Ocupações de terra, acampamentos e demandas ao Estado: uma análise em
perspectiva comparada
Desde os anos 1980, centenas de milhares de indivíduos têm ocupado terras no
Brasil. Nelas montam acampamentos e passam a reivindicar sua redistribuição.
Tais ocupações distinguem-se das que, ao longo da história do país, foram e
ainda são feitas em áreas desocupadas por interessados em formar lavouras.
Enquanto naquelas a entrada nas terras era diluída no tempo, agora elas são
realizadas de uma só vez e em grupo, implicando a formação de um acampamento.
Se antes as ocupações não necessariamente vinham acompanhadas de reivindicações
ao Estado, atualmente se apresentam como demandas de reforma agrária e são
assim interpretadas pelas autoridades da República que as têm acolhido e
redistribuído as terras entre os acampados.
Até recentemente, as ocupações com acampamentos não atraíam a atenção dos
estudiosos do mundo rural. A maioria deles, preocupada em examinar o que
ocorria após a redistribuição das terras, interessou-se pelos assentamentos
implantados pelo Estado nas áreas que haviam sido ocupadas (Medeiros e Leite,
1999; Martins, 2003; Spavorek, 2003; Leite et alii, 2004) e não se interrogou a
respeito das ocupações que lhes haviam dado origem. Outros centraram o olhar
nos movimentos que os promoviam, notadamente o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra ' MST (Fernandes, 1999; 2000; Navarro, 2005) e suas
manifestações (Chaves, 2000), e também não problematizaram as ocupações.
Quando, em 1997, começamos a focalizar as ocupações na Zona da Mata de
Pernambuco, porque representavam uma descontinuidade notável na história
daquela região (Sigaud, 2000), observamos que seguiam um padrão e eram muito
mais do que uma mera aglutinação de pessoas interessadas em obter um lote de
terra. Em primeiro lugar, eram sempre promovidas por um movimento1, como o MST,
pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco '
Fetape2 e por outras tantas organizações existentes no estado (Rosa, 2004). O
movimento reunia as pessoas para realizar a ocupação, comandava a formação do
acampamento e, na seqüência, apresentava-se perante o Estado como o
representante autorizado a falar em nome dos acampados. Os acampamentos
possuíam uma organização espacial característica, com suas barracas alinhadas
em forma de ruas; regras para ali conviver; uma divisão do trabalho em
comissões; um vocabulário próprio; e, sobretudo, elementos dotados de forte
simbolismo, que constituem sua marca distintiva, como a bandeira do movimento à
frente da ocupação, hasteada em mastro elevado, e a lona preta a cobrir as
barracas. Concluímos então que essa combinação de aspectos modelares constituía
uma forma social, a forma acampamento (Sigaud, 2000). Tratava-se de uma
linguagem, um modo de fazer afirmações por meio de atos, destinada a fundar
pretensões à legitimidade. A linguagem era bem compreendida por diferentes
interlocutores. O Estado brasileiro acolhia a ocupação como um pedido de
redistribuição de terras e reconhecia, no movimento que a promovia, um
representante legítimo; no acampado, um pretendente à terra. Os proprietários
das fazendas entendiam que o acampamento era uma ameaça a seu direito de
propriedade e buscavam judicialmente a reintegração da posse. Por fim, a
existência de acampamentos era interpretada como um sinal de que ali se
pleiteavam terras.
Ainda em Pernambuco, observamos que o uso da linguagem da forma acampamento era
incontornável quando se tratava de obter a desapropriação e a redistribuição de
terras. O engenho Tentúgal, localizado no município de São José da Coroa Grande
(litoral sul do estado) e então propriedade da usina Central Barreiros,
constitui um caso exemplar da obrigatoriedade do recurso à linguagem. Em 1999,
havia ali um acampamento. As barracas cobertas com lona preta tinham sido
montadas pelos moradores do engenho3, que continuavam a residir em suas casas,
mas se revezavam, dia e noite, para ocupar as barracas e defender o acampamento
de possíveis ataques de milícias privadas4. Uma bandeira do MST trepidava no
alto do mastro. Dois anos antes, quando a usina, já em estado de falência5,
suspendeu o pagamento dos salários e arrendou o engenho, os moradores
consideraram que a saída da situação de crise seria a desapropriação das
terras. Vários engenhos estavam sendo então desapropriados na região canavieira
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ' Incra, na seqüência
de ocupações promovidas pelas diversas organizações. Em 1999, Pernambuco, um
dos últimos estados brasileiros a abrigar acampamentos, já ocupava a primeira
posição no ranking do número de ocupações do país6. Os moradores de Tentúgal
pediram então aos sindicalistas do município que organizassem um acampamento no
engenho. Tal foi feito, mas, por razões que ignoramos, o acampamento se desfez.
Sabendo que militantes do MST se encontravam no município, os moradores foram a
seu encalço para que organizassem um segundo, que foi o que visitamos. O
arrendatário já havia obtido, mais de uma vez, a reintegração de posse, e
oficiais de justiça acompanhados por policiais tinham estado no engenho para
promover os despejos. Não havia quem despejar: os acampados eram moradores do
engenho e tinham o direito de estar naquela terra. Estava em jogo eliminar os
sinais da linguagem: destruir as barracas e confiscar a bandeira. Após cada
execução da sentença judicial, o acampamento era remontado e a bandeira
novamente hasteada. No último despejo ocorrido antes de nossa visita, os
moradores enfrentaram os policiais e não permitiram que levassem a bandeira.
Suas condutas mostravam que dominavam a linguagem da forma acampamento. Sabiam
que, para obter a desapropriação, era preciso proceder de modo adequado. Esse
modo incluía a performance da ocupação com suas barracas cobertas de lona preta
e a bandeira, o patrocínio de um movimento, e supunha a defesa dos símbolos que
constituíam a marca distintiva da ocupação. Em 2003, o Incra desapropriou
Tentúgal e redistribuiu as terras entre os moradores.
Outros estudos realizados na seqüência dos de Pernambuco (Macedo, 2003; Loera,
2006) indicavam que a linguagem da forma acampamento que identificáramos era
recorrente em outras regiões do país. Foi então que começamos a nos interrogar
sobre sua sociogênese. Como tudo no mundo social, a linguagem teve de ser
inventada. Seu núcleo duro era a idéia de ocupar uma terra em grupo, a um só
tempo, e nela se instalar para, a partir da situação de fato criada,
reivindicar sua redistribuição. Ela pressupunha que houvesse indivíduos
dispostos a ocupar, a transgredir as interdições jurídicas de invasão de
propriedades, fossem elas privadas ou do Estado. Como a história nos mostrava
que nem sempre fora assim, uma pergunta se impunha: como explicar que os
indivíduos se houvessem disposto a fazê-lo?
É corrente associar, não a linguagem como a formulamos aqui, mas as ocupações,
ao MST (Fernandes, 2000:19; Caldart, 2001:208). Tudo se passa como se houvesse
uma simbiose entre o ato de ocupar e a organização. Com efeito, alguns dos
fundadores do MST estiveram à frente, em 1979, da ocupação da gleba Macali (Rio
Grande do Sul), considerada o marco inaugural da sucessão de acontecimentos que
desembocaram na criação do movimento em 1984 (Stedile e Fernandes, 1999;
Fernandes, 1999; 2000). Todavia, a questão que formulamos permanece: como
explicar que aqueles que ocuparam a Macali se houvessem disposto a fazê-lo? A
situação de penúria em que se encontravam quando foram expulsos da Reserva de
Nonoai (Rio Grande do Sul), sobre a qual falaremos mais adiante, e o desejo de
mudar sua condição social, razões freqüentemente invocadas para justificar a
ocupação (Navarro, Moraes e Menezes, 1999:33), não são uma explicação
convincente. Na mesma época dos acontecimentos da Macali havia penúria e
situações extremas, como na barragem de Sobradinho (Bahia), que desalojou mais
de sessenta mil famílias (Sigaud, 1988), em sua maioria constituídas de
agricultores há gerações, como aqueles do sul. Lá, ninguém ocupou terras.
Também não ocuparam terras as centenas de agricultores, como os de Nonoai,
desalojados pela barragem de Passo Real, no Rio Grande do Sul, alguns anos
antes. Por outro lado, os registros disponíveis relativos às mobilizações por
terra indicavam a ocorrência de ocupações de terra com acampamentos no período
anterior a 1964, em pelo menos dois estados: Rio Grande do Sul e Rio de
Janeiro. Tudo, portanto, levava a supor, por um lado, que a idéia de ocupar e
acampar não havia nascido na Macali; por outro, que a ocupação como modo de
demandar terras ao Estado não era tão nova quanto assinalado por alguns
autores, como Medeiros (1997:90).
Não encontrando elementos de resposta na literatura às nossas indagações,
empreendemos uma pesquisa de caráter histórico e etnográfico para examinar a
sociogênese da linguagem7. Apoiando-nos nela, buscamos neste artigo focalizar
as seguintes questões: como ocorreram as primeiras ocupações de que se tem
notícia; como explicar que, em determinado momento da história brasileira,
homens e mulheres tenham se disposto a ocupar terras para reivindicá-las ao
Estado; e que relações estabelecer entre as primeiras ocupações e aquelas que
conhecemos atualmente. Nossa abordagem é comparativa. Focalizamos as primeiras
ocupações ocorridas no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, utilizando um
caso para iluminar o outro. Em seguida as comparamos com as de Pernambuco, as
quais, por terem sido bem mais tardias, permitem mostrar como disposições
forjadas em outros contextos históricos e regionais puderam ser para lá
transplantadas. Ao final, examinamos as implicações de nossa análise para a
estruturação da linguagem da forma acampamento. Nosso fio condutor são, sempre
que possível, os indivíduos que participaram das primeiras ocupações e que se
dispuseram generosamente a nos relatar suas lembranças. A eles dedicamos este
texto, em especial a Alcides Oliveira, da Macali, que nos abriu as portas da
pesquisa no Sul8.
As perguntas que fazemos, a démarche comparativa e o foco nos indivíduos
constituem a contribuição de nosso estudo. Estabelecemos relações entre as
mobilizações pela reforma agrária no Sul, no Sudeste e no Nordeste do país, em
diferentes momentos históricos, rompendo com o modo estanque como têm sido
tratadas, para colocarmos em evidência o que foi recorrente em todas elas,
notadamente a relação com o Estado. Levamos em conta os relatos dos que
participaram dos acontecimentos. Eles nos permitiram perceber o modo como as
ocupações foram vividas e iluminaram aspectos até então não explorados pelos
que não os ouviram e se fiaram em relatos de terceiros.
O corpus da análise se constitui pelo material etnográfico recolhido em
pesquisa realizada em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro9;
pela bibliografia disponível sobre as ocupações nesses três estados; pelos
registros da imprensa; e pelo material iconográfico. Examinamos os diferentes
materiais à luz das questões que nos preocupavam. Há um descompasso no que se
refere ao material etnográfico. Em Pernambuco, pudemos observar as primeiras
ocupações e interagir com os indivíduos no calor dos acontecimentos. Para o Rio
Grande do Sul e o Rio de Janeiro, tivemos de nos apoiar nas lembranças em
relação a eventos ocorridos há muitos anos. Como toda pesquisa, esta foi também
a pesquisa possível.
UMA IDÉIA EM GESTAÇÃO
Dez de janeiro de 1962, Nonoai, município do noroeste do Rio Grande do Sul.
Algumas centenas de homens, transportados em caminhões, deixaram a sede do
município para empreender uma viagem de 100 quilômetros rumo a uma localidade
conhecida como o Capão da Cascavel. O Capão ficava à beira da estrada que cruza
Sarandi, fazenda de 24 mil hectares pertencente à família Mailhos, de origem
uruguaia. O grupo era constituído por colonos, como são denominados os pequenos
agricultores da Região Sul do país. Pernoitaram em Ronda Alta (então distrito
de Nonoai) e, ao amanhecer, seguiram para o Capão. Lá montaram barracas de
madeira cobertas de capim para se abrigarem, ergueram uma enorme cruz e
hastearam as bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul. Havia muita gente na
beira da estrada. Os colonos cortaram o arame das cercas, e as barracas foram
então construídas fazenda adentro, configurando assim uma invasão das terras
dos uruguaios. Em 13 de janeiro, o governador Leonel de Moura Brizola
desapropriou a Sarandi. Dois dias depois, foi ao acampamento com uma comitiva
de políticos e jornalistas anunciar a boa-nova. Ordenou a instalação de um
escritório do governo com a incumbência de cadastrar os que lá se encontravam
para contemplá-los com lotes de terra; providenciou a distribuição de alimentos
e colocou a Brigada Militar a postos para assegurar a proteção dos colonos no
Capão10.
Passados mais de quarenta anos, os acontecimentos eram lembrados com emoção por
alguns de seus protagonistas que encontramos em 2004 e em 2005. Dona
Clementina, moradora da gleba Macali (parte da Sarandi), contou que, quando
correu a notícia de que a fazenda fora desapropriada, "foi o mesmo que soltar
uma bomba". Seu marido e seu cunhado foram acampar. Ambos trabalhavam em terra
arrendada e foram contemplados com lotes na fazenda. Seu Ivo, também morador da
Macali, recordava que a notícia de que haveria distribuição de terra logo
chegou a Ronda Alta, onde residia ' "Era um contando para o outro". O pai, que
explorava uma área sem ter escritura, anunciou à família: "Eu vou acampar para
ganhar terra". Dois dias depois já estava no acampamento. Seu Dioraci e dona
Maria, também da Macali, conheceram-se na Sarandi e lá se casaram. Não
participaram do acampamento porque eram crianças na época. Só iam, às vezes, de
visita. O pai dele acampou e obteve terra. Seu Júlio não chegou a acampar.
Trabalhava como agregado11 e não tinha como largar o trabalho. Seus irmãos e
seus cunhados participaram do acampamento. Graças às suas boas relações com
Jair de Moura Calixto, o prefeito de Nonoai, conseguiu se cadastrar e obteve
terra na Sarandi, onde residia no momento em que o encontramos. A
desapropriação atraiu para o acampamento levas de colonos. Os jornais da época
referiam-se à presença de cerca de 1.300 pessoas (Eckert, 1984:106). Pode ser
que não houvesse tantos. Pelas fotos tiradas por ocasião da visita de Brizola,
calculamos umas setecentas.
Esses protagonistas do episódio Sarandi não mencionaram em seus relatos quem
havia organizado a ocupação. A questão parecia não lhes importar. Só quando
interrogados é que a atribuíam ao prefeito Calixto, cuja liderança foi também
destacada em outros relatos. Assim, Carlos Araújo, originário de Porto Alegre e
na época um jovem militante de um agrupamento de esquerda egresso do Partido
Comunista Brasileiro ' PCB, narrou que, em suas andanças pelo interior, a
ensinar aos posseiros seus direitos à terra, ele e seu grupo se encontraram com
o prefeito. Calixto pediu-lhes ajuda para reunir pessoas e invadir uma fazenda.
"O povo estava muito sofrido", teria ele argumentado. Carlos e seus
companheiros saíram de porta em porta a convidar os que não eram proprietários
de terra. Cleto, natural de Nonoai, engenheiro e membro do PCB, também contou
ter sido chamado por Calixto, seu padrinho de casamento, para ajudá-lo na
invasão programada, mobilizando as pessoas. Na época, reagiu: "Calixto, tu
estás louco! Fazer uma invasão?". Colaborou assim mesmo com o padrinho, o qual,
segundo ele, era apoiado por alguns políticos locais e pelo padre. Por fim,
Chico das Éguas, então tropeiro em Nonoai, narrou ter sido convocado pelo
prefeito para escolher um bom local na estrada que cortava a Sarandi para
montar um acampamento e que teria sido ele o responsável pela indicação do
Capão da Cascavel. Calixto, no dizer de Chico das Éguas, cumpria ordem de
Brizola para cadastrar as famílias e organizar o acampamento. Esses nossos três
interlocutores referiram-se ao prefeito de Nonoai como um tipo meio "doido" e
impulsivo, e pareciam atribuir a tais idiossincrasias sua idéia de invadir a
Sarandi. Primo de Brizola e filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro ' PTB,
Calixto era uma figura polêmica e sobre ele pesavam acusações de ter
assassinado um homem e atentado contra a vida de outro. Em 1961, participou
ativamente da campanha da legalidade em prol da posse de João Goulart. Formou
uma milícia com os habitantes do município, barrou todas as entradas da cidade,
enfrentou o Exército e, pelo menos uma vez, teria ameaçado marchar com seus
homens armados em direção a Porto Alegre. Mesmo após a posse de João Goulart,
manteve Nonoai em estado de guerra, e foi nesse contexto que comandou a invasão
da Sarandi.
Em trabalho pioneiro sobre o Movimento dos Agricultores Sem Terra ' Master, uma
organização fundada no Rio Grande do Sul, em 1960, com o apoio de Brizola,
Eckert (1984) trata da invasão da Sarandi como uma empreitada desse movimento.
A autora não fornece, no entanto, evidências empíricas que sustentem sua
interpretação. Por sua vez, Gehlen escreveu que a idéia de invadir a fazenda
fora gestada no interior do PTB, partido de Brizola, e em sua equipe de governo
"para justificar e legitimar a desapropriação" (1983:134-135). Em trabalho
posterior, já atribuía também ao Master a invasão da Sarandi (1985:150), talvez
por influência de Eckert. Todavia, nesses seus dois trabalhos, igualmente não
encontramos evidências que apóiem nenhuma das duas afirmações. Terra Livre,
jornal mensal da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil '
Ultab, organização nacional vinculada ao PCB, noticiou a ocupação da Sarandi em
sua edição de janeiro de 1962. Não se referia então a nenhum movimento
organizador. Na edição de fevereiro do mesmo ano era registrada a criação de
uma Associação de Agricultores Sem Terra no próprio acampamento, mas isso após
a invasão. Os autores mencionados e o Terra Livre convergem, no entanto, no
sentido de assinalar a participação de Calixto. Eckert (1984:105) e Gehlen
(1983:136) atribuem-lhe o comando da invasão, e Terra Livre menciona-o como um
daqueles que apoiou os colonos. Também Brizola é referência constante. A
desapropriação da fazenda e a proteção policial ao acampamento são seus feitos
destacados. Não se trata de polemizar a respeito da paternidade da invasão, mas
tão-somente de pôr em relevo a participação do prefeito e o apoio de Brizola. A
reforma agrária figurava na agenda do governador. Em 1961, havia encomendado um
levantamento da situação fundiária do estado e um cadastro dos agricultores
sem-terra. Como o Master nunca foi citado pelos nossos interlocutores e também
nunca reivindicou a ocupação da Sarandi, o mais plausível é que ela tenha sido
uma iniciativa de Calixto, com ou sem a chancela de Brizola. Assim, as centenas
de colonos que entraram na Sarandi o fizeram a partir de um chamado do
prefeito, que participou com eles da invasão. Verifica-se então que a primeira
ocupação de que se tem notícia no Rio Grande do Sul foi concebida e comandada
por uma autoridade da República e legitimada por outra, o governador do estado.
Após os acontecimentos do Capão da Cascavel, a idéia de que invadir e acampar
era um modo de conseguir terra ganhou força. No dia 21 de janeiro de 1962, dois
mil colonos ocuparam as terras do Banhado do Colégio, no município de Camaquã,
a 500 quilômetros de Sarandi, e lá montaram um acampamento. No dia 30, as
terras foram desapropriadas. Na região de Nonoai, corria o boato de que Brizola
redistribuiria uma parte da Reserva Florestal de Nonoai, denominada Quarta
Seção. Em fevereiro de 1962, um grupo de colonos invadiu essas terras. Seu
Miguel de Paula participou do acampamento. Tinha então 18 anos e era meeiro12.
Foi a pé com seus irmãos e outros companheiros. Chegaram à noite e montaram
suas barracas, cobrindo-as de lona. Como no relato dos que estiveram na
Sarandi, não houve referência a um organizador. "O povo, quando vê aquele
acampamento, daí começa a acampar porque ali vai sair terra mesmo", explicou-
nos em 2005. Seu Miguel foi cadastrado na reserva e contemplado com terra na
Sarandi, onde residia na época da pesquisa. Seu Sebastião, também morador da
Sarandi, foi outro que participou da invasão. Seu irmão havia estado no Capão
da Cascavel; ele não foi porque a mãe estava doente. Já na invasão da Reserva,
quando passou o caminhão pegando as pessoas para acampar, seu Sebastião foi
junto, como relatou em 2004. Como nossos interlocutores da invasão da Sarandi,
não houve referência a um organizador. Há indicações de que Calixto teria
comandado mais essa ocupação. Foi o que nos disse Cleto e é também o que afirma
Eckert (1984:167-172). Na seqüência, o Master intensificou a organização de
acampamentos. Pelos registros de Eckert, baseados em notícias de jornal, houve
cerca de 21 acampamentos entre janeiro de 1962 e março de 1964 (ibidem:233-
235).
O acampamento do Capão da Cascavel e a desapropriação da Sarandi ocorreram em
menos de dois meses após a realização, em Belo Horizonte, do I Congresso
Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, promovido pela Ultab, que
consagrou a palavra de ordem "reforma agrária radical"13. O jornal Terra Livre
deu grande destaque aos acontecimentos. "Reforma Agrária Dá mais um Passo:
Brizola Desapropria um Latifúndio" foi a manchete de primeira página da edição
de janeiro de 1962. Na edição seguinte, de fevereiro de 1962, "a luta dos
camponeses de Sarandi" é apresentada como um exemplo a ser seguido pelos
camponeses de todo o país. Na edição de junho, o jornal noticiou a
desapropriação do Banhado do Colégio e publicou uma carta da diretoria da
Ultab, de solidariedade a Brizola, endereçada ao governador ainda em janeiro,
após a desapropriação das terras do uruguaio. Suas decisões aí aparecem como se
enquadrando "perfeitamente" nas resoluções do congresso de Belo Horizonte. Os
feitos de Brizola ainda eram destacados no almanaque da edição de julho de
1962, que publicou um folheto do poeta cearense Gonçalves da Silva, o Patativa
do Assaré, intitulado "Em Cada Estado um Brizola". O Terra Livre era vendido
pela rede dos militantes vinculados à Ultab em diferentes regiões do país.
Assim, é plausível que a notícia da invasão e da desapropriação da Sarandi
tenha sido difundida em rincões distantes das terras gaúchas.
Conforme os registros disponíveis, as ocupações com acampamentos, seguidas de
desapropriações, ficaram restritas ao Rio Grande do Sul até abril de 1963. No
dia 3 desse mês, um grupo constituído, em sua maioria, por trabalhadores
desempregados das usinas de açúcar no Norte Fluminense montou um acampamento na
localidade do Imbé, município de Campos, pólo da produção canavieira do Estado
do Rio de Janeiro. Os números são controvertidos. Dependendo da fonte, foram
cinqüenta, trezentas ou seiscentas pessoas14. José Pureza comandou a invasão;
voltaremos a ele mais adiante. O grupo reivindicava o assentamento das
famílias. O Imbé figurava como estatuto de área devoluta no Plano Agrário
enviado pelo governador do Rio de Janeiro à Assembléia Legislativa em 1959, e a
demarcação das terras estava prevista (Grynszpan, 1990:93). No momento da
invasão, estariam sendo apropriadas pelos usineiros de Campos.
Em suas memórias, Pureza (1982) relata que, logo após a montagem do
acampamento, o delegado de Campos esteve no local com um bando de policiais.
Dizia que cumpria ordens do governador Badger da Silveira para desalojá-los. Os
acampados recusaram-se a partir, e os policiais tomaram suas armas. Em seguida,
o mesmo delegado comandou a invasão da sede do Sindicato dos Ferroviários de
Campos, na caça a João da Guarda, líder da categoria acusado de estar implicado
na ocupação do Imbé. O acontecimento desencadeou uma greve dos ferroviários. O
governador decidiu então que o caso do Imbé seria examinado à luz do Plano
Agrário, o que indicava a perspectiva de redistribuição de suas terras. A
polícia foi afastada, e os usineiros mobilizaram suas milícias para atacar o
acampamento. Quando os acampados souberam do plano, cavaram trincheiras em
torno do acampamento para bloquear o acesso e refugiaram-se na mata (ibidem:75-
87).
Paulo Schmidt, um dos fundadores do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, em
1962, e braço direito de Brizola para as questões fundiárias, esteve no Imbé. A
situação no acampamento era tensa. João Caruso, também ex-colaborador de
Brizola e então à frente da Superintendência de Reforma Agrária ' Supra, órgão
do governo federal criado em fins de 1962, o havia enviado ao local para
avaliar o que se passava. Conforme nos relatou em 2005, encontrou cerca de
duzentas pessoas acampadas no meio da mata e foi recebido como "o homem da
reforma agrária em Brasília". Nos três dias em que lá ficou, dormiu na barraca
dos solteiros. Pela manhã era acordado com o toque de um sino que chamava os
acampados para se dirigir ao centro do acampamento. Nesse centro, estava
hasteada a bandeira do Brasil e todos cantavam o Hino Nacional. Há indicações
de que no acampamento havia dois barracões coletivos: o "estado-maior" e um
outro utilizado como dormitório dos solteiros, além de barracas individuais
destinadas aos casais e uma casa de despensa com a cozinha ao lado. Apenas o
"estado-maior" era coberto com um encerado, os demais usavam folhas de
bananeira e palhas de sapê tanto para o teto quanto para o colchão, segundo
Novos Rumos,semanário editado pelo PCB (Novos Rumos, 26-30/4/1963). Havia um
decálogo, intitulado "Leis do Imbé", estipulando as regras do acampamento
(Terra Livre, maio de 1963). Os acampados organizaram-se em grupos de trabalho:
a frente responsável pela construção dos barracos e dos fogões a lenha e pela
coleta da lenha para cozinhar; a comissão de vigilância encarregada da
segurança do acampamento; e a comissão de solidariedade que cuidava da coleta
de donativos. Os acampados cultivavam em conjunto uma área de terra (o
"coletivo"), e cada família explorava também sua própria roça.
Em 1963, José Pureza era tesoureiro da Federação das Associações de Lavradores
do Estado do Rio de Janeiro ' Falerj, que havia ajudado a criar, em 1959, com
Bráulio Rodrigues, de Nova Iguaçu, e Manuel Ferreira, de Magé. Os três haviam
sido operários e eram egressos do PCB. Desde o final da década de 1940, vinham
organizando posseiros e lavradores na Baixada Fluminense para garantir sua
permanência na terra (Grynszpan, 1987; O'Dwyer, 1988; Macedo, 2005)15. A Falerj
competia com outras forças atuantes no Rio de Janeiro, como as Ligas
Camponesas, a Federação dos Lavradores do Estado do Rio de Janeiro ' Flerj e
Tenório Cavalcanti (Grynszpan, 1987:222-285). No relato sobre o Imbé, Pureza
(1982) conta que a Falerj havia sido procurada por posseiros que vinham sendo
expulsos, pelos usineiros, das terras onde trabalhavam em Campos, e que ele
fora então escalado para se deslocar para a área. Durante três meses, fez um
levantamento nos cartórios de Campos e identificou o Imbé como terra devoluta.
Reuniu então os posseiros e suas famílias e promoveu a invasão e a montagem do
acampamento. A situação de penúria em que se encontravam as famílias em Campos
é o argumento por ele utilizado para justificar a ocupação (ibidem:75-76). Tudo
leva a crer que a decisão foi tomada por Pureza. Como não há evidências, nem em
seu relato, nem em outras fontes, de que o Imbé tenha resultado de uma
deliberação da Falerj, é plausível que tenha tido autonomia na condução do
processo.
A notícia da ocupação do Imbé foi amplamente divulgada por emissoras de rádio e
por jornais do Rio de Janeiro. O Terra Livre deu manchete de primeira página:
"Camponeses Ocupam Terra na Região Açucareira do Imbé" (abril de 1963). Logo
começaram a circular os boatos de que as terras do Imbé seriam redistribuídas.
José Correia da Silva, morador do assentamento Vecchi (município de Cachoeira
de Macacu), onde posteriormente foram instalados os ocupantes do Imbé, relatou,
em uma reunião realizada nessa mesma localidade, em 198116, que soube da
ocupação pelo Terra Livre. Em um encontro na Liga Camponesa de Tererê
(localidade de Campos), dirigida por João da Guarda, o líder ferroviário
anteriormente mencionado, ficou decidido que iriam se juntar aos do Imbé. Esse
nosso personagem trabalhava em uma fazenda de café. Entre outros presentes à
reunião de 1981, havia Miguel de Lima: vendedor ambulante em Campos e leitor do
Terra Livre, contou ter sabido da ocupação pelo jornal e ter sido estimulado
pelo mesmo líder ferroviário a ir para o Imbé. Foi ainda pelo Terra Livre que
Sebastião Adão Ferreira, trabalhador de uma fazenda de cana, se inteirou da
ocupação e da possibilidade de redistribuição de terras. Seguiu para o Imbé e,
em 2005, estava instalado no Vecchi. Cleriel, que já havia participado de
enfrentamentos de posseiros na fazenda Pedra Lisa, em Nova Iguaçu, nos anos
1950, foi outro presente à reunião do Vecchi que tomou o rumo do Imbé. Tinha
então esperança de conseguir um lote de terra melhor do que o que dispunha em
Pedra Lisa. Aristides, originário de São João da Barra, tinha estado em Parati,
no sul do estado, porque ouvira dizer que lá o governo dava terras. Nada
conseguiu. Voltou para sua terra e ficou trabalhando como meeiro. Quando soube,
pelo rádio, que o Imbé estava sendo desapropriado, seguiu para lá, conforme nos
contou em 2005.
O acampamento do Imbé teve o apoio dos sindicatos dos operários navais de
Niterói, dos ferroviários da Leopoldina, da Extração de Sal e Produtos Químicos
de Cabo Frio, do Conselho Sindical e dos ferroviários de Campos, que visitaram
o acampamento e doaram alimentos, roupas e dinheiro (Pureza, 1982:86;
Grynszpan, 1987:185). Companheiros que haviam participado dos enfrentamentos
por terra na Baixada Fluminense, como Cleriel, foram convocados para o Imbé:
Para agüentar aquele movimento ali [contou Pureza em 1981], tive que
trazer gente de vários municípios. A maior parte da gente que veio
para o Imbé tinha sido expulsa por fazendeiro. Não eram companheiros
para o que desse e viesse. Então, tive que arranjar gente em Caxias,
em Pedra Lisa, pessoas que já entendiam da luta e se propunham a
defender a posse até chegar a desapropriação. Precisava de gente que
tivesse um pouco de conhecimento e vontade de lutar. Esse aí
[prosseguiu indicando um dos presentes] é de Pedra Lisa [...]. Eles
tinham família, mas não ali. Já tinham o sítio deles em Caxias, em
Cachoeiras.
Assim, José Eufrásio, de Pedra Lisa, lembrava, também em 1981, que ele, Cleriel
e outros três foram para o Imbé porque achavam que "a luta precisava de ajuda".
Em 11 de junho de 1963, a Supra desapropriou o Imbé. Nos meses que se seguiram,
houve outras ocupações com acampamentos no Rio de Janeiro, como as de Floresta,
em Paracambi; Tocaia e Cachoeirinha, em Magé; Cidade dos Meninos, em Duque de
Caxias (Grynszpan, 1987:191-221), e a Supra continuou a desapropriar fazendas.
Foram ao todo dez, além do Imbé (ibidem:107).
Comparada com a ocupação da Sarandi, a do Imbé apresenta traços distintivos.
Enquanto a da Sarandi foi capitaneada por um prefeito, a do Imbé teve à sua
frente um dirigente de uma organização de lavradores. No sul, os implicados
eram pequenos agricultores sem-terra, descendentes de famílias de pequenos
agricultores, para os quais a agricultura era um meio de vida havia pelo menos
três gerações. No Imbé, o núcleo inicial era constituído de famílias de
desempregados das usinas que não tinham a mesma tradição familiar de produzir
por conta própria. Os que foram para o Capão da Cascavel eram provenientes da
mesma localidade (o município de Nonoai) e viviam em um pequeno mundo de
parentes, vizinhos e conhecidos. Essas redes foram decisivas para o afluxo ao
acampamento nos dias subseqüentes à ocupação, como ficou evidenciado nos
relatos. No Rio de Janeiro, outros elementos foram decisivos: a informação
obtida por meio do Terra Livre, de outros veículos de imprensa e das emissoras
de rádio; os incitamentos das Ligas Camponesas; o chamado de Pureza endereçado
aos companheiros de enfrentamentos anteriores; os boatos ouvidos em localidades
distantes. Para o Capão afluíram indivíduos com a mesma origem social dos
primeiros ocupantes. Já para o Imbé foram vendedores ambulantes, desempregados
de fazendas de outros municípios e os "desgarrados" de Minas Gerais, Alagoas e
de outros estados aos quais se refere Grynszpan (ibidem:171), apoiando-se em
entrevistas com líderes do movimento, além de indivíduos experientes em
enfrentamentos por terra. Por fim, enquanto a invasão do Capão se inscreveu em
uma região do país onde as ações coletivas por terra recém haviam começado, a
do Imbé se deu em um estado com uma forte implantação de associações de
lavradores e pontilhado por conflitos de terra.
Há, contudo, outros traços que permitem aproximar as duas ocupações. Sarandi e
Imbé foram as primeiras a serem reconhecidas pelo Estado como demandas por
terra e a resultarem na redistribuição de lotes entre os participantes. A
comparação com eventos ocorridos em São Paulo, em 1960, é útil para pôr em
relevo a ruptura ocorrida nos casos em exame. Nos primeiros dias de março
daquele ano, um grupo de trinta a quarenta pessoas, lideradas por militantes do
PCB, promoveu a ocupação da fazenda Santa Helena, em Marília. Os ocupantes
foram despejados em três dias e fichados na polícia como comunistas. No ano
seguinte, o governador Carvalho Pinto instalou um projeto de assentamento em
Santa Helena. Uma condição para ser assentado era ter bons antecedentes
policiais, o que excluiu os que haviam invadido a fazenda (Tolentino, 1997).
Nada de semelhante ocorreu no Capão da Cascavel e no Imbé, onde, pelo
contrário, o Estado reconheceu a legitimidade da demanda. A resposta favorável
às iniciativas de Calixto e Pureza contribuiu de forma decisiva para atrair
novas levas de indivíduos interessados em obter um lote nas terras
desapropriadas e encorajou outras ocupações com acampamentos. Ela permite
compreender como foi possível que em contextos sociais tão diferentes, como o
da colônia gaúcha e o do mundo rural fluminense, indivíduos com propriedades
sociais tão distintas convergissem em suas condutas.
Seguindo com a comparação, nossas atenções se voltam agora para as figuras de
Pureza e Calixto. O que teria levado Pureza a julgar que a ocupação do Imbé era
o modo apropriado de resolver os problemas das famílias de Campos? Teria ele se
inspirado nos acontecimentos da Região Sul? É possível, mas não dispomos de
evidências nesse sentido. Como veio à cabeça de Calixto a idéia de invadir a
fazenda do uruguaio e montar o acampamento do Capão da Cascavel para "resolver
o problema do povo sofrido"? Seu perfil guerreiro, do qual a praça de guerra
que montou em Nonoai na campanha da legalidade seria uma evidência, poderia dar
conta da ousadia que surpreendeu interlocutores como o mencionado Cleto;
todavia, não explicaria por que decidiu ocupar terras. Nossa hipótese é a de
que ocupar para forçar a distribuição de terras era, naqueles idos anos 1960,
uma idéia que se esboçava no horizonte dos possíveis. A ocupação registrada em
Marília seria um sinal, assim como aquela ocorrida em Duque de Caxias (RJ), em
15 de novembro de 1961, quando duzentas pessoas invadiram o Parque Capivari
(Grynszpan, 1987:168). Calixto e Pureza foram portadores dessa idéia, apostaram
nela. Valendo-se de sua legitimidade, lograram inculcar naqueles que
arregimentaram a disposição para invadir fazendas. Graças a uma correlação de
forças favorável no governo Brizola em 1962 e no governo federal em 1963, ambos
ganharam a aposta: conseguiram a redistribuição das terras.
A análise das condições sociais que contribuíram para que o Estado acatasse as
demandas dos acampados da Sarandi e do Imbé exigiria outra pesquisa; não nos
aventuraremos a fazer conjecturas. A reforma agrária havia se tornado uma
questão nacional, como bem o mostra Camargo (1981), mas sua centralidade não
constitui uma explicação. Trata-se aqui tão-somente de destacar que as duas
ocupações foram atos inaugurais que deram corpo a uma idéia que estava em
gestação e marcaram, graças ao modo como foram acolhidas, o início de um novo
tipo de relação entre os demandantes de terra e o Estado. Para serem ouvidos,
eles deveriam invadir em grupo e acampar. A linguagem começava a esboçar-se. Em
pelo menos duas oportunidades, ela foi consagrada como forma de luta: na
Assembléia Estadual Camponesa, promovida pelo Master em Porto Alegre, em meados
de 1963, na qual foi adotada a resolução de ocupar os latifúndios (Terra Livre,
julho de 1963); e no I Encontro Camponês de Goiás, realizado em Goiânia em
novembro de 1963, que deliberou pela "ocupação de latifúndios não explorados,
onde a massa camponesa assim o decidir" (Terra Livre, edição de julho de 1963).
Por outro lado, surgiram novos portadores da idéia, entre eles, Alziro Ferreira
da Silva, presidente do Sindicato dos Lavradores de Vera Cruz (São Paulo) que,
no final de 1963, conclamou os associados a se reunirem no sindicato para
ocupar terras (Terra Livre, dezembro de 1963), e militantes do Partido Operário
Revolucionário Trotskista ' PORT e das Ligas Camponesas, que promoveram duas
invasões em Pernambuco no início de 1964, como relata Aybirê Sá (2007:101-102),
militante trotskista, em suas memórias. Do lado do Estado, o principal
responsável pela política agrária dava o seu beneplácito às invasões. Assim,
João Pinheiro Neto, presidente da Supra, declarou no encontro de Goiânia: "Os
camponeses devem invadir os latifúndios e ocupar as terras, a exemplo dos
camponeses do Imbé" (Terra Livre, outubro de 1963). Com o Golpe Militar de
1964, os novos detentores do poder de Estado deixaram claro, desde as primeiras
horas, que não dariam ouvidos à linguagem das invasões. Calixto foi preso,
assim como centenas de outros líderes que estiveram implicados nas ocupações.
Pureza conseguiu fugir para o Nordeste, onde foi preso em 1973. Terras ocupadas
e desapropriadas foram devolvidas a seus donos, como no Estado do Rio de
Janeiro, ou destinadas aos grandes demandantes de terra, como no caso da
Sarandi, ao qual voltaremos mais adiante. Tudo indica que não houve mais
invasões por um período de quatorze anos. Não encontramos nenhum registro, mas
a idéia de invadir para ganhar terra parece ter ficado guardada na memória,
como se verá a seguir.
AS DISPOSIÇÕES INCORPORADAS E AS CONEXÕES COM O ESTADO
Maio de 1978. O cenário é a Reserva Indígena de Nonoai, mesmo município dos
acontecimentos de 1962 no Rio Grande do Sul. Apoiados pela polícia, os
caingangues expulsaram cerca de mil famílias de colonos que residiam e
exploravam terras na reserva. Desde os anos 1940, pequenos agricultores da
região de Nonoai haviam começado a se instalar na reserva dos índios, a se
"intrusar na área", em seu dizer. Em 1962, houve os que saíram para invadir a
fazenda Sarandi, mas para lá acabaram retornando. Haviam sido cadastrados, mas
não foram incluídos entre os 450 beneficiários dos lotes de 25 hectares
redistribuídos por Brizola. Apenas parte da Sarandi foi destinada aos
acampados. O restante foi transformado em granjas de 100 hectares, distribuídas
por Ildo Meneghetti, sucessor de Brizola, e em duas grandes glebas, Macali e
Brilhante, arrendadas a empresas.
O governo estadual reconheceu na expulsão dos colonos um problema para o qual
deveria buscar soluções. Ofereceu aos desalojados um abrigo no Parque de
Exposições de Esteio (situado a 20 quilômetros de Porto Alegre), de onde seriam
encaminhados para um assentamento no sul do estado ou para um projeto de
colonização no Mato Grosso. Cerca de quinhentos recusaram-se a partir e
permaneceram em Nonoai e em municípios adjacentes. Instalaram-se com suas
famílias em casas de parentes e amigos; "encostaram", como costumam nomear essa
situação. Outros tantos armaram barracas cobertas de lona na beira da estrada.
Era um acampamento para morar, e não para reivindicar terra, e tinha o nome de
Taquaraçuzinho.
Tereza Schneider, hoje residente na Macali, "encostou" na casa do sogro, na
linha Pipiri17, em Ronda Alta, então município emancipado de Nonoai. Ainda no
mês de maio de 1978, foi com o marido e seus cunhados invadir a Reserva
Florestal de Nonoai, a mesma que havia sido ocupada em fevereiro de 1962. Havia
25 pessoas no grupo, em sua maioria membros da parentela Schneider. Adão,
casado com Hilda Schneider, foi chamado pelo cunhado e compadre Guilherme, que
lhe disse: "Vamos, compadre, vamos lá. Essa terra vai ficar para vocês". Adão
hesitou. A mulher estava doente. O cunhado insistiu. Ele foi. Dino e Beatriz,
hoje moradores da Brilhante, haviam "encostado" na casa do pai dele, na Quarta
Seção, linha constituída em uma parte das terras da reserva, redistribuídas por
Brizola. Nessa linha residiam membros da parentela Schneider, entre eles um
cunhado de Beatriz. Corria o boato de que a área seria destinada às famílias
expulsas da reserva indígena. Alguns dos irmãos Schneider eram agricultores e
possuíam terras. No entanto, lembrava Hilda, ficavam sempre atentos, à cata de
informações, o que pode indicar que buscavam terras para os parentes expulsos
da reserva. A partir dos relatos, concluímos que partiram em dois grupos: um
proveniente da linha Pipiri e o outro da Quarta Seção. Chegaram à noite,
montaram suas barracas. Na manhã seguinte, foram desalojados pela polícia. As
mulheres lembravam com detalhes do momento da chegada dos policiais e do modo
como eles chutavam as panelas nas quais preparavam os alimentos. Elas foram
liberadas para que regressassem às suas casas com os filhos, e os homens foram
presos, mas postos em liberdade algumas horas depois.
Passados poucos dias, um grupo maior, que incluía os irmãos Schneider e seus
cunhados e vizinhos da linha Pipiri e da Quarta Seção, invadiu a gleba
Brilhante, da fazenda Sarandi. Ireno, também egresso da terra indígena, estava
"encostado" na casa de parentes que haviam sido assentados na Sarandi em 1962.
Ele tinha relações de parentesco com Chico das Éguas, um de nossos
protagonistas da invasão de 1962 beneficiado com um lote. Soube, por intermédio
de parentes e amigos do tempo da "área", que haveria a invasão e juntou-se aos
demais. O grupo, integrado dessa feita apenas por homens, viajou de ônibus de
linha até Ronda Alta. Lá os colonos pegaram táxis que os deixaram a 5
quilômetros da fazenda. Levavam apenas suas mochilas. Seguiram a pé e montaram
o acampamento. A polícia logo cercou o local. Ninguém mais entrava nem saía. A
estrada de acesso foi fechada. Dentro da fazenda, os agricultores fizeram uma
pequena plantação de milho. A lavoura já estava crescida quando os tratores de
fazendeiros das imediações a destruíram. O governo do Estado não considerou a
demanda dos colonos e, ao final de quarenta dias, o acampamento se desfez.
Em 12 de julho de 1978, outro grupo de remanescentes de Nonoai invadiu o Parque
Florestal de Rondinha, vizinho à fazenda Sarandi. Circulou a informação de que
haveria a invasão e que um caminhão passaria para pegar as pessoas. É o que
conta Adelino, hoje também na Macali. Nessa invasão, viajaram em um caminhão
que transportou 35 famílias. Quando já haviam montado suas barracas e erguido
uma grande cruz, chegaram filhos dos colonos assentados em Sarandi em 1962, que
nutriam a expectativa de que as terras da Brilhante lhes seriam destinadas.
Adelino calculava duzentas famílias no acampamento, como nos contou em 2004. A
polícia cercou a área e colocou barreiras na estrada. Dessa feita, contudo,
cadastrou os participantes. O acampamento durou setenta dias. Foi visitado pelo
então candidato ao governo do Estado, Amaral de Souza, que prometeu que se
empenharia em conseguir terras no Rio Grande, caso eleito. Desfeito o
acampamento, as pessoas voltaram para casa com esperança. O cadastro e as
palavras do candidato haviam-nas reconfortado.
Como nos relatos sobre a invasão da Sarandi em 1962 e da reserva florestal em
1963, a organização não era uma questão para os nossos interlocutores. Eles
contaram que participaram das invasões porque ouviram falar que ocorreria e
porque foram chamados por parentes e vizinhos. Não houve, diferentemente dos
relatos sobre a Sarandi, menção a um líder. Era como se alguns, talvez os
irmãos Schneider nas duas primeiras invasões, tivessem tido a idéia e chamado
os outros, que os seguiram. Tudo, portanto, leva a crer que as três invasões
foram uma iniciativa de pequenos grupos de colonos que compartilhavam a
experiência dolorosa da expulsão da reserva e estavam interligados pelos laços
do parentesco e da vizinhança nas linhas. A expulsão da reserva privara-os da
terra. Naquele mundo, a terra era o meio de subsistência por excelência, e ser
agricultor conferia sentido à própria vida. A situação era vivida como de uma
penúria extrema. No entanto, nem a ausência de terra nem o sentimento de
privação levariam os colonos a invadir fazendas e reservas e a fazê-lo como o
fizeram: em grupo e formando um acampamento. A iniciativa seria impensável se
não estivessem familiarizados com a linguagem que se esboçara nos anos 1960, se
não compartilhassem a crença de que invadir era um modo de obter terra, se não
nutrissem a expectativa de que poderiam vir a ser contemplados pelo Estado. Um
dos efeitos da experiência bem-sucedida de 1962 foi a inclusão da ocupação com
acampamento no espaço dos possíveis para os colonos de Nonoai. Quando
confrontados com uma situação extrema, homens como os Schneider decidiram
apostar no que sabiam ter dado certo em outro momento. Os relatos convergem no
sentido de indicar que se tratava de uma aposta. "Vamos lá. Vamos tentar,
compadre", disse Guilherme Schneider ao cunhado. "Fomos aventurar", lembravam
Tereza, Dino e Beatriz. Não se tratava, entretanto, de aventurar às cegas, de
invadir qualquer terra. Os colonos miraram as terras que já se encontravam sob
a jurisdição do Estado.
Em Porto Alegre, a Assembléia Legislativa debatia a situação dos expulsos da
reserva indígena, considerada uma "calamidade pública". Militantes do Movimento
Democrático Brasileiro ' MDB, do Comitê Brasileiro pela Anistia ' CBA,
estudantes e intelectuais formaram uma frente em defesa dos colonos, como
relata Aybirê Sá, o militante trotskista da invasão de Pernambuco, que se
encontrava na capital gaúcha naquele momento e foi um dos articuladores do
movimento (2007:402). Nonoai passou a ser visitado por comissões de deputados e
comissões de sindicalistas e membros da Comissão Pastoral da Terra ' CPT, órgão
da Igreja Católica para as questões fundiárias, criado em 1975. A partir de
junho de 1979, houve sucessivas reuniões na área (Gehlen, 1983), promovidas por
novos personagens, cujos nomes figuram nos relatos: padre Arnildo Fritzen,
pároco de Ronda Alta, e João Pedro Stedile, então funcionário da Secretaria de
Agricultura e que mais tarde se tornaria o principal líder do MST. Ambos eram
da CPT. Aos poucos as reuniões foram aglutinando agricultores que estavam
dispersos em Nonoai, Planalto e Ronda Alta. Os convites eram feitos por
intermédio das redes de parentes e conhecidos dos tempos da "área". Amaral de
Souza, já eleito, recebeu uma comissão de agricultores organizada por Stedile e
pelo padre Fritzen. Na audiência, um dos agricultores indagou sobre o destino
da Brilhante. O governador respondeu que a área arrendada era um problema e
que, se fosse ocupada, este seria resolvido. Comprometeu-se a dar uma solução
em trinta dias. Os jornais deram grande publicidade à resposta do governador.
Nas reuniões em Nonoai, Stedile e o padre organizaram os agricultores para uma
invasão, explorando a frase e o compromisso do governador.
Josefina, hoje assentada na Macali, era assídua freqüentadora das reuniões. Não
hesitou em participar da ocupação e convenceu o marido. Lauro, que também
freqüentou as reuniões e que de início era descrente das palavras daquele
"menino", como qualificou Stedile, tampouco hesitou. Avisado na véspera, usou
seu caminhão para levar parte das famílias. Alcides, casado com uma irmã de
Tereza Schneider, vivia de agregado em terra que já pertencera a seu pai. Não
foi a nenhuma reunião, mas atendeu ao chamado na linha Pipiri: "Vi que não
tinha nada meu. Fui experimentar, arriscar". Macali, uma das glebas da grande
Sarandi, foi a área escolhida. No dia 7 de setembro de 1979, 101 famílias,
trazidas em caminhões de Nonoai, Ronda Alta e Planalto, invadiram a fazenda.
Chegaram à noite, dormiram ao relento e, no dia seguinte, montaram grandes
barracas que abrigavam, cada uma, várias famílias: as de Tereza Schneider e de
seu Alcides compartilharam a mesma barraca. Em poucos dias, o governador
anunciou a redistribuição das terras da Macali. Stedile, o padre e outros
líderes da Macali planejaram então a ocupação da Brilhante e estimularam os
acampados a avisar parentes, amigos e vizinhos de linha. A ocupação se fez em
três dias e três noites, entre 25 e 28 de setembro.
Leopoldo Serpa havia estado em Sarandi em 1962 com o pai, que não foi
contemplado e seguiu para a Reserva Indígena de Nonoai. Já adulto, foi expulso
como os demais. Quando Leopoldo soube da invasão da Brilhante, para lá seguiu
com um grupo de vizinhos. Maria Fischer e o marido, egressos de Nonoai, estavam
encostados em Erechim (município também no noroeste do Rio Grande do Sul) e
foram avisados da invasão da Macali. Maria contou que o marido e o pai haviam
estado na invasão do Parque Florestal de Rondinha, em 1978, e acreditavam que,
por terem sido cadastrados, seriam contemplados com terra. Não foram, portanto,
para a Macali. Quando da invasão da Brilhante, os sogros de Maria seguiram na
primeira leva, e o casal chegou logo depois. Celso Pilatti não invadiu a Macali
porque a mulher estava doente, mas seus três irmãos o fizeram. O irmão o avisou
da Brilhante, e ele, dessa vez, não hesitou. Dona Chiquinha e o marido também
não foram para a Macali ' só o cunhado o fez ', e também não hesitaram quando
houve a Brilhante. José Maria, ao sair da terra indígena, armou um barraco no
acampamento da estrada (Taquaraçuzinho) e foi trabalhar nas terras de um
padeiro. Um de seus cunhados havia participado da invasão da Sarandi, em 1962,
e outro da Macali, em 7 de setembro de 1979. Ele não aceitou o convite para a
Macali porque tinha trabalho. "Perdemos aquela lona", comentou a mulher ao se
referir a Macali. Quando da Brilhante, não titubeou. Partiu com suas economias
e a lona dada pelo patrão. Dani e Beatriz, nossos personagens das ocupações de
1978, foram avisados da invasão da Macali, mas chegaram tarde demais: já não
entrava mais ninguém. Conseguiram, no entanto, entrar na Brilhante. Para a
gleba afluíram também, novamente, os filhos dos assentados na Sarandi em 1962,
ao que tudo indica por conta própria, pois não haviam participado das reuniões.
Formaram um segundo acampamento.
As terras da Brilhante foram redistribuídas, mas nem todos os acampados foram
contemplados: muitos ficaram de fora, entre eles os filhos da Sarandi. Inicia-
se, então, uma espiral de ocupações, organizadas por Stedile, pela CPT e
comissões de colonos, com a participação dos não-contemplados na Macali e na
Brilhante, os filhos da Sarandi, os remanescentes de Nonoai e os destituídos de
terra de outras regiões do estado. Em dezembro de 1980, forma-se o acampamento
da Encruzilhada Natalino, localidade situada na confluência da Macali com a
Brilhante e a Sarandi, que haveria de aglutinar em pouco tempo cerca de três
mil pessoas (Fernandes, 2000:57). A cada ocupação o governo reprimia os
acampados, mas acabava por contemplar parte deles, entretendo assim a espiral.
Como se pode verificar, em um primeiro momento, a reação do Estado às
iniciativas dos colonos de Nonoai foi enviar a polícia para desalojá-los. Eles
só obtiveram escuta do Estado, no que diz respeito às suas demandas por terras,
quando entraram em cena personagens como Stedile, o padre e outros tantos
indivíduos que fizeram da expulsão da reserva uma causa. Esses personagens
possuíam um capital de relações, o capital social teorizado por Bourdieu (1980)
e Burt (2002), e mobilizaram-no para conectar os colonos às autoridades do
Estado, as únicas que tinham o poder constitucional para contemplar suas
reivindicações. O capital social de colonos como os Schneider permitia-lhes
aglutinar outros colonos para invadir terras, mas não para chegar ao Estado.
Não foram, contudo, Stedile e os outros personagens que inventaram que a
invasão e o acampamento eram um modo de formular demandas. Os colonos conheciam
a linguagem, como atestam as três invasões na seqüência da expulsão da reserva
indígena. Também não foram eles que inculcaram nos colonos a disposição para
invadir: eles já a haviam incorporado. Seu papel naquele momento consistiu tão-
somente em estabelecer uma conexão com o Estado.
No mesmo momento em que ocorriam as invasões em Nonoai, líderes dos
enfrentamentos por terra no Rio de Janeiro antes do Golpe, que haviam sido
presos ou haviam fugido, começaram a reaparecer e a rearticular-se. Pureza, de
volta do Nordeste em 1979, partiu para a Região dos Lagos para organizar os
posseiros de Campos Novos, vindo a falecer em 1982; Bráulio Rodrigues, que
havia integrado a direção da Falerj com Pureza e liderado os conflitos em Nova
Iguaçu desde meados dos anos 1950, vinculou-se à CPT da Diocese de Nova Iguaçu;
Joaquim Antônio, que havia participado do Imbé (Grynszpan, 1987:169-170),
juntou-se a Francisco Silva, companheiro dos enfrentamentos em Duque de Caxias:
os dois formaram o Núcleo Agrícola Fluminense a partir do modelo das antigas
associações de lavradores (Novicki, 1992); Laerte Bastos, que havia encabeçado
os enfrentamentos em Duque de Caxias no início da década de 1960, entre eles o
de Capivari, procurou antigos companheiros das lutas da Baixada, como Manoelão
e Joaquim Antônio, e juntos decidiram retomar as ocupações, conforme nos
relatou.
Em 1979, Laerte organizou a ocupação de uma área denominada Nova Aurora, em
Belford Roxo. O terreno pertencia a uma empresa endividada com a prefeitura e
estava abandonado. Tratava-se de uma ocupação para moradia, e não para explorar
a terra. Em 1981, nosso personagem organizou a ocupação para o estabelecimento
de lotes rurais no Parque Estoril, em Nova Iguaçu. Em janeiro de 1984, Laerte,
com os companheiros do Núcleo Agrícola e da CPT diocesana, reuniu as pessoas
que haviam participado das invasões de Nova Aurora e do Parque Estoril e
promoveu uma ocupação de grande envergadura nas terras da fazenda Campo Alegre,
situada entre os municípios de Nova Iguaçu e Queimados (Menezes, 1991: 118-130;
Medeiros, Souza e Alentejano, 2002:186). O acampamento foi instalado em uma
localidade denominada Cruzeiro: havia uma grande barraca, onde funcionava a
cozinha coletiva, e barracas menores, nas adjacências, para as cerca de
seiscentas famílias. A partir do primeiro acampamento, foram sendo constituídos
outros, denominados regionais. Ao longo de um ano constituíram-se sete
regionais, cada uma com um coordenador. Os coordenadores reuniam-se na União
das Associações do Mutirão de Campo Alegre ' Ucam. Havia ainda, por regional,
comissões de trabalho (política, limpeza, educação, alimentação etc.), e em
cada uma delas os acampados cultivavam seus lotes. A estrutura do acampamento
assemelhava-se à do Imbé, antes descrita, o que certamente se devia às
lembranças que dele guardavam alguns dos protagonistas. Em 20 de junho de 1984,
Leonel Brizola, então governador do Rio de Janeiro, desapropriou Campo Alegre.
Dona Isabel, assentada em Campo Alegre, negociava na feira de Madureira, bairro
da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Foi lá que soube, por um vizinho de
barraca, que Brizola estava "dando terra". Mal podia acreditar, conforme nos
relatou. Já saiu da feira animada com a possibilidade de vir a ganhar terra no
"mutirão do Brizola". Ela havia sido criada em uma fazenda de café no Espírito
Santo, onde seus pais eram colonos, e tinha "gosto pela lavoura". Em casa,
contou a novidade ao irmão, que a desencorajou dizendo que estava "doida" de
querer invadir terra. Conseguiu, no entanto, o apoio de uma tia e com ela
seguiu para Campo Alegre, em uma viagem repleta de peripécias. Tinha então 50
anos e um filho. Na fazenda, casou-se com Bastos, mineiro de origem e
companheiro de Laerte nos enfrentamentos em Caxias na década de 1960. João
Generino, outro assentado, trabalhava na construção civil. Chegara ao Rio de
Janeiro na década de 1950, oriundo da Paraíba, onde era morador de um engenho
produtor de cana-de-açúcar. Seu caminho para Campo Alegre passou por Parque
Estoril. Morava perto do bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, quando
soube das reuniões para invadir o Parque. Juntou-se ao grupo e posteriormente
participou da primeira leva da ocupação de Campo Alegre, em 1984.
A ocupação de Campo Alegre desencadeou outras no estado. Em 1985, Laerte Bastos
e líderes de Campo Alegre, apoiados pela CPT, promoveram a ocupação da fazenda
Boa Esperança, em Japeri, naquela época parte de Nova Iguaçu (Menezes, 1991:
151-227; Medeiros, Souza e Alentejano, 2002: 186). A fazenda havia sido palco
de conflitos por terra em 1963. Luciana, militante do MST quando a encontramos,
tinha 4 anos de idade no ano da ocupação. Morava em Jacarepaguá, bairro da zona
oeste do Rio de Janeiro. O avô materno, que havia participado da ocupação da
fazenda Floresta em 1963, convidou a família para se juntar à invasão. Amaro,
que havia participado das ocupações de Nova Aurora, Parque Estoril e Campo
Alegre, foi dos primeiros a invadir a Boa Esperança. Há indícios de uma
ocupação anterior à de 1985, que teria sido promovida pelos moradores das
redondezas com o apoio de um padre e de uma pastora evangélica. Houve
retaliação do fazendeiro, e os acampados recuaram. O fato teria estimulado
Laerte e os outros a promoverem a segunda ocupação.
Comparando os acontecimentos do Rio de Janeiro com aqueles do Rio Grande do
Sul, observamos que a dinâmica foi distinta. Em primeiro lugar, se no sul o
decisivo foi a disposição dos colonos, no Rio de Janeiro o crucial foi a
disposição dos líderes do período pré-1964 e daqueles que haviam participado
dos enfrentamentos naquela época, como Bastos, João Generino e o avô de
Luciana. Em segundo lugar, enquanto em Nonoai as primeiras invasões foram
capitaneadas por colonos que não possuíam conexões com o Estado, no Rio de
Janeiro elas foram lideradas por indivíduos sabedores dos caminhos para chegar
ao Estado, os quais contavam, naquele momento, com o forte apoio da Igreja
Católica. Em terceiro lugar, a conjuntura em 1984, no Rio de Janeiro, era bem
diferente daquela do Rio Grande do Sul nos anos de 1978 e 1979. A abertura
política já estava em marcha e, por ironia da história, Leonel Brizola
governava o estado. Como em 1962, ele ouviu as demandas dos acampados e
prontamente desapropriou Campo Alegre. Por fim, como no período anterior a
1964, as ocupações no Rio de Janeiro implicaram um conjunto heterogêneo de
indivíduos, de diferentes origens sociais e geográficas, com passagens por
empregos urbanos. Suas experiências de vida em nada se assemelhavam às do
conjunto homogêneo dos colonos de Nonoai, mas não desenvolveremos esse ponto.
Há, no entanto, denominadores comuns entre os casos do Rio Grande do Sul e do
Rio de Janeiro. Estudiosos como Gehlen (1983), Eckert (1984), Medeiros e Leite
(1999) e Novicki (1992) já destacaram que algumas das ocupações ocorreram na
mesma localidade, como a fazenda Sarandi, no caso gaúcho, e envolvendo as
mesmas pessoas, no caso fluminense. Não se interrogaram a respeito de tal
coincidência e tenderam a interpretá-la como sinal de que a questão de terras
não havia sido resolvida. Questões de terra permanecem sem solução em inúmeras
regiões do território brasileiro. Como procuramos demonstrar aqui, havia nos
dois casos uma disposição incorporada. É ela que permite estabelecer os nexos
entre eventos separados por cerca de quinze anos.
Em fins de janeiro de 1984, o núcleo constituído por Stedile e por líderes dos
colonos que se formaram a partir das invasões da Macali e da Brilhante, e das
invasões subseqüentes, criou o MST, em reunião na cidade paranaense de Cascavel
(Fernandes, 2000:79-84). Em congresso realizado em 2005, o movimento decidiu
expandir-se e, para tanto, enviou seus quadros para outros estados da
federação. Ainda em 1985, constituíram o movimento no Rio de Janeiro, apoiando-
se nas experiências pioneiras de Nova Aurora, Parque Estoril e Campo Alegre. Em
1989, foi a vez de Pernambuco, caso retratado a seguir.
A CRIAÇÃO DA DEMANDA POR TERRAS
Mal haviam chegado a Pernambuco, os militantes do MST organizaram uma ocupação
no município do Cabo, na Zona da Mata. O governador Miguel Arraes não os
reconheceu como interlocutores, a ocupação não resultou em desapropriação, e
eles refluíram para o sertão18. Em 1992, voltaram à Zona da Mata e lograram
deslanchar sua primeira ação de grande envergadura. Em fins de abril daquele
ano, 1.200 pessoas ocuparam o engenho Camaçari, no município de Rio Formoso,
litoral sul do estado. A ocupação foi um evento inaugural para o MST: assinalou
o início de sua implantação na Zona da Mata. Os militantes traziam a técnica
das ocupações, mas não conseguiam implantá-la porque lhes faltavam os apoios
locais e, sobretudo, os indivíduos com a disposição de ocupar terras.
Os sindicalistas de Rio Formoso os acolheram e entusiasmaram-se com a idéia da
ação em Camaçari, área tida como pertencente à Rede Ferroviária Federal e
explorada pela Usina Cucaú (uma situação semelhante à do Imbé). Mobilizaram
então seu capital social: suas "bases", "o nosso pessoal", como costumam dizer.
Tratava-se de uma rede constituída por aqueles com os quais entretinham fortes
laços tecidos nos enfrentamentos com os patrões, nos processos bem-sucedidos na
Justiça do Trabalho para reclamar direitos trabalhistas e nas grandes greves
desde o final dos anos 1970 (Sigaud, 1996). Muitos dos que encontramos a partir
de 1997 contaram que haviam participado da ocupação porque haviam sido chamados
pelos dirigentes sindicais nos quais confiavam. Houve um despejo espetacular em
Camaçari, com dezenas de policiais, helicópteros e cães, descrito com detalhes
pelos nossos interlocutores que lá estiveram. A fazenda não foi desapropriada.
Os sindicalistas e os militantes do MST temiam a dispersão do grupo.
Organizaram então novas ocupações, uma sucessão delas, envolvendo os
remanescentes de Camaçari. Em 1997, quando iniciamos a pesquisa, já tinha
havido quatorze acampamentos em engenhos em Rio Formoso e em Tamandaré (novo
município desmembrado do primeiro), dos quais quatro ainda estavam montados. Em
dezembro de 1994, o Incra desapropriou o engenho Cipó, o terceiro ocupado na
área, impulsionando as novas ocupações. Desde 1996 os sindicalistas faziam
acampamentos por conta própria, sem a participação do MST, e a Fetape
estimulava as ocupações. Naquele ano de 1997, ocupar terras já fazia parte do
universo dos possíveis para os trabalhadores da mata pernambucana. Encontramos
acampamentos constituídos por indivíduos que moravam nos bairros da periferia
das cidades, as "pontas de rua", como são chamadas. Eles tinham uma história de
trabalho nos canaviais e haviam ido para os acampamentos para "pegar terra",
como costumavam dizer. Como para os colonos do sul e para os que acamparam no
Rio de Janeiro, o acampamento era uma aposta, como qualquer outra, que faziam
na possibilidade de melhorar de vida. Daniel Pedro, acampado no Brejo, uma
ocupação promovida pelo MST, dizia: "Agora vou tentar. [...] Acho que o melhor
futuro meu é isso aí [o acampamento]. Também, que se eu perder, não estou
perdendo nada [...]. Vou jogar na vida, na sorte [...]"19.
Encontramos também acampamentos cujos participantes eram os próprios
trabalhadores residentes no engenho, como os de Sauezinho, Saué e Coqueiro,
pertencentes à Usina Santo André, em Tamandaré. Os patrões, mergulhados em uma
grave crise da agroindústria canavieira20, não mais lhes pagavam salário. Os
sindicalistas os estimularam a reivindicar a desapropriação e a redistribuição
das terras. Montaram então acampamentos com barracas cobertas de lona preta e
hastearam bandeiras improvisadas; o movimento sindical não tinha então uma
bandeira. Esses foram os acampamentos que mais chamaram nossa atenção. Em
primeiro lugar, porque permitiram perceber o quanto a linguagem da forma
acampamento era imperiosa quando se tratava de demandar a terra; em segundo,
porque aqueles acampamentos indicavam uma mudança na disposição dos
sindicalistas e dos trabalhadores. Habituados a enfrentar os patrões para
assegurar o pagamento dos direitos trabalhistas e obter contratos de trabalho
mais vantajosos, eles agora reivindicavam a desapropriação das terras e o
faziam por meio da linguagem da forma acampamento21. Por fim, aqueles
acampamentos mostravam mais claramente o quanto o capital de confiança
acumulado pelos sindicalistas em embates anteriores havia sido decisivo na
inflexão das condutas habituais dos trabalhadores.
O interesse do caso pernambucano reside precisamente em suas características
distintas dos dois casos anteriores. Em Pernambuco não houve invasões de terra
como as ocorridas no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, salvo as duas
ocupações já mencionadas, mas que não resultaram em desapropriações e também
não são lembradas como um marco. O início da década de 1960 foi um momento
forte da vida social na mata pernambucana. Entre os trabalhadores rurais que
foram protagonistas dos enfrentamentos liderados pelas Ligas Camponesas e pelos
sindicatos, as lembranças do período dizem respeito à chegada dos direitos
trabalhistas em 1963, com a votação do Estatuto do Trabalhador Rural pelo
Congresso Nacional, ao governo de Miguel Arraes e às grandes greves pelo
cumprimento dos direitos. Os trabalhadores rurais da mata pernambucana
constituem um agrupamento homogêneo, como os colonos do sul, mas são em tudo
distintos deles. Aqui a homogeneidade é dada por uma história comum de
subordinação aos patrões da agroindústria canavieira, pelo trabalho e pela vida
nos engenhos há gerações. A relação com a terra era totalmente diferente. Havia
a utopia do "engenho liberto" (Sigaud, 1979: 213), no qual poderiam cultivar a
terra, criar tantos animais quanto desejassem e trabalhar para o patrão apenas
quando necessitassem de dinheiro. Tudo isso pressupunha a presença do dono e
não implicava a idéia da propriedade para o trabalhador. Instalar-se por meio
de ocupação em um engenho, sem a autorização do dono, para obter para si uma
parcela das terras desapropriadas dos patrões não fazia parte do horizonte dos
possíveis. Os trabalhadores só acediam a um engenho após terem sido aceitos
para prestar serviços e estabeleciam-se em locais designados pelo patrão e seus
prepostos.
Vemos assim que, diferentemente dos casos anteriores, não havia em Pernambuco
nem as lembranças de invasões, nem a disposição adquirida na geração anterior
ou na década passada, nem os equivalentes dos Schneider e de Laerte, nem uma
demanda prévia por terras. Tudo teve de ser criado a partir de outras bases.
Foram os sindicalistas e os militantes do MST, assim como os militantes das
outras organizações atuantes na mata pernambucana, entre elas a CPT, isto é,
movimentos já estruturados, que incutiram a disposição para fazer invasões e
criaram a demanda por terra. A tarefa foi árdua porque, de início, muitos
trabalhadores duvidavam da pertinência de invadir, outros alegavam que não
queriam terra. "Eu lá sou gogo para querer terra?", como nos disseram diversos
trabalhadores22. Contudo, como nos casos anteriores, a partir do momento em que
o Estado começou a desapropriar engenhos ocupados na mata pernambucana (foram
desapropriados 56 entre 1990 e 1999), a crença nas possibilidades abertas pelo
estar "debaixo da lona preta", como designam a situação em acampamento, ganhou
força entre os trabalhadores, facilitando assim o trabalho das organizações
empenhadas em promover invasões de terra e contribuindo para um aumento em
progressão geométrica dos acampamentos (idem, 2005).
CONCLUSÃO
A linguagem da forma acampamento que identificamos em Pernambuco no final da
década de 1990 é tributária de um evento inaugural desencadeado por um prefeito
tido como "meio maluco" e carismático, que colocou Nonoai em pé de guerra
durante a campanha da legalidade, enfrentou o Exército e formou o seu próprio.
É tributária também de outro evento inaugural nas terras fluminenses,
desencadeado por um líder camponês para quem a militância conferia sentido à
própria vida. A resposta favorável do Estado às duas iniciativas contribuiu
para que mais indivíduos se dispusessem a ocupar para ganhar terra e para que
as ocupações se multiplicassem. Naquele momento, a linguagem começava a
estruturar-se: ela estava "in the making", recorrendo aqui à feliz expressão de
Edward Thompson (1987) para dar conta da formação da classe operária na
Inglaterra. O Golpe Militar pôs um fim ao que se esboçava.
No final dos anos 1970, surgiriam condições favoráveis para que a linguagem
fosse retomada por indivíduos que haviam participado das primeiras ocupações,
alguns deles nas mesmas localidades, ou que delas guardassem lembranças. Essas
condições foram o produto do cruzamento de processos históricos não planejados,
como são todos os processos históricos, conforme assinala Norbert Elias (1990).
No caso do Rio Grande do Sul, a decisão tomada pelo Estado brasileiro em 1973
em relação às populações indígenas ' o Estatuto do Índio ' desencadeou um
processo de organização das comunidades indígenas, entre elas os caingangues.
Para tanto, contribuiu de modo decisivo o apoio dado pelo Conselho Indigenista
Missionário ' Cimi, o braço da Igreja dedicado às questões indígenas, como se
pode constatar a partir de trabalho de Ligia Simonian (1981) e de depoimento de
dom Tomás Balduíno (2002). A expulsão de Nonoai, resultante desse processo,
teve efeitos devastadores para os colonos, sobretudo para os que escolheram
permanecer na área. Naquele momento, não havia mais terras disponíveis no sul
para avançar com a fronteira agrícola, como haviam feito três gerações de
colonos. No processo de expansão da agricultura brasileira, a fronteira havia
se deslocado para a Amazônia e para o Centro-Oeste, para onde não queriam ir.
Alguns colonos recorreram então à linguagem que haviam aprendido com os eventos
de 1962. Como assinalado, o Estado só começou a levar em conta o que estava
sendo dito por meio das invasões quando, por ocasião da Macali e da Brilhante,
entraram em cena portadores de capital social. Sua aparição inscrevia-se em
outros processos em curso: a organização progressiva das forças de oposição ao
regime militar, que fizeram da expulsão dos colonos de Nonoai uma bandeira de
luta, e a criação da CPT. No caso do Rio de Janeiro, as condições de
possibilidade do retorno dos militantes do pré-1964, que foi decisivo, como
assinalamos, foram asseguradas no bojo do processo de lutas pela
redemocratização do país. Por outro lado, a atuação daqueles militantes também
foi facilitada pelo mesmo processo de crescente intervenção da Igreja Católica
nas questões de terra.
Nos processos em curso, houve ainda cruzamento de personagens. Assim, para o
caso gaúcho, verificamos que indivíduos que haviam participado do Capão da
Cascavel ou seus descendentes envolveram-se não apenas nas três primeiras
invasões, mas também nas da Macali e da Brilhante. Outros, que haviam estado
implicados nessas ocupações, seguiram sua saga de apostas. Dessa forma, Claudia
Schmitt (1992) encontrou alguns deles no acampamento de Salto do Jacuí, no Rio
Grande do Sul, em 1988. Também Aurélio Vianna Lima Jr. (1988) e Ivaldo Gehlen
(1991) os encontraram no Paraná e em Santa Catarina no início dos anos 1980. O
mesmo pode ser constatado para o Estado do Rio de Janeiro, conforme assinalado,
para personagens como Laerte, Bráulio e Joaquim Antônio e participantes das
ocupações antes e depois de 1964. Houve ainda outros personagens-chave, como
Brizola, governador do Rio Grande do Sul, em 1962, e do Rio de Janeiro, em
1984; Paulo Schmidt, assessor de Brizola que esteve no Imbé a serviço da Supra
em 1962, o qual se tornou diretor da Secretaria de Assuntos Fundiários do Rio
de Janeiro, convocado por Brizola em 1986, e impulsionou as desapropriações no
estado; Aybirê Sá, que participou dos enfrentamentos na mata pernambucana nos
idos dos anos 1960, comandou uma das ocupações de Pernambuco em 1964 e que
residia em Porto Alegre quando dos acontecimentos de Nonoai. Ele organizou as
mobilizações em defesa dos colonos e viveu-as como uma retomada de suas lutas
em prol dos camponeses (Sá, 2007:243). Tal cruzamento permite perceber como,
conforme já assinalado por historiadores para outros contextos, as ocupações e
sua dinâmica na história estão relacionadas às ações de indivíduos que se
deslocaram no espaço e ao longo do tempo portando suas experiências acumuladas
e contribuindo para as inflexões no rumo dos acontecimentos ali onde se
estabeleceram.
Com a criação do MST, a linguagem da forma acampamento foi sendo
progressivamente aprimorada e embelezada com seus símbolos e rituais. A cruz do
Capão da Cascavel e da Reserva Florestal de Rondinha e as bandeiras do Brasil,
presentes no Capão e no Imbé, foram substituídas pela bandeira do movimento. Os
movimentos organizados na seqüência inventaram suas próprias bandeiras e
incorporaram a linguagem. Invadir, verbo ainda utilizado pelos colonos do sul
para descrever sua saga para ganhar terra, tornou-se inapropriado. Hoje se diz
ocupar. Só os que se opõem aos movimentos se valem de invasões. Na linguagem
acadêmica e na linguagem dos movimentos, o termo é ocupar. Em respeito aos
colonos do sul, mantivemos o verbo invadir.
A linguagem da forma acampamento é também tributária daqueles que ouviram os
chamados de Calixto e de Pureza, daqueles que na seqüência se dispuseram a
invadir terras antes de 1964 e também daqueles que ousaram invadir terras por
sua própria conta e risco em 1978, no Rio Grande do Sul. Por fim, cabe destacar
que a linguagem só começou a se esboçar antes de 1964 e pôde se consolidar a
partir da década de 1990 porque houve escuta por parte do Estado brasileiro. O
mesmo se aplica aos movimentos: eles se constituíram ou se adaptaram (como no
caso da Fetape em Pernambuco) graças à mesma escuta (Rosa, 2006; 2007). Para
que as ocupações se multiplicassem nas duas últimas décadas, os movimentos se
consolidassem e a linguagem da forma acampamento se tornasse uma linguagem
eficaz, foi imperioso que o Estado brasileiro reconhecesse nas ocupações uma
forma legítima de fazer demandas e nos movimentos os seus portadores.
NOTAS
1. Movimento é o termo utilizado pelas organizações para se auto-identificarem
e também aquele empregado pelos que a elas se referem.
2. Criada em 1962, a Fetape aglutina os sindicatos de trabalhadores rurais de
Pernambuco. Estes, por sua vez, estão organizados em base municipal e associam
aqueles que trabalham na agricultura. Na região canavieira do estado, os
associados são, em sua grande maioria, trabalhadores das grandes plantações.
3. Engenho é a palavra de uso corrente no Nordeste para designar as fazendas
produtoras de cana-de-açúcar. Morador é um dos termos que designa aqueles que
ali trabalham e residem.
4. Fazendeiros do Nordeste, assim como de outras regiões do país, costumam ter
a seu serviço homens armados, que utilizam para defender seus interesses. São
as suas milícias.
5. A partir do final dos anos 1980, o governo brasileiro alterou sua política
em relação à agroindústria canavieira, suspendendo os subsídios e privatizando
as exportações. Essas medidas e uma grande seca desencadearam uma grave crise
no setor em Pernambuco.
6. Em 1999, havia 308 ocupações em Pernambuco sobre um total de 1.855 no
território nacional e 35 mil famílias implicadas sobre um total de 256 mil. Os
dados foram extraídos de quadros organizados por Fernandes (2000:270-272).
7. A pesquisa foi realizada no âmbito do projeto Ocupações de Terra em
Perspectiva Comparada, coordenado por Lygia Sigaud e desenvolvido a partir do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro ' UFRJ, com apoio da Fundação Ford, do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ' CNPq, da
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro '
Faperj e da Financiadora de Estudos e Projetos ' Finep.
8. Ao longo do texto, nomearemos nossos interlocutores como eles se
identificaram em nossos encontros. Assim, haverá os que figuram apenas com os
prenomes e os que figuram com nome e sobrenome.
9. Marcelo Rosa coordenou a pesquisa no Rio Grande do Sul e contou com a
colaboração de Isabel Bruno Palmeira, estagiária do Museu Nacional, e Bernard
Alves, bolsista de iniciação científica. Marcelo Ernandez Macedo coordenou a
pesquisa no Rio de Janeiro e contou com a colaboração de Renata Teixeira,
também bolsista de iniciação científica. A parte referente a Pernambuco apóia-
se em pesquisas desenvolvidas por Lygia Sigaud e por Marcelo Rosa. Os três
pesquisadores principais realizaram, juntos, uma incursão no Rio Grande do Sul
em julho de 2007.
10. Essa pequena reconstituição se apóia, no que diz respeito à entrada na
fazenda Sarandi, em relatos de alguns de nossos interlocutores. As iniciativas
de Brizola foram amplamente divulgadas pela imprensa na época.
11. Agregado nesse contexto designa aquele que reside e cultiva uma pequena
porção de terra em propriedade de outrem, a quem presta serviço.
12. Meeiro é aquele que cultiva terra de outrem e paga pelo uso da terra com a
metade da produção.
13. Entre as organizações que participaram do congresso, mais conhecido como I
Congresso Camponês, figuravam as Ligas Camponesas e o Master. A íntegra da
declaração do encontro pode ser encontrada em Stedile (2005:73-79).
14. O jornal Luta Democrática, edição de 5/4/1963, noticiou seiscentos
lavradores. Na edição de 9/4/1963, referiu-se a trezentos. Terra Livre, em sua
edição de maio de 1963, mencionava trezentos. Em 8/4/1963, o jornal Última Hora
contabilizava duzentas famílias. O semanário Novos Rumos, em edição de 26-30/4/
1963, escrevia que a fazenda havia sido ocupada por cinqüenta homens.
15. Das ligações dos três líderes com o PCB, não se deve deduzir que fossem
executores de uma política de partido, como bem o argumenta O'Dwyer (1988). Ver
também Grynszpan (1987).
16. Eliane Cantarino O'Dwyer, por ocasião de seu trabalho de organização das
memórias de José Pureza, participou da reunião no Vecchi realizada em 2 de
setembro de 1981. Agradecemos a ela a cessão da transcrição do registro
fonográfico.
17. Linha é o termo utilizado no sul do país para designar o povoado da área
rural.
18. Não nos deteremos aqui no exame das condições sociais que contribuíram para
tal malogro. Reportamos o leitor à análise feita por Rosa (2004).
19. Para outros depoimentos de acampados que apontam na mesma direção, ver
Sigaud (2005), Sigaud et alii(2006) e www.lonasebandeiras.com.br.
20. Ver nota 5.
21. Como analisamos em outros trabalhos as condições que favoreceram a mudança
de disposição dos sindicalistas e dos trabalhadores, não nos deteremos aqui em
seu exame. Ver a respeito Sigaud (2000), Sigaud et alii (2006) e Rosa (2004).
22. Gogo é o nome popular de um anelídeo que se arrasta pela terra por debaixo
das folhas (segundo o Aurélio, é minhoca) .