de
uma só pessoa, porém habitadas e cultivadas por sua família ampliada,
organizada em domicílios nucleares, ou ainda por agregados que construíam casa
na propriedade.
Feitas essas ressalvas, para avaliação das diferenças quanto às dimensões das
propriedades arroladas no Inventário de Bens Rústicos de 1818, as medidas
originais (em braças de fundos e testada) foram transformadas em alqueires
paulistas,13 obtendo-se, assim, números redondos. Os resultados desses
cálculos estão resumidos na Tabela_3.
Verifica-se que, em relação a Curitiba, São José dos Pinhais apresentava menor
concentração de terras, pois lá existiam, proporcionalmente, menos propriedades
com até 50 alqueires, ocupando uma área maior de terras do que suas similares
de Curitiba. Além disso, as propriedades médias, em São José dos Pinhais,
ocupavam uma proporção muito mais significativa da área total das terras, do
que aquelas similares nas demais companhias de ordenanças da região.
Finalmente, em São José a elite latifundiária detinha uma porção muito menor
das terras. Como já mencionado, era ainda maior a diferença entre São José e as
localidades mais especializadas na pecuária e no tropeirismo, como Castro, onde
os latifúndios monopolizavam boa parte das terras. Desse modo, a freguesia em
estudo era exemplo extremo não apenas da representatividade do pequeno plantel
de escravos na região, mas também seria a área do planalto em que as terras
estavam menos concentradas.
Segundo o Inventário de Bens Rústicos, para o conjunto das sete companhias de
ordenanças de Curitiba, 72% das propriedades (626) foram adquiridas por compra
e/ou herdadas e 27% (237) eram posses. As demais eram sesmarias (5), ou um
misto de herança e posse (2), sesmaria e herança (1), sesmaria e compra (1) e
posse e compra (1). Exclusivamente para as companhias de São José dos Pinhais,
as proporções foram de 76,8% para compra ou herança e de apenas 14% para posse.
Embora esse último porcentual seja pequeno, a posse era forma de ocupação
relativamente usual para os mais pobres, pois 86% das propriedades obtidas por
este meio, em São José, tinham até 50 alqueires. Dado que as terras do vilarejo
eram de ocupação antiga (iniciada no século XVII, como se viu), esta
característica pode indicar que alguns pecuaristas e invernistas que ali
viviam, no passado, venderam ou abandonaram suas sesmarias, transferindo-se
para a Lapa, Castro ou outras localidades dos Campos Gerais, mais próximas do
Caminho do Viamão, e, assim, parte de suas terras tornou-se posse da população
mais pobre.
O cruzamento dos dados do Inventário de Bens Rústicos de 1818 com as
informações da lista nominativa de São José dos Pinhais, do mesmo ano, permitiu
realizar outras inferências. Porém, como nem todas as pessoas relacionadas no
inventário foram encontradas na lista nominativa e outras tinham homônimos,
foram levantados os dados de apenas 90 proprietários, aqueles sobre os quais
não se teve dúvida. Embora se trate de uma amostragem, ela é bastante
significativa, já que se refere a 95 das 205 propriedades registradas (portanto
46% delas) e a cerca de 40% das terras ocupadas na freguesia. Além disso,
abrange os diferentes estratos de proprietários: dos 90 selecionados, 66
possuíam terras com até 100 alqueires, 18 eram donos de 101 a 500 alqueires,
três eram proprietários de 501 a 1.000 alqueires e três eram senhores de terras
de com mais de 1.000 alqueires. Nos casos em que a pessoa tivesse mais de uma
propriedade registrada em seu nome, foram somados os alqueires de todas, que
passaram a ser tratadas como se fosse uma única.
Na busca de relação entre produtividade e tamanho da propriedade, inferiu-se
que a posse de poucas terras podia dificultar a produção de excedentes: dos 40
proprietários de até 50 alqueires sobre os quais havia informações a respeito
da produção, 25 declararam ter plantado apenas para comer e outros 15 afirmaram
ter feito alguma venda de lavoura e/ou criação naquele ano. Entre os
proprietários com mais de 50 alqueires, apenas quatro declararam ter plantado
só para o sustento e os demais (26) venderam gado e/ou produtos agrícolas
naquele ano.
Parece que existia relação também entre tamanho da propriedade e número de
pessoas no domicílio: dos 52 proprietários de até 50 alqueires de terras, 41
(79%) não possuíam escravos, 33 (63,5%) não abrigavam agregados e 44 (84,5%)
tinham no máximo dez pessoas morando em seu domicílio. Dos 36 proprietários de
terras com mais de 50 alqueires, 17 (47%) não possuíam escravos, 21 (58%) não
abrigavam agregados e 26 (72%) viviam em domicílios com no máximo dez pessoas.
Também havia relação entre número de pessoas nas propriedades e produtividade.
Na Tabela_4 observa-se que, para as quatro mais importantes produções da
freguesia (milho, feijão, trigo e vacum), na amostragem os domicílios com dez
ou mais pessoas tinham maior produção, em média, do que as propriedades de até
nove pessoas.
Além disso, é possível que houvesse tendência à maior diversificação das
atividades nas unidades domiciliares mais numerosas, pois, embora a moda fosse
cinco atividades para os dois tipos de domicílios, no grupo daqueles com até
nove pessoas existiam 13 unidades que desenvolviam apenas três ou quatro
atividades; enquanto naquele com dez ou mais moradores nenhuma unidade
apresentava menos de cinco atividades.
Finalmente, encontrou-se relação entre produtividade, diversificação das
atividades e tamanho das propriedades: aquelas com até cinco atividades tinham
em média 85 alqueires e as que desenvolviam entre seis e oito atividades
possuíam uma média de 212 alqueires. Além disso, as produções de milho, feijão
e vacum eram mais elevadas quanto maiores fossem as propriedades. Isso não era
verdade apenas para o trigo, cultura de exportação cuja produção das
propriedades médias e pequenas (nesta ordem) era maior, em média, do que a das
propriedades grandes (Tabela_5).
Como mencionado anteriormente, os dados sobre composição dos domicílios
estariam indicando a existência de uma prática patriarcalista na freguesia de
São José, da qual todos participavam, visando a constituição, a manutenção ou a
ampliação de suas redes de poder. O cruzamento dos dados sobre propriedade das
terras e produção agrícola acrescenta novas variáveis a essa trama relacional,
pois reunir dependentes em torno do fogo propiciava o incremento da
produtividade e da produção de excedentes, possibilitando a atuação no mercado
e, por sua vez, a incorporação de mais terras. E para grande parte das pessoas,
somente com o correr do tempo isso se tornava possível.
Relações de dependência em uma economia familiar
A partir dos dados de São José dos Pinhais aqui apresentados, é possível
resumir os aspectos que podem contribuir para o enriquecimento da discussão
acerca do patriarcalismo no Brasil escravista. Para tanto, tome-se o trabalho
de Maria Luiza Marcílio, Crescimento demográfico e evolução agrária paulista,
1700-1836,publicado em 2000, mas que se tornou um clássico secreto,14 desde
que foi apresentado como tese de livre-docência na Universidade de São Paulo,
em 1974, e que ainda é uma das pesquisas mais abrangentes sobre a história
paulista no período.
Para a discussão tratada no presente artigo, a referência a esta obra é
especialmente pertinente, pois o vilarejo de São José dos Pinhais fazia parte
da grande área socioeconômica estudada por Marcílio. Além disso, a configuração
dos domicílios e a posse de escravos de São José dos Pinhais coincidem, no
geral, com o quadro encontrado pela autora em grande parte das vilas e
freguesias da região paulista.
Com base nas listas nominativas de habitantes das vilas e freguesias daquela
capitania (incluindo o Paraná), Maria Luiza Marcílio afirma que eram minoria os
fogos de grandes dimensões, posto que a média de pessoas livres girava em torno
de 4,6 por fogo, e que, embora fosse crescente no período a entrada de
escravos, em geral as escravarias eram diminutas. Em todas as regiões da
capitania, com pequenas diferenças que não alteram o quadro total, havia a
prevalência dos domicílios com estrutura simples, inclusive entre os grandes
proprietários: quase três quartos de todos os domicílios paulistas, possuindo
ou não escravos, eram formados por casais com ou sem filhos, pais ou mães '
viúvos, solteiros ou casados ' com filhos. Receber parentes próximos ou
afastados em suas casas, ou a convivência de vários núcleos familiares em um
mesmo teto eram situações excepcionais e temporárias. Anotou ainda, a autora,
que, nas pequenas porcentagens de grupos domésticos de famílias extensas e de
famílias múltiplas, ao contrário do que se poderia esperar, a maioria dos
indivíduos e núcleos familiares que viviam sob a dependência do chefe do
domicílio não tinha vínculo de parentesco. Eram insignificantes as porcentagens
das pessoas vivendo de favor em casas de familiares, pois preferiam residir, em
casos de necessidade ou em situações anormais, agregados em casas de estranhos.
Desde que a necessidade fosse superada ou a anormalidade contornada, estes
agregados procuravam estabelecer sua residência separada (MARCÍLIO, 2000,
cap.5).
Exatamente por essas características, esta obra sempre foi utilizada como
contra-argumento à vigência da ordem patriarcal no Centro-Sul do Brasil
escravista. A própria autora faz referência a isso, argumentando que suas
descobertas fazem cair por terra teses prevalecentes na historiografia
tradicional,
como a de Ellis Júnior, por exemplo, que pretendia uma predominância
patriarcal onde viviam filhos e netos e até mesmo os ramos bastardos
colhidos com a maior isenção de ânimos pelas donas paulistas. E
mais, que elevado era o número de pessoas que formavam a família,
quase constituída pelo casal de velhos e 10 ou 12 filhos do primeiro
matrimônio, outros tantos do segundo (MARCÍLIO, 2000, p.99).
Da mesma forma como muitos historiadores dedicados a esse tema, é possível
concordar que o domicílio patriarcal, tal como aparece descrito em Oliveira
Vianna, Ellis Junior e mesmo Gilberto Freyre, dificilmente pode funcionar como
paradigma dos domicílios paulistas daquele período.
Porém, o cruzamento dos dados sobre composição domiciliar, produção e posse de
terras, e a observação da dinâmica da configuração domiciliar da freguesia de
São José dos Pinhais ' isto é, suas mudanças no tempo ' puderam ao menos
sugerir o caráter patriarcal das relações estabelecidas entre homens e mulheres
livres.
Se o quadro geral de uma sociedade se expressa no comportamento padrão (no
caso, família conjugal/estrutura domiciliar simples), as relações de poder e a
hierarquia que a organiza só podem se expressar nos diversoscomportamentos.
Nesse sentido, o fato de que pelo menos 10% da população livre de São José dos
Pinhais, em 1803, e 4,2% em 1827 (este, um provável sub-registro) estivesse
estabelecida em casa de parentes não-nucleares não parece um comportamento
desprezível. Menos desprezível ainda é a observação de que 23% dos domicílios
da freguesia tinham ao menos um parente não-nuclear em 1803 e cerca de 10% em
1827. Da mesma forma, 5% da população livre vivendo como agregada em 1782, 5%
em 1803 e 3,7% em 1827 pode parecer pouco, mas é sociologicamente relevante
quando se atenta que 10% dos fogos de São José tinham agregados em 1782, 18,5%
em 1803 e 12% em 1827. Ademais, se viver em casa de parente ou agregado em
domicílio de estranhos era situação temporária, isso não torna desimportante o
fenômeno; ao contrário, revela que era estratégico.
Tudo leva a crer, desse modo, que a diversidade da organização domiciliar é
necessariamente um dos componentes explicativos da hierarquia daquela
sociedade, e sua dinâmica é especialmente estratégica para a percepção dos
esforços de movimentação das pessoas em ambientes aparentemente pouco
hierarquizados.
Outro argumento comumente utilizado contra a tese do patriarcalismo é a
inferência de Maria Luiza Marcílio (2000, p.98) de que
a própria organização da produção agrícola, fundada em larga escala
no sistema de roça de alimentos aberta na mata, não permitia a
existência de casas com numerosas pessoas, de famílias extensas ou
múltiplas. O precário patrimônio do camponês da roça de subsistência,
a rusticidade de seu rancho de sapé [...], as sucessivas mudanças de
local da roça, todo esse sistema requeria a prevalência de
agrupamentos familiares simples.
Este é de fato um quadro bastante fidedigno, porém, não se deve generalizar a
idéia de que as sucessivas mudanças de local da roça necessariamente
implicava mudanças também sucessivas de residência. A estabilidade da população
de São José (a maioria dos chefes de domicílio era natural da própria
freguesia, ou dos arredores) é indício do que se está propondo aqui. Em muitas
regiões a rotatividade das terras de plantio ocorria em um perímetro limitado.
Para São José dos Pinhais, um testemunho um pouco tardio, de meados dos anos de
1850, vem referendar esta impressão. Trata-se do relato de um imigrante alemão
que, por essa época, se estabeleceu com sua família naquela região, o qual faz
referência a moradores que possuíam outras propriedades, nas vizinhanças, além
daquela em que viviam.15
Além disso, o cruzamento de dados aqui realizado indica ser possível
relativizar a tese da inviabilidade econômica dos domicílios numerosos. Ao
menos em São José dos Pinhais, como se viu, o aumento da produtividade, a
diversificação da produção, a venda de excedentes no mercado e a incorporação
de novas terras relacionavam-se com a capacidade de reunir um maior número de
pessoas no domicílio, ainda que poucos tivessem sucesso nessa empreitada.
Talvez não por acaso, as informações sobre composição domiciliar do vilarejo
mostraram que, conforme se reduzia a capacidade de comprar escravos, mais a
elite escravista se dispunha a incorporar os agregados que, antes, estavam
basicamente estabelecidos nos fogos não-escravistas. Somente a atenção à
plasticidade dos elementos que sustentavam aquela organização hierárquica
permite entender, igualmente, porque tantos dos mais pobres entre aqueles
homens de precário patrimônio abrigavam parentes não-nucleares e agregados em
seus ranchos rústicos.
A professora Marcílio percebeu muito bem tal empenho, quando indica que, na
população livre da Capitania de São Paulo, as razões de dependência eram muito
baixas, sugerindo utilização intensiva de mão-de-obra infantil e feminina como
meios necessários para a sobrevivência dos grupos domésticos. E o costume de se
aceitarem agregados foi a maneira encontrada pela sociedade para complementar a
diminuta força de trabalho familiar e a estrutura da população livre com baixa
razão de masculinidade nas idades adultas, sendo que as famílias com maiores
recursos recorriam à importação de escravos (MARCÍLIO, 2000, p.105-107).
Octavio Ianni, que realizou um estudo extensivo sobre a escravidão no Paraná,
embora tenha caracterizado a região a partir do modelo patriarcalista
clássico,16 não deixou de, ao menos, registrar (embora não tenha ido adiante
disso) a natureza mais sutil das relações de poder que ligavam hierarquicamente
aqueles homens livres pobres entre si, e que estão expressas na composição
domiciliar da região:
Havia uma compulsão econômico-social levando continuamente os brancos
à utilização do trabalho escravo, o que tinha diferentes funções,
além de ser requisito da definição de status elevado. E quando o
nível de renda da unidade não possibilitava a compra de
trabalhadores, o branco incorporava agregados, geralmente pardos, com
a finalidade de suprir-se de força de trabalho para as atividades que
um senhor não deve realizar. Mesmo famílias pobres, que apenas
produzem para o próprio sustento apóiam-se na força de trabalho de
agregados ou mesmo escravos. [...] É desta maneira que os brancos
definem-se reciprocamente as posições sociais relativas. É desse
modo, quase que exclusivamente, que os brancos de poucos recursos
conseguem afirmar-se e firmar-se em determinadas posições da
estrutura econômico-social da comunidade (IANNI, 1988, p.74).17
No entanto, pode-se concordar quando a professora Maria Luiza Marcílio enfatiza
a rusticidade e a precariedade econômica da maior parte da população da região
paulista, de modo que o poder patriarcal ali vigente seria sempre um pouco
capenga, permitindo à arráia miúda escapar mais facilmente das teias da
dependência, num meio como este, no qual mesmo a elite (muito modesta para os
padrões da colônia) tinha dificuldade de incorporar terras e homens aos seus
domínios.
No entanto, se individualmente a dependência em relação a um parente ou a um
estranho podia ser muitas vezes transitória, no conjunto (ou estruturalmente)
era mecanismo eficiente na constituição e reprodução da desigualdade no
interior do vilarejo, e mesmo no interior de cada domicílio. Por esta razão, o
desejo de autonomia, e de se tornar um pequeno patriarca,18 acabava por
seduzir mesmo os mais modestos, posto que sua concretização seria fonte de
distinção social e, portanto, de mobilidade ascendente.
Tal quadro guarda certo nexo com a lógica da organização domiciliar de
diferentes regiões da Europa do Antigo Regime. Em As mil e uma famílias da
Europa, Burguière e Lebrun (1998, p.31-32), com base nos resultados de
trabalhos de inúmeros pesquisadores, afirmam que a dimensão das famílias no
Antigo Regime era mais um índice de poder social do que de vitalidade
demográfica. Embora a citação seja longa, vale a pena transcrevê-la quase na
íntegra.
É a riqueza que permite às classes superiores manter em suas casas um
grande número de criados e albergar parentes isolados. Esta
superioridade observa-se numericamente nos aglomerados onde reina uma
certa segregação social. Em Györ (Hungria), no século XVIII, as
famílias são nitidamente maiores no centro da cidade onde reside a
burguesia rica, e em Viena no aristocrático bairro de Herrengassen.
Em compensação, quando uma casa nobre ou burguesa se separa do
conjunto e afirma a sua superioridade, as estatísticas deixam de a
localizar. É o caso da Inglaterra, onde a gentry, ao contrário dos
outros nobres europeus, habita de preferência no campo. Das médias
obtidas a partir das cem aldeias inglesas temos uma impressão de
grande uniformidade: um povo de famílias reduzidas. Ora era
exactamente a impressão oposta que os camponeses tinham da presença
imperiosa, em cada aldeia inglesa (ou pelo menos quatro aldeias em
cada cinco), do castelo senhorial.
Em Goodnestone next Wingham, o vigário recenseia em 1676 uma das três
famílias de fidalgos, a do nobre Hales, e conta 23 pessoas, entre as
quais 15 criados. Como estes criados, muito jovens em relação ao
agregado, são quase todos procedentes da paróquia, podemos dizer que
uma família em cada cinco, em Goodnestone, está ao serviço do nobre
Hales. Este modesto fidalgo ' nem sequer é proprietário ' ilustra à
sua escala a dimensão ostentatória da família aristocrática. A
abundante criadagem, assim como o facto de manter sob o seu tecto uma
parte dos seus parentes, não tem a ver com o aspecto económico, mas
sim com uma obrigação social. Consumir mão-de-obra até ser excessiva
é uma prova de poder e de generosidade em relação às famílias que
podem empregar os seus filhos.
Fora do círculo das elites, a dimensão das famílias tem a ver com a
situação económica, na base da capacidade de produzir, não de gastar.
Na Europa ocidental, as grandes famílias camponesas (as dos yeomen em
Inglaterra ou dos lavradores em França) acumulam superioridade
económica e poder social. Mas na Europa Central e Oriental, o tamanho
das famílias já não coincide necessariamente com a posição social. Em
Villgraten, pequena aldeia dos Alpes austríacos cujos habitantes se
dedicam à criação de gado bovino (grande consumidor de mão-de-obra),
a dimensão das famílias em 1781 varia exactamente com a das manadas.
Em Nagykovacsi, aldeia húngara perto de Buda, são servos quem têm as
maiores famílias (...) e a população livre as mais pequenas (...).
Nesta região, os camponeses proprietários submetidos à servidão são
muitas vezes os mais ricos.
(...) Na Europa moderna, a hipertrofia do grupo doméstico não é uma
característica da servidão mas de todos os sistemas de exploração em
que a quantidade de mão-de-obra investida regula, simultaneamente, o
lucro do rendeiro e o dinheiro retirado pelo proprietário.
Se no Antigo Regime europeu uma mesma prática ajudava a produzir diferentes
relações políticas e específicas conformações sociais, isso também deveria
ocorrer no Brasil escravista. Assim, a despeito da aparência de uniformidade
social e de organização familiar reduzida, a ordem patriarcal e escravista
parecia vigir nesse ambiente de homens pouco poderosos e de população escrava
escassa.