O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder moderador no
Brasil (1822-1824)
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é revisitar o momento fundador das instituições
políticas brasileiras para identificar, junto aos conselheiros da Coroa
imperial, a pregnância do discurso monarquiano francês1 que, no início da
Revolução Francesa, buscara justificar politicamente a preeminência do
Executivo sobre o Legislativo e atribuir-lhe o papel de principal representante
da soberania nacional. A provável preferência da Constituinte por um modelo
institucional mais próximo ao da Constituição francesa de 1791 e que,
reproduzido na Ibéria, invertia aquelas relações de hegemonia entre os poderes,
levou porém os conselheiros da Coroa a mobilizarem a categoria de Poder
Moderador tal como desenvolvida pela escola ultraliberal francesa no início da
Restauração. Embora o discurso de Benjamin Constant pretendesse afastar o
monarca do exercício direto do Poder Executivo para atribuir-lhe apenas o papel
de árbitro do sistema político, as salvaguardas por ele requeridas para que a
Coroa pudesse exercer o Poder Moderador continham argumentos valiosos para que
dela os governistas brasileiros lançassem mão, com o fito porém contrário de
preservar a inteireza das prerrogativas régias diante das crescentes pretensões
da Assembléia de monopólio da representação da soberania. A defesa pública de
um projeto constitucional monarquiano, a partir do conceito ultraliberal de
Poder Moderador, acabou por fazer com que este último adquirisse no Brasil
alguns significados diversos daqueles a que estava associado na França, como os
de neutralidade ativa, discricionariedade decisionista e centralização
político-administrativa, significados que, com o tempo, passaram a ser
associados às próprias características que o Estado brasileiro deveria
apresentar perante os desafios da construção nacional. Essa ambigüidade
jurídico-doutrinária em torno do Poder Moderador se refletiu no texto
constitucional de 1824, o qual passou a comportar, conseqüentemente, duas
leituras. Na primeira, de cunho ultraliberal, o Imperador figurava apenas de
árbitro do sistema constitucional, ao passo que, na segunda, monarquiana, o
chefe de Estado era apresentado como o eixo de toda a atividade governamental.
Essa dualidade estaria na raiz das tensões do pensamento político brasileiro,
tradicionalmente premido entre um modelo liberal, mas oligárquico, e outro
autoritário, mas modernizador.
Do ponto de vista metodológico, fui livremente guiado por duas referências
principais. A primeira é do contextualismo lingüístico, na variante discursiva
desenvolvida por John Pocock (1975). Buscando seguir certos parâmetros por ele
adotados, tento aqui identificar, nos atos de fala dos atores envolvidos na
luta política de determinados lugar e período (Rio de Janeiro, 1822-1824), a
presença de conceitos e argumentos característicos de discursos políticos
anteriormente e alhures elaborados 1789-1791, Paris). Isto feito, ensaio
reconstituir contextualmente a trajetória dessa recepção e compreender como a
circunstância, a necessidade e a contingência levaram esses atores a lançarem
mão de tais conceitos e eventualmente imprimir-lhes novos significados. Por
outro lado, a ênfase que vou conferir ao exame do dispositivo institucional,
que deveria necessariamente resultar da aclimatação daquele discurso,
relacionando-o, na conclusão, com certas representações que a sociedade
brasileira passou a fazer de si mesma, me aproxima da história conceitual do
políticode Pierre Rosanvallon. O estudo da democracia exigiria o das
representações sociais na medida em que a própria categoria de povo, sujeito
ativo e passivo dessa forma de sociedade, dependeria das idéias de que ele se
formula na tentativa de se tornar inteligível a si mesmo enquanto comunidade
política. Essas representações sociais inevitavelmente se refletem nas
concepções institucionais adotadas na democracia, pois que somente elas são
capazes de conferir exterioridade e, portanto, visibilidade funcional e
simbólica às idéias que a comunidade nutre a respeito do exercício adequado do
poder público (Rosanvallon, 2002). Nesse sentido, penso que a persistência de
certas concepções de poder no debate brasileiro pode corresponder a uma igual
persistência de certas auto-representações do povo e suas elites enquanto
comunidade política. Se a hipótese estiver correta, seria então possível
identificar historicamente os caminhos e descaminhos do percurso democrático da
nação nos eventuais espaços de indeterminação entre instituições políticas
concretas e representações sociais do poder.
O PROJETO POLÍTICO MONARQUIANO E O CONCEITO DE PODER MODERADOR NA FRANÇA
REVOLUCIONÁRIA
Conforme demonstrou Marcel Gauchet (1995), todo o debate político francês
durante a Revolução de 1789 foi atravessado pela persistente busca de um
terceiro poder que, acima do Executivo e do Legislativo, fosse capaz de mantê-
los nos limites previamente definidos na ordem constitucional. Era a lógica do
sistema representativo o qual impunha a criação de mecanismos que permitissem
ao povo soberano velar para que a vontade de seus mandatários não extrapolasse
os limites do mandato que lhes havia outorgado. Haja vista que na Constituição,
produto do Poder Constituinte, era reputada a expressão máxima da vontade do
povo, a solução do impasse passava pela criação de um órgão superior aos demais
poderes constituídos, encarregado de exercer sobre os atos por eles praticados
um controle de constitucionalidade estrutural ou normativo. Chamaram-no Poder
Regulador, Poder Moderador, Poder Preservador, Poder Neutro, Poder Real,
atribuindo-o ao monarca, a um conselho, a um tribunato ou uma segunda câmara.
As mais profundas reflexões dentre as inúmeras propostas então apresentadas
foram as do abade Sieyès e de Benjamin Constant (Dupuy e Morabito, 1995) e do
Consulado. O primeiro cogitou de um conselho constitucional encarnado em um
Júri ou em um Senado (Bredin, 1988). O segundo desenvolveu idéia semelhante,
abandonando-a, porém, quando da queda do Império em favor da do monarca
constitucional como poder neutro ou moderador, que deveria manter-se afastado
das atividades governamentais na qualidade de árbitro do sistema político
(Constant, 1997). Foi Thiers quem, quinze anos depois, consagrou o slogan
famoso pelo qual ficaria conhecida aquela interpretação liberal do papel do rei
constitucional durante o século XIX: "o rei reina e não governa". O conceito de
Poder Moderador ocupou lugar relevante no debate liberal francês até pelo menos
a década de 1870, como se percebe nos textos de Laboulaye e de Prévost-Paradol
(Paradol, 1981). Nos países ibéricos, por sua vez, o conceito continuaria
central até pelo menos as primeiras décadas do século XX.
O conceito de Poder Moderador na Europa difundiu-se em setembro de 1789 durante
a discussão sobre a organização dos poderes e suas relações recíprocas na
Assembléia Constituinte francesa. A questão do bicameralismo e do direito de
veto suscitaram, então, vivos debates sobre a função do rei na nova ordem
constitucional. Na verdade, tratava-se de definir que poder do Estado haveria
de, prioritariamente, representar a vontade soberana do povo e, a partir daí,
definir a distribuição do poder político entre as demais instituições. Duas
propostas constitucionais então se enfrentaram. A primeira, tributária do
republicanismo de Rousseau e Mably, e encabeçada então por Sièyes, dispensava
toda a noção de equilíbrio de poderes e de sua interconexão por mecanismos de
freios e contrapesos. O modelo da Constituição inglesa, complicado maquinário
para coibir ou amenizar as sobrevivências da opressão feudal, não se
justificava na França, onde a ruptura completa com a feudalidade estava
inscrita no próprio programa da Revolução (Sièyes, 2001:41). Entendendo que a
função da representação era a de encarnar, em um órgão do Estado, a unidade da
soberania absoluta da nação, Sièyes e Le Chapelier defenderam, então, um
arcabouço constitucional no qual uma assembléia unicameral, eleita por todo o
país, haveria de enfeixar em suas mãos todas as prerrogativas inerentes à
soberania, a principal das quais era o monopólio da produção legislativa2. No
contexto desse modelo constitucional monista, ao rei caberia o subordinado
papel de mero comissário, isto é, de simples executor das leis determinadas
pelo Legislativo, que não poderia portanto dissolver, e cujos projetos de lei
não poderia vetar. Por um lado, não sendo eleito nem pertencendo à Assembléia,
o rei não poderia interferir no processo legislativo, constituindo o veto um
"mecanismo estranho" na máquina constitucional que, se exercido, seria uma
"verdadeira lettre de cachetlançada contra a vontade nacional" (Sièyes, 1996:
408). Era um modelo de República com rei ou, para usar a expressão de François
Furet, de monarquia republicana (Furet e Halévi, 1996). Como não era admitida a
hipótese de um poder constituído superior ao Legislativo, era a lógica da
representação como encarnação da unidade da soberania absoluta que impedia
nessa proposta a existência de um controle da constitucionalidade, isto é, um
Poder Moderador.
Embora também admitisse a soberania nacional como princípio de legitimidade da
ordem política, a segunda proposta constitucional negava-se, porém, a associá-
la à incontrastável supremacia de um Poder Legislativo unicameral, preferindo
um Estado constitucional em que coubesse, ao contrário, à Coroa o papel de
guardiã dos interesses nacionais. Os maiores defensores dessa proposta achavam-
se no chamado partido monarquiano, grupo dos patriotas moderados dentre os
quais figuravam Pierre-Victor Malouet, Jean-Joseph Mounier, o marquês de Lally-
Tollendal e o visconde de Clermont-Tonnerre. As teses desse partido eram
freqüentemente apoiadas por Mirabeau e por Jacques Necker, barão de Coppet,
último ministro influente do Antigo Regime (Bredin, 1988:203). Tratava-se de
inaugurar a modernidade política na França, sem todavia fazer uma completa
tabula rasa do passado, já que "os franceses não são um povo novo, saído
recentemente do fundo das florestas para formar uma associação, mas uma grande
sociedade [...] que quer reestreitar os vínculos que unem todas as suas partes,
que quer regenerar o reino, para quem os princípios da verdadeira monarquia
serão para sempre sagrados" (Mounier, 1996:315). Os monarquianos rechaçavam
doutrinas que resultassem em demasiada fragmentação do poder, seja entre
facções de uma mesma assembléia, que prejudicariam a ordem administrativa, seja
que preconizassem o retorno a um regime estamental.
Se o pensamento de Sièyes, nesse aspecto, remontava a Rousseau, o discurso
político monarquiano remontava ao despotismo ilustrado de Helvétius e Voltaire,
os quais viam em um Executivo forte encarnado na Coroa o único Poder capaz de
superar os impasses da sociedade estamental e proceder à modernização do Reino.
Essa orientação havia sido transmitida a Turgot e a seus sucessores, que,
instalados nos postos de ministros do rei, haviam buscado auto-reformar o
Antigo Regime a partir de uma concepção administrativista do poder público. Ao
pretenderem transplantar para o interior do constitucionalismo calcado na
soberania nacional a tese de "um poder monárquico reforçado, capaz de
representar a nação como um todo e inteira, às expensas das pretensões da
assembléia de querer encarnar a soberania nacional" (Griffiths, 1988:87), os
monarquianos revelaram-se herdeiros desse reformismo modernizador
ministerialista, sem que seu discurso pudesse, entretanto, ser incluído na
categoria de absolutismo. Tanto assim que as formas institucionais por eles
advogadas eram compatíveis com a descrição que Montesquieu fizera do governo
inglês quarenta anos antes, eles puderam dourar a pílula de sua concepção
constitucional ancorada em uma Coroa forte, acenando todavia com os argumentos
mecanicistas e equilibrados da Constituição inglesa, certamente mais palatáveis
para o público revolucionário, descritos em
O Espírito das Leis
3. A pedra de toque de toda a argumentação monarquiana residia na tese de que a
nação soberana, ao eleger seus representantes e exprimir suas aspirações nos
cadernos de queixas (cahiers de doléances), demonstrara não ter em nenhum
momento pretendido atribuir o seu exercício somente à Assembléia nacional,
tendo-o também delegado ao rei.
"Pode-se dizer com razão que os deputados escolhidos nos diferentes
distritos não são os únicos representantes do povo; que o rei é o seu
primeiro delegado; que ele é também representante do povo em todas as
outras partes da autoridade que lhe foi confiada, e que o povo os
encarregou conjuntamente de exprimir a vontade geral; que assim,
quando o rei não dá sua sanção, ele não resiste à vontade geral, que
ainda não está formada" (Mounier, 1996:400).
Foi precisamente a defesa do veto absoluto do rei que deixou transparecer o
lugar de centralidade da Coroa dentro do Estado constitucional monarquiano. Por
meio do poder de veto, mas também da dissolução da câmara baixa, o rei, chefe
do Executivo, também participava do processo legislativo, valendo-se da
prerrogativa monárquica para, na qualidade de primeiro representante da nação,
defender o interesse público materializado na constituição contra as possíveis
inconstâncias, excessos ou facciosismo do Poder Legislativo. Era o rei,
sensível à opinião pública, quem poderia melhor interpretar seus sentimentos e
defender a constituição contra as invasões dos demais poderes, convertendo-se
em uma "poderosa barreira ao pé da qual se reunirão todos os verdadeiros amigos
da ordem e da liberdade" (idem:401). Ele era "o representante perpétuo do
povo", cuja prerrogativa era essencial para se evitar que a nascente classe
política, surgida da representação eletiva, acabasse por constituir uma nova
aristocracia; era o único, dentre os poderes constituídos, capaz de "manter o
equilíbrio e impedir as parcialidades", tendo, nos momentos de crise, força e
prestígio suficientes para "reunir todas as partes e voltar aquela atividade
para um centro comum" (Mirabeau, 1996:370). As prerrogativas monárquicas de
veto legislativo e de dissolução da câmara baixa ' sucedida esta pela imediata
convocação de novas eleições ' eram verdadeiras formas de apelo ao povo
soberano, sem as quais não haveria, segundo Lally-Tollendal, "obstáculo
insuperável às investidas do poder legislativo contra o poder executivo, à
invasão, à confusão dos poderes, por conseguinte à derrubada da constituição e
à opressão do povo" (Bredin, 1988:203). Nessa categoria de supremo
representante e o principal intérprete do bem comum, Malouet chegaria ao
extremo de defender o direito do rei recusar a própria Constituição elaborada
pela Assembléia, se a entendesse lesiva ao interesse do povo, a ele recorrendo
para que decidisse a questão (Malouet, 1996:368).
Como se vê, na concepção institucional monarquiana, o rei exercia, além do
Poder Executivo, outras atribuições que com ele não se confundiam, embora
também vinculadas à prerrogativa monárquica. Elas permitiam-lhe interferir
extraordinariamente na esfera de outras agências para salvaguardar a ordem
constitucional expressiva da vontade soberana, sempre que a necessidade pública
assim o exigisse. A tradição da unidade nacional representada no corpo do chefe
do Estado, detectada por Kantorowicz na própria origem do Estado, era assim
naturalmente posta a serviço da nova concepção de soberania, para exercer um
controle político-estrutural da constitucionalidade. Foi Bernardin de Saint-
Pierre quem, no auge do debate, em setembro de 1789, melhor exprimiu essa
lógica, naquela que possivelmente foi pela primeira vez empregada a expressão
Poder Moderador:
"Muitos escritores célebres consideram o poder nacional na monarquia
como dividido em dois, o poder legislativo e o poder executivo. Eles
atribuem o primeiro à nação e o segund'o ao rei. Essa divisão me
parece insuficiente, porque falta um terceiro poder, necessário a
todo o bom governo, o poder moderador, que pertence essencialmente ao
rei na monarquia. O rei, aí, não é apenas um comissário da nação, um
doge ou um stadthouder; é um monarca encarregado de dirigir suas
operações [...]. Os três corpos da monarquia reagem sem cessar uns
contra os outros, de sorte que, deixados a si mesmos, logo ocorreria
que um deles oprimiria os outros dois, ou seria por eles oprimido
[...]. Falta portanto que o rei tenha ainda o poder moderador, isto
é, o de manter o equilíbrio entre esses corpos [...]. Como o rei tem,
de direito, o poder executivo, não poderá haver lei alguma aprovada
sua sanção; como ele tem também o poder moderador, esta assembléia,
sendo formada de dois poderios cujos interesses são opostos, ele terá
sempre o poder de manter o equilíbrio dela" (Saint-Pierre, 1819:64).
Embora derrotados pelo "monarquismo republicano" de Sièyes, os monarquianos que
sobreviveram ao Terror perseveraram em suas idéias, na legalidade e fora dela,
na França e no exílio, durante todo o período da Revolução. Suas idéias foram
se tornando mais claras à medida do desenrolar dos eventos ' e foi assim que os
monarquianos sobreviventes, como Mounier e Malouet, acabaram por se acomodar
com o regime bonapartista, em cuja administração passaram a colaborar. Esse
regime correspondia, grosso modo, à demanda modernizadora que eles haviam
sustentado alguns anos antes: monarca como representante primeiro da soberania
nacional; administração racionalizada, legislação unificada; ordem pública;
Executivo forte; Legislativo subordinado4.
Ora, foi em uma intenção semelhante e sob o mesmo nome que o conceito apareceu
pela primeira vez no debate brasileiro, em 1823. Ele foi então introduzido pela
imprensa e na Constituinte por partidários do governo imperial, que pretendiam
consolidar uma interpretação do papel institucional da Coroa capaz de evitar
que ela fosse reduzida por seus oponentes a um apêndice do Poder Legislativo.
A ELITE COIMBRÃ: O MONARQUIANISMO ENQUANTO DISCURSO DA CONSTRUÇÃO NACIONAL
Foi uma forma de reformismo ministerialista inspirado no despotismo esclarecido
que orientou diversos membros da alta burocracia luso-brasileira. Ele provinha
dos planos da Academia Real de Ciências de Lisboa, que, encabeçada por Dom
Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares, elaborara estratégias de
superação do atraso científico e econômico do Império português. Linhares havia
conhecido a França de Luís XVI, travado contato com intelectuais, como Raynal,
e admirado os esforços de Necker para modernizar a máquina pública e instaurar
o sistema representativo, deplorando o desperdício e a desordem do Antigo
Regime (Funchal, 1908:193). Se por um lado tais estadistas propunham medidas
politicamente mais "progressistas" do que as de Pombal, como a liberdade de
imprensa (idem:341), eles todavia partilhavam da visão pombalina quanto ao
papel central a ser desempenhado pelo Estado enquanto agente de transformações
socioeconômicas (Maxwell, 2001). Embora suas propostas reformistas não tivessem
obtido receptividade da parte de Dom João VI, quando irrompeu a Revolução
Constitucionalista do Porto, diante da impotência da realeza perante o
movimento e premidos pela necessidade de brecar as veleidades de seus
opositores, foram aqueles reformistas quem se dedicaram à formulação de um
projeto de sistema representativo em que o príncipe ' e não a Assembléia '
figurasse como o principal representante da soberania nacional. Dentre os
estilos de liberalismo disponíveis, que nem sempre se reconheciam e se
combatiam ' o republicano norte-americano, à Madison; o monarquiano de Malouet
e Mounier, o racionalista de ideólogos como Sièyes e Destutt de Tracy; o
ultraliberal à Ståel e Constant ', o monarquiano era aquele que melhor
correspondia às suas preferências na medida em que transportava o ideal
modernizador ordeiro do despotismo esclarecido para o quadro do sistema
constitucional. Os objetivos políticos da chamada "elite coimbrã" eram,
portanto, similares aos dos monarquianos de 1789 ' impedir o regime de
assembléia única, cuja pretensão de preponderância sobre o rei era justificada
a partir de sua pretensa qualidade de depositária exclusiva da soberania
nacional. Adotado na França (1791) e depois reproduzido na Espanha (1812) e em
Portugal (1822), esse modelo teria sempre fracassado com resultados desastrosos
para a ordem pública. Daí que, na Constituinte do Brasil independente,
políticos como José Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio Carlos de Andrada
Machado, Severiano Maciel da Costa, José Joaquim Carneiro de Campos e José da
Silva Lisboa preferiram, ao contrário, sustentar um projeto caracterizado por
uma Coroa forte.
Esse grupo de governistas da chamada elite coimbrã mobilizou, então, argumentos
que, embora também extraídos do repertório liberal, eram porém bastante
diferentes daqueles de seus adversários, os integrantes da chamada "elite
brasiliense"5, que gravitava em torno de Gonçalves Ledo e Januário da Cunha
Barbosa, e concebia o poder como algo próximo à monarquia republicana de
Sièyes. Os "brasilienses" eram tachados de republicanos, democratas e jacobinos
pelos monarquianos, ao passo que estes eram acusados por aqueles de corcundas,
pés-de-chumbo ou simplesmente absolutistas (Lustosa, 2000). O projeto dos
coimbrãos caracterizava-se por ser mais centralizador do que federativo, mais
monárquico do que parlamentar e mais estatizante do que aquele de seus
adversários. Por outro lado, dada a sua maior proximidade da Coroa, o menor
peso dos interesses particulares na visão de mundo dos coimbrãos conferia-lhes
maior sensibilidade quanto a temas estratégicos da construção do novo Império,
o que se refletia na conveniência de abolir o tráfico de escravos e induzir a
imigração européia. A elite coimbrã via no escravismo um obstáculo à
modernização do Brasil, que poderia ocorrer apenas com trabalho metódico,
disciplinado e assalariado (Oliveira, 1999:118). Esse não era o caso da elite
brasiliense, mais representativa dos interesses da lavoura e que, entendendo
mais rentável a continuidade pura e simples do sistema escravocrata, passou a
temer medidas que acabassem por comprometê-lo. A promoção da colonização por
suíços no interior da capitania do Rio de Janeiro, por meio do aumento de
imposto sobre a comercialização de escravos, levou os brasilienses a condenar a
interferência do Estado na economia por meio de um discurso liberal econômico
que implicava submeter o Estado aos interesses da lavoura (idem:120). Por outro
lado, coimbrãos como José Bonifácio de Andrada e Silva e José Severiano Maciel
da Costa, acusados de "fautores do despotismo" pelo "progressismo" brasiliense,
apresentavam projetos de extinção do tráfico negreiro6. Daí que, entre os
chamados democratas da elite brasiliense, "contavam-se grandes senhores de
terra e comerciantes portugueses e [...] de sua agenda de reivindicações
políticas nunca constou a libertação dos escravos" (Lustosa, 2000:334).
Eram, portanto, duas diferentes propostas liberais para o país recém-saído do
status colonial. A primeira era tributária do despotismo esclarecido, de
retórica realista, centrada na autoridade monárquica como representante da
soberania nacional, centralizadora, estatizante, interventora, tutelar ' em uma
palavra, em que o político prevalecia sobre o econômico; enquanto a segunda,
tributária do liberalismo de tendência democratizante, de retórica idealista,
parlamentar, descentralizadora, era calcada nos interesses diretos da grande
lavoura e da "sociedade civil" que ela dizia representar ' em suma, um discurso
em que o econômico prevalecia sobre o político. Tais concepções se chocariam já
na Assembléia Constituinte de 1823, antecipando algumas das diferenças que, no
decorrer do século XIX, seriam associadas aos partidos Conservador e Liberal7.
O projeto coimbrão encontrou seu maior expoente em um amigo e antigo discípulo
de Linhares8, o agora deputado e ministro do Reino José Bonifácio de Andrada e
Silva. Sua filiação à tradição do despotismo ilustrado, filtrada pelo
liberalismo monarquiano, fica explícita quando, apesar de fazer o elogio de
autocratas que haviam sido capazes de ilustrar e felicitar seus países, como
Pedro o Grande e Frederico da Prússia, ele recomendava entretanto como
adequadas às características do Brasil, as instituições do governo misto ou da
monarquia temperada, que ele associava à Inglaterra (Andrada e Silva, 1998:174
e 247). Para ele, as oportunidades oferecidas pelo novo Império eram
ilimitadas, dadas a vastidão de seu território e as inumeráveis riquezas nele
disponíveis. No entanto, dividida horizontalmente pelas distâncias e
verticalmente pela escravidão, a própria nação ainda estava por fazer. Cumpria,
portanto, reduzir as primeiras e amalgamar as etnias, para que daí saísse "um
todo homogêneo e compacto" (idem:49). Da mesma forma, era preciso abrir
estradas, atrair a imigração estrangeira para ocupar o país, desenvolver a
agricultura pelo uso racional do solo, civilizar os índios, distribuir terras '
enfim, prover ao que lançasse as bases de uma nação próspera e poderosa. As
receitas desse bom Estado seriam poucas, mas eficazes: leis, igualdade de
tratamento, burocracia meritocrática, liberdade de imprensa, direitos
individuais. Tudo isso era possível na medida em que o Estado ilustrado possuía
um poder demiúrgico de criação: desde que com prudência, mas com pulso firme e
celeridade na execução, "o legislador, como o escultor faz de pedaços de pedra
estátuas, faz de bruto homens" (idem:174 e 307). Entretanto, José Bonifácio
entendia que a conjuntura no início da década de 1820, com suas graves divisões
dentro e fora do corpo político apresentava extraordinárias dificuldades a esse
projeto de construção nacional. O papel civilizador da monarquia constitucional
somente poderia cumprir seu destino caso a força e a habilidade de estadistas
ilustrados fossem capazes de conjurar semelhantes perigos ao bem comum.
Caberia, portanto, a um "hábil e enérgico ministério" (no fundo, o próprio)
proclamar "ao povo, com eloqüência, a verdade e a razão ' linguagem de sã
política que convém a um governo forte e justo", e "paralisar os partidos e
vigiar os planos e astúcias secretas" (idem:213-239).
"É bom entregar o princípio de um negócio de ponderação a Argos de
cem olhos e o fim a Briareu9 de cem mãos. Na execução, não há segredo
comparável à celeridade. Nos negócios, das três partes que são: a
preparação, o exame e a execução; só a do meio deve ser obra de
vários; o resto, de um só" (idem:198).
Foi nesse contexto de perigos à construção nacional que o projeto político
coimbrão veio, por afinidade e contingência, se exprimir na linguagem
constitucional dos monarquianos franceses. O intuito de José Bonifácio era
chegar ao constitucionalismo liberal, contornando porém a estrada que conduzia
os governos fracos à anarquia e à revolução. Isso seria possível desde que se
combinassem os direitos fundamentais e a soberania nacional do modelo
constitucional de 1791 com o Executivo forte da Carta francesa outorgada por
Luís XVIII, em 1814. Mas, para tanto, era preciso ser realista. "Nos dois
extremos", disse Maciel da Costa, "antes a tacha de apaixonado por antigas
instituições, que não forem incompatíveis com a liberdade que todos desejamos,
do que a de inovador temerário e demagogo; que entre um respeito supersticioso
e idólatra por antigas instituições e um furor temerário de inovações há um
meio; este é o da circunspecção e da prudência" (AACB, 1823, III:94).
O DISCURSO DO MONARQUIANISMO APLICADO: A BATALHA EM TORNO DA REPRESENTAÇÃO DA
SOBERANIA NACIONAL NA CONSTITUINTE DE 1823
O desafio de obter a adesão do auditório brasileiro por meio do discurso
monarquiano apresentava, porém, aos coimbrãos vantagens sobre seus
predecessores de 1789. A primeira era a possibilidade de explorar aos fracassos
dos modelos subseqüentes de monarquia republicana (1791) e de república
jacobina (1793). Foi o que fez Dom Pedro I na Fala do Trono com que abriu os
trabalhos da Constituinte. A experiência daqueles modelos "inteiramente
teoréticos e inexeqüíveis", levando à "anarquia de muitos" e, depois, ao
"despotismo de um só", responsáveis pelas guerras civis e golpes de Estado na
França e na Espanha, assim como pelo banho de sangue em que estava mergulhada a
América hispânica, teria definitivamente comprovado que apenas um sistema
constitucional realista seria capaz de assegurar a viabilidade do novo império.
Era preciso, portanto, que o Brasil adotasse uma constituição "sobre bases
sólidas, cuja sabedoria dos séculos testemunharam a verdade, para dar aos povos
uma justa liberdade, e ao poder executivo, toda a força de que ele precisa"
(AACB, 1823, I:16). Com referência a essa passagem da Fala do Trono, discursou
José Bonifácio no dia seguinte:
"Eu não acho nas palavras do Imperador senão nossas próprias
expressões e a vontade geral do leal povo do Brasil. Que quer esse
povo? E para que tem trabalhado até agora tanto o governo? Para
centralizar a união e prevenir as desordens que procedem de
princípios revoltosos anarquia. O povo do Brasil, Sr. Presidente,
quer uma constituição, mas não quer demagogia e anarquia [...]. Que
quadro nos apresenta a desgraçada América! Há 14 anos que se
dilaceram os povos, que, tendo saído de um governo monárquico,
pretendem estabelecer uma licenciosa liberdade; e depois de terem
nadado em sangue, não são mais que vítimas da desordem, da pobreza e
da miséria [...] Vimos os horrores da França; as suas constituições
apenas feitas, logo destruídas, e por fim um Bourbon, que os
franceses tinham excluído do trono e até execrado, trazer-lhes a paz
e a concórdia! [...]" (idem:26).
Uma segunda vantagem estava no fato de que a independência política permitia
argumentar que a tarefa a qual estava colocada envolvia a fundação de uma
monarquia nova em um país novo ' e não o remanejamento da Coroa bragantina no
território de sua antiga colônia. Na França, os monarquianos haviam argumentado
que a monarquia já existia antes da reunião dos Estados Gerais e que a vontade
de mantê-la forte havia sido expressa pela nação nas consultas que haviam
precedido aquele congresso. Esses fatos teriam erguido a Coroa à co-
titularidade da representação soberana, justificando a preservação das
prerrogativas régias de convocação, adiamento, prorrogação e dissolução do
corpo legislativo (Furet e Halévi, 1996). Esse argumento se revelou, porém,
ineficaz na medida em que a Assembléia Constituinte surgira de um golpe
parlamentar imprevisto pelo povo e dirigido contra um monarca expropriado de
sua soberania. Além disso, o tradicionalismo institucional da Coroa tornava-
a indissociável do Antigo Regime, e todas as precauções para evitar seu excesso
de poder sempre foram consideradas poucas pela Constituinte. Por outro lado, a
partir do momento em que Dom Pedro se proclamara constitucional e ficaram
claras as pretensões recolonizadoras das Cortes lisboetas, a imagem do Antigo
Regime luso-brasileiro ficava associada à Europa ' e, em particular, a um
Portugal velho, pequeno e decadente. O novo império americano não se confundia
com a antiga monarquia lusitana; era uma nação nova sobre um mundo também novo.
Os contratempos dos monarquianos franceses pareciam assim se dissipar no
Brasil.
Um terceiro ponto concerne ao fato de que essa mesma modernidade do Império
servia também para legitimar a precedência institucional do Imperador a partir
do próprio princípio da soberania nacional. A fim de se prevenir contra uma
eventual maioria do grupo de Ledo na Assembléia, Andrada e Silva foi o primeiro
a sustentar que a nova Coroa brasileira, com todas as prerrogativas decorrentes
da vigilância suprema dos interesses nacionais, era um produto da vontade
manifestada diretamente pelo próprio país (Monteiro, 1981:692). A oferta e
aceitação por Dom Pedro do título de Defensor Perpétuo do Brasil, feita em nome
de toda a nação pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, bem como sua posterior
aclamação pública como Imperador Constitucional, em outubro de 1822, teriam
cumprido a mesma função de legitimação democrática da realeza que, nos
discursos monarquiano de 1789 e bonapartista de 1804, haviam sido exercidas
pelos cahiers de dóleance que precederam os Estados Gerais e pelo referendo que
havia instaurado o regime cesarista. Essa manifestação verdadeiramente
napoleônica10 da vontade soberana de fazer do príncipe seu primeiro
representante teria sido reiterada e tornado, assim, perfeita e acabada com a
cerimônia de sagração e coroação do Imperador, no início de dezembro de 1822.
Ao se reunir a Assembléia em maio do ano seguinte, os constituintes achavam-se
diante de um fato consumado, com que tinham de se conformar. Ela não poderia
ser considerada Constituinte no sentido conferido por Sièyes, isto é, de uma
representação soberana, porque a vontade do povo havia sido transmitida prévia
e diretamente ao príncipe, que era seu interlocutor privilegiado. Os deputados
deveriam se limitar a legislar sobre assuntos urgentes, reduzir a termo o pacto
celebrado entre o príncipe e a nação ' que definira a priori as prerrogativas
da Coroa ', estabelecer o rol dos direitos fundamentais e organizar os demais
poderes políticos, como o Legislativo e o Judiciário. Qualquer tentativa em
contrário, isto é, de reduzir a autoridade monárquica aos limites do modelo de
1791, importaria em uma traição dos deputados ao juramento prestado na posse,
ocasião em que se haviam comprometido a guardar fidelidade à vontade nacional.
Daí porque, no juramento da coroação e no discurso com que abriu a
Constituinte, Dom Pedro sustentou que defenderia a futura constituição desde
que ela fosse digna dele e do Brasil. Embora a expressão fosse emprestada de
Luís XVIII (Rosanvallon, 1994:250), ele queria dizer que tinha sobre o projeto
de constituição um poder de veto que se fundava não no direito divino do
absolutismo, como sempre se pensou, mas no fato de ter sido constituído pela
nação o defensor primeiro e perpétuo de seus interesses. Nessa posição, caso o
julgasse contrário à vontade ou ao bem-estar do povo, Dom Pedro estaria
obrigado a se opor ao projeto, tendo o poder de vetá-lo, dissolver a Assembléia
e convocar uma nova. Esse argumento, apresentado na Assembléia por Antônio
Carlos de Andrada Machado ' "O poder monárquico, despojado das atribuições que
já a nação lhe concedera e que o nosso ciúme lhe arranca, tem seu sem dúvida
direito de recorrer à nação [...]" (AACB, 1823:99)', correspondia, sem tirar
nem pôr, àquele desenvolvido por Malouet em 1789, para justificar o direito de
veto de Luís XVI sobre o projeto da Constituinte francesa.
"Um monarca não tem nem o direito nem o poder de impedir um povo que
quer uma constituição de fazê-la. Ele não tem direito de veto, nem de
obstar à uma constituição pedida pela Nação. Entretanto, se acontecer
que os representantes adotem uma, que seja evidentemente contrária à
vontade e ao interesse geral, não duvidaríamos que nesse caso o chefe
da Nação tem o direito de suspender tal constituição, apelar ao povo
e lhe pedir que manifeste sua vontade expressa por meio de novos
representantes" (Malouet, 1996:368).
Essa linha bastante sofisticada de argumentação que, ao legitimar o poder
monárquico como interlocutor privilegiado da vontade da nação, tornava
desnecessário recorrer às fundamentações contra-revolucionárias de De Bonald ou
De Maistre, então em voga na Europa, não pode portanto ser compreendido fora
desse contexto meta ou semiconstitucional no qual a luta política se
desenrolava em 1823. Então muito difundido na Espanha e em Portugal, o costume
de jurar respeito a constituições ainda por fazer, de adotar as de outros
países ou ainda de jurar as bases de umas e outras induzia à idéia generalizada
de que era possível a existência de um "estado de constitucionalidade" mesmo
que ela ainda não constasse de um documento escrito. Como conseqüência dessa
concepção pré-positivista e jusnaturalista que animava o debate político, a
Constituição era também entendida como um conjunto de princípios abstratos que
legitimamente organizavam a sociedade política ' soberania nacional,
representação política, separação dos poderes e direitos fundamentais. Em 1823,
portanto, embora ainda sem Constituição escrita, o Brasil seria um Estado
constitucional ' e tanto assim que, desde a aclamação, o título do Dom Pedro
era oficialmente o de "Imperador Constitucional". O problema é que governo e
oposição não estavam de acordo quanto às "bases" sobre as quais essa
constitucionalidade do país em tese repousaria. Ambos se disputavam, desde a
abertura da Constituinte, não tanto em torno do estado de coisas a ser criado
pela futura constituição, mas da interpretação dos acontecimentos relativos e
posteriores ao Fico e da maneira como eles teriam determinado a forma de
representação política do soberano. Os princípios positivos que norteariam a
constituição só poderiam ser deduzidos assim depois de resolvida a questão
referente à primazia de uma das duas instituições, Coroa e Assembléia, o que
teria lugar quando se reconhecesse ou se rejeitasse o direito de veto e de
dissolução reivindicados pelo imperador.
Até que tal ocorresse, haveria indeterminação e luta. Na véspera da abertura da
Constituinte, o irmão de José Bonifácio, Antônio Carlos de Andrada Machado
(como ele, também deputado e ministro), dera já em plenário o tom da defesa das
prerrogativas da Coroa:
"Cuidará que a assembléia é soberana e soberana do imperador? Se o
pensa, saiba que poderes delegados e independentes não podem ser
senão iguais, e que um poder como o do imperador, que igual como
executor, exerceu sobre nós superioridade, como o convocar-nos, e que
por necessidade há de influir sobre os poderes delegados todos, visto
ser essa influência da essência da monarquia constitucional, não é
nem pode ser olhado senão como superior. Talvez venha o nobre
preopinante com a arenga de assembléia constituinte que em si
concentra os poderes todos; advirta porém que não podemos concentrar
poderes que existiam antes de nós, e dimanaram da mesma origem, e não
foram destruídos pelo ato de nossa delegação; antes tiveram a
principal parte na nossa criação. A nossa procuração é coarctada:
ampliá-la seria usurpação; e a esta me oporei eu sempre" (AACB,
1823,I:11).
A lição foi repetida dois dias depois, na discussão de resposta à Fala do
Trono:
"A nação, Sr. Presidente, elegeu um imperador constitucional, deu-lhe
o poder executivo, e o declarou chefe hereditário; nisto não podemos
nós bulir; o que nos pertence é estabelecer as relações entre os
poderes, de forma porém que se não ataque a realeza; se o fizermos,
será a nossa obra digna do imperador, digna do Brasil e da
assembléia" (idem:25).
A 26 de junho, José Joaquim Carneiro de Campos explicitou os fundamentos
daqueles que, como ele, defendiam a Coroa. Depois de aplicar ao Brasil o tropos
de Mirabeau e Mounier, referido no início deste artigo, de que nosso povo não
seria composto de selvagens que vinham nus para formar uma sociedade, já tendo
sido previamente "ajustado e firmado o nosso pacto social", e bastando apenas
"especificar as condições indispensáveis para fazer aquele pacto profícuo,
estável e firme" (AACB, 1823, II:126), ele adicionou:
"A soberania é inalienável; a nação só delega o exercício de seus
poderes soberanos. Ela nos delegou somente o exercício do poder
legislativo, e nos encarregou de formarmos a constituição de um
governo por ela já escolhido e determinado; pois muito antes de nos
eleger para seus representantes, tinha já decretado que seria
monárquico, constitucional e representativo. Ela já tinha nomeado o
Sr. Dom Pedro de Alcântara seu supremo chefe, seu monarca, com o
título de Imperador e Defensor Perpétuo. Estas bases jamais podem ser
alteradas pela constituição que fizermos ou por qualquer decreto ou
resolução desta assembléia [...]" (idem:127).
A conseqüência dessa divergência foi que as relações entre os dois poderes,
"constituídos" sem prévia constituição, passariam a se desenvolver em um quadro
obscuro de competências, definida por "bases" em torno das quais não havia
consenso. O fato de a Constituinte passar a acumular também o Poder Legislativo
ordinário, até então exercido pela Coroa, fragmentando o poder político em um
momento em que a guerra contra Portugal, a necessidade de reconhecimento do
Império e a construção do Estado recomendavam, ao contrário, a concentração
desse poder, não tornavam mais fáceis a convivência entre as duas instituições.
O diagnóstico da elite coimbrã era o de que, justamente nessa situação de
urgência e gravidade, que exigia "energia" redobrada do Poder Executivo, este
estava, ao contrário, cada vez mais dependente de uma assembléia cujos membros
subordinavam suas idéias e posições políticas à ambição de pastas ministeriais
e investimentos em suas províncias de origem. Por outro lado, apegada
prioritariamente às suas províncias, a maioria aspirava à descentralização,
tolerando a continuidade do regime centralizado si et in quantum expediente
necessário, mas transitório, à manutenção de uma ordem pública que as
localidades não tinham ainda como prover sozinhas ' daí porque tentavam
transigir com o governismo coimbrão. Essa transigência, porém, era instável, e
o governo nunca pôde dispor de maioria consolidada. Se por fim acabasse por
prevalecer o entendimento de que a Assembléia era soberana diante do Imperador,
pensaram os governistas, as competências dele seriam arrancadas uma a uma,
esvaindo-se toda e qualquer esperança de controle do processo político e, por
conseguinte, de estabilidade institucional. Convencer então a maioria da
assembléia de que as bases constitucionais que pautavam a relação entre os dois
poderes correspondiam às do projeto monarquiano de 1789, e não à monarquia
republicana de 1791, pareceu aos membros da elite coimbrã o único meio de
impedir o colapso das novas instituições monárquicas e, com elas, o projeto de
construção nacional baseado na ordem e na unidade do Império.
Argumentos puramente monarquianos, porém, talvez fossem insuficientes para
convencer a Assembléia Constituinte ' como todas elas, ciosa de seu mando. Foi
nesse contexto estratégico que, logo em seus primeiros dias, começou a ser
mobilizado o conceito de Poder Moderador.
NEUTRALIDADE ATIVA, DISCRICIONARIEDADE, CENTRALIZAÇÃO: O PODER MODERADOR COMO
COLUNA MESTRA DA SOBERANIA NACIONAL
Até a abertura da Constituinte, os coimbrãos exprimiram-se rigorosamente nos
termos monarquianos, isto é, sustentando que o regime monárquico constitucional
autêntico não era o da monarquia republicana de 1791, e sim o da Constituição
inglesa conforme a leitura de Bolingbroke, isto é, um governo misto dotado de
uma Coroa forte, que governava como Poder Executivo e que resolvia, por meio da
prerrogativa do veto e da dissolução, os eventuais conflitos
interinstitucionais11. Entretanto, foi nesse mesmo período que o conceito de
Poder Moderador começou a ser empregado no meio brasileiro. Embora na origem
remontasse, como vimos, ao sentido monarquiano que Saint-Pierre lhe conferiu no
debate travado durante a Revolução, o conceito passara na Europa a ser
genericamente associado à idéia de uma terceira força que, independentemente da
natureza do regime, ficaria encarregada de manter a paz entre Executivo e
Legislativo. Em 1823, o conteúdo semântico do conceito era aquele de Poder
neutro, meramente arbitral, que lhe havia sido atribuído pela doutrina liberal
de Benjamin Constant em 1814 e que se difundira no início do reinado de Luís
XVIII, quando o próprio partido ultramonárquico (ultra), então maioria
parlamentar, o adotou para impor seus pontos de vista ao rei. Embora
reintroduzido no contexto monárquico, seu significado era, pois, algo diverso
daquele que lhe havia sido conferido 25 anos antes. Agora ficava reservado ao
príncipe, autoridade inviolável, apenas o exercício da prerrogativa régia em
casos de crise, para fins de controle estrutural da constitucionalidade,
ficando ele afastado do governo, reservado a ministros que pudessem ser
responsabilizados por seus atos. As duas intenções claras da doutrina eram:
primeiro, a de empregar o prestígio e a neutralidade do rei para obter a
efetividade e a estabilidade do regime constitucional, coisa que a França não
havia conhecido até então; e segundo, a de prevenir uma política de retorno ao
Antigo Regime, afastando o monarca dos negócios públicos. Eis como, em 1816, o
Visconde de Chateaubriand qualificara o poder monárquico:
"A doutrina sobre a prerrogativa régia constitucional é: que nada
proceda diretamente do rei nos atos do governo; que tudo seja obra do
ministério, mesmo o que se faça em nome do rei e com sua assinatura,
projetos de lei, decretos, escolha de homens. O rei, numa monarquia
representativa, é uma divindade que nada pode atingir: inviolável e
sagrado, ela é ainda infalível; pois, se houver um erro, esse erro é
do ministro e não do rei. Assim, pode-se tudo examinar, sem ferir a
majestade real, pois tudo decorre de um ministério responsável"
(Chateaubriand, 1987:172).
Depois de derrotado o partido ultramonárquico, os liberais retomaram a bandeira
do Poder Moderador. Foi o que fez o Conde de Lanjuinais, em 1819, em
Constituições da Nação Francesa, quando glosou a idéia de Constant:
"Para que haja uma liberdade regular, é necessário uma autoridade
mediadora diretiva, moderadora, neutra a certos aspectos, absoluta em
outras relações, enfim irresponsável, uma autoridade que previna ou
termine toda luta perniciosa, que propicie ou restabeleça a harmonia
necessária entre as grandes autoridades. Eis o que apenas o Rei pode
fazer, propondo as leis, recusando ou concedendo sanção às resoluções
das duas câmaras, nomeando os pares, e criando novos pares;
convocando, adiando, ou dissolvendo as câmaras; usando de seu direito
de agraciar e comutar as penas, nomeando e demitindo ministros;
distribuindo, revogando as recompensas e os favores" (Lanjuinais,
1832:219).
Entre nós, tudo leva a crer que, diante da perspectiva de enfrentamento no
terreno da "metaconstitucionalidade", os governistas brasileiros passaram a
empunhar o estandarte ultraliberal do Poder Moderador para defender na
Assembléia sua concepção monarquiana de Estado constitucional. A elite coimbrã
estava consciente das dificuldades da obra de construção nacional que a
independência impunha e da necessidade de uma Coroa forte para garanti-la, mas
estava pessimista quanto à possibilidade de derrotar o modelo institucional de
governo de Assembléia na Constituinte. Este acabara de triunfar em Portugal e
havia sido defendido então por uma parcela significativa de deputados que,
tendo abandonado as Cortes, haviam sido eleitos e ocupavam cadeiras na
Constituinte brasileira, como Muniz Tavares, Araújo Lima, Lino Coutinho,
Custódio Dias e Martiniano de Alencar, entre outros (Carvalho, 1979).
O fato de tratar-se o Poder Moderador de um slogan do partido ultraliberal não
pareceu constranger os membros da elite coimbrã, até porque, da forma como era
empregado, fazendo referências ao que havia de mais moderno na publicística
francesa de então, tratava-se de um formidável artifício retórico de que os
brasilienses, com seus fumos também ultraliberais, dificilmente conseguiriam se
desembaraçar12. Foi antevendo, portanto, a resistência que enfrentaria a
proposta institucional de corte monarquiano que os partidários do Imperador
lançaram mão da teoria do poder neutro como forma de dourar a pílula. Embora
isso pareça não fazer sentido, já que o Poder Moderador em princípio
enfraqueceria o poder monárquico, o estratagema envolvia uma engenhosa linha de
argumentação: o Poder Moderador era uma invenção da moderna escola francesa de
direito público e, portanto, insuspeita aos brasilienses. Segundo tais autores,
aquele poder, cujas atribuições compreendiam o direito de veto e o de
dissolução era da essência de toda a monarquia constitucional (Constant, 1997:
324). No Brasil, desde o 7 de setembro, já havia um Estado independente, e seu
regime era o monárquico constitucional; portanto, esse Poder Moderador também
já existia. Logo, o Imperador detinha suas atribuições, podendo vetar e
dissolver a câmara. Estava armada, assim, a arapuca retórica.
Grosso modo, três foram as leituras ou visões do Poder Moderador enfatizadas
durante a Constituinte de 1823, assim como três foram os deputados que as
desenvolveram ' Antônio Carlos de Andrada Machado, irmão de Andrada e Silva;
José Joaquim Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas, e João Severiano
Maciel da Costa, futuro Marquês de Queluz. Embora partilhassem da mesma
formação jurídica coimbrã e tivessem mantido relações mais ou menos estreitas
com o Conde de Linhares13, os matizes assimilados pelo conceito de Poder
Moderador em seus discursos não apenas diferiam entre si como tal ocorria na
proporção direta em que cada um deles se distancia da teoria de Benjamin
Constant. Aquelas três visões foram: primeiro, o Poder Moderador como um lugar
privilegiado do chefe do Estado, desinteressado e acima da "política"; segundo,
como um poder de exceção a serviço da salvaguarda do sistema constitucional; e
terceiro, como a razão da centralização político-administrativa.
Na primeira dessas visões (que era também a mais próxima de Constant14), o
Poder Moderador era apresentado menos como um poder político de conteúdo
definido do que como um lugar privilegiado e inalcançável ocupado pelo chefe do
Estado, cuja posição sublime imporia aos deputados preservá-lo de críticas e
cercá-lo de um cerimonioso e contemplativo respeito. Ao enfatizar a necessária
inviolabilidade da pessoa do monarca, por cujos erros responderiam os
ministros, Andrada Machado refletia os anseios mais imediatos do Imperador, que
pretendia assim convencer a imprensa a poupá-lo de seus excessos15. O Imperador
era "o poder influente e regulador, a coluna mestra da sociedade [...],
superior a todos os outros poderes, a quem nenhuma das manifestações de
submissão, de deferência e de respeito jamais podem ser degradantes" (AACB,
1823, I:2). Detendo o monopólio cognitivo do interesse público, "acima das
nossas fraquezas e paixões" (idem:98), o monarca, esse verdadeiro "ser
metafísico", o único capaz de "distinguir o verdadeiro interesse da sociedade e
de se guiar por ele" (idem:3), estaria em condições ideais para governar e
regular de maneira adequada o funcionamento dos demais poderes.
"Quando uma nação é regida por um só indivíduo, o governo desta nação
é monárquico, se o poder é hereditário na dinastia reinante, e se o
monarca tem alguma parte ao menos no supremo poder moderador
nacional. Se todos os poderes se concentram num só homem, a monarquia
é absoluta, a qual porém se difere do despotismo em ser o poder
exercitado segundo leis fixas [...]. Se os poderes são divididos,
ficando a legislação na mão dos representantes nacionais, e o poder
executivo na mão de um monarca hereditário, inviolável e com alguma
influência sobre os outros poderes, temos o que chamamos monarquia
constitucional representativa" (idem:26)16.
O que se percebe é que, enquanto Constant, Chateaubriand e Lanjuinais,
contemporâneos de Andrada Machado, brindavam Luís XVIII com semelhante
palavrório para compensá-lo da perda que lhe queriam impor do Poder Executivo,
Antônio Carlos invocava-as para convencer o auditório local de que o poder do
príncipe deveria ser mantido. Bom conhecedor de retórica, plenamente ciente do
poder do argumento de autoridade em um país periférico, Andrada Machado
ressaltava o intrínseco caráter moderno do Poder Moderador, que conheceria
perfeitamente por ser recém-chegado das Cortes lisboetas. Mobilizando assim seu
contato íntimo e com as últimas descobertas da modernidade política européia,
Antônio Carlos declarava sem rebuços que um deputado que desconhecia ou negava
o caráter de centralidade do Poder Moderador numa monarquia constitucional
confessava sua ignorância do funcionamento de próprio sistema representativo.
Os adversários que não se submetessem ao argumento de autoridade ficavam assim
advertidos do ridículo em que poderiam incorrer diante de todo o país
representado na Assembléia.
No entanto, a compreensão ampla da natureza e da importância do Poder Moderador
no conjunto de peças do governo representativo ficaria patente na formidável
defesa que lhe fez Carneiro de Campos, quando o apresentou, dentro de uma
teoria mais ampla do governo representativo, como um controle político-
estrutural, um poder de exceção a serviço da salvaguarda do sistema
constitucional. O governo representativo, explicava ele, era um meio termo
entre a democracia e a monarquia absoluta. Na primeira, a influência nacional,
sendo tudo, faria do chefe uma figura nula, ao passo que na segunda tal
proporção de todo se inverteria. O governo representativo, por sua vez,
caracterizar-se-ia pela influência moderada e indireta que a nação tinha sobre
o governo. Duas eram as suas espécies: a república e a monarquia temperada. Em
uma evidente alusão ao modelo de 1791, ele entendia que, para que o governo
fosse republicano, seria "indispensável que a preponderância se conserve sempre
fixa no corpo que representa a massa social, e por conseqüência que o chefe da
nação não possa suspender o efeito da lei, (não) seja um mero executor delas".
Nesse caso, ainda que houvesse uma personalidade com o título de imperador ou
rei, não haveria monarquia, e sim república, pois que ele "não será mais que um
arconte, cônsul ou doge, um mero executor de leis"17. Por outro lado, a
monarquia representativa tinha lugar "se o corpo dos representantes perde[sse]
essa preponderância, e a sua influência na formação das leis se repart[isse]
com igualdade entre ele e o chefe da nação" (AACB, 1823, II:128). Essa
influência que o príncipe exerceria sobre o Legislativo se traduzia pelo
direito de veto, direito tanto mais necessário porque, além do Executivo, o
monarca...
"tem também o caráter augusto de Defensor da Nação. Ele é sua
primeira autoridade vigilante, guardião de nossos direitos e da
Constituição. Esta suprema autoridade faz dele um ser sagrado e
inviolável, reconhecido pelos mais sábios publicistas de nosso tempo
como um poder distinto do Executivo, por causa de sua natureza,
finalidade e competências. Essa suprema autoridade, dizia eu, chamada
poder neutro, moderadorou tribunício, é essencial aos 'regimes
representativos', desde que era a garantia de que os mandatários do
povo jamais se arrogariam em 'senhores e tiranos'. Diante da
possibilidade de contradição desses mandatários, relativamente à
vontade e ao interesse geral, é preciso que a Nação arme de poderes
aquele que é superior a todas as considerações e interesses
particulares, o único a ter um interesse eminente na manutenção da
constituição, para que ele vele por ela como seu guardião" (ibidem).
Por conseguinte, o Poder Moderador de Carneiro de Campos não derivava
simplesmente uma qualidade da realeza ou da natureza das coisas, como no
discurso de Andrada Machado; ele era, no melhor estilo monarquiano, o direito
da nação de ser protegida pelo representante do bem comum quando ela estivesse
desprovida de meios eficazes de autodefesa contra o particularismo dos
interesses legislativos; a autoridade neutra capaz de manter in extremisa ordem
constitucional, a bem da unidade da vontade nacional, contra as veleidades
facciosas e particularistas de seus representantes eleitos. Não sendo possível,
explicava, que o povo soberano agisse por conta própria para fazer valer seus
interesses por si mesmo ' pois que "os trabalhos a que a maioria se dedica e a
falta de tempo e de meios para se entregar a meditações mais profundas o
obrigam a se conduzir quase sempre por sensações" (DACB, 1823, II:468) ', o
fato do sistema representativo impunha a existência e a delegação daquele poder
que, "como atalaia da liberdade e dos direitos do povo, inspeciona e equilibra
todos os outros poderes" (AACB, 1823, II:129). Tendo esse poder sido delegado
por aclamação popular ao Imperador, este se tornara a "suprema autoridade
vigilante" da nação, cuja missão era "impedir a perturbação da ordem pública e
o desfuncionamento da máquina política" (DACB, 1823, II:468). "Remédio extremo
e instância última do sistema constitucional", o Poder Moderador deveria ser
aplicado quando não houvesse "outro meio ordinário e pacífico de evitar danos
iminentes ao Estado" (AACB, 1823, II:109-110). O Poder Moderador de Caravelas
era, portanto, um poder discricionário emergencialmente exercido pelo chefe do
Executivo para salvar o regime representativo nascente do perigo de
desagregação do corpo político; uma espécie de freio de mão leviatânico para as
emergências de um Estado liberal incipiente e frágil, despido de tradições e
por isso ameaçado pelo seu próprio déficit de legitimidade ' um sucedâneo
aperfeiçoado, como seu irmão reconheceria depois, da ditadura romana.
"É verdade que a nossa constituição foi a primeira que levou esta
doutrina a efeito e à prática, porque criou explicitamente o poder
moderador, e não vejo isto nas outras constituições; mas isto é um
grande merecimento da nossa constituição, pois que tem aperfeiçoado
assim os princípios dos governos livres [...]. Este poder veio fazer
uma exceção à essa regra [da referenda ministeria] nos poucos atos
próprios do dito poder, e isto para remediar as faltas das antigas
ditaduras. O poder moderador não é senão uma espécie de ditadura,
ditadura, porém, restringida a certos e poucos objetos, a certos e
determinados atos particulares" (AS, 1841, III:207-208).
A última das leituras do Poder Moderador ' a de João Severiano Maciel da Costa
' é a que mais se afasta da concepção original de Constant. Ele critica
inicialmente a experiência francesa do senado napoleônico, a quem a
constituição consular atribuíra o dever de salvaguardá-la. Esse retumbante
fracasso comprovara que tal papel não deveria ser desempenhado por um
colegiado, mas pela única pessoa do Imperador. Tal como nas outras duas
leituras, Maciel da Costa repetia que, além do poder de executar as leis, o
monarca tinha "o supremo poder moderador" em virtude do qual "ele vigia como
atalaia sobre todo o Império; é a sentinela permanente, que não dorme, não
descansa". Para qualificar o papel do monarca no exercício deste último, o
futuro Marquês de Queluz invocava uma imagem muito comum no debate político da
época, associando-o à mesma figura mitológica a que recorria José Bonifácio: o
príncipe era "o Argos político, que com cem olhos tudo vigia, tudo observa".
Maciel da Costa ia, porém, além de seus antecessores ao conferir ao Estado,
personificado no monarca, o grau de um verdadeiro representante existencial da
soberania nacional. É o que fazia ao afirmar que, com sua centena de olhos, ele
"tudo toca, tudo move, tudo dirige, tudo concerta, tudo compõe, fazendo aquilo
que a Nação faria se pudesse". Para que a Coroa pudesse, porém, se desempenhar
a contento de suas tarefas, exercendo aquela vigilância que lhe fazia o
apanágio em um país vasto como o Brasil, ela carecia de meios administrativos
que lhe dessem "olhos e braços por todo o Império" (AACB, 1823, V:164). Ao
contrário do que ocorria nos Estados Unidos, para tanto não bastaria que se
atribuísse ao Poder Judiciário tal papel, porque também ele, na qualidade de
emanação indireta da soberania nacional representada pelo Imperador, deveria
estar sujeito àquela vigilância.
"Esses olhos, esses braços, são as autoridades provinciais, que vêem
e tocam por ele e com ele estão em contínuo contato; relações estas
que não quadram aos membros do poder judiciário, que deve ele mesmo
ser vigiado, sobreroldado [...]. Não há, senhores, outro meio nenhum
de governar um grande país: dividir a guarda e a vigia da observância
das leis por tantas autoridades subalternas, quanto bastem para o
feliz desempenho; premiar os zelosos e exatos; punir os infiéis e
negligentes" (ibidem).
Era dessa forma que o futuro Marquês de Queluz invocava o Poder Moderador para
justificar a centralização político-administrativa, contra as pretensões de
autonomia das províncias e ' ça va sans dire' contra a própria opinião de
Constant, ele mesmo descentralizador moderado (Constant, 1997:423).
Registre-se, porém, que os monarquianos brasileiros não falaram para um
auditório passivo. A doutrina da paridade ou precedência do Imperador diante da
assembléia foi contestada várias vezes pela oposição, que argumentava com a
teoria do poder constituinte de Sièyes18. Além dessa rejeição mais geral da
teoria "meta-constitucional" monarquiana, um membro da oposição, o deputado
pernambucano Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, inteligentemente
refutou também o argumento do Poder Moderador desenvolvido pelo governo.
Embora, citando Malouet, reconhecesse que "o chefe da nação é o guarda nato da
felicidade geral, é aquele a quem pertence vigiar sobre todos os outros
poderes", devendo, portanto, ter o direito de veto sobre os projetos de lei,
esse veto somente aproveitaria ao Imperador depois da Constituição elaborada e
promulgada pela Constituinte, pois era ela que deveria fixar como e quando
caberia ao monarca o exercício dessas prerrogativas (AACB, 1823, II:124). Foi o
deputado Henrique de Resende, todavia, quem com mais veemência combateu os
argumentos de Carneiro de Campos, valendo-se de argumentos semelhantes àqueles
com que Sièyes combatera o veto absoluto proposto pelos monarquianos:
"Dizem que a assembléia não é infalível e é sujeita às paixões. E o
Imperador é um anjo, não tem paixões? O Imperador é mais sujeito a
essas paixões, porque tem para elas mais incentivos: comanda a força,
dá os empregos, as honras e é quem executa as leis; por isso tem mais
interesse em que elas sejam a seu jeito. Nós nada disso temos e somos
temporários; tornamos para o que antes éramos. A assembléia não é
infalível, e o Imperador é? Nego. É tanto homem como nós, e ademais
tem maiores entraves para ver a verdade, mais incentivo às paixões.
Quando os povos nos mandaram aqui para fazer a constituição e as
reformas indispensáveis, estavam convencidos que essa constituição
essas reformas eram necessárias e sabiam quais eram elas. Viemos com
plenos poderes; a constituição e as reformas devem ser efetivas e de
nenhuma forma devem depender da sanção imperial os decretos da
assembléia constituinte" (idem:130).
De uma forma geral, porém, nenhum deputado atacou diretamente o Poder Moderador
como instrumento do despotismo ' ao contrário, evitaram cuidadosamente combatê-
lo de frente. Isso não quer dizer, contudo, que os adversários do ministério
não pudessem adivinhar o cavalo de Tróia, como de fato o fizeram; significa
apenas que eles encontraram muitas dificuldades para fundamentar, de forma
adequada, o argumento de que, embora ultraconstitucional, a teoria do poder
neutro estava sendo mobilizada para fins contrários àquilo que eles,
"brasilienses", percebiam como verdadeiramente constitucional. Tanto assim foi
que, no frigir dos ovos, ele não foi incorporado ao anteprojeto por Andrada
Machado, a essa altura já na oposição. Ele já sabia bem o que significava para
o governo a concessão desse poder e, por isso, não concedeu ao Executivo a
faculdade específica de dissolver a Câmara de Deputados ' o mais importante de
todos os mecanismos moderadores.
***
É conhecido o desenrolar factual dessa história, com o fracasso dos governistas
brasileiros em evitar, ao menos pelo verbo, a apropriação integral da soberania
pela Assembléia. Depois da queda dos irmãos Andrada e de sua passagem à
oposição, cindindo a elite coimbrã, o Imperador e seus defensores foram,
primeiro, derrotados na batalha em que pretendiam limitar os poderes
constituintes da Assembléia. Os governistas também não conseguiram depois
convencer a maioria a conceder ao Imperador o direito de pelo menos vetar a
legislação ordinária. Mais adiante, foi o anteprojeto apresentado ao plenário
que excluiu o direito de dissolução da câmara das atribuições imperiais. O
derradeiro fracasso verificou-se na tentativa de se pôr um paradeiro na
crescente atividade legiferante ordinária, às expensas dos debates estritamente
constitucionais, os quais ficaram em segundo plano19. No penúltimo mês de seu
funcionamento, depois de discutidos apenas os doze primeiros artigos, a maioria
da assembléia decidiu paralisar toda a discussão sobre a constituição para se
dedicar exclusivamente aos assuntos do governo, dando assim sinais inequívocos
de pretender derrubar o ministério de Carneiro de Campos e encurralar o
Imperador. Por fim, o episódio do "brasileiro resoluto", em novembro, deu
ensejo a que a assembléia começasse a apresentar cenas que, aos olhos de muitos
contemporâneos, deviam ter evocado as da Revolução francesa, com os deputados
convidando o povo a ocupar o plenário e fazendo discursos inflamados de ódio
aos supostos inimigos da pátria: eram os episódios de 1791, replicados em Cádiz
e em Lisboa, que agora iriam se repetir no Rio. Os governistas aconselharam
então o Imperador, na qualidade de Defensor Perpétuo do Brasil, e em
conformidade com a teoria monarquiana, a dissolver a assembléia manu militari.
O conselho fora dado pelos próprios Andradas, quando na situação (Monteiro,
1981:784), mas dessa vez Dom Pedro o seguiu. Pondo em risco o país, ao se
dividirem em facções e se deixarem arrastar por elas, os deputados
constituintes teriam perjurado o compromisso de defender a integridade do
Império, sua independência e à dinastia. Vez que "males extraordinários exigem
medidas extraordinárias", a dissolução justificava-se como uma medida de
salvação pública (Javari, 1993:83).
Embora houvesse quem, afinado com a teoria ministerialista, defendesse a
legitimidade do ato do imperador sob o argumento de que a dissolução era
atribuição natural de um monarca constitucional (Lustosa, 2000:409), o fato é
que, ciente da má impressão que o ato provocaria nas províncias e objetivando
convencer o público de sua constitucionalidade, Dom Pedro fez o decreto de
dissolução vir acompanhado da promessa de uma nova constituinte, que por sua
vez trabalharia sobre um projeto "duplicadamente mais liberal" que o produzido
pela Assembléia (Javari, 1993:81). Tomando este último por base, o novo
anteprojeto foi elaborado por Dom Pedro e por seus novos conselheiros de
Estado, entre os quais estavam Maciel da Costa e Carneiro de Campos, a quem a
literatura tradicionalmente atribui a autoria do projeto final (Lira, 1979:75).
Este foi enviado para exame das câmaras municipais do país, as quais o
aprovaram praticamente sem objeções20. Por fim, o Senado da Câmara do Rio de
Janeiro ' o mesmo que, dois anos antes, oferecera a Dom Pedro o título de
"Defensor Perpétuo" ' fez requerer ao governo que se dispensasse a formalidade
de uma nova constituinte e se jurasse de vez o projeto, o que veio a ocorrer21.
Assim triunfava, embora pela força ' mas uma força para eles absolutamente
legítima ', a pretensão monarquiana de fundar a autoridade principesca
diretamente sobre a soberania nacional que a aclamara. Tal como Napoleão
Bonaparte havia governado pela "graça de Deus", mas também "das Constituições"
(Rials, 2002:44), a dinastia de Bragança também passava oficialmente a imperar,
no Brasil pela "unânime aclamação dos povos". Se por um lado os argumentos
mobilizados na arena política haviam sido extraídos, como de fato foram, do
discurso monarquiano francês, por outro, o seu fracasso no país de origem e o
êxito com que foi aqui adotado abriram possibilidades inéditas de verificação
empírica de seu desempenho institucional, o que na Europa ainda não havia
acontecido.
ENTRE A FIDELIDADE JURÍDICA E A INFIDELIDADE POLÍTICA: AS AMBIGÜIDADES DO NOVO
TEXTO CONSTITUCIONAL
Comparadas às suas congêneres, a Constituição de 25 de março de 1824 era
provavelmente a carta monárquico-constitucional mais liberal de seu tempo
(Carvalho, 1993:25). Espanha e Portugal já haviam a essa altura retornado ao
absolutismo, ao passo que a França era regida por uma Carta mais concisa, mas
também mais vaga, cuja fonte de legitimidade não se achava na nação, mas nos
desígnios da divina Providência (Rosanvallon, 1994). Em contraste, a
Constituição de 1824 estava, na sua maior parte, em consonância com o espírito
de suas malogradas predecessoras ibéricas: ela consagrava a soberania nacional
(art. 12), a divisão de poderes, o bicameralismo, a responsabilidade
ministerial, o sistema representativo a censo baixo e amplo e uma extensa
declaração de direitos fundamentais. Por outro lado, a influência monarquiana
fez-se sentir em pontos centrais do funcionamento do regime, que derivavam do
modo como o conceito de Poder Moderador havia sido recepcionado.
A quase unanimidade da historiografia brasileira partilha de opinião de que
essa recepção se fez de forma a desfigurar a doutrina de Constant, evidência da
pretensão absolutista de seus agentes (Carneiro da Cunha, 1985:256; Bonavides e
Andrade, 1991:96; Fausto, 1999:152; Faoro, 1997:290). A Constituição teria
atribuído o exercício do Executivo e do Moderador ao monarca, quando a intenção
de Constant era a de separá-los para consagrar o parlamentarismo como sistema
de governo. No entanto, a questão é mais complexa e sutil. Antes de tudo, é
preciso separar dois aspectos distintos da transposição: o jurídico ' a forma
como as competências preconizadas por Constant foram incorporadas pelos autores
da Constituição; e o político ' os objetivos que a Coroa perseguia com a
recepção do conceito. Essa distinção é fundamental na medida em que as
intenções dos atores são mais voláteis, mudando conforme a composição de
interesses, ao passo que a finalidade das instituições constitucionais é a de
estabelecer regras fixas para estabilizar o jogo político. Embora seja correto
afirmar que o direito preserva certa margem de discricionariedade decisória no
interior do procedimento hermenêutico a que suas normas se sujeitam ao serem
aplicadas, tal não elide o fato de que mesmo assim permanecem limites
consideráveis a uma ação política puramente discricionária. A despeito disso, o
que se verifica entretanto é que os especialistas geralmente não levam na
devida consideração a relativa autonomia dos campos quando, ao contrário, o seu
pressuposto era uma das mais importantes pedras de toque do constitucionalismo
oitocentista. A tarefa de identificar as matrizes ideológicas de um texto
constitucional implica a localização dos conceitos que o informam e sua
identificação com os tipos de discursos políticos a que originariamente
pertenciam, dentro das possibilidades que os agentes constitucionais tinham de
conhecê-los. No caso concreto, penso que um bom ponto de partida passaria por,
primeiro, examinar os textos constitucionais das demais nações da época;
segundo, tentar apreender o que se entendia então por governo parlamentar; e
terceiro, medir o grau de conhecimento que o meio político brasileiro possuía
acerca da obra de Constant e verificar se houve alterações na atribuição das
competências do Poder Moderador. À luz dessas questões, torna-se possível opor
pelo menos três objeções ao argumento de que, por não haver consagrado o
parlamentarismo inglês, a Constituição de 1824 teria traído a doutrina de
Constant para operar uma verdadeira "constitucionalização do absolutismo"
(Bonavides e Andrade, 1991:96).
A primeira dessas objeções consiste no fato de que todas as constituições do
século XIX, inclusive as ibéricas, designavam o rei como titular do Executivo.
Durante os Cem Dias, quando teve a oportunidade de redigir uma constituição
liberal para Napoleão, o próprio Constant esquivou-se de se exprimir em termos
de separação entre executivo e moderador para evitar a suscetibilidade dos
atores envolvidos. Ele propositadamente preferiu expressões mais imprecisas,
como "Imperador, governo, ministros e câmaras" (Rials, 2002:45), certo de que,
deixando o texto mais flexível e mais aberto a interpretações, com o tempo
haveria de se formar um consenso em torno do espírito doutrinário liberal dos
seus Princípios de Política, não por acaso publicado na mesma época. Da mesma
forma, vez que a necessidade de adaptação do governo às mudanças sociais
determinadas pela opinião pública impunham interpretações constitucionais mais
conforme o espírito liberal do que com a letra da lei, para Benjamin Constant
não era necessário que o Poder Moderador fosse formalmente consagrado no texto
como um quarto poder, desde que ela fosse observada na prática institucional
empírica. Durante os quinze anos de vida que lhe restaram, o autor de Adolphe
sempre interpretou o papel constitucional do rei da França de acordo com o
Poder Moderador por ele teorizado, deixando em segundo plano a literalidade dos
enunciados normativos da Carta de 181422 que, guiados em uma lógica mais de
limitação da potência soberana do que de repartição do poder (Waresquiel e
Yvert, 2002:58), atribuíam ao príncipe vastos poderes governamentais. Isto
posto, o fato de atribuir constitucionalmente ao monarca o exercício do Poder
Executivo (como se fizera na França, na Espanha, em Portugal, na Holanda e na
Bélgica) não consistia, para ele, em nenhum óbice para o funcionamento de sua
teoria, desde que os negócios ordinários da administração ficassem, na prática,
por conta de um ministério responsável23. Nesse ponto a Constituição brasileira
foi inclusive cuidadosa ao não confundir o imperador com o próprio Poder
Executivo, fazendo daquele apenas o seu chefe e acrescentando que ele apenas o
exercia por meio de seus ministros de Estado (art. 102), sem cuja referenda os
atos assinados pelo rei não teriam executoriedade (art. 132)24.
A segunda objeção é que a visão tradicional da historiografia brasileira parece
tomar por equivalentes conceitos como parlamentarismo e sistema representativo.
A publicística francesa da década de 1820 não falava em parlamentarismo, e sim
degoverno representativo,gênero cuja espécie por excelência era a monarquia
constitucionaloumonarquia representativa. Se por sistema parlamentar se deve
compreender a escolha e a duração de governos a partir da vontade da maioria
legislativa, ficou provado recentemente que, nesse caso, esse governo jamais
existiu na França durante o período em estudo (1815-1830). Amparado na
Constituição, o príncipe estava livre para nomear quem bem entendesse,
independentemente do humor das câmaras; por outro lado, dele dependia,
igualmente, a vida legítima dos ministérios. A única arma do Legislativo era
uma oposição tenaz que, na forma de sucessivas obstrução ou derrotas,
convencesse o ministério da inutilidade de continuar pelejando. Aos poucos, os
ministros começaram a se conscientizar que, dado o grau de divergência
ideológica dos partidos parlamentares, eles careciam do apoio da maioria se
quisessem governar a contento ' o que estava longe de constituir um regime
parlamentarista, pois noções suas elementares eram ainda embrionárias
(Laquièze, 2002)25. Também não havia consenso acerca da oportunidade ou
utilidade dos poucos mecanismos parlamentares que se ensaiavam, como o direito
de petição, a resposta à fala do trono ou o pedido de esclarecimentos aos
ministros ' logo incorporados, por imitação, à prática brasileira. Por não
estar sistematizada nem mesmo na literatura política inglesa, essa concepção do
governo representativo não se encontra em nenhuma das obras sobre o Poder
Moderador escritas no período. Mesmo para Constant, a noção parlamentar de
responsabilidade política não era clara, como se vê de sua dificuldade de
dissociar sanção jurídica e perda de confiança no ambiente parlamentar
(Rosanvallon, 1994:87)26. O que os liberais pleiteavam, nas décadas de 1810 e
1820, era a necessidade de um intercâmbio, uma comunhão de vistas entre governo
e parlamento, ficando o rei encarregado de, em caso de desinteligência
acentuada, resolver discricionariamente os conflitos. Ir além disso e
sustentar, portanto, que os teóricos liberais do Poder Moderador tinham em
mente o parlamentarismo como sistema de governo é deles exigir dons
adivinhatórios, que não poderiam ter.
A terceira objeção referente à suposta deformação da doutrina do Poder
Moderador pode ser desenvolvida a partir da comparação das prerrogativas
outorgadas ao imperador pela Constituição de 1824 com aquelas que Constant lhes
havia reservado e que podiam ser conhecidas da elite política brasileira. Dez
anos antes, nas Reflexões sobre as Constituições e as Garantias, com um Esboço
de Constituição, Constant elencara sete atribuições régias inerentes ao poder
neutro: a nomeação e exoneração de ministros, a sanção dos projetos de lei (com
poder de veto absoluto), o adiamento e a dissolução das câmaras, a nomeação dos
membros do Poder Judiciário, o poder de agraciar réus condenados e o direito de
declarar a guerra e fazer a paz (Constant, 1861:182). No ano seguinte, ao
publicar, durante os Cem Dias, os Princípios de Política Aplicáveis a todos os
Governos Representativos e Particularmente à Constituição atual da França, o
número de atribuições do Poder Moderador caiu de seis para quatro: nomear e
destituir ministros, criar novos pares, dissolver a câmara baixa, e conceder
graça (Constant, 1997:323). Na verdade, na medida em que costumavam ser
incluídas entre as do Executivo nas poucas monarquias constitucionais então
existentes, não havia entre elas nenhuma atribuição que se possa considerar
nova do ponto de vista jurídico ' a única novidade consistia em agrupá-las em
um poder distinto. Aquelas duas obras foram reunidas em 1818, juntamente com
outras tantas de Constant, em uma vasta coletânea que, publicada como Coleção
Completa de Obras Publicadas sobre o Governo Representativo e a Constituição
Atual da França, Formando uma Espécie de Curso de Política Constitucional, foi
a mídia pela qual o público brasileiro teve conhecimento de sua doutrina27.
Dentre todas essas atribuições do poder neutro, que, aí reunidas, poderiam ser
portanto legitimamente incorporadas ao texto da Constituição, as únicas
alterações significativas promovidas pelo Conselho de Estado foram a adição da
concessão de anistia e a transferência da prerrogativa de guerra e paz para o
título do Poder Executivo ' o que implicava eliminar a discricionariedade no
exercício daquela atribuição, que passava a se submeter ao crivo dos ministros
e do Legislativo.
No mais, o trabalho dos conselheiros foi de mera adaptação de outras
competências às circunstâncias brasileiras e às demais instituições previstas
na Constituição ' assim, o direito de nomear pares hereditários foi substituído
pelo de escolher senadores vitalícios, a partir de uma lista tríplice de
eleitos em cada província (conforme aliás constava da proposta original
monarquiana, de 1789); o direito de nomear juízes, por sua vez, foi substituído
pelo de suspendê-los quando acusados de corrupção, mas somente depois do
contraditório; por fim, o direito de veto sobre os projetos de lei foi
estendido àqueles que viessem a ser elaborados pelos conselhos provinciais, que
na França não existiam por conta da total centralização político-
administrativa. Todas as alterações efetuadas nas prerrogativas do Poder
Moderador foram, portanto, no sentido de torná-las ainda mais liberais e de
proporcionar ao seu exercício uma maior possibilidade de controle qualitativo,
cujo exemplo máximo foi a obrigatoriedade da oitiva prévia do próprio Conselho
de Estado, ainda que consultiva (art. 142). A afirmação de que semelhantes
adaptações teriam "desfigurado" a doutrina de Constant, dando-lhe feições
autoritárias, não passa, assim, de um contra-senso evidente28.
A verdade, dessa forma, é que o imperador e os conselheiros de Estado lograram
operar uma transposição jurídica bastante fiel para o Poder Moderador imperial
das competências concedidas por Benjamin Constant ao seu poder neutro ou régio.
Assim, não é no campo normativo do direito constitucional que pode repousar a
verdadeira divergência dos conselheiros de Estado perante os ensinamentos de
Constant, e sim no campo das intenções monarquianas que estavam por trás do
texto da lei. É nesse último terreno que devem ser encarados os artigos
doutrinários que foram enxertados na Constituição ' em especial, o de número
11, que proclamou a dualidade da representação da soberania, e o art. 98, em
que formalmente ocorreu uma mutação conceitual do Poder Moderador.
Vimos que, independentemente da forma constitucional como fosse qualificada, ao
distinguir a autoridade inviolável (o rei) de autoridade responsável
(ministério), uma das finalidades perseguidas pela doutrina liberal inscrita no
Curso de Política Constitucionalera a de afastar o príncipe do exercício direto
da atividade governamental. Na qualidade de chefe de Estado, neutro diante dos
interesses políticos dos poderes diretamente constituídos, ele poderia resolver
discricionária, mas também excepcional e pontualmente, as crises que
eventualmente irrompessem entre eles, o que faria do príncipe não o chefe
partidário da administração pública, mas o árbitro reconhecido do sistema
representativo. Daí porque, conforme exposto nos Princípios de política, a
distinção entre os poderes Moderador e Executivo era "la clef de toute
organisation politique", ou seja, a chave, o fecho da abóbada do arcabouço
institucional (Constant, 1997:324). Nesse ponto, é verdadeiramente sintomático
do monarquianismo dos conselheiros de Estado que, tendo guardado impressionante
fidelidade à transposição das ultraliberais atribuições jurídicas do Poder
Moderador, fizeram-no, contudo121, conceituar de modo bem diverso.
De acordo com a redação do art. 98, não era mais a distinção entre os dois
poderes, e sim apenas o próprio Moderador que era "a chave de toda a
organização política". Embora a semelhança do enunciado pudesse eventualmente
decorrer de mal-entendidos dos conselheiros, a hipótese é altamente improvável
na medida em que, a crer-se em Maciel da Costa, Constant era a autoridade
teórica mais lida entre os deputados29 e qualquer leitor mediano era capaz de
compreender o seu alcance. Evidência disso é que o único deputado que, durante
a Constituinte, se pronunciou ' provavelmente por desaviso ' expressamente
contra a teoria do poder neutro, sob o argumento correto de que ela enfraquecia
o poder monárquico, foi justamente um dos mais aferrados à concepção
monarquiana de poder ' o futuro Visconde de Cairu30. Por fim, de maneira a
deixar definitivamente clara a intenção embutida nessa mutação conceitual, o
enunciado do artigo 98 prosseguia declarando textualmente que, delegatário
privativo do Poder Moderador, o imperador tornava-se o chefe supremo e '
atenção ' o primeiro representante da nação. Essa afirmação peremptória da
primazia do monarca resolvia, assim, o espinhoso tema da representação legítima
da soberania nacional, que o art. 11 não havia resolvido ao declarar que o
monarca e a assembléia eram igualmente representantes, e que na França
revolucionária e na Ibéria sempre havia se resolvido, até então, em favor do
Legislativo.
Na verdade, o que ocorreu é que os membros da elite coimbrã mais próximos do
imperador deram-se conta de que era possível efetuar uma importação
juridicamente fiel do conceito de poder neutro, atraente pela sua "modernidade"
em geral e pela ênfase que conferia à inviolabilidade do imperador, combinando,
porém, artigos doutrinários de caráter monarquiano capazes de legitimar o
governo direto da Coroa, quando se tratasse de fazer o maquinário institucional
sair do papel. Dela seria lícito esperar, conforme a exigência das
circunstâncias, tanto um funcionamento conforme pretendido pelo liberalismo do
Curso de Política Constitucional, em que o monarca era o gerente neutro do
sistema representativo, quanto um regime verdadeiramente monarquiano, no qual o
imperador se afirmasse como o eixo da representação nacional contra o
facciosismo dos interesses particulares os quais compunham a Assembléia. O
maquinário institucional poderia funcionar, na prática, tanto com Executivo
forte e acima das facções, como sugeria a doutrina contida no art. 98, como
também poderia operar em uma leitura parlamentarizante, em que o monarca surgia
como árbitro do jogo político. Dessa combinação, foi produzido um protótipo
daquilo que, ao se referir à sua proposta de um "presidencialismo
intermitente", Giovanni Sartori denominou "uma máquina com dois motores
alternativos" (Sartori, 1996:165). O ponto crucial do sistema residia na
interpretação do art. 102, segundo o qual o imperador era chefe do Poder
Executivo, exercendo-o por meio de seus ministros, e do art. 101 VI, que
permitia ao príncipe, titular do Poder Moderador, livremente nomear e demitir
ministros sem interferência das câmaras. Embora ambas disposições fossem
compatíveis com a doutrina de Constant, poderia ocorrer ' como de fato
ocorreria, durante o Primeiro Reinado ', que na prática o imperador
monarquianamente acumulasse o exercício dos dois poderes. Ele governaria de
fato, sem que seus adversários pudessem recriminá-lo pelos desmandos
decorrentes de seus atos, já que, no melhor estilo das ficções constitucionais
britânicas, dado o seu caráter inviolável e sagrado (art. 99), todas as culpas
deveriam recair sobre seus ministros responsáveis. Na complexa composição
teórica tecida pelo governo do novo Império, a teoria liberal de Constant, do
gosto do Imperador (com quem aliás se correspondia31), foi assim incorporada
estrategicamente ao debate político, e depois ao teor da Constituição, para
legitimar um projeto de corte monarquiano, julgado mais realista e em
conformidade com as necessidades do país ' embora este não fosse
necessariamente o entendimento da oposição32.
O essencial de toda essa empreitada, repita-se, resultou portanto em um texto
constitucional que permitia duas diferentes interpretações e, por conseguinte,
duas formas distintas de desempenho da Coroa enquanto agência pública. Por
conta dessa ambigüidade do conceito e da forma como os monarquianos brasileiros
o vincularam, desde a manjedoura, à questão da construção do Estado, o tema do
Poder Moderador cedo assumiu posição central na agenda política brasileira: a
possibilidade permanente de se ativar a chave institucional monarquiana
conferiria à Coroa a capacidade de eventualmente governar de modo autônomo,
descolado dos interesses oligárquicos representados no Parlamento, podendo
desencadear ações políticas a elas estranhas em nome de um interesse superior.
A ameaça de um processo de abolição da escravatura deflagrado pela Coroa
pairaria, assim, por exemplo, sob a cabeça dos interesses escravocratas durante
o Primeiro Reinado (Macauley, 1993:170), acabando por concretizar-se nos finais
do Segundo (Carvalho, 1996); da mesma forma, seria por pressão da Coroa que
ambos os partidos tentariam sanar o problema das fraudes eleitorais por meio de
reformas do sistema, cujos maiores exemplos foram a Lei dos Círculos (1856) e a
Lei Saraiva (1881). Como os atributos do Poder Moderador passaram a ser
identificados como sendo os do próprio Estado brasileiro, seja como realidade,
discurso ou aspiração, este último passou a ser reivindicado como uma força
acima da política partidária, fora do alcance e árbitra das facções,
garantidora do sistema representativo e construtora da unidade nacional. No
decorrer do regime, as três visões da potência discricionária da Coroa,
primeiramente defendidas por Andrada e Silva, Caravelas e Queluz, continuariam
a ser reivindicadas alternativa ou cumulativamente por outros atores/autores,
como João Francisco Lisboa, o Visconde de Uruguai, Brás Florentino, José de
Alencar e Joaquim Nabuco. Por outro lado, ela seria combatida por outros
autores que, em graus também variados, postulariam o primado do Legislativo e a
emancipação do interesse particular em nome da modernidade política, como
Teófilo Otoni, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Tavares Bastos e Rui Barbosa.
Quando consideramos a longevidade do tema da construção do Estado brasileiro e
sobretudo de nosso intermitente dilema entre autoritarismo modernizador ou
liberalismo oligárquico, não parece de todo implausível que o discurso liberal
monarquiano, com suas raízes no reformismo despótico-ilustrado, possa ter
exercido, na conformação do discurso liberal brasileiro, impacto equivalente ao
do republicanismo cívico na do liberalismo norte-americano. Nesse caso, uma
melhor definição das origens intelectuais do Estado brasileiro tornaria mais
fácil compreender certas formas com que parte significativa dos nossos liberais
viria, por muito tempo ainda depois da independência e mesmo da República, a
pensar as relações entre governo, sociedade e indivíduo entre nós.
NOTAS
1. Cabe aqui uma observação acerca do termo empregado para designar o partido
dos patriotas moderados, que grande atividade teve no início da Revolução
Francesa. Do fato de se reunirem então em um clube denominado sociedade dos
amigos da constituição monárquica (Societé des amis de la constitution
monarchique), surgiu o apelido por que ficaram conhecidos, monarchiens,
expressão então sinônima de monarchistes (monarquistas), mas que ficou daí por
diante historicamente associada àquele grupo político. A fim de preservar essa
distinção em português, relevante, para não confundi-lo com agremiações
monarquistas de orientações diversas, achei de melhor alvitre reproduzir a
expressão monarquianos,adotada por Henrique de Araújo Mesquita em sua tradução
do Dicionário Crítico da Revolução Francesa (Furet, 1989).
2. "Teria sido tirada dos verdadeiros princípios a idéia de separar o poder
legislativo em três partes (câmaras alta e baixa, veto do Rei), das quais uma
só falaria em nome da nação? Se os nobres e o rei não são representantes da
nação, também não são nada no poder legislativo, pois somente a nação pode
querer e, conseqüentemente, criar leis por si mesma. Qualquer um que entre no
corpo legislativo só tem competência para votar pelos povos se tiver sua
procuração" (Sièyes, 2001:41).
3. Daí alguns autores que, como Ran Halévi, vêem os monarquianos como
seguidores de Montesquieu e admiradores da Inglaterra. Para Halévi, o
representante emblemático do movimento é o moderado Mounier, ao passo que, para
Griffiths, quem exprimia o "pensamento profundo" dos membros do partido era o
radical Malouet. Interessante que tal não impede que o próprio Halévi sustente
que Malouet era "o mais lúcido, o mais clarividente dos monarquianos" (Halévi,
1989:390).
4. "A essência mesma do monarquianismo era o postulado segundo o qual o rei
devia permanecer o detentor da soberania nacional e que uma assembléia, fosse
qual fosse sua forma e ainda que considerada indispensável, devia se limitar a
um papel complementar, o de instruir, esclarecer o rei sobre os interesses da
nação, exercendo um papel de discussão, de advertência e de conselho,
preservando o rei a plenitude do poder" (Griffiths, 1988:16).
5. As expressões "elite brasiliense" e "elite coimbrã" são aqui extraídas da
obra de Neves (2003:86), embora a descrição que delas faço não seja exatamente
a mesma.
6. Como aponta Wilson Martins, a obra de Maciel da Costa chama-se Memória sobre
a Necessidade de Abolir a Introdução dos Escravos Africanos no Brasil; sobre o
Medo e Condições com que esta Abolição se Deve Fazer; e Sobre os Meios de
Remediar a Falta de Braços que Ela Pode Ocasionar, Oferecida aos Brasileiros,
seus Compatriotas. Publicada em Coimbra, defendia uma perspectiva econômica
industrializante e também a abolição do tráfico, por contrário principalmente à
segurança do Estado. Em ambos os pontos, fazia coro com Cairu (Martins, 1978:
98).
7. Os liberais sempre haveriam de localizar aí a gênese do bipartidarismo
imperial. Ao sustentar, em 1861, que o Partido Conservador teria sido derrotado
nas eleições de 1828 (nove anos antes, portanto, de sua fundação oficial),
diante da objeção do deputado Sérgio de Macedo, de que "não eram os partidos de
hoje", Teófilo Ottoni replicaria: "Eram sempre os dois partidos que estão em
luta em toda a parte e em todo o tempo, o partido do progresso e da
conservação" (Otoni, 1979:538).
8. Otávio Tarqüínio de Sousa narra a amizade estreita que os ligava: "Grandes
amigos, freqüentando-se amiúde, é fora de dúvida que José Bonifácio e D.
Rodrigo muitas vezes conversaram sobre os destinos e o futuro do Brasil [...].
Em data de 26 de abril de 1810, do Rio de Janeiro, dizia (Dom Rodrigo) a José
Bonifácio: 'Meu amigo e senhor de minha particular veneração. [...] Nem um só
instante me esqueci nem de sua amizade, nem do seu grande merecimento [...].
Sobre o seu Brasil, pode estar descansado; são grandes os seus destinos'"
(Sousa, 1974:57-58).
9. Interessante observar que a mesma imagem do Briareu foi invocada, também na
mesma época, por um adversário de Andrada e Silva, o Frei Caneca, a fim de
criticar os excessos por ele praticados contra a liberdade de imprensa: "Que
liberdade é a nossa, se temos a língua escrava! Que perigo! Como escapar, se o
Briareu do despotismo tem cem mãos, armadas de ferro, fogo, venenos e
instrumentos da morte?" (Caneca, 1976:38).
10. A alusão a Napoleão Bonaparte não é gratuita. Apesar da amargura dos outros
Braganças em relação a ele, Dom Pedro, espírito muito romântico, admirava-o por
sua mistura de modernidade, competência político-administrativa e heroísmo
militar. Ao casar-se com uma arquiduquesa austríaca, irmã de Maria Luísa, Dom
Pedro tornara-se cunhado do ex-imperador francês. Depois da morte de
Leopoldina, Dom Pedro casar-se-ia novamente, desta vez com uma neta da
imperatriz Josefina, Amélia de Beauharnais-Leuchtemberg. O imperador tornou-se
parente dos Bonaparte pelos dois lados de suas esposas, o que muito o agradava
(Sousa, 1972).
11. Em fevereiro de 1823, por meio de artigo publicado sob pseudônimo, o
imperador defendera a idéia de que a estabilidade das instituições somente
poderia ser garantida por uma constituição curta e prática, "adaptada ao país"
(Viana, 1967:58). Da mesma forma, ao abrir os trabalhos da Constituinte, ele
limitara-se a falar de "uma constituição sábia, justa, adequada e executável",
na qual "os três poderes sejam bem divididos" e cujas bases fossem capazes de
dar "uma justa liberdade aos povos", mas também "toda a força necessária ao
poder executivo" (AACB, 1823, I:16). Ainda em fins de outubro de 1823, a Coroa
falaria nesses termos de governo misto, por meio de um artigo publicado pelo
secretário particular do imperador, Francisco Gomes da Silva: "Ou queremos
monarquia constitucional, isto é, um governo misto, ou queremos uma monarquia
republicana [...]" (Viana, 1967:174).
12. O deputado "brasiliense" Cruz Gouvêia confirma a ascendência teórica de
Constant no período. Ele afirma seguir "a opinião do célebre Benjamin Constant,
publicista muito elogiado pelos mais ilustres deputados desta assembléia", e
justifica essa preferência: ele seguia "sempre a justiça e nunca o arbítrio"
(AACB, 1823, II:71).
13. Carneiro de Campos, por exemplo, não somente foi protegido de Dom Rodrigo,
como foi constituído preceptor de seus filhos (Sisson, 1999:201).
14.O fato pode ser explicado em parte porque os Andradas não haviam integrado o
"núcleo duro" da burocracia joanina. Esse não era o caso de Carneiro de Campos
e de Maciel da Costa, desembargadores que, no segundo escalão daquela
administração, haviam trabalhado diretamente com diversos ministros, como Vila
Nova Portugal, Silvestre Pinheiro Ferreira e os condes de Palmela e dos Arcos
(Monteiro, 1981).
15. Alguns meses mais tarde Dom Pedro, sob pseudônimo, escreveria à imprensa
que o monarca merecia mais respeito dos jornais da oposição, na medida em que
sua irreverência afrontaria o princípio da inviolabilidade da realeza, derivado
do Poder Moderador que ele já deteria, por ser, como se viu, "da essência da
monarquia constitucional" . O argumento era o mesmo repetido por Andrada
Machado: "Não posso levar à paciência que todos queiram e gritem Constituição e
não queiram a inviolabilidade do monarca em toda a sua extensão ilimitada, como
deve ser. Eu sou constitucional por princípio, já o era antes de se proclamar
em Portugal; não sou como muitos que querem Constituição e sabem tão pouco o
que ela é [...]. Depois que estive na Inglaterra e vi o bem executado sistema,
ainda mais constitucional fiquei, vi que o Rei é um ente moral respeitadíssimo
como tal e por isso inviolável; isto entendo eu, porque, sendo o Rei o poder
moderador, era mister que ninguém lhe pudesse pedir contas, seus ministros é
que são responsáveis por tudo, mas não de bagatelas, como agora é moda no
sistema constitucional de 1791" (Viana, 1967:96).
16. A queda do gabinete Andrada, em julho, levou os três irmãos desse nome, aí
incluso Andrada Machado, a fazerem oposição ao novo ministério, formado
exatamente por Carneiro de Campos e Maciel da Costa. A partir daí, o paulista
passou a apoiar a tese de soberania da assembléia, seja no que toca às leis
ordinárias que ela produzia, seja no que toca à própria Constituição que ela
haveria de produzir, refutando a tese de Carneiro de Campos.
17. O argumento é similar ao que vimos desenvolvido em 1789 por Saint-Pierre,
para quem o monarca "não é apenas um comissário da nação, um doge ou um
stadthouder" (Saint-Pierre, 1819:56).
18. "Alguém duvidaria que esta Assembléia é soberana, constituinte e
legislativa, por ser representante da nação, cujas prerrogativas não poderiam
ser comunicadas em virtude de sua indivisibilidade originária? [...] Sou
reconhecido ao Imperador constitucional, a quem respeito e cuja figura farei
respeitar, mas nos limites da lei [...]. O resto, é servilismo" (AACB, 1823, I:
11).
19. Seria em vão que, objetivando resguardar os direitos da Coroa, Maciel da
Costa sustentaria a falta de urgência dos temas sobre os quais a Câmara se
debatia, invadindo competências do Executivo, às expensas de sua tarefa
precípua de elaborar a constituição. Esse arriscado caminho teria tido, tanto
na França, como na Espanha e em Portugal, um mesmo fim: a dissolução. "Muito
desejara, Sr. Presidente, que esta (a Assembléia) se penetrasse bem do perigo
que correremos em desmantelar o edifício que temos de reformar, antes de bem
examinarmos suas partes e o seu todo, para não aumentarmos estorvos e
dificuldades, que paralisem nossas providências com descrédito nosso e desgosto
dos povos. [...] É preciso que não nos afastemos da marcha prescrita pela mesma
assembléia para a ordem dos nossos trabalhos, insistindo em não fazer outras
reformas salvo as que tiverem o cunho de indispensabilidade e urgência" (AACB,
1823, IV:89).
20. As exceções ficariam por conta da Câmara de Itu e de Recife. Esta última
pegaria em armas logo em seguida.
21. "Tendo-nos requerido os povos deste Império, juntos em câmaras, que nós
quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o projeto de constituição que
havíamos oferecido às suas observações para serem depois presentes à nova
Assembléia Constituinte; mostrando o grande desejo, que tinham, de que ele se
observasse já como constituição do Império, por lhes merecer a mais plena
aprovação, e dele esperavam a sua individual, e geral felicidade política: Nós
juramos o sobredito projeto para a observarmos e fazermos observar, como
constituição, que de ora em diante fica sendo deste Império [...]" (Bonavides e
Amaral, 2002).
22. Na advertência à segunda edição de suas Reflexões sobre as Constituições e
as Garantias, Publicadas em 24 de maio de 1814, com um Esboço de Constituição,
o próprio Constant reconhecia que, tendo-as publicado antes da outorga da Carta
Constitucional, "tudo o que digo sobre o poder régio, ainda que carecendo de
uma terminologia diversa daquela de nossa constituição, está perfeitamente
conforme seu espírito" (Constant, 1861:169).
23. "Dir-se-á que o poder executivo emana do rei? Sem dúvida; entretanto, ainda
que ele emane do rei, um tem tão pouca dependência do outro quanto do povo tem
a câmara dos representantes, apesar de emanar do povo" (Constant, 1861:181).
24. Por outro lado, é preciso recordar que, mesmo nessa teoria, a influência do
rei sobre o ministério era maior do que sobre os outros poderes: embora
referendada por um ministro, a execução das leis dependia da sanção do
príncipe, que poderia resistir a ela na medida em que o exercício da
prerrogativa lhes permitia demiti-los e nomeá-los. Essa distinção entre os
poderes deve ser, na prática, relativizada.
25. Muitos políticos resistiam ao que reputavam excessos de anglofilia na
prática do regime, continuando a crer que respondiam pelos atos de suas pastas
perante ao rei e não a um outro ministro que faria as vezes de intermediário.
No Brasil, essa opinião ainda foi esposada no final da década de 1850 pelo mais
ilustre constitucionalista do período, o Marquês de São Vicente ' e dez anos
depois do cargo de primeiro-ministro ter sido criado em lei (São Vicente, 1958:
260).
26. A idéia de um gabinete solidariamente responsável perante as câmaras,
gozando de maioria parlamentar e liderado pelo mais prestigioso de seus
ministros, que governaria até que a confiança da maioria parlamentar se
desfizesse, sob a forma de um voto de reprovação, começou apenas a se desenhar
sob a monarquia de Julho, ao passo que a teoria clássica do sistema parlamentar
de governo só ficou assentada na Inglaterra na década de 1860, quando Stuart
Mill e Bahegot associaram o conceito de governo representativo ao de sistema
parlamentar, e na França sob a Terceira República, quando Barthélemy, Duguit,
Esmein e outros forjaram o conceito jurídico de parlamentarismo (Laquièze,
2001), até então, a mais das vezes, expressão pejorativamente usada pelos
conservadores.
27. Essa edição foi utilizada até 1861, quando foi substituída por uma segunda
edição, prefaciada por Édouard Laboulaye, destinada a, em outro contexto,
alimentar o debate liberal contra a autocracia de Napoleão III.
28. Por outro lado, nas obras assinaladas, Constant não se debruçara de modo
claro acerca da necessidade ou não de carecerem de referenda ministerial os
atos específicos do Poder Moderador ' certamente porque, não tendo ainda a
França a prática da monarquia representativa, essa questão (que futuramente
geraria tanta celeuma no Brasil e em Portugal) não pudera ainda evidentemente
se converter em um problema.
29. "Entre os modernos temos Bacon, que diz e demonstra que as reformas das
instituições de um povo são mais obras do tempo do que do gabinete; temos
Montesquieu, João Jacques, Montlosier, Benjamin Constant, que suponho hoje nas
mãos de todos [...]" (AACB, 1823, IV:94).
30. "Este (Constant) escritor não é o meu homem; pois [...] é pelo seu
insidioso sistema de fazer o ministério ter as atribuições do poder executivo,
figurando o monarca constitucional mero poder neutro, que, no meu entender, ele
viria a ser, a pretexto de sagrado e inviolável, uma autoridade nula" (AACB,
1823, IV:28, ênfases minhas).
31. Dom Pedro I autoproclamava-se liberal pelo menos desde os 20 anos de idade,
sob o Absolutismo, portanto. Era ainda leitor e admirador das obras de
Filangieri e de Constant, batendo-se pelo constitucionalismo nos jornais, sob
diversos pseudônimos (Sousa, 1972). Mesmo depois, ambos trocariam cartas; para
Constant, Dom Pedro era um verdadeiro herói do liberalismo.
32. Assim se referiria Frei Caneca ao Poder Moderador: "O poder moderador de
nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o
garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele, o Imperador pode dissolver
a câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo
dos seus direitos o senado, que é a representante dos apaniguados do Imperador
[...], ficando o povo indefeso nos atentados do Imperador contra os seus
direitos [...]" (Caneca, 1976:70).