Por que não uma constituição européia?
Qual é a diferença entre a atual crise da União Européia ' UE, com a
resistência a sua constitucionalização, e as velhas crises de legitimidade e
"déficit democrático"? Por que a União quer uma Constituição, que sabemos que é
um tratado, mas que uma considerável parcela das sociedades nacionais vem
apresentando sinais de resistência a ela?
Este artigo parte da hipótese de que a criação de uma "identidade coletiva
européia" é um dos projetos de fortalecimento da supranacionalidade da União, e
tanto a cidadania européia quanto a Constituição são instrumentos desse
projeto. A "identidade coletiva" é uma importante esfera de pertencimento
(Aziz, 2002), como o sentimento descrito por Benedict Anderson (1991) sobre o
valor e o papel das "comunidades imaginadas". O único caminho de legitimação da
cidadania européia é o da construção de uma identidade européia; e este é o
principal motivo pelo qual os teóricos que defendem a emergência de uma
European polity também vêm se interessando por questões de formação de
identidade coletiva (Risse-Kappen, 2000; Haas, 1958; Deutsch, 1957). Por tudo
isso, a análise dos percalços da fase de Maastricht (que cria a cidadania
européia), e da incorporação do Tratado da Constituição, da recepção social do
projeto de integração através das pesquisas de opinião pública e do
comportamento do eleitorado nos sufrágios populares, concorre para o desenho de
um quadro geral das condições e possibilidades da União Européia superar o
atual estágio de crise.
Os argumentos deste artigo procuram revelar que, no caso da UE, aspectos de
supranacionalidade e de transnacionalidade devem ser compreendidos
conjuntamente, na medida em que características e percalços em uma destas
instâncias interferem na outra. Algumas causas de resistência aos avanços da
supranacionalidade são compreendidas quando verificamos o fortalecimento das
articulações transnacionais na região e, principalmente, a partir da mudança do
quadro de alinhamentos entre grupos tradicionais que sempre explicaram a
política européia (Smisans, 2004; Marks, Hoogle e Edwards, 2004). Uma das
conclusões a que podemos chegar, quando atribuímos relações entre avanços
supranacionais e transnacionais é que, enquanto a UE busca criar mais
instrumentos de consolidação de sua estrutura supranacional (o Tratado da
Constituição é exemplo mais perfeito disso), as articulações transnacionais se
dão a partir de convergências entre grupos que resistem ao projeto
supranacional por razões, em alguns casos, extremamente diferentes. Coincidem
interesses entre novos ideólogos da extrema direita (Ignazi, 2003; Mude, 1996)
e grupos de extrema esquerda, quando a agenda é a resistência à criação de um
super-Estado europeu1.
ORDEM E ETHOS
O projeto de integração europeu é explicado por uma história de acertos e
sucessos ao longo de mais de meio século de construção. Contou com a
assimilação de novas regras por parte dos governos nacionais envolvidos, com a
criação de uma nova instância jurídica e com um formato sui generis de
organização institucional, que envolve uma coordenação de interesses
intergovernamentais baseados em um interesse supranacional: o interesse
comunitário2. Com tudo isso, uma importante constatação apresentada por grande
parte da literatura, que avalia aspectos sociológicos da unificação européia,
dá destaque à inexistência de um ethoscomunitário na Europa. Debates sobre a
"tese do não demos" na região da integração3, retomados após a crise de
Maastricht4 por Weiler, Haltern e Mayer (1995), vêm se revelando cada vez mais
importantes para se compreender as diferenças dos Estados-membros quanto às
sinalizações de resistência à integração social, à cidadania única na região e
à criação de uma Constituição.
Apesar deste quadro de incongruência entre os avanços institucionais e legais
da Europa integrada e da integração social no âmbito regional, parto da
hipótese de que uma "política de identidade" sempre esteve na agenda de
integração européia e já era preocupação do projeto anterior à União. Desde a
"Europa européia" de De Gaulle ao Plano Shuman no período pós-Guerra, não se
cogitava uma integração sem identidade. Contudo, só se torna mais evidente tal
preocupação a partir do processo de ratificação de Maastricht (1992-93), com a
busca do referendo popular para a implantação de reformas substantivas,
incluindo a criação da cidadania européia. Apesar disso, a cidadania não seria
útil apenas ao projeto de legitimação da União, mas principalmente ao seu
projeto de eficiência e consolidação. O significado de uma cidadania, assim
como o significado de uma Constituição, revelam uma inescapável conexão com
aspectos da assimilação de uma nova identidade coletiva na vida cotidiana e
envolvem mudanças de crenças, valores sociais e jurídicos que se desvelam na
convivência civil e social dos indivíduos, na medida em que implica a
substituição ou sobreposição de uma identificação política e social mais ampla
do que a do Estado nacional. Se esta afirmação estiver correta e fatores como
cultura e identidade puderem ser considerados relevantes para o estudo das
relações internacionais5, o melhor método para se compreender os atuais
percalços da integração, representados pelas recentes rejeições ao Tratado da
Constituição, é o da investigação histórica e comparada dos resultados de
pesquisa de opinião pública e a verificação do contexto de dificuldades que nos
leve a uma melhor compreensão também da crise de Maastricht.
Neste cenário de questões a serem abarcadas, pretendo desenvolver dois
argumentos centrais. O primeiro é que a criação da cidadania única européia
buscou legitimar ex posta integração, na medida em que as sociedades nacionais
não optaram pelos comprometimentos e constrangimentos de sua participação e
controle sobre a nova política européia e é por isso que ainda falta muito a
ser pesquisado e refletido sobre a UE, e seus efeitos e conseqüências ainda
estão longe de se completarem, como se vê nos atuais percalços enfrentados no
processo de ratificação do Tratado da Constituição. O segundo argumento é que,
em uma era de desenvolvimento de atores internacionais e transnacionais não-
estatais que agem em redes e que, principalmente no caso da UE, encontraram
novas formas de representação supranacional e regional e facilidades de
articulação e circulação entre fronteiras nacionais, não há apenas vias de
demandas legítimas, pluralistas e inclusivas de uma sociedade civil que
interage em nome de interesses democráticos, mas também demandas não-
democráticas e desagregadoras, bem como aqueles que defendem o fim da
integração.
Exatamente por considerar que há uma distância entre a integração de caráter
econômico e legal e a integração social ou, de outra forma, entre a integração
institucionalmente formalizada e a socialmente conduzida e reconhecida, é que
pretendo dar especial atenção à literatura orientada por uma visão crítica da
integração européia. É fundamental considerar o fato da inexistência de uma
sociedade homogênea regional, para que se compreendam alguns eventos paralelos
aos passos de consolidação da integração, como certas reações dos eleitores
europeus, reveladas nas consultas populares, nas eleições nacionais e nas
eleições européias para o Parlamento.
Além do nacionalismo de grupos de esquerda e da defesa de princípios como
soberania e autonomia, uma importante "questão social" nas agendas de política
doméstica e de política internacional na Europa hoje é o problema da
assimilação dos imigrantes, que se reflete no recrudescimento da xenofobia
européia, particularmente, na última década e meia. Este aspecto da política
européia atual é importante para compreendermos por que os grupos que resistem
ao projeto de cidadania e de constitucionalização são capazes de se
fortalecerem reciprocamente ao misturarem argumentos e interesses tanto da
extrema esquerda, socialista e nacionalista, quanto da extrema direita,
xenófoba ou fundamentalista.
DUAS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DA UNIDADE REGIONAL: CIDADANIA E CONSTITUIÇÃO
A União Européia está em busca da consolidação de uma consciência de valores
comuns e de identidade coletiva para legitimar sua estrutura supranacional6,
atualmente simbolizada na "Constituição Européia", em fase de incorporação
pelos Estados-membros. Creio que a defesa da necessidade de uma
Constituição'' para a UE sempre esteve ancorada nos esforços em ressaltar
seus aspectos supranacionais e buscar a legitimidade social que sempre lhe
faltou. Impossível é compreender a atual crise da Europa, com as recentes
rejeições populares à ratificação do Tratado da Constituição, sem a observação
do contexto histórico da UE, incluindo-se aí outros períodos de crises como na
ocasião da ratificação do Tratado de Maastricht.
A Criação da Cidadania e a Crise de Maastricht
Na cidade holandesa de Maastricht, chefes de Estado reunidos em sessão do
Conselho Europeu7 (em 1991), aprovaram o projeto de um tratado para a UE com o
objetivo claro de dar um passo significativo no processo de aprofundamento e
ampliação da integração. Além de traçar metas para uma maior integração
econômica e monetária, neste tratado foi criada a "cidadania européia". Na
tentativa de promover importantes passos no projeto de integração, entretanto,
o processo de ratificação do Tratado de Maastricht fez revelar um
desconhecimento popular e um significante grau de resistência e precaução
quanto ao modelo de integração que avançava.
Enquanto o Tratado de Maastricht pretendia representar o grande passo para o
fortalecimento da união política na região, seu processo de incorporação fez
surgir a mais profunda crise da integração. O grande símbolo da crise foi a
rejeição popular dinamarquesa, numa das primeiras consultas populares sobre
qualquer passo da integração desde o seu início. A Dinamarca, que tinha sérias
restrições à unificação, preferiu entregar à sociedade o poder de decisão final
em favor da sua adesão à UE, levando em conta conseqüências que implicariam
mudanças no cotidiano social e na política doméstica de sua nação. A resposta
do eleitorado caiu como uma bomba nos planos de integração, ancorados em
discursos infundados de democratização e de legitimidade social. O primeiro
"não" dos dinamarqueses desvelou as razões que faziam com que alguns Estados
temessem a conscientização social a respeito das decisões governamentais que
processavam, até então, a integração. Podemos afirmar que a "crise de
Maastricht" surge em função do exemplo dado pelo governo dinamarquês ao optar
pela consulta popular sobre a integração. Dentre os danos de Maastricht,
revelou-se que havia profundas divergências existentes entre os anseios
populares e os interesses governamentais na unificação.
O resultado do referendo francês não redimiu esta crise, pois apenas 51% dos
votantes no referendo francês disseram "sim" ao tratado. Paralelamente, a
opinião pública alemã e a britânica deixaram clara uma considerável oposição,
fazendo com que, de todos os tratados reformadores da União, esse tenha sido o
de parto mais difícil (Hartley, 1988:7). Curioso nesta história é que se
esperava exatamente o contrário: um momento de fortalecimento do projeto e de
legitimação social do seu aprofundamento.
O debate acadêmico predominante na Europa ainda dá destaque ao "déficit
democrático" da União, agravado após Maastricht; ou seja, um tratado que se
sustentava em uma retórica democrática (porque criava uma cidadania única e
diminuía os entraves à livre circulação de pessoas e trabalhadores) promoveu
uma curiosidade mais crítica quanto à toda empreitada da integração. Por isso
podemos dizer que o Tratado de Maastricht produziu alguns efeitos não-
antecipados, principalmente, porque causou uma crise de legitimidade da União
exatamente em um momento de aprofundamento do processo de integração.
Pretendendo resolver alguns problemas democráticos no âmbito das instituições
comunitárias e esperando atribuir legitimidade ao processo de integração,
considero que Maastricht acabou por evidenciar e fortalecer ao mesmo tempo uma
crise democrática mais profunda e não reformável institucionalmente: o
desconhecimento e a distância das sociedades nacionais do projeto europeu em
curso. Ao longo dos processos de ratificação de Maastricht nos Estados-membros,
ficou claro que as populações dos países-membros não estavam até então
conscientes da integração e não tinham informações suficientes a respeito das
instituições comunitárias, sua importância e competência. De fato, o
desconhecimento das mudanças concretas da política nacional promovidas pela
integração européia, bem como o papel e importância das instituições da UE,
ainda são de desconhecimento majoritário entre os cidadãos.
Pesquisas do Eurobarometer do ano de 2000 (EB nº 53, 2000)8 avaliaram o
conhecimento popular das instituições européias a partir de sondagens que
envolvem várias perguntas sobre as principais instituições da União: o
Parlamento Europeu, a Comissão, o Banco Central Europeu, a Corte de Justiça, o
Conselho de Ministros, a Corte de Auditores, o Comitê Econômico e Social, o
Ombudsman Europeu e o Comitê das Regiões.
Os resultados demonstram que, na avaliação popular européia, o Parlamento
Europeu é a instituição que exerce o papel mais importante na região da
integração e o Conselho de Ministros fica em quinto lugar. Foi perguntado
também, dentre as instituições, quais eram mais conhecidas pela opinião pública
européia, e o Parlamento Europeu apareceu mais uma vez como a instituição da
qual "mais se ouviu falar", enquanto o Conselho manteve o quinto lugar no
ranking. Sabendo-se o pouco poder exercido pelo Parlamento e o importante poder
decisório exercido pelo Conselho, fica fácil concluir, diante dos resultados
apresentados nos gráficos_1 e 2, o quanto cidadãos europeus estão mal
informados a respeito das conseqüências e do alcance político do Conselho, do
papel da Corte de Justiça européia e dos limites do poder do Parlamento
Europeu9.
No período de Maastricht, a busca pela legitimidade da integração revelou-se
pela decisão de raros países em realizar referendos para a ratificação do
tratado, exatamente porque consideraram que o conhecimento e a participação
popular do importante passo a ser dado pelo processo de integração na ocasião
seria de fundamental importância. Entretanto, já naquela ocasião, verificava-se
nos debates políticos que a divisão entre esquerda e direita não era mais uma
perspectiva dimensional simples na política européia. De fato, desde a década
de 1990 já havia cisões entre grupos de direita e entre grupos de esquerda em
torno da avaliação da integração e do posicionamento sobre o seu
encaminhamento. Muitos que defendiam o fim da integração alegavam uma possível
perda de soberania das nações, e outros não admitiam a integração social,
abertura de fronteiras e facilitação do processo migratório na região por conta
da criação da cidadania única européia.
Em meio a este debate, o povo dinamarquês rejeitou, em primeiro referendo, a
ratificação de Maastricht10. Isto deflagrou uma crise notória, refletida na
opinião pública, sobre o projeto de aprofundamento de união política. Afinal,
podia-se perguntar por que o povo dinamarquês não quer mais se integrar à
região? Qual é o custo da integração e o que há de negativo neste tratado a
ponto de o povo rejeitá-lo?
Em meio à crise dinamarquesa, surgiu a crise britânica (na ocasião, nas mãos do
seu primeiro-ministro John Major), que se revelou como sendo o próximo ponto
débil da integração. Desde o momento em que a Inglaterra decidiu esperar pelo
segundo plebiscito da Dinamarca para se resolver quanto à ratificação de
Maastricht11, uma série de razões céticas à integração se alinhava com mais
autoridade e propriedade. Para se somar a este quadro de fragilidades, na
ocasião do período de ratificação de Maastricht (de 1992 a 1993), o Reino Unido
assumiu, no segundo semestre de 1992, a presidência rotativa da União sem
qualquer qualidade de liderança.
Em geral, os "eurocéticos"12 conservadores e os trabalhistas anti-europeus
ingleses mobilizavam-se em torno de duas questões básicas: aqueles (que tinham
como porta-bandeira Margaret Thatcher) demandavam consulta popular para a
ratificação do Tratado de Maastricht, enquanto estes exigiam que o exame pela
comissão do projeto de lei que incorporava o tratado fosse feito apenas depois
que a Dinamarca decidisse seu posicionamento diante dos termos do tratado
(Tostes, 2004:116-117), como de fato ocorreu. Para o agravamento da situação,
naquele mesmo período, na Alemanha, também apareceram objeções constitucionais
feitas pela influente Corte Constitucional Federal da República Alemã.
Magistrados germânicos mostraram-se renitentes no que dizia respeito à primazia
do direito comunitário em relação ao direito nacional, princípio
jurisprudencial já aplicável naquelas alturas aos Estados-membros. A
conseqüência da persistência da supremacia constitucional alemã foi que este
país se tornou o último Estado-membro a depositar o instrumento de ratificação
de Maastricht, que só entrou em vigor efetivamente em 1993.
RESISTÊNCIA À CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA E PROBLEMA DA IDENTIDADE COLETIVA
Podemos identificar razões semelhantes às que levaram à crise de Maastricht na
resistência ao projeto de criação de uma Constituição européia atualmente.
Sabemos que o processo de mais de meio século de integração não obteve
participação popular, entretanto, sabemos também que valores e crenças são
construídos socialmente e podem gerar estratégias de ação coletiva. Assim, a
criação de uma cidadania e de um ordenamento jurídico de caráter regional visa
reforçar, além dos instrumentos legais e institucionais, características de
similaridades e de coincidências de idéias, interesses, crenças e valores entre
os cidadãos que integram os Estados-membros da UE.
Estes novos esforços do governo comunitário ficam explicados, principalmente,
menos pelo que a Constituição européia pode, de fato, trazer de novo para os
poderes exercidos pelas suas instituições, e mais para promover uma certa
comoção nas sociedades dos Estados-membros em nome da legitimação do processo
de integração e garantir, com isso, maior eficácia para as suas políticas. O
projeto de construção de uma identidade social e o reconhecimento da união
política e legal por parte das sociedades nacionais é o que justifica a
preocupação que as instituições européias têm tido em estabelecer uma
"Constituição" que, como sabemos, trata-se de um tratado internacional. Como
todo tratado, este deve ser incorporado segundo as regras constitucionais de
cada Estado e não é incomum que, em função da sua abrangência política, as
constituições determinem a consulta popular. Mas antes ainda do conteúdo do
tratado em questão ser conhecido, foram feitas pesquisas de opinião pública a
respeito da aceitação de uma Constituição na região. Observando-se os
resultados destas pesquisas, verifica-se que a aceitação da criação de uma
Constituição sempre foi alta, ao mesmo tempo que sua rejeição sempre foi,
também, crescente.
No Gráfico_3, agreguei os resultados das pesquisas do Eurobarometer que
investigaram o apoio à Constituição ao longo dos anos de 2000-2005, o que nos
permite observar que, apesar da queda do apoio popular à Constituição13, o ano
de 2004 apresentou uma ruptura nesta tendência. Os resultados estão agregados,
pois revelam as médias dos 15 Estados-membros. Porém, quando verificamos
separadamente os resultados nacionais, podemos ver que há variações importantes
que explicam comportamentos e expectativas diferenciadas que não serão tratadas
neste artigo. Podemos concluir que no ano de 2004 há uma mudança na percepção
popular quanto à aceitação da Constituição por este ter sido o principal ano de
discussão sobre o conteúdo do projeto da Constituição pelas sociedades e pelos
meios de comunicação europeus em geral. A adoção do Tratado da Constituição
deu-se no Conselho de Roma em 29 de outubro de 200414. Ao mesmo tempo,
entretanto, podemos notar no Gráfico_3 que a rejeição à adoção de uma
Constituição européia vem sendo ininterruptamente crescente desde 2000 (6% de
rejeição) até o início do processo de incorporação, em 2005 (23% de rejeição).
Ainda assim, o apoio inconteste à Constituição é curioso quando observamos
pesquisas que demonstram o desconhecimento de seu conteúdo ' apenas para
exemplificar, o Centro de Investigações Sociológicas na Espanha divulgou os
resultados de uma pesquisa em 2005 a qual revelou que 90,9% dos espanhóis
ignoram o que a nova Constituição européia propõe, embora 51,2% estivessem
dispostos a votar pelo "sim" (Oswald, 2005:27). Os resultados das primeiras
pesquisas de 2005 do Eurobarometer já apontavam que 56% dos europeus admitiam
saber pouco sobre o Tratado da Constituição européia, e que 33% sequer tinham
ouvido falar dele. Contudo, apesar desta absoluta ignorância, é possível
verificar uma infundada boa vontade quanto à adoção da Constituição. O que
podemos concluir destes resultados é que eles revelam aimportância simbólica da
idéia de Constituição, independentemente das condições e cláusulas do tratado
em questão. Revela-se assim, ainda, que a cúpula da União está absolutamente
certa em designar como "Constituição" um tratado que busca alçar legitimidade
no processo atual de unificação política. A importância histórica nacional das
constituições sempre nos leva a pressupor laços de legitimidade e uma
organização institucional democrática com mecanismos de participação e de
realização de justiça.
Fica mais claro, com tudo isso, a compreensão sobre a idéia de Constituição,
que marca simbolicamente esse Tratado da União Européia. Há neste atual projeto
da integração regional européia a pretensão de fortalecer uma noção de
território e identidade social comuns. Está na base da condição de se
estabelecer uma "Constituição", entretanto, a existência de uma cidadania comum
no território da União, e esta, embora implementada juridicamente há mais de
uma década, vem sendo assimilada muito lentamente desde a sua invenção.
Problemas identificados na ocasião da ratificação de Maastricht permanecem sem
solução até a fase da ratificação do Tratado da Constituição, como o da
aceitação de uma identidade coletiva comum regional.
Institutos de pesquisa de opinião pública europeus vêm se debruçando também
sobre o mapeamento dos graus de aceitação da cidadania européia e divulgam,
periodicamente, diagnósticos sobre a percepção social da relação entre a
cidadania nacional e européia15.
Comparando-se o resultado do Gráfico_4 com as respostas de outra pergunta
realizada na mesma pesquisa (Eurobarometer, EB nº 59, 2003) sobre se "é ruim"
fazer parte da UE, verificamos que os países que apresentaram percentuais mais
altos sobre a má avaliação quanto ao pertencimento à União, ou seja, Suécia,
Reino Unido e Áustria, são exatamente os mesmos Estados-membros que valorizaram
mais a sua identidade nacional (como verificamos a partir dos resultados
anteriores). A Grécia é um caso de destaque, pois possui um sentimento nacional
e patriótico muito forte, que se apóia na convicção de que ela é o berço da
civilização ocidental. Da mesma forma, a Finlândia tem uma história de
resistência à dominação e tende a proteger-se em sua identidade nacional. Em
outro extremo estão os países que ingressaram na União em 2004; estes
demonstraram um sentimento de nacionalidade muito fraco. Dentre os resultados
mais significantes neste sentido, destacam-se os da Estônia e da Hungria (39%),
países que estão em busca de uma nova identidade, olhando mais para
possibilidades futuras do que para seu recente passado de hegemonia russa.
A ênfase na identidade nacional é aceita por 85% dos cidadãos, tanto os da
Europa dos 15 quanto dos 25. A idéia de uma identidade coletiva que pretenda
substituir, sobrepor ou mesmo mesclar com a identidade nacional, tomando por
base um alto grau de compartilhamento de aspectos culturais (raça, língua,
religião, tradição etc.), não parece ter mais espaço na região européia.
Qualquer assimilação só parece possível no âmbito de coincidências políticas e
interesses jurídicos e civis. O único resultado absolutamente discrepante é o
relativo a Luxemburgo, que demonstra que seus cidadãos assumiram plenamente a
identidade civil estratégica e politicamente construída ' sem qualquer nuance
culturalista, 20% dos cidadãos de Luxemburgo pesquisados declararam sentirem-se
"só europeu".
Qualquer debate anterior ao alargamento, ainda sobrevivente, sobre a
possibilidade de se construir uma identidade coletiva européia alimentada por
aspectos materiais e culturais, perde completamente o fio da razão
argumentativa com a entrada dos países do Leste europeu na UE. Com a entrada de
Estados-membros do Leste europeu na União, tornou-se incontestável que apenas
uma noção de identidade coletiva baseada em coincidência de perspectivas
civilizatórias e políticas (tese do nacionalismo construtivista ou político)
pode ter lugar no caso da UE atualmente.
DEBATES TEÓRICOS PRECURSORES: A CONSTITUIÇÃO DE MODELOS NACIONAIS
Dois modelos dominantes de nacionalismo povoaram a história da formação dos
Estados nacionais: um que pode ser designado como "culturalista" e outro como
"político". O primeiro, como a própria designação indica, é aquele que valoriza
os aspectos culturais da história comum de um povo (Kohn, 1963). Tradição,
religião, raça, língua e outros aspectos materiais da vida e da história social
definem uma identidade comum. Neste caso, os ideais nacionais geram e são
gerados por uma carga emocional mais voltada para aspectos particulares e
espontâneos16.
O segundo modelo incorpora aspectos políticos e expectativas de ordem e de
direito comuns estrategicamente organizados e construídos socialmente. Assim, é
a partir da criação de normas, do fortalecimento de costumes e da modelação de
instituições que lhes dêem sustentação operacional, é que se fortalecem também
os laços que se pretende valorizar neste caso. São dessa forma incorporados
aspectos políticos e expectativas de ordem e de direito comuns com a criação de
normas e, ainda, a defesa de princípios gerais e universais de coexistência
pacífica na esfera pública e no cotidiano da vida civil. Já o conceito político
de nação, enquanto um tipo ideal de identidade coletiva, valoriza a integração
política dos cidadãos em busca da liberdade individual de todos. A existência
de privilégios de base aristocrática em uma mesma comunidade política é
incompatível com a generalidade das leis e a igualdade pleiteada pelo
"nacionalismo político" (ou jurídico). Este nacionalismo é comparável ao tipo
de identidade coletiva possível em uma região em que coexistem povos oriundos
de tradições históricas diferentes, como é o caso da UE. Isto porque, para o
nacionalismo de tipo político, importam menos os aspectos culturalistas
peculiares do povo e mais um objetivo político comum: ser um cidadão
participante das diretrizes do governo.
A idéia de "nação", que se revela no Terceiro Estado no período da Revolução
Francesa, persegue o sentido da "vontade geral" em Rousseau, para quem o
governo só é legítimo se realiza a aspiração coletiva dos cidadãos ' daí a
necessidade de um conceito orgânico que traduzisse uma simbologia de
universalidade e de exclusividade ao mesmo tempo. A superação dos interesses
particulares (minoritários) justifica-se, neste caso, pela composição de um
"espírito nacional" e pela prevalência de um interesse geral real sobre as
divergências locais17.
Independentemente da possível distinção entre o nacionalismo cultural e o
político, o que importa na comparação com a constituição de uma identidade
coletiva no seio da UE é que a noção de "pertencimento" a um corpo coletivo é
que legitima algum tipo de cooperação e coexistência. No caso da UE, a
percepção, crença e idéia de "pertencimento" a uma sociedade plurinacional de
características tão heterogêneas espera por ser construída, em função dos
interesses que estão em jogo no processo de integração.
A Estratégia da Construção
Até então, desenvolvi os argumentos que focalizam o fato de que uma identidade
coletiva pressupõe o compartilhamento de valores subjetivos, de forma que os
indivíduos se sentem parte de uma mesma comunidade por eles imaginada.
Historicamente, a construção dos tipos nacionalistas e, atualmente, a
experiência européia, foram considerados sob a ótica da construção involuntária
ou não de laços de reconhecimento mútuo. É preciso acrescentar, no entanto, que
é natural a este processo que os integrantes de uma dada "comunidade imaginada"
compartilhem também sentimentos de diferença em relação a outras comunidades
(in-group e out-group). Para compreender melhor o processo de construção de
identidade, a abordagem construtivista tornou-se, atualmente, uma ferramenta
metodológica poderosa.
Sem se opor ao realismo ou ao liberalismo, a abordagem construtivista que tem
sido descrita e explicada por Alexander Wendt não como uma teoria política, mas
uma teoria social, vem sendo aplicada empiricamente por autores como Risse-
Kappen (1995; 2000) e outros (Adler, 1992; Finnemore,1996) na compreensão do
problema da identidade coletiva em geral e do caso da identidade européia em
especial. O construtivismo desafia fundamentos epistemológicos dos paradigmas
das relações internacionais, não para se opor a eles mas para sintetizar
possibilidades de análise que têm importância na pesquisa empírica (Adler,
1999:206-207). Segundo Adler (idem), o construtivismo é capaz de iluminar
características importantes, antes enigmáticas, da política internacional
(Wendt, 1999). A importância das idéias, dos símbolos e das crenças que forjam
solidariedades e geram instituições perpassa a história dos Estados e,
naturalmente, a da UE.
Sabe-se que a constituição dos Estados modernos está baseada na idéia de que o
Estado-Nação se funda em um sistema de símbolos e de identidade
compartilhada18. Assim, a dimensão simbólica do poder do Estado "sustenta as
necessidades morais e éticas dos cidadãos, não apenas as materiais" (Krasner,
1984:233 apud Laffan, 1996). A relação entre identidade e política é
exemplificada pela história da busca de legitimação dos Estados modernos a
partir da noção de nação, em alguns casos reforçando aspectos étnicos, de raça
e religião (caso da Alemanha) e em outros aspectos políticos e jurídicos
traduzidos em valores cívicos que buscam evitar a diferenciação do cidadão e da
pessoa humana através de particularidades de suas escolhas e/ou origens
religiosas ou culturais (é o típico exemplo da França).
Segundo os "europessimistas" ou "eurocéticos", a integração em termos de
identidade coletiva é impossível, na medida em que a identidade nacional será
sempre particularmente fundamental para os cidadãos. Por outro lado, é preciso
levar em conta que a construção da identidade é um longo processo, que perpassa
vários níveis da vida em sociedade, como a cultura, a arte, a literatura, a
religião, produzindo imagens e analogias que não se explicam por mecanismos
racionais ' mas se experimentam pela emoção (Walzer, 1967) e com o tempo. Em um
ensaio clássico sobre o tema, Walzer (idem) enfatiza que a atividade simbólica
é um "processo criativo", que não tem nada de lógico ou de necessário ' é uma
estratégia de atribuição de unidade, organização, significação, personificação.
Do mesmo modo, uma mudança no referencial da identidade coletiva pressupõe um
processo de transformação no "equipamento simbólico", na "mentalidade
coletiva", na "episteme social", na personalidade. Walzer (idem:194) descreve
ainda a política como uma arte de unificação: de muitos ela faz um ' e a
atividade simbólica seria nossa forma mais importante de reunir as coisas,
intelectualmente e emocionalmente, superando assim o isolamento e mesmo a
individualidade. Neste quadro, o Estado é invisível; ele deve ser personificado
antes de ser visto, simbolizado antes de poder ser amado, imaginado antes de
poder ser concebido (ibidem).
A tentativa da União Européia de romper com o modelo nacional como modelo
privilegiado de identidade coletiva e de criar a possibilidade de uma outra
dimensão de identificação coletiva em larga escala, por ser algo totalmente
inexplorado, certamente, resulta em conseqüências imprevistas. Exatamente, pela
sua importância, ao mesmo tempo em que a Europa unificada está em busca de um
princípio legitimador para a sua política supranacional, verifica-se uma
exacerbação dos nacionalismos e dos localismos (Laffan, 1996; Smith, 1992;
Jansson, 1997; Eisenstadt e Giesen, 1995; Giesen, 1999 dentre outros).
Enfim, é incontestável a relevância do conceito e da idéia de nação, que vem
funcionando como tipo ideal weberiano para justificar modelos autônomos de
organização e legitimação política, a partir do reconhecimento de uma
identidade coletiva nacional. A história da valoração do conceito de nação é a
prova da aceitação deste modelo, que vem se revelando um eficiente fator de
agregação, assim como o conceito de nação vem sendo usado tanto em prol da
liberdade, quanto do totalitarismo e da tirania; tanto em doutrinas
democráticas, quanto em doutrinas imperialistas (Tostes, 2001).
MODELOS DE IDENTIFICAÇÃO NA EUROPA UNIDA
Para melhor interpretar as pesquisas da opinião pública européia que vêm sendo
responsáveis pela mensuração da recepção social das medidas de integração, no
que se refere principalmente à auto-avaliação popular sobre identidade nacional
(nacionalismo) e supranacional (periodicamente sondada pelo Eurobarometer),
podem-se utilizar categorias de análise propostas pela literatura que se
debruça sobre o tema da identidade na Europa, como os inúmeros trabalhos de
Thomas Risse-Kappen, do Instituto Universitário Europeu (IUE-Florença). Risse-
Kappen (2000) apresenta três "modelos de identificação" que são três
possibilidades de construção de identidade coletiva na Europa, e tais modelos
se assemelham às percepções investigadas nas sondagens do Eurobarometer. Ou
seja, o autor criou uma tipologia para as possíveis reações diante da oferta de
mais de uma identidade coletiva, considerando-se circunstâncias e preferências,
com enorme capacidade explicativa para as principais pesquisas de opinião
publica realizadas na Europa atualmente.
O primeiro modelo é um tipo de jogo de "soma zero", ou seja, este se dá quando
a identificação do indivíduo com um grupo implica, necessariamente, a rejeição
de outras identificações. O segundo modelo é do layer cake, que atribui às
pessoas e grupos sociais múltiplas identidades que se acumulam e muitas vezes
se hierarquizam. O terceiro modelo é o do marble cake, que sugere uma "fluidez"
e um "emaranhamento" entre as referências de identidade, a ponto de não se
conceber uma sem a outra.
As duas últimas concepções modelares atribuem múltiplas referências de
identidade de acordo com o contexto. No entanto, o modelo de layer cake
pressupõe uma sobreposição ou ordenação de preferências e camadas, enquanto, no
último modelo, se reconhece uma duplicidade de identidades e interesses
mesclados. Pode-se dizer que são esses três modelos que vêm sendo levados em
consideração nas sondagens sobre o tema da identidade européia como as
retratadas no Gráfico_4. Foi perguntado aos cidadãos: i) se se sentiam
exclusivamente nacionais de seus países; ii) se se sentiam nacionais, mas
também europeus (com mais ênfase à identidade nacional); iii) se se sentiam
europeus, mas também nacionais (com mais ênfase à identidade européia) e iv) se
se sentiam exclusivamente europeus.
A mensuração da aceitação de uma identidade "só nacional" ou "só européia"
(perguntas i) e iv) da sondagem) segue, em ambos os casos, o modelo de um "jogo
de soma zero" de Risse-Kappen (2000). Levando-se em conta que os principais
institutos de opinião pública européia mantêm há décadas tal tipo de
levantamento atualizado e sempre baseado nas mesmas variáveis de análise de
opinião pública, a principal utilidade que atribuí a esta forma de sondagem foi
a da mensuração do grau de rejeição, mais do que o de aceitação, de uma
identidade coletiva européia. Isto porque, a expectativa dos idealizadores da
União não é realmente a de ver os cidadãos europeus abandonando suas
identidades nacionais e sentindo-se "só europeus", e sim a de avaliar o grau da
recepção social da identidade coletiva supranacional. De outra forma, é o
modelo de layer cake que se espera implementar, no sentido de que camadas de
identificação são possíveis sem que procurem se sobrepor ou substituir uma à
outra. A referência a uma identidade política e não cultural ou racial é
totalmente compatível com esta visão analítica. O modelo mesclado é
interessante se quisermos compreender bem, por exemplo, a perspectiva francesa
de identidade coletiva que, historicamente, identifica a Europa com a França
como se houvesse uma razão comum que explicasse a tradição histórica humanista
da Europa ocidental ' as mesmas razões que explicam a resistência britânica
que, também por considerar a Europa continental muito caracterizada pela
influência francesa, se auto-afirma como um produto europeu à parte e sui
generis, o qual não se contrapõe às relações estreitas com os Estados Unidos,
mas ao contrário, procura legitimar uma identidade comum e opiniões e
interesses políticos convergentes.
Para ajudar a compreender as eventuais resistências à composição, coexistência
ou sobreposição de dois vínculos de cidadania na região européia, devemos
considerar que há uma relação entre a recepção de uma identidade social
(nacional e européia) com a conscientização de um vínculo jurídico e civil que
atribui cidadania. Embora a idéia de cidadania não necessariamente se relacione
com a de nacionalidade, no caso da União Européia, a aceitação da cidadania
regional implica a aceitação de uma mais estreita relação cotidiana e social
com indivíduos de outras nacionalidades nos territórios dos Estados-membros.
Neste caso, particularmente, a cidadania européia implica um questionamento
sobre interferências culturais e tolerância entre indivíduos multinacionais em
um mesmo território.
MUDANÇAS NAS DIMENSÕES DA POLÍTICA EUROPÉIA?
Uma importante observação a fazer é que a grande maioria dos tratados que
constituiu a integração européia não sofreu ratificação popular na maioria dos
Estados-membros. Entretanto, é curioso perceber que, nas situações em que isto
ocorreu, algumas manifestações de resistência ganharam voz e espaço. Por que
isso se deu?
O Tratado de Maastricht foi rejeitado em primeiro referendo pelo povo
dinamarquês em 1992 (primeiro caso de consulta popular); o Tratado de Adesão à
UE foi rejeitado em 1999 pelo povo norueguês, em raro caso de consulta sobre a
decisão a esse respeito; o Tratado de Nice foi rejeitado (também em raro caso
de consulta popular sobre este Tratado) pelo povo irlandês em 2001 e,
atualmente, o Tratado de Roma (mais conhecido como Tratado da Constituição) foi
rejeitado pelos povos holandês e francês. Por que a busca da participação e da
legitimidade social para os passos de consolidação da União Européia sofreu
tantos abalos?
A escolha da consulta popular como meio de legitimação da integração por parte
de Estados-membros foi decisão de política doméstica, em função do grau de
comprometimento dos governos nacionais com a legitimidade de suas políticas
(Franklin, Eijk e March, 1995; Wallace e Smith, 1995). Sendo assim, países como
a Dinamarca, a Noruega, a Irlanda, a França e, recentemente, a Holanda, só para
exemplificar, consideraram a consulta popular fundamental em situações variadas
em que o processo de integração se intensificava e, como dito anteriormente,
com a chamada da população à participação vieram também resistências e mesmo
rejeições. Vozes de resistência obtiveram condições de obtenção de ressonância
na medida em que os meios de comunicação e veiculação de informação e formação
passaram a tomar conhecimento e comentar o processo de integração, suas
condições, possibilidades e conseqüências. Falta ainda compreender estas vozes
de resistência, pois elas não parecem uníssonas, visto que razões diferentes
orientam o discurso que rejeita a integração ou os caminhos que ela tem
seguido. Para compreendermos a resistência à integração, precisamos nos voltar
para a tradicional divisão ideológica européia e identificar suas mudanças.
A literatura e os debates acadêmicos sobre os problemas da integração européia
vêm apontando o fato de que a União Européia é um projeto centrista europeu,
criado pelos partidos do mainstream: social-democratas liberais, democratas-
cristãos e conservadores; ou seja, partidos que vêm dominando a política
européia nas instâncias nacionais e regionais (Hix e Lord, 1997; Marks, Wilson
e Ray, 2002; Taggart, 1998). Esta é uma razão que contribui para a compreensão
do fato de que os partidos que se opõem à política nacional estendem essa
oposição à rejeição manifesta à aceleração e consolidação do projeto europeu.
Tradicionalmente, a estrutura partidária européia podia ser entendida a partir
de duas dimensões de competição: esquerda/direita ou GAL/TAN (Green/
Alternative/Libertarian 'GAL e Traditionalism/Authority/Nationalism ' TAN).
Contestações à visão clássica da perspectiva econômica da competição política
geraram debates também clássicos sobre o exercício da democracia (Bartolini e
Mair, 1990; Lipset e Rokkan, 1967 apudMarks et alii, 2004:3). No contexto dos
debates sobre estas duas dimensões tradicionais de competição partidária
européia, podemos resumir que a primeira dimensão (esquerda/direita) é
econômica, pois se refere à medida de regulação da economia, interferência do
governo na distribuição de renda, propriedade, welfare state. A direita
prioriza liberdade econômica e individual, e a esquerda, igualdade econômica.
Por outro lado, a segunda dimensão de competição é vista pelo seu caráter
cultural, logo não-econômico, já que privilegia visões da política que se
fortaleceram a partir da década de 1970 e no contexto da busca de novas
ideologias políticas contestatórias do liberalismo (Flanagan, 1987; Flanagan e
Lee, 2003; Franklin, 1992; Inglehart, 1977; Kitschelt, 1988 apud Marks et alii,
2004:2).
Este artigo pretende destacar que há novos elementos de interferência no quadro
das dimensões partidárias européias em função do processo de integração
política. A criação de novas instituições, novas burocracias e novos interesses
que se articulam desde o exercício de poder político no âmbito das instituições
faz com que um novo espectro político se revele nas tendências tradicionalmente
identificadas entre grupos simpatizantes da esquerda e do GAL (em geral
alternativos) ao mesmo tempo ou da direita e do TAN (em geral conservadores). É
preciso conferir o grau de mudanças catalisadas pelas novas tendências na
distribuição de preferências partidárias e ideológicas e as novas variáveis de
análise que decorrem das expectativas da integração e das razões que levam às
restrições em relação a ela.
O cenário dos novos aspectos da política européia tem levado alguns centros de
pesquisa sobre a integração ao mapeamento das motivações, resistências e
interesses na política da integração. Pesquisas inéditas têm sido feitas no
Chapel Hill Center, Centro de estudos europeus ligado a University of North
Carolina, para analisar esse quadro de transformações e impactos da alocação
ideológica de partidos dos Estados-membros da União Européia. Os resultados já
revelam que existem muitas novidades a serem mais bem exploradas no seio do
novo debate político europeu19. A relação lógica que sempre houve entre as duas
dimensões direita/esquerda e alternativos/conservadores (GAL/TAN) confirma-se
por um lado, ou seja, os partidos de esquerda tendem a ser alternativos, e os
conservadores tendem a ser de direita. Mas, por outro lado, novas questões são
trazidas pelo projeto de regionalismo econômico e político: questões de
desenvolvimento, gênero, participação e cultura são fortemente associadas às
novas dimensões da política20. Uma das conclusões a que nos leva a pesquisa é
que a alocação de um partido entre GAL/TAN é associada ao apoio às políticas
relacionadas à da UE e é consideravelmente mais importante, atualmente, do que
a oposição entre direita e esquerda. Uma diferença, entretanto, é encontrada no
alinhamento entre os países da Europa ocidental e os países da Europa do centro
e do leste, com uma tendência que se mostra evidente na comparação dos gráficos
5 e 6.
De modo geral, a posição partidária a respeito da integração européia é
coerente e sistemática; logo, pode ser explicada desde o cruzamento das
tradicionais dimensões de competição esquerda/direita e GAL/TAN. Neste
cruzamento, é possível visualizar que perspectivas ideológicas afetam
diferentemente o apoio à integração de acordo com os países, além do fato de
alguns países europeus serem mais orientados pela dimensão da esquerda/direita
e outros pela GAL/TAN. Com exceção de um, 16 partidos neutros e eurocéticos
(assim enquadrados por estarem entre 4,5 ' 7 pontos na escala criada para
avaliar o apoio geral à integração) estão localizados no quadrante da Esquerda-
TAN do Gráfico_521, o que nos leva a inferir que a política européia tende a
permanecer estruturada pela divisão entre direita-GAL versus esquerda-TAN.
Entretanto, uma política regional ou supranacional que ressalta o mercado
capitalista e valores cosmopolitas ao mesmo tempo gera novas demandas com
características de hibridez. A defesa da autonomia nacional sobre certos
mercados e a intolerância a respeito da quebra de fronteiras podem levar
conservadores a terem interesses, junto às instituições européias, semelhantes
aos interesses dos radicais de esquerda, os quais acusam a integração de
antidemocrática e baseada no fortalecimento da economia das potências
capitalistas européias. O objetivo da pesquisa que gerou a organização dos
dados consultados e aqui reproduzidos nos gráficos_5 e 6 era o de identificar,
principalmente, diferenças entre tendências do Leste e do Ocidente europeu,
quanto à política de integração. Entretanto, a visualização da distribuição de
preferências possibilita-nos também visualizar a distribuição das tendências de
associação entre radicais de direita e de esquerda, em relação ao projeto da
integração. Uma das conseqüências não previstas da integração européia vem
sendo a capitalização de suas crises pelos defensores de uma nova direita não-
tradicionalista, uma direita que é vista por Ignazi (2003:204) como subproduto
da crise democrática e da crise da representação. Esta nova direita vem
ganhando força e capacidade de articulação e organização no seio de alguns
países (França, Noruega, Dinamarca, Holanda, Áustria, Itália e Bélgica) e,
ainda que de modo brando, na Europa em geral, o que já vem sendo apontado por
Ignazi desde a década de 199022.
NOVOS OPOSITORES E NOVOS MEIOS DE OPOSIÇÃO
Partidos de esquerda como o sueco Vånsterpartiet ou o português Coligação
Democrática Unitária opõem-se à política de mercado da UE e a acusam de ser o
cavalo de Tróia do capitalismo internacional (Marks et alii, 2004). Por outro
lado, os representantes e defensores do TAN opõem-se à integração pelas mesmas
razões que se opõem à imigração. Estes rejeitam a assimilação de estrangeiros e
defendem a soberania nacional, não pelos seus aspectos políticos e econômicos
mas em função de valores intrínsecos relacionados a um nacionalismo radical.
Ainda que o Parlamento Europeu não exerça, de fato, um poder tão grande quanto
o que a opinião pública européia avalia (Tostes, 2004), os pleitos regionais
acabam por revelar sintomas da recepção do projeto de integração e de sua
resistência. Naturalmente, além das eleições, outra forma de expressar
preferências políticas, sociais, ideológicas e de identidades é através da
organização e articulação de interesses em redes transnacionais. Assim, a
literatura sobre networks e novas formas de associativismos têm enfatizado e
demonstrado, através de dados e análises de pesquisas empíricas, que valores e
crenças minoritárias e sem grande articulação no âmbito nacional podem se
articular muito eficientemente e encontrar caminhos de institucionalização nos
âmbitos internacional, transnacional e supranacional23. Assim tem ocorrido de
fato também na região da integração européia, entretanto, isto não tem se dado
apenas em relação a temáticas legítimas que implicam a defesa de direitos
democráticos ou visam a uma organização justa da sociedade e da política.
Ideais não-democráticos também se utilizam dos novos caminhos de articulação,
proliferação de idéias, divulgação e influência política, de valores e de
identidades; assim como grupos racistas, xenófobos e intolerantes vêm se
fortalecendo no território europeu24. Os intolerantes e defensores de modelos
de segregação social ou racial têm se alinhado, oficialmente ou não, a
representantes de partidos extremistas de direita (em alguns casos, com
relações partidárias diretas, em outros são apenas simpatizantes e eleitores).
A preferência por estes candidatos tem se apoiado também no fato de que os
cidadãos estão absolutamente mal informados e alheios ao processo de integração
e suas conseqüências.
A ignorância sobre a UE (revelada de várias formas e exemplificada nas
pesquisas de opinião pública do Eurobarometer comentadas anteriormente e
demonstradas nos gráficos_1 e 2, particularmente no que diz respeito às
instituições) apareceu como o principal fator de rejeição da Constituição
européia no âmbito nacional em vários casos25. Ainda que consideremos que nem
todos os que discordam da idéia da construção de uma identidade coletiva
regional votem em partidos de extrema direita, é certo que aqueles que o fazem
não concordam em geral com a partilha de valores, crenças e identidade comum na
região. Outro fator de escolha por um candidato de extrema direita surpreendeu
a França em 2002, quando muitos franceses revelaram em pesquisas de opinião que
o voto a Le Pen teria sido dado em protesto à política não-programática e à
falta de ideologia e esperança na política. Além da questão específica da
identidade, mas completamente associada a ela, deve-se considerar a profunda
crise ideológica que atravessa o fim do bloco comunista (1989), mesmo período
de aprofundamento da integração ' eventos normalmente não associados, mas que
certamente se influenciam reciprocamente. Dois fatos combinados, o
fortalecimento econômico da Europa e o fim da URSS, geraram novas ondas
migratórias. Como sabemos, membros de ex-repúblicas soviéticas começaram a
migrar para a Europa Ocidental, e imigrantes de fora da região ocidental
européia também buscaram se instalar na Europa integrada. Foi diante deste
cenário que se alteraram muitas legislações nacionais sobre reconhecimento e
aquisição de cidadania na década de 1990, restringindo-se juridicamente
facilidades remanescentes para a imigração que havia, principalmente, em países
colonizadores que mantinham o sistema jus sanguini como, por exemplo, a Itália,
que reduziu as condições de reconhecimento de cidadania de descendentes de
italianos.
Entre 1989 e 1999, a ocupação de cadeiras no Parlamento Europeu por
representantes da extrema direita já havia preocupado a cúpula européia, a
ponto de se iniciar uma Comissão de Inquérito no Parlamento Europeu para
investigar o problema em 1989, que gerou o "Relatório sobre Racismo e
Xenofobia: Radiografia do Radicalismo". O exame deste documento nos permite
verificar o percurso do crescimento da extrema direita na Europa no início dos
anos 199026, o mesmo período de deliberação e implementação das medidas de
aprofundamento da união política e criação da cidadania européia. Este período
começa desde as negociações do Tratado de Maastricht, em sua fase de assinatura
e ratificações nacionais (1991-93), e se estende até os efeitos de seus
percalços. Esta fase ficou conhecida como "crise de Maastricht", que trouxe
para a mídia e para os debates acadêmicos o tema do "déficit democrático da
União Européia", como foi explicado anteriormente27.
Em 1997, o Eurobarometer publicou uma pesquisa especial bastante completa sobre
o tema, intitulada "Racismo e Xenofobia na Europa" (o ano de 1997 ficou
designado pela UE como "ano europeu contra o racismo")28. Os dados apresentados
e a análise realizada por professores de universidades americanas e francesas
(da Michigan State University e da École des Hautes Études en Sciences
Sociales) já sugeriam um grau preocupante de racismo e xenofobia nos Estados-
membros, pois a média dos europeus entrevistados que se assumiram como
"totalmente racistas" ou "muito racistas" foi de 33% ' número muito alto,
quando levamos em conta que a maioria dos racistas, de fato, não se assume como
tal.
Em 1998, entrou em atividade o "European Monitoring Centre on Racism and
Xenophobia" ' EUMC, assumindo-se que a repressão e denúncia da intolerância se
tornou uma prioridade na região. O EUMC é um observatório que funciona como uma
estrutura
29 que distribui funções e organiza atividades que têm em vista a
conscientização dos problemas do racismo e da xenofobia na região, faz
levantamento de dados, pesquisas e divulga informações na busca de estratégias
de ação e soluções. Dentre suas atividades, existem relatórios anuais sobre
trabalhos realizados pelo observatório e a divulgação da prática geral das
situações em torno do racismo e xenofobia na UE. Finalmente, em 2000 foi criada
uma importante network, a "Rede Européia de Informação sobre Racismo e
Xenofobia" ' RAXEN, que é considerada a ferramenta central de repressão ao
racismo e xenofobia na UE. Esta rede serve como divulgadora de informações e
dados sobre o problema, envolve a sociedade civil, e sua função é veicular
"alertas rápidos" sobre a ocorrência de violências contra minorias religiosas,
étnicas ou imigrantes.
Desde pelo menos 2001, os principais jornais e revistas nacionais e
internacionais passaram a estampar com maior clareza alguns detalhes sobre o
crescimento de uma nova direita radical em grande parte da Europa30. O fato
novo em torno desta questão é que as eleições européias de 2004 revelaram um
pequeno aumento dessa representação radical de direita até então considerada
preocupante, mas não crescente. Além disso, esse sintoma de crescimento não
apareceu apenas nas eleições regionais, mas nos últimos anos, menos
eventualmente, nas eleições nacionais.
O que mais importa em tudo isso é destacar que o problema do crescimento da
extrema direita tornou-se um tema internacional de marcante característica
regional européia, possivelmente em função da tentativa mais positiva no
sentido de agregar cidadãos de diferentes origens em função de um projeto
político comum. Assim, destinos de políticas partidárias nacionais passam a
sofrer influência direta de um fenômeno que se expande desde as fronteiras
eleitorais estatais e tem buscado se fortalecer no âmbito da representação
européia. Embora os representantes dessa ideologia extremista de direita que se
partidarizou, em defesa de programas políticos não-democráticos e
antiintegracionistas, não se confundam necessariamente com os ativistas
racistas, estes últimos são também seus eleitores31.
Paradoxalmente, a articulação entre os diversos grupos antiintegração,
antiimigração e antidemocráticos em geral tem sido facilitada pelas novas
possibilidades institucionais e representativas que surgiram com a integração
européia através do Parlamento Europeu. Este efeito perverso não antecipado
pelos defensores da integração política tem história e características ainda
não identificadas completamente. Paralelamente, enquanto a Europa não constrói
uma identidade coletiva clara, crises de identidade nacional se alimentam e são
devoradas por discursos xenófobos e racistas. Forças xenófobas que antes agiam
de modo fragmentado e desordenado perderam a vergonha e hoje se organizam em
partidos nacionais, em grupos ideológicos europeus32, em moldes transnacionais
e/ou simplesmente votando em partidos extremistas para o próprio Parlamento
Europeu. Estratégias de cooperação em função da resistência à integração se
forjam ao mesmo tempo em que o governo da UE se empenha na constituição de uma
união civil no seio das microrrelações sociais, e na base de seus impasses é
possível identificar a importância da identidade política e social.
CONCLUSÕES
O processo de integração da UE há muito vem sendo identificado pelo seu déficit
democrático, ou seja, não apenas porque algumas de suas instituições carecem de
accountability ou porque seus membros não são eleitos diretamente pelos
cidadãos mas, principalmente, porque há uma distância entre o sofisticado
avanço nos âmbitos jurídico, econômico e institucional e a informação, a
participação e a conscientização a respeito das conseqüências desse processo
para as populações da região. A busca da correção do déficit democrático da UE
e da legitimação do seu processo de integração social vem se revelando nas
tentativas de construção e de uma cidadania única baseada em uma identidade
cívica regional. Esta é a razão pela qual um projeto de construção de uma
identidade coletiva regional (e supranacional) sempre esteve nos planos da
integração. A idéia de comunidade política, que possui um projeto legal e
cívico pluralista e democrático, deveria prevalecer nos novos debates sobre a
construção de uma identidade coletiva que precisa ser inclusiva, sob o risco de
se fortalecerem ainda mais as reações racistas e xenófobas entre membros dos
Estados integrantes da UE. Será preciso consolidar a legitimidade da
convivência de uma pluralidade de demoidentro de um demos pluralista.
Segundo o Eurostat (Statistical Office of the European Comission), em 31/12/
2001, a UE contava com 379,4 milhões de habitantes, cerca de 1,5 milhão a mais
do que em 2000. As pesquisas estimaram que mais de 70% deste crescimento da
população se deu por fluxo migratório. Há uma estimativa atualizada, porém, sem
contar com os novos Estados-membros ingressantes, que há mais de 3 milhões de
imigrantes ilegais no território da UE ' de variadas origens raciais, nacionais
e culturais ' e a convivência com eles suscita tolerânciaounão. No decorrer
desta convivência, evidências do fenômeno apontado por Walzer (1997) como
"hifenização" ' que se dá mais freqüentemente em "regimes de tolerância", em
que se aceita a diferença, designados como "sociedades de imigrantes" ' começam
a aparecer: os afro-europeus, arab-europeans, asian-europeans etc. A
"hifenização" é um fenômeno de tolerância e adaptação; trata-se da admissão de
uma dupla identidade que não se contradiz e se complementa. Contudo, sabemos
que outro efeito da mistura e sobreposição de identidades também é possível: a
intolerância.
A eficácia dos radicais de direita não tem se revelado só a partir de propostas
violentas para solucionar problemas sociais, mas também na capacidade de ação
efetiva. Tem sido registrada uma crescente inserção desses ideólogos nas
classes trabalhadoras, além da captação da simpatia de antiintegralistas em
geral. Um importante exemplo da ação concreta e articulada da extrema direita
pode ser dado por dois pequenos partidos suíços: Democratas Suíços e Lega. Eles
obtiveram as 50 mil assinaturas necessárias para o referendo realizado em maio
de 2000 sobre a aceitação ou não dos acordos bilaterais negociados com a UE
pela Suíça. Esta consulta popular foi articulada pela extrema direita
antiintegralista, mas, como sempre, eleitores de outras tendências (até mesmo
de esquerda) votaram com a direita porque estes têm enfrentado mais claramente
os dilemas do processo de unificação política e apresentado alternativas
convincentes aos insatisfeitos.
Temos indícios suficientes para apontar duas implicações da integração regional
européia, no que se refere à recepção social. A primeira é que na região da
integração há resistências ideológicas, não simplesmente à integração mas
também ao pluralismo e à democracia, e existem resistências históricas, sobre
as quais podemos avaliar uma eventual graduação no âmbito das tradicionais
dimensões políticas européias: radicais de esquerda e radicais de direita. Além
disso, naturalmente, no que diz respeito à construção de uma nova identidade
coletiva, mais ampla e inclusiva do que a identidade nacional, existem
comportamentos e reações diferenciadas de acordo com a sociedade nacional.
Mesmo que o mapeamento detalhado destas diferenças ainda não tenha sido
realizado, a relação entre a consolidação de uma identidade coletiva européia
única e uma cidadania legitimada pela aceitação popular é clara. Assim, a
construção de uma unificação civil, além de ser necessária à eficácia da
unificação legal e jurídica em amplos setores, é um projeto de legitimação da
integração social na UE.
A segunda implicação é que um projeto de integração legal tem sido a principal
alavanca da integração política. É preciso não ignorar o fundamental papel
exercido pela Corte de Justiça Européia ao alargar os poderes do Conselho
Europeu e constituir um direito comunitário autônomo. A criação de uma
"Constituição" tem, neste contexto, a missão clara de realizar um importante
passo na direção da construção de uma identidade coletiva desprovida de
resquícios culturalistas mas encarnada em uma valorização dos laços jurídicos e
civis que garantiriam regras comuns mais claras e organizadas do que as que já
vêm sendo seguidas, ainda que sem uma unidade "constitucional" supranacional. A
rejeição deste modelo de integração jurídica, que pressupõe ou espera a
construção de uma identidade civil, é uma forma de dizer não ao projeto inteiro
da integração.
Historicamente, a idéia de cidadania é mais antiga do que a de nação, mas no
Estado moderno os dois conceitos sempre se complementaram para justificar a
atribuição de direitos e deveres de uma dada ordem jurídica e política. No caso
da União, a identidade coletiva é fundamental para a cidadania, que por sua vez
justifica a Constituição, ou um uso simbólico deste termo. O tratado designado
como "Constituição" pretende substituir um ordenamento jurídico construído ao
longo de meio século por uma série de tratados, acordos e decisões
jurisprudenciais da Corte de Justiça Européia, regras criadas em geral no
âmbito de instituições não-representativas. Uma idéia de Constituição pressupõe
uma unidade e o reconhecimento do projeto de integração legal da Europa,
conseqüentemente com poder simbólico de fortalecer os laços de coexistência
entre os povos dos diferentes Estados-membros.
NOTAS
1. Uma ampla literatura vem se debruçando sobre o crescente sentimento
antieuropeísta e antiintegracionista e sua relação com o crescimento dos
movimentos de direita e extrema direita na Europa. Ver, por exemplo, Chamorel,
2000; Duncan, 1999; Muller, 2000; Hainsworth, 1999.
2. O "interesse comunitário" já estava previsto no Tratado de Paris, de 1951,
que criou a Comunidade Econômica do Carvão e do Aço ' CECA .
3. Sobre o debate a respeito da inexistência de um demos europeu ver, por
exemplo: Cederman (2000); Casanova (2005); Karnoouh (1998).
4. O processo de ratificação do Tratado de Maastricht (1992-93), que reformou
os tratados fundadores da União Européia e criou a cidadania única européia,
gerou uma crise na integração e revelou um abismo entre a aceleração da
integração legal e a integração social na região. Para maiores informações
sobre este debate, ver Chryssochoou (1996); Wilterdink (1993); Tostes (2004).
5. Ver Goldstein e Keohane (1993); Calhoun (1994); Krause e Renwick (1996);
Lapid e Kratochwil (1996).
6. Particularmente, seus aspectos de supranacionalidade são os que mais exigem
legitimação pela identidade coletiva. Entretanto, é importante destacar que
considero que o processo de integração possui características de
intergovernabilidade e de supranacionalidade. Além disso, esse processo mistura
modelos institucionais existentes com novas fórmulas de organização e
participação e possui um ordenamento jurídico constitucional híbrido. Por tudo
isso, não creio que haja outra forma de organização política comparável à UE;
logo, não há também uma perspectiva teórica única capaz de atribuir teor
explicativo a todos os aspectos de sua estrutura (regime político,
instituições, direito, modelo regulatório etc.). Para o desenvolvimento desta
perspectiva, ver Tostes (2004).
7. O Conselho Europeu é uma reunião de cúpula de chefes de Estado e de governo
europeus que ocorre pelo menos duas vezes por ano para definir diretrizes
políticas comuns para seus membros.
8. O Eurobarometer é o maior instituto de opinião pública da Europa atualmente
e vem mapeando a percepção das sociedades dos Estados-membros sobre os mais
variados aspectos da integração e da política européia de modo geral. Acessível
no site: http://ec.europa.eu.
9. Mais sobre o papel e funções das instituições européias, cf. Tostes (2004).
10. A Dinamarca só conseguiu aprovar a ratificação em segunda consulta popular,
a França ratificou por uma margem mínima, e o povo norueguês rejeitou
definitivamente a União Européia ' não fazendo parte do bloco atualmente.
11. Foi no Conselho Europeude Edimburgo, em 11 e 12 de dezembro de 1992, que
ficou decidido o Protocolo das concessões de regras especiais para a Dinamarca.
12. Eurocéticos ou europessimistas são designações usadas indiscriminadamente
na literatura acadêmica e pela mídia para se referir àqueles que não crêem no
sucesso da integração, bem como aos que são contra a integração. O
euroceticismo tornou-se uma área de pesquisa no campo dos estudos europeus
(Aggart e Szcezerbiak, 2004).
13. Quando comparamos os resultados do grau de apoio à Constituição de 2004 e
2005 por país (Eurobarometer,nº 63, 2005), podemos verificar que houve queda em
quase todos os Estados-membros, com destaque para Holanda, Áustria e República
Tcheca, tendo crescido apenas na Hungria e Itália.
14. Em países como a França, o debate sobre a Constituição ocupou todos os
espaços da sociedade civil, houve empenho das instituições de ensino e do
governo no sentido de divulgar e conscientizar a sociedade civil a respeito do
significado, conteúdo e conseqüências do Tratado da Constituição.
15. Só o Eurobarometer faz cerca de quatro sondagens por ano sobre os mais
variados temas da integração.
16. O nacionalismo do tipo culturalista é o mesmo que influenciaria a Alemanha,
Itália, os países eslavos, e mesmo a França pós-revolucionária, sob os
auspícios de Napoleão.
17. Não foi por acaso que o ideal revolucionário francês encaminhou no
continente sua pretensão de constituir-se como berço de um ideal europeu e
universal: o que era bom para a França poderia ser bom para toda a humanidade.
Essa percepção surge na Revolução Francesa e atravessa o processo de integração
que se inicia após as guerras mundiais. Pierre Nora chama de "hipoteca" da
Revolução a idéia da transformação da soberania monárquica em soberania
nacional, com todas as conseqüências aí implicadas (cf. Furet, 1988:803-814).
Com isso, reconhecemos uma singularidade da concepção de nação no discurso
revolucionário, seu alcance e o poder que adquiriu desembocarão em um modelo de
soberania que não será questionado até a crise dos Estados nacionais, a qual
arrasta consigo a crise, não só da concepção de soberania nacional, mas do
próprio modelo de Estado democrático moderno, da representação política, da
legitimidade democrática, da liberdade etc.
18. O nacionalismo, em uma de suas vertentes concorrentes, quais sejam,
construtivista (nacionalismo político) e naturalista (nacionalismo
culturalista), não vinha sendo questionado até a intensificação da
globalização, que trouxe meios de ação transnacional e um aumento de atores
não-estatais, por condições materiais e tecnológicas de ação e organização.
19. Enquanto este artigo se submetia ao processo de aceitação para esta
publicação, a PS: Political Science & Politics, de abril de 2006, dedicava-
se especialmente ao tema da rejeição da Constituição européia, na qual podem
ser encontrados dados recentes que contribuem para os argumentos aqui
apresentados e ratificam a extrema importância da investigação sobre as crises
da União Européia à luz de uma perspectiva histórica e social sistemática.
20. Na pesquisa consultada para este artigo, feita pela University of North
Carolina ' UNC , foram examinados 171 partidos políticos em 23 dos Estados-
membros.
21. Os critérios e a explicação das variáveis utilizadas estão na pesquisa
original, parte dela acessível no site da UNC, que poderá ser conferida de modo
mais completo brevemente, pois um artigo sobre a pesquisa, com o título "Party
Competition and European Integration in East and West. Different Structure,
Same Causality", tem sua publicação prevista para 2006, na Comparative
Political Studies.
22. Cf., por exemplo, Ignazi (2003); Ignazi e Perrineau (2000); Ignazi (1996);
Ignazi e Ysmal (1992).
23. Ver por exemplo, Keck e Sikkink, 1998 e Diani e McAdam, 2003. Ver também a
situação da "sociedade civil global" mapeada anualmente nos Yearbooksdo Centre
of Global Governance, London School of Economics ' LSE. Em particular em
Glasius, Kaldor e Anheier (2002), podemos conferir uma série dedicada
exclusivamente a analisar os aspectos controversos e "esquizofrênicos" das
mobilizações temáticas e transnacionais e as evidências disso no contexto dos
ataques de 11 de setembro de 2001 e do acirramento da crise no Iraque.
24. Segundo o Guia da Europa Negra, do espanhol Manoel Floretín, atualmente o
número de organizações que não defendem ideais democráticos como as
organizações neonazistas, ultranacionalistas, de extrema direita e afins já são
mais de 300 na Europa do Ocidente. Nos últimos cinco anos, as home pages de
organizações neonazistas e de extrema direita em geral aumentaram cerca de 10
vezes, tendo se tornado a principal ferramenta de articulação e comunicação em
função da falta de controle jurídico e de regras de restrições aos conteúdos
dos sites, ou seja, mesmo havendo restrições para impressão, venda ou mesmo
representação partidária de idéias nacional-socialistas em muitos países, a
tecnologia da rede de informações e comunicação e a ação transnacional permitem
novas formas de organização de idéias não-democráticas sob os auspícios dos
Estados democráticos.
25. Uma pesquisa do Eurobarometer realizada na Holanda pós-referendo e
publicada em junho de 2005 (Flash EB nE172, 2005), revelou que a principal
razão do voto "não" na Holanda (32% dos votantes) se deu em função da falta de
informação, 19% temiam a perda da soberania nacional, e 14% votaram "não" como
forma de se opor ao governo.
26. Jornais do mundo inteiro divulgaram este relatório naquela ocasião,
disponível nos arquivos da Comissão da UE.
27. A literatura sobre a integração na Europa se dobrou completamente para
analisar os efeitos de Maastricht; apenas para mencionar alguns títulos
importantes: Christiansen (1997); Chryssochoou (1996); Cafruny e Rosenthal
(1992); Maurer (1999); Weiler, Haltern e Mayer (1995:4-39); Wilterdink (1993:
119-136).
28. EB Special Report nE 47.1, 1997.
29. Ver conceito de McAdam (cf. Diani e McAdam, 2003).
30. Apenas para exemplificar, cf. Veja, 23/5/2001 sobre a eleição de Silvio
Berlusconi para primeiro-ministro na Itália); Folha de S. Paulo, 14/5/2002
sobre os eventos: candidatura e assassinato de Pim Fortuyn; The Economist de 4/
7/2002 (Holanda); Veja, 1/5/2002 sobre Le Pen na França, direita em Portugal,
Áustria e Dinamarca; O Estado de S. Paulo, edição 206 de 29/4/2002 sobre o
declínio da onda rosa da socialdemocracia na Dinamarca, Noruega, Holanda,
Portugal, França, Itália e Alemanha; Folha de S. Paulo de 22/9/2002, que mostra
que o socialismo perdeu espaço para a direita e que enquanto em 1998 13 dos 15
governos da UE eram governados pela esquerda ou centro-esquerda, em 2002 apenas
cinco países estavam sendo governados por socialdemocratas ou coalizões de
centro-esquerda.
31. Um bom exemplo disso é o partido da Frente Nacional ' FN, que agrega amplos
setores da direita como católicos integralistas, os quais buscam reintegrar
antigos e tradicionais valores e rituais da Igreja, como missa em latim etc.,
monarquistas e fascistas.
32. Ainda não existem partidos europeus, logo, a divisão dos trabalhos no
Parlamento Europeu se dá pela via de agrupamentos partidários que têm
designação própria segundo suas tendências ideológicas. Assim, existem grupos
que se associam em defesa do fim da integração; logo, articulam interesses pela
desconstituição da UE, em muitos casos por razões xenófobas.