O Momento Lênin
DESDE A ESTAÇÃO FINLÂNDIA
Entre Fevereiro e Outubro, houve Abril. Deposta a monarquia tzarista, o Governo
Provisório não consegue organizar um novo poder por sobre os escombros do
absolutismo grão-russo. Os bolcheviques não entram no governo, que se debate
entre suas divisões internas, com a insurgência pró-restauração da monarquia, a
continuação de uma guerra impopular e a desorganização da economia, e se
alicerça precariamente no entusiasmo e euforia que a queda da dinastia havia
provocado. Kerensky reconhece que o governo não governa, ninguém lhe obedece2.
A consigna bolchevique continua sendo a de uma revolução democrática, empurrada
e até certo ponto controlada pelos sovietes de operários e camponeses, estes
últimos travestidos em soldados. O objetivo mais geral: fazer o trabalho que a
revolução burguesa havia realizado no Ocidente ' salvo nos países de
capitalismo tardio, como a Alemanha e Itália ' sustentada no conjunto de uma
classe trabalhadora que crescia velozmente, mas era ainda amplamente
inespecífica em razão da incapacidade revolucionária da incipiente burguesia
russa.
A Rússia tzarista de Stolypin e Lênin, os dois férreos autoritários
modernizadores à la Pedro, o Grande, antípodas ideológicos, poderia ser
considerada, à época, o primeiro caso de "subdesenvolvimento"3, no sentido que
a Cepal pensará mais tarde sobre a América Latina. Na formulação leninista e
trotskista, trata-se do "desenvolvimento desigual e combinado", que é próprio
do capitalismo, mas se aplicava como uma luva ao caso de uma economia feudal em
acelerado processo de modernização, fortemente penetrada pelo capital
imperialista francês e alemão. Dessa "desigualdade combinada" decorrem tanto a
"incapacidade revolucionária" da burguesia russa, quanto a precocidade do
movimento operário, uma espécie de truncamento produzido pela sua inserção
entre um capitalismo dinâmico e desapiedado, impulsionado de fora pelos
imperialismos já referidos, e as pré-classes que a implantação do capitalismo
criava velozmente na Rússia. A incompletude do sistema é uma nova complexidade,
que somente será plenamente entendida já bem avançado o século pelos latino-
americanos da estirpe de Prebisch, Furtado e Florestan Fernandes. A Rússia em
transição do feudalismo para o capitalismo é um sistema híbrido, que nunca se
completará, combinando a ferocidade do novo com o atraso do velho. O "desigual
e combinado" é uma formulação que designa os tempos diferentes e a assimetria
dos departamentos da acumulação, e sua formulação deve-se a Marx, mas os
bolcheviques, sobretudo Lênin e Trótski deram-lhe especial relevo para
compreender os "elos perdidos" das sociedades atrasadas penetradas pelo
capitalismo que podiam abrir oportunidades revolucionárias. Aplicada a uma
economia da periferia, teria dado por resultado numa original elaboração, que
entretanto foi perdida pela neo-ortodoxia pós-leninista sob o comando do
vitorioso Partido Comunista da União Soviética.
Oitenta anos depois da Revolução de Outubro, desfeito o sistema leninista do
"socialismo real", o "desigual e combinado" reaparece, emergindo das sombras,
inteiros, os patriarcas de longas barbas, sócios do Estado e donos da alma
russa, e uma nova e formidável predação capitalista, que é o modo específico da
acumulação nas suas periferias, re-nascidos de um sistema que havia se
antecipado aos EUA na exploração espacial. A sua potência alimentou-se de seu
atraso, como Trótski havia magnificamente previsto, para "queimar" etapas do
desenvolvimento capitalista atualizando os velhos estigmas do atraso.
As Teses de Abril4 revolucionam a tática e a estratégia bolchevique. Percebendo
que a queda do tzarismo prolongava-se numa longa agonia que ia muito além de
uma simples exaustão do sistema apenas saído do absolutismo, e que não havia
como simplesmente apoiar uma revolução burguesa, as Teses de Abril sustentam
agora que o objetivo é ir além da democracia burguesa e instalar uma república
de sovietes sob uma ditadura do proletariado para criação das condições de uma
economia socialista. É o Momento Lênin, em que este percebe que o "desigual e
combinado" é incapaz de sustentar as formas institucionalizadas da democracia,
que a tradição marxista, nas pistas de Marx, considerava como uma ditadura da
burguesia e o governo como seu comitê executivo. A violência do capital numa
economia periférica ' o termo evidentemente será do futuro ' não se deixa
enquadrar institucionalmente.5
O Momento Lênin é o da indeterminação. Embora as versões empobrecidas do
marxismo tenham postulado, daí por diante, a inevitabilidade das grandes
transformações históricas, e o esquematismo stalinista a versão do progresso
linear, na verdade a crise daquela sociedade em transição abria-se numa dupla
virtualidade: a de desenvolver-se nos ritmos e desenquadramentos do
"subdesenvolvimento" capitalista, com suas crispações violentas e sua
institucionalidade de fachada, e a de experimentar saltos formidáveis que
poderiam produzir formas de sociedades socialistas.6 Que não estariam
desligadas do desenvolvimento capitalista nos núcleos centrais, donde a fórmula
"socialismo é igual a poder soviético mais eletrificação". Quais foram as bases
que tornaram possível a viabilidade da segunda opção?
Geralmente, na tradição marxista, a resposta está no exame da estrutura de
classes, e neste caso, à época das Revoluções de Fevereiro e de Outubro.
Ideologizadas, as classes dominadas da Rússia da conjuntura revolucionária
serão suas parteiras e fautoras. A vívida descrição de Trótski n'A história da
Revolução Russa, os números de operários das grandes usinas, o número
surpreendente de greves de operários industriais,7 o forte ativismo dos
trabalhadores do bairro de Vyborg em São Petersburgo, parecem confirmar uma já
impressionante presença da classe operária em São Petersburgo e Moscou. E quem
são os camponeses? De fato, são soldados, recrutados à força dos imensos
contingentes da Grande Rússia. São as classes dessa estrutura de classes que
fazem a Revolução? Fazem-na transformadas no seu futuro, fazem-na pelo futuro,
não pelo passado, que são apenas suas pré-figurações. São como sovietes que a
fazem, a partir dos seus lugares na produção, mas transformadas pelos seus
lugares na política.
O futuro da Revolução resolve-se numa tautologia: é ela quem se faz, é no
momento em que se avança que se resolve a longa indeterminação, surgida da
revolução na base material do capitalismo russo financiado por franceses e
alemães, amplificada na crise do Estado tzarista desgastado por uma guerra que
lhe sugou os melhores recursos e aumentou a dependência financeira. A guerra é
a determinação em última instância porque ela é quem acelera a reprodução
ampliada desse "desenvolvimento desigual e combinado"; é ela quem transforma
camponeses em soldados. Mas essa determinação em última instância nada tem de
inapelavelmente destinada a dar lugar a uma revolução socialista: na Alemanha,
igualmente abalada pela conjunção de desenvolvimento capitalista acelerado,
derrota militar e queda de uma também poderosa monarquia, a longa
indeterminação não se resolverá senão no pós-Segunda Guerra. No entremeio, a
revolução proletária bateu às portas em 1918 e o nazismo foi a sangrenta
exasperação dessa longa agonia, como o ensaio sinistro das futuras formas do
capitalismo administrado.
O papel do carisma é decisivo nesse transe. Inscreve-se, em perspectiva
weberiana, como força histórica, e finalmente se personaliza. Elevada pelo
turbilhão à categoria de condottiere, ela encarna a nova "direção moral" ainda
difusa, e de alguma maneira, levantada sobre os ombros das pré-classes, inclina
o processo histórico em determinada direção. Não pode fazê-lo se esta não
estiver contida nas virtualidades revolucionárias, mas não há uma direção
predeterminada. Lênin é esse líder, nas específicas condições da Revolução
Russa. As Teses de Abril são o Rubicão desse César, que ele atravessa, decidida
e temerariamente, abrindo um novo ciclo histórico, o das revoluções proletárias
e mais além o da domesticação da fúria capitalista pela social-democracia
européia. A Revolução não se realizou no Ocidente, mas em seu lugar veio a
social-democratização do capitalismo. Um ciclo civilizatório, cujo Termidor
virá depois com Hitler, Mussolini, Stálin e o Gulag. A Revolução Russa é
específica no sentido de assinalar a difícil implantação de uma economia
capitalista num meio política e socialmente absolutista, uma lição que será
posteriormente esquecida.
O ORNITORRINCO NO LABIRINTO8 OU O DEZOITO BRUMÁRIO DE LUIZ INÁCIO9
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva era uma virtualidade na conjuntura de
indeterminação criada pelo turbilhão da desregulamentação do período Fernando
Henrique Cardoso, caracterizada pela suspensão das relações entre a economia e
a política, entre classes e representação, com as fortes mudanças do último
decênio, sobredeterminadas pela intensa exposição à globalização do capital.10
A política institucional seguiu um curso errático e mesmo aleatório, e nenhuma
gramática ou código discursivo revelava poderes para decifrar a conjuntura,
traduzindo-a em termos dos interesses dos agentes, das siglas partidárias, das
ideologias. Durante o ano de 2002, a preferência dos eleitores, inquirida nas
pesquisas de intenção de voto, variou da arrancada de Roseana Sarney à sua
derrocada também abrupta e inteiramente desproporcionada, sacudida pelo
escândalo de dinheiros sem carimbos. Mas não houve a transferência das
intenções de voto da herdeira de Sarney para o ministro José Serra, candidato
do governo, pois a detonação da candidatura da governadora maranhense supunha
que o esquema de forças que sustentou FHC se reunificaria, sob o impacto do
desmoronamento e a concomitante e ameaçadora subida das intenções de voto para
Lula.
Luiz Inácio seguiu em curva ascendente, mas não espetacular, tendo sido
ameaçado pelo crescimento das intenções de voto para Ciro Gomes, que
intempestivamente "cortou os pulsos" eleitorais com a gafe sobre o papel de sua
companheira na campanha eleitoral, a conhecida atriz global Patrícia Pillar,
que se resumiria a "dormir com o candidato". Já no final da corrida eleitoral,
também Anthony Garotinho pareceu igualmente ameaçar Lula, mas esse impulso não
foi além de lhe dar um substancioso segundo lugar no Rio. No fim de contas,
Lula conseguiu, a partir de seu patamar histórico, imantar os votos "órfãos",
compondo uma sólida maioria eleitoral no segundo turno das eleições, com a
adesão dos amplos votos anti- FHC e um constrangido apoio dos descartados no
primeiro turno. Houve o encontro do partido no Novotel de São Paulo, às margens
do poluído Tietê, e a "Carta ao Povo Brasileiro": as Capitulações de Junho.
Não sem razão, o marqueteiro Duda Mendonça passou a ser considerado o
responsável pela performance de Lula num quadro em que as relações políticas
haviam sido rompidas e revelavam-se ineficazes. Mas por que o êxito do
marqueteiro, onde seus equivalentes sucumbiram com seus clientes? Exatamente
porque os outros marqueteiros procuravam ainda "qualidades" em seus patrões,
segundo códigos ainda de representatividade: Duda Mendonça resolveu ressalvar
em Lula o que era inespecífico, vale dizer, o "Lulinha, Paz e Amor", procedendo
à operação de "despetizar" o candidato. Ou, pegando carona em Musil, tratava-se
de apregoar a qualidade de "um homem sem qualidades".11 Tudo que ele havia
declarado e representado antes já não tinha valor, e a campanha deveria ser
livre, para prometer o céu, a terra e os peixinhos do mar. Numa versão
diferente, era como repetir FHC quase uma década antes: "esqueçam tudo o que
fui".
O interessante é observar que exatamente as candidaturas derrotadas elaboraram
um discurso que figurava uma certa conformação da sociedade, certas relações
entre interesses e classes, clivagens sociais que presumivelmente se
transferiam e tinham eficácia na política. José Serra tentava ir além do mal-
disfarçado incômodo por representar um governo mal-avaliado e avariado, com um
recado produtivista, economicista e racionalista, acreditando que o embate
eleitoral era uma disputa de razão fundada em interesses de classes. O governo
de que fazia parte havia operado uma formidável mudança na base da propriedade,
desestruturando, temporariamente, as próprias relações de poder no interior da
ampla burguesia, compreendidos aí os grandes grupos estrangeiros que aportaram
com as privatizações. Sua visível má performance midiática, com sua cara de
"vampiro brasileiro", no dizer de José Simão, o humorista corrosivo da Folha de
S.Paulo, ajudou algo em sua derrota, mas não foi decisiva. Ciro Gomes apareceu
com um discurso recauchutado pelo seu mais novo ideólogo, o cientista social
Roberto Mangabeira Unger, que fala com sotaque de gringo arribando em paragens
tropicais, transmitindo também uma mensagem racional-desenvolvimentista-
nacionalista, uma espécie de juscelinismo requentado, não por acaso respaldado
pelo Partido Popular Socialista, última transformação anêmica do velho
Partidão; Ciro usou seu caso de amor com a atriz Patrícia Pillar, até que o
machismo reprimido do namorado retornou como um bumerangue derrubando sua
ascensão. Era uma novela da Globo, com os ingredientes de amor e tragédia.
Ainda havia Anthony Garotinho, explorando clivagens religiosas e populistas.
Todos pensavam estar fazendo discursos que recobriam as formas sociais. Somente
Lula e seu marqueteiro optaram por fazer o discurso antidiscurso (exceção feita
a um certo tom nacionalista-produtivista, a única coisa que restou de sua
antiga trajetória sindical). Através da escolha de um industrial bem-sucedido
para vice, como ele de origem pobre, o forte da campanha de Lula foi o
inespecífico, uma inefável bondade e o "caminho de Garanhuns", unindo um
migrante nordestino e um caipira mineiro numa predestinada missão de salvar um
país sem esperanças. O tom veladamente liberal do êxito e do self made man, sob
a chuva prateada do encontro que no Anhembi selou o lançamento das
candidaturas, foi a festa mais hollywoodiana da experiência eleitoral
brasileira de todos os tempos. Nitidamente kitsch e aquém do padrão Globo de
qualidade. Foi provavelmente a campanha indeterminada para uma era de
indeterminação.
Permanece intrigante a postura das mídias na eleição de 2002. Em 1989, elas
foram decisivas para a vitória de Fernando Collor e a derrota de Lula, por
pequena margem, no turno final. A conhecidíssima manipulação pela Rede Globo do
último debate entre os finalistas, criando ' mas não falsificando-
o inteiramente, pois Lula entrou no debate já derrotado pela arrogância de
classe do adversário ' o clima de vitória de Collor. Ali tratava-se de uma
conjuntura não de indeterminação mas, ao contrário, de fortíssima determinação
pela crise econômica: 80% de inflação mensal no último mês da presidência
Sarney. Collor era o Messias.12 Já na eleição de FHC em 1994 não havia nenhuma
grande crise, mas seu oposto, a derrota da velha inflação pelo Plano Real, o
"grande eleitor" de FHC, uma forte recuperação do salário real pela extinção do
"imposto inflacionário". Um candidato não-popular, sem carisma para os
dominados. O pleito de 1998 foi a reafirmação de 1994 e a quase certeza de que
se prolongariam e se consolidariam as "reformas" de cunho fortemente
privatista. O real apreciado criou um paraíso de consumo para as amplas classes
médias, cujo carrinho de supermercado à época se compunha de, no mínimo, metade
de mercadorias importadas.13
A hipótese aqui assumida é que as mídias não aderiram a Lula. Ao contrário,
equivocaram-se e continuaram a crer que as velhas determinações da política, em
suas relações com a economia, com as classes, com as ideologias, seriam
decisivas: com um deslocamento da propriedade burguesa do porte do que FHC
operou, havia poucas dúvidas de que Serra seria um forte candidato, com reais
chances de ganhar a eleição, apesar do desgaste governamental. Até hoje a Folha
de S.Paulo cobra insistentemente de Lula a "traição" aos seus projetos
classistas, que ela combatera decidida e inocuamente. Que é a mesma cobrança
que lhe fazem os petistas decepcionados, com sentidos opostos. Em algum
momento, quando as pesquisas de intenção de voto mostravam o estrago nas outras
candidaturas e a inapetência eleitoral de José Serra, as grandes mídias
certamente fizeram acordos com o candidato petista. A Rede Globo,
particularmente, detentora de volumosa dívida externa, mudou de posição, e um
dia depois da eleição apresentou o programa do "caminho de Garanhuns" de um
predestinado. Mas aqui já estava em desenvolvimento a estratégia de fazer o
agora presidente eleito reconhecer os interesses de classe de quem manda na
sociedade. O interessante é que a cobrança do programa classista que se faz a
Lula, sobretudo pela Folha de S.Paulo e pelo âncora Boris Casoy, passou a
funcionar em sentido contrário: é uma armadilha e uma advertência para receber
de volta do presidente a reiteração dos compromissos de respeito aos contratos,
pedra de toque anunciada na "Carta ao Povo Brasileiro".
Mas o candidato vitorioso e seu partido interpretaram que sua votação era a
síntese da sociedade brasileira, em seus vários setores e escaninhos. E ao
contrário do condottiere que atravessa o Rubicão, ele empreende o caminho de
volta. Recorde-se que atravessar o Rubicão significa ir da Gália para Roma: é
esta que ele tem de conquistar. Não atravessá-lo, no caso, significa render-se
a Roma. Lula compõe um governo à imagem e semelhança do que parecia ter sido a
vitória: contentar gregos e troianos, ir de "cem a mil sem ter a unidade"
(Musil), condição do êxito eleitoral; de Vera Loyola, a socialite carioca que
logo doou a correntinha de ouro da cachorra ' sua cachorra ' à campanha do Fome
Zero, às palafitas de Brasília Teimosa, em Recife, que o já presidente visitou
em companhia de todo seu ministério novinho em folha para "conhecerem" o Brasil
real, com o que inaugurava seu governo virtual. Qualquer semelhança com o
"deserto do real" de Zizek14 não é coincidência.
Ao contrário de Lênin, que percebeu a falência do sistema de poder e
aprofundou-a dirigindo o movimento para a revolução socialista, Lula recompôs o
sistema político que o turbilhão combinado da desregulamentação de FHC e da
globalização havia implodido.15 A montagem do ministério revelou a idéia de
sociedade e representatividade que o PT elabora e, em especial, o próprio
presidente. O núcleo dirigente do governo ficou composto pelos pragmáticos do
PT: José Dirceu, o verdadeiro mentor da virada programática do partido, Antonio
Palocci, escolhido para a Fazenda, e Luiz Gushiken, para a Secretaria de
Comunicação e Estratégia; comunicação aí quer dizer apenas ' e esse apenas são
150 milhões de reais para publicidade institucional ' controlar os recursos
para publicidade do governo, enquanto "estratégia" quer dizer a verdadeira
função de Gushiken: elaborar as diretrizes de mudança a longo prazo, e a
Reforma da Previdência inaugurou o novo ciclo. Acolitados pelo novo ' e
designado por Lula ' presidente do PT, José Genoino, que havia perdido a
eleição para governador de São Paulo, transformado então no mais direitista de
todos os petistas, concorrendo até, com vantagens, pela retórica e a aura de
ex-guerrilheiro, com os mais direitistas entre os direitistas brasileiros. Essa
mudança radical, embora indícios dela já estivessem circulando há muito,
somente foi possível pelo carisma, que se personaliza em Lula mas vai muito
além dele: era do Partido, enquanto detentor e referência principal do largo
movimento de reinvenção da política desde os anos finais da ditadura militar de
64 a 84.16 Há, aqui, um efeito interessante: o carisma do presidente tem atuado
como um poderoso anestesiante sobre as demandas populares que cresciam sob o
governo FHC, e opera uma espécie de seqüestro da sociedade organizada; é
próprio do carisma sobrepor-se a quaisquer outras determinações da divisão da
sociedade, e ele anula, sobretudo, a divisão de classes. O carisma é da ordem
do mito e este é o avesso da política. A transferência do PT para o interior do
governo imediatamente provoca a paralisia dos movimentos sociais. Aqui, em
termos gramscianos, o amplo "movimento" da conquista do governo anula as
"posições" anteriores, pois o partido da oposição transforma-se no partido da
ordem. A perplexidade dos adversários e dos aliados, e principalmente dos
próprios petistas de esquerda, é total.
Muitos ministérios não têm a menor importância; os partidos aliados ou que
aderiram indicaram ministros, e o próprio PT contemplou todos os derrotados nas
disputas dos principais governos estaduais com um ministério de má fatura e
escassa verba. Além disso, representando a "sociedade civil", notórios
empresários foram aquinhoados com ministérios expressivos por estarem ligados
às suas áreas de interesse e pelo lugar dessas atividades na exportação de
commodities. Note-se, como marca específica, a ausência de qualquer intelectual
de prestígio no ministério lulista, o que mal esconde um anti-intelectualismo
obreirista, mas revela também a indisfarçável monopolização da disputa do
sentido e do controle do governo pela nomenklatura do partido. A desimportância
dos ministérios não se deve sequer às personalidades do primeiro e segundo
escalão, algumas bem pobres: tem a ver com a disfuncionalidade entre os
arranjos do sistema político e o nível e complexidade do capitalismo no Brasil.
A performance conservadora do futuro governo, quando a vitória pareceu
plausível, anunciou-se na inflexão da "Carta ao Povo Brasileiro", documento
tirado no encontro do Novotel, em São Paulo, um recado claro ao empresariado,
às instituições "policiais" do capital financeiro, FMI, BIRD, BID e OMC, às
grandes empresas e às grandes potências capitalistas: um governo Lula não
romperia contratos. Confirmou-se na nomeação do ministro da Fazenda, Antônio
Palocci, que já estava carimbado devidamente na organização da transição como o
mais novo converso ao neoliberalismo, e na indicação do presidente do Banco
Central, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles, que havia sido
eleito deputado tucano pelo Estado de Goiás, onde jamais havia feito política.
Ele sequer licenciou-se do mandato: renunciou a ele imediatamente, como se sua
permanência no governo estivesse assegurada ' será que está? ' a salvo de todos
os acidentes de percurso. Meirelles foi o sexto ou sétimo convidado para o
cargo, e os que recusaram eram todos, sistematicamente, altos executivos do
sistema financeiro, o que mostra a escolha de política por parte do PT e do
presidente Lula. Não era, pois, desde o início, algo transitório para acalmar o
mercado, mas uma orientação política.
Sintomaticamente, o anúncio da escolha de Meirelles foi feito nos Estados
Unidos, quando da visita do presidente ainda não empossado a George W. Bush.
Como está se tornando uma marca do governo, de sua inespecificidade, uma outra
jogada de marketing ocorreu simultaneamente: Lula anunciou ali também a escolha
da senadora Marina Silva, um símbolo do movimento ambientalista, para o
Ministério do Meio-Ambiente. Repetindo Musil, ele foi de um ' a senadora Marina
' a mil ' o banqueiro Meirelles ' sem passar pela unidade, isto é, suas
promessas de campanha. Logo, logo, no episódio de adiamento da entrada em vigor
da proibição de propaganda de cigarros na Fórmula 1, que tem a primeira prova
da temporada disputada no Brasil, viu-se para que servia a nomeação da
senadora, hoje uma figura apagada da galáxia ministerial: Lula utilizou pela
primeira vez em seu governo uma medida provisória para adiar a aplicação da lei
antitabagista.
PARA ONDE VAI O GOVERNO LULA?
Essa pergunta, geralmente inescapável, era sem propósito para obter a
caracterização e definição do governo FHC, mas no caso do governo Lula ela
esteve presente nos meses iniciais de sua gestão. O governo teve início como
produto de uma coalizão tão ampla que era difícil localizar seu centro de
gravidade. Era fácil saber quem mandava, quem dava as ordens, quem articulava a
nova maioria, inesperada e surpreendente, construída no Congresso; esse
controle era exercido pelo "núcleo duro" formado pelos ex-ministros já
referidos ' Dirceu, Palocci e Gushiken, aos quais se somava o presidente do
Banco Central.
Mas qual é a hegemonia e quais as suas lideranças? Aí, a questão desliza.
Simples seria responder que os ministros diretamente recrutados no alto escalão
do empresariado mais o aberto e confessado conservadorismo da política
econômica explicitam a hegemonia, mas a facilidade da resposta esconde sua
falsidade. Esse enigma está mesmo profundamente entranhado no próprio governo,
e a própria constituição do ministério aponta, de um lado, para uma concepção
ingênua e simplista do consenso ' idealizado sempre na figura da "negociação" '
e, de outro, para um esforço para conseguir criar aliados. Essa "negociação"
idealizada esconde a fraqueza do governo frente ao empresariado, nacional e
internacional. Quando se trata de matéria atinente a amplos grupos sociais de
trabalhadores de diversas categorias, simplesmente não há "negociação", como
foi o caso da reforma da previdência dos servidores públicos.
Um breve parêntese: a "negociação", apresentada como a face ou a postura
democrática do governo, não é mais que a transferência para o âmbito do
governo, como simulacro, de práticas de negociações sindicais, responsáveis '
pensa-o Lula e muitos comentaristas e analistas do movimento sindical ' pelos
melhores êxitos do novo sindicalismo que nascia sob a liderança dos
metalúrgicos do ABC, Lula à frente desde 1975. Na verdade, os melhores êxitos
do sindicalismo do ABC, antes mesmo da formação da CUT, deram-se, e não
irrelevantemente, no breve período "fordista" dos anos do "milagre brasileiro"
e no seu declínio, com as grandes greves de 1978 a 1980, quando Lula emergiu na
cena política como o mais marcante líder operário da história brasileira. Daí
para a frente, não há uma única vitória sindical a registrar, mesmo nos
territórios dos outrora fortes sindicatos do ABCD. Muito menos sob a batuta da
CUT, não há nenhum êxito de negociação a destacar, e não se ratifica, pois, a
visão idílico-positiva da "negociação".17 A experiência de negociação mais
exitosa, o famoso "acordo das montadoras", câmara setorial do setor automotivo
do período Itamar, foi erguida num período em que a CUT ainda mal aceitava
aquele tipo de acordo, e ele se deve inteiramente ao Sindicato de Metalúrgicos
de São Bernardo, do lado dos trabalhadores do setor automotivo.18 Aliás, a
importância política da CUT está mais no fato de que conseguiu articular uma
forte representação dos trabalhadores e transformá-la, ao lado do PT, em
política, do que nas negociações sempre fraudadas por duas décadas ' os anos
1980 e 1990 ' de fraco crescimento econômico, quando o Welfare privado do
"milagre" já havia se esgotado, combalido simultaneamente pelo default
econômico e pelas políticas de reestruturação produtiva. As centrais sindicais
no Brasil, que eram proibidas pela legislação anterior à Constituição de 1988,
não funcionam como na Europa, pois não são parte nas negociações com o
patronato, que continuam sendo feitas pelos sindicatos correspondentes de
trabalhadores. As centrais têm apenas função política, mas não trabalhista. Mas
a reforma sindical em estudo pelo Fórum Nacional do Trabalho pretende instituir
uma espécie de "súmula vinculante" nas questões sindicais, centralizando no
topo da pirâmide das centrais os acordos com o patronato, e deixando aos
sindicatos singulares a hercúlea tarefa de ultrapassar os acordos feitos. Dizem
os representantes das centrais no Fórum Nacional do Trabalho que esta é a
verdadeira liberdade sindical: pode-se reivindicar mais do que os pisos
acordados com as centrais, mas não menos. Seria cômico se não fosse peleguismo.
O modelo da formação do ministério replicou-se, com retórica contratualista, na
criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o CDES. Tarso Genro
foi seu primeiro ministro, e um dos formuladores teóricos do que ele chama um
"novo contrato social" pós-luta de classes. Wolfgang Leo Maar19 assistiu a uma
das reuniões mais importantes do Conselho, quando este discutiu a proposta
original de Reforma da Previdência do governo. Sua frase é lapidar: "O CDES é o
retrato da sociedade que o PT e Lula pensam que existe, e mais, que eles querem
que exista". O Conselho é pensado como um retrato, uma reprodução da "sociedade
civil": muitos empresários, de todos os ramos, mas com predominância do setor
industrial e financeiro, uma dúzia de sindicalistas, alguns intelectuais ' a
eterna cereja em cima do pudim ' e um representante da Abong, a organização
maior das ONGs brasileiras. O desbalanceamento das "representações" é evidente,
e todos são de escolha e nomeação do presidente da República, indicados pelo
ministro-chefe do Conselho, que com a mesma faculdade pode demiti-los. Parece
não existir indicação por parte dos setores "representados", o que, desde logo,
vicia a formação e independência do Conselho. O CDES foi apresentado como o
lugar da concertação, da formação do consenso, ou do "novo contrato social", na
expressão do ministro Tarso Genro: ele não tem função deliberativa, mas apenas
de discussão e sugestão ao governo.
Pareceu no princípio que ele seria, de fato, o lugar da formação do consenso:
Lula parecia um Diógenes com sua lâmpada procurando os interlocutores, e no
caso do CDES, com a vantagem de ser pública sua formação e composição, o que
parecia uma prática inovadora em relação à tradição brasileira. Apenas
Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, formou um conselho de desenvolvimento, que
não tinha representantes da "sociedade civil". Paradoxalmente, o conselho
juscelinista e o BNDE (sem o S) foram, realmente, os lugares da formulação da
estratégia desenvolvimentista e os duelos travados nesse duplo interior dizem
mais a respeito da formação dos arranjos desenvolvimentistas que o conselho de
Lula. Campos, até sua saída do BNDE, era adversário do nacionalismo, mas com
este formava o consenso desenvolvimentista que sustentou o governo Kubitschek.
No período militar, houve também um conselho de desenvolvimento industrial, que
funcionou mais como uma câmara de articulação das burocracias de estado com o
alto empresariado, e assim chegou a ser um lugar de formulação estratégica. Com
uns poucos meses de existência, o CDES logo apagou-se e talvez não volte a ter
nenhuma importância no governo Lula.
O CDES não atua em dobradinha, por exemplo, com o BNDES, cuja direção foi
entregue de início a Carlos Lessa, um sobrevivente dos tempos
desenvolvimentistas, representante da corrente que tem em Maria da Conceição
Tavares sua liderança inconteste. Lessa foi, dizem, escolha pessoal de Lula,
seu lado produtivista-desenvolvimentista, e foi sempre ligado ao PMDB na sua
vertente ulissista, que perdeu a liderança com a morte do velho e bravo
comandante dos tempos da ditadura militar; o PMDB oficial fez questão de deixar
claro que ele não representava o partido, que foi contemplado com mais dois
importantes ministérios, o das Comunicações e o da Previdência. Mas não há,
perceptivelmente, uma clara articulação entre o pólo do BNDES, o do CDES e
lideranças empresariais. Lessa foi indicado contra a vontade do ministro
Furlan, a quem era subordinado, e alguns atritos entre os dois marcaram essa
curta história de convivência.20 Noticiou-se freqüentemente também a
implicância ou insatisfação de lideranças empresariais com o presidente do
BNDES, a quem se atribui doses muito altas de nacionalismo e até de estatismo.
O personagem foi talvez o membro de posições mais claras dentro do governo Lula
e nunca negou seu ideário nacional-desenvolvimentista.21
Em algum momento, o ministro Gushiken explicitou a vocação estratégica de sua
pasta, ao anunciar a formação de um grupo de "notáveis" para elaborar
formulações de longo prazo. Segundo ele, tal grupo, que não incluiria
acadêmicos que vivem discutindo o "sexo dos anjos", secretariado pelo IPEA,
teria como objetivo definir projetos, programas, parcerias estratégicas,
cenários, e articular setores e atores. Parecia, então, que uma das caras do
governo se definiria, pelo menos parcialmente, no eixo Gushiken, IPEA e BNDES.
O ex-ministro da Fazenda Palocci parecia também não ser estranho a essa
formação, já que segundo tudo indica, ele e o ministro Gushiken foram os
responsáveis pela indicação do presidente do IPEA, o sociólogo Glauco Arbix,
velho companheiro de militância política na antiga, exuberante e "radical
chique" Libelu. A direção do BNDES não era do agrado do todo-poderoso ministro
da Fazenda, mas Lula seria o avalista da articulação do BNDES com seu núcleo de
estrategistas. O eixo não se formou, embora o presidente do BNDES tenha
redesenhado o banco como banco de fomento e desenvolvimento e não como banco de
investimento, que era seu formato no governo FHC; além disso, e não apenas por
voluntarismo personalista de Carlos Lessa, o BNDES está chamado a funcionar
como a UTI das grandes privatizações fracassadas, como a de energia elétrica, e
evitar que setores fundamentais, como a aviação civil, afundem ' ou despenquem,
em se tratando de aviões ', tendo sido pensada uma fusão Varig-TAM, já
descartada em favor da reestruturação individual da Varig, além da ajuda ao
conjunto das emissoras de televisão, lideradas pela Rede Globo22, que se afunda
em dívidas impagáveis, agora que seus programas de humor já não têm a menor
graça. Isso se parece com o Proer de FHC, mas não com o banco de investimento
da financeirização gushikeniana. As informações sobre o grupo aparecem na
imprensa sem muito alarde, e parece que, apesar da implicância ou alergia do
ministro Gushiken ao "sexo dos anjos", seu grupo de sábios e notáveis ainda não
passou de exercícios escolares, desenhando cenários de curto, médio e longo
prazo.23 É um déjà vu sem remissão, enquanto a articulação real entre grupos
econômicos e financeiros e o planejamento do Estado patinava nas dobras do
superávit primário do então ministro Palocci.
Onde está, pois, o centro de gravidade do governo Lula? Surpreendentemente para
um governo vertebrado por um partido saído diretamente do movimento sindical,
que se autodenominou "dos Trabalhadores" e que efetivamente se estruturou nas
forças do trabalho,24 seu centro de gravidade está diretamente ligado aos
processos de financeirização do capitalismo no Brasil. Essa contradição, que
pode parecer apenas um paradoxo, foi explorada em O ornitorrinco25. Trata-se da
formação de uma nova classe social, cujo lugar no sistema é definido pela
função que ocupa no acesso aos fundos públicos. E, como no capitalismo
periférico brasileiro os fundos de acumulação foram de origem estatal, nas suas
várias formas, a financeirização foi também uma criação estatal, através dos
fundos de previdência complementar das empresas estatais, uma espécie de
Welfare privado que a ditadura militar criou.26 Os principais investidores
institucionais no Brasil hoje são os fundos Previ, Eletros, Sistel, Petros,
Portus, Funcef e os demais cujas denominações remetem sempre ou à empresa ou ao
setor de onde provêm; atuam nas bolsas de valores, foram os mais importantes e
decisivos para definir as privatizações das estatais, são proprietários-
acionistas de grande número de empreendimentos de porte.27 A Constituição de
1988 criou, para rematar essa financeirização, o FAT ' Fundo de Amparo ao
Trabalhador, que é hoje o principal aportador de recursos ao BNDES, vale dizer,
o principal fundo de acumulação a longo prazo. Seu representante por excelência
era o ministro Gushiken, não por acaso, da Comunicação e Estratégia, mas além
dele a presença de funcionários da elite dos fundos no governo é notável.
Entretanto, o centro de gravidade não é hegemônico, no sentido gramsciano. Na
verdade, ele é o braço petista do amplo arco da nova classe formada na nova
relação entre Estado e mercado instituída pelos movimentos simultâneos da
globalização-privatização. A reforma da previdência, tal como foi votada, é sua
primeira vitória. Ela estatuiu fundos de previdência complementar para o
funcionalismo público civil ' e logo o fará também para os militares ' que
deverão ser públicos e fechados, o que não muda sua natureza de capital
financeiro, pois o mercado financeiro será o destino de aplicação dos recursos
dos fundos, até porque serão fundos de capitalização, pois vai se estabelecer
contribuição definida mas não beneficio definido.28 Desse ponto de vista, há
uma continuidade em relação ao governo FHC, mas isso não é suficiente para
definir uma hegemonia, até mesmo porque a conservação dos fundamentos básicos
neoliberais não assegura uma saída para a crise do neoliberalismo periférico;
pode até aprofundá-la, como o recorrente problema do financiamento externo está
demonstrando no governo Lula, impondo uma política de financiamento externo que
confirma o caráter extrovertido do processo de acumulação de capital, e cujo
efeito foi o de aumentar exponencialmente a dívida interna, travando a própria
acumulação de capital. E funcionando como um poderoso mecanismo de concentração
da renda no sistema financeiro.29 Como disse em entrevista o ex-presidente FHC,
não é o governo quem controla a dívida ' respondendo indiretamente a críticas
da esquerda petista ' mas é a dívida que controla o governo. Esqueceu-se de
dizer que esse avesso de governo começou exatamente com ele.30
A reconstrução do sistema de poder depois da vertiginosa decomposição que deu
lugar à sua eleição, e interpretada como uma vontade de "união nacional" acima
da luta de classes, pode finalmente estar se impondo. Mas ele se fará sob nova
dominação. Esta provém de duas matrizes, que em vários momentos se apresentam
como contraditórias. As duas têm caráter extrovertido, isto é, estão ligadas ao
processo de mundialização do capital. A primeira delas é a da financeirização.
Esta articula a reiteração do financiamento externo da acumulação de capital,
já que a mundialização tornou insuficientes as fontes internas, com a
emergência das novas formas financeiras do sobre-valor interno, expresso tanto
no sistema bancário, cujo lucro depende em grande medida das operações com
títulos do governo, e nos fundos de pensão. Mas ela é insuficiente para mover
todas as formas internas de acumulação de capital, daí sua dificuldade em
nacionalizar-se, isto é, soldar a maior parte dos interesses burgueses. Além
disso: os lucros financeiros são transferência de renda ' como juros, uma das
formas da mais-valia, nos termos de Marx, e portanto contraditória com a forma
lucro do setor produtor de mercadorias ' de setores do próprio empresariado
para o sistema financeiro e penaliza os salários reais pelo aumento dos custos
financeiros das empresas, o que desemboca geralmente ou em retração das
atividades ou em aumento da taxa de exploração da força de trabalho.
A segunda provém das exportações, a fronteira de mais rápida expansão do
capital, capitaneada pelo agronegócio, que segue em ascensão praticamente há
três décadas. As novas frentes de crescimento das exportações são quase todas
de commodities, salvo os aviões produzidos pela Embraer e as exportações de
automóveis. Mas na matriz de relações interindustriais, os commodities são de
baixo valor agregado e têm pouca capacidade de estabelecer fortes relações
integradoras em escala industrial e em escala nacional. A potencialidade de
irrigar um processo de crescimento auto-sustentável não é muito ampla, o que
quer dizer que como solda de amplos interesses as exportações têm raio
limitado. E em geral, trata-se de ramos muito concentradores, como os do
agronegócio, que se baseia em mão-de-obra desqualificada. A Petrobrás também é
uma forte exportadora sobretudo de derivados de petróleo, mas seu êxito na
exportação deve-se ao caráter estatal da empresa, que a levou à busca da auto-
suficiência, com o que estabeleceu fortes linkages com a indústria nacional.31
Mas há hegemonia no sentido gramsciano? Esta foi sempre entendida pelo "pequeno
grande sardo" como "direção moral" da sociedade, não apenas como dominação.
Paradoxalmente, o PT e os movimentos sociais associados na "era da invenção" de
1970 a 199032 chegaram perto da "direção moral": as consignas iam da crescente
publicização dos conflitos à emergência de novos direitos consagrados na
Constituição de 1988, que ampliaram a cidadania, à condenação das práticas
patrimonialistas e fisiológicas, a um novo lugar do controle dos gastos
públicos, à independência e reforço do Ministério Público que, pela primeira
vez, propiciou uma nova vigilância sobre os negócios do Estado. Em suma, uma
renovação republicana sem paralelo na história brasileira. Mesmo um governo tão
neoliberal quanto o de FHC teve de acolher parcialmente essas demandas, até na
nova Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, cujo propósito explícito era
o de não permitir excessos de endividamento dos governantes de plantão, mas
transformou-se num poderoso garrote para produzir superávits fiscais.
O que se passou desde então foi, em primeiro lugar, a forte erosão das bases do
trabalho, com o conseqüente enfraquecimento do movimento sindical. Desde a
abertura comercial de Collor, prosseguindo nos anos FHC, a perda de postos de
trabalho assalariado chegou à casa de 3,2 milhões entre 1989 e 1999, e destes,
2 milhões foram no setor industrial. No mesmo período, os desempregados
saltaram de 1,8 milhão para 7,6 milhões, e a taxa de desemprego foi de 3% para
9,6% da PEA. Nos anos 1990, a criação de postos de trabalho foi sobretudo de
empregos precários, sem formalização das relações de trabalho, com baixíssima
remuneração. Quatro em cada cinco das ocupações criadas estavam no que se chama
anacronicamente de "setor informal".33 Que classe social resistiria a tal
vendaval? E a sua representatividade? E a sua relação com as formas
institucionalizadas da política? O paradoxo da eleição de Lula é que ele chega
ao governo quando sua classe mergulha numa avassaladora desorganização. A
inespecificidade de sua eleição, o "Lulinha Paz e Amor", é contraditória e,
perversamente, o sinal da desimportância de sua legendária base classista.
Talvez só ele e seu marqueteiro tenham percebido que era possível dar essa
guinada exatamente porque o poder de veto de sua antiga base de trabalhadores
havia se reduzido a quase nada. Mas o carisma criado pelo seu pertencimento a
um movimento operário que havia jogado a ditadura às cordas e havia contribuído
para a redemocratização do país ainda permanecia, e foi seu cacife para as
eleições. E para não atravessar o Rubicão.34
Não apenas a devastação produzida pela desregulamentação operou a
desimportância da base classista na nova política. Há uma internalização da
reestruturação produtiva que produz uma nova subjetividade, inculcando os
valores da competição, colocando situações objetivas nos processos de trabalho
que corroem a percepção de classe virtualmente proporcionada pelo precário
fordismo periférico.35 É notável como o trabalho em equipe, em células,
dessolidariza e desorganiza os processos de auto-reconhecimento, torna inúteis
os sindicatos, pois as bases "coletivas" da produção parecem desaparecer para
dar lugar apenas à competência individual, e os sindicatos ainda não sabem
mover-se no novo universo. Além disso, novas disposições, como a da
participação nos lucros das empresas, regulamentada no governo FHC, retiram
objetivamente os sindicatos da negociação sobre a repartição e divisão dos
lucros entre os trabalhadores. Pesquisas realizadas em setores particularmente
adaptáveis a processos de trabalho em equipe, como os de fármacos e produtos de
higiene,36 atestam a formação de uma sociabilidade indiferente ao coletivo e
pouco interessada em entidades representativas. A passagem dessa nova
sociabilidade e das subjetividades que a pavimentam para a política ainda não
está devidamente decifrada, mas é provável que a não identificação com demandas
especificamente classistas já esteja em curso. Se se soma a esse movimento que
se dá nos que ainda estão em empregos com relações formalizadas, os 40% de
trabalhadores ocupados sem relações formais, os 10% de desempregados abertos '
e nas metrópoles a taxa calculada pelo Dieese é pelo menos o dobro37 ' deve-se
perguntar que demandas classistas são viáveis, e que ações políticas elas
caucionam. As políticas assistencialistas, que são na verdade políticas de
funcionalização da pobreza, são a contraparte desse movimento de verdadeira
liquidação da classe em curso no desenvolvimento brasileiro. E não à toa elas
continuam se multiplicando sob todos os títulos exatamente no governo Lula, a
começar pelo Fome Zero.
POPULISMO, REPRESENTAÇÃO, PARTIDOS E HEGEMONIA
A essa decomposição de classes o estilo presidencial replica com o que alguns
têm chamado de novo populismo, ou o lulismo-petismo. Ele se manifesta na
comunicação do presidente com as massas, passando por cima das instituições
políticas, até de seu próprio partido, e principalmente nas políticas de
funcionalização da pobreza. A erosão da base classista e a não-
representatividade dos partidos e outras organizações políticas, como os
próprios sindicatos, produzem um curto-circuito que é fatal para a política e
para o exercício do governo.38 Então, o presidente se lança diariamente a novas
atividades, anuncia todos os dias novos programas e projetos sociais, que são
apenas virtuais, mas têm a função de comunicar-se com uma base que já é difusa,
e simula "posições" ' no sentido gramsciano ' na luta política. A mídia
eletrônica ajuda enormemente nesse sentido, pois renova a exposição do
presidente diariamente, várias vezes ao dia até, e ao mesmo tempo descarta,
pela fugacidade, qualquer fixação, de maneira que a próxima aparição parece uma
novidade. Mas a base sobre a qual atua a mídia eletrônica é a decomposição da
classe.39 Aqui talvez estejamos de frente, realmente, ao populismo, como uma
impossibilidade da política baseada na classe organizada. Mais que no caso
considerado clássico dos populismos varguista, peronista e cardenista. Estes
foram, de qualquer modo, formas autoritárias de inclusão da nova classe
operária na política, desarranjando o esquema de forças políticas tradicionais
do subdesenvolvimento latino-americano, e sua base material estava justamente
no crescimento do assalariado e particularmente do operário fabril. O mesmo
fenômeno que deu lugar à interpretação social-democrata da classe como maioria
social, sendo a tarefa do partido na política ajudar a transformá-la em maioria
política. Até o começo do declínio dos contingentes operários na divisão social
do trabalho, a estratégia social-democrata baseava-se numa espécie de
demografia da classe.
O novo populismo, ou o real populismo, é a exclusão das classes da política.
Não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, nem sua origem é ideológica:
trata-se da decomposição da classe trabalhadora, principalmente de seu antigo
núcleo duro, o operariado industrial. É a mesma coisa que se passa na Argentina
e na Venezuela, já visivelmente. Kirchner foi eleito sem contar com o apoio da
tradicional base operária peronista, depois da devastadora desindustrialização
de Martínez de Hoz seguida da internalização da globalização por Menem. O
"ator" central da política argentina passou a ser a multidão difusa dos
desempregados e piqueteros. Na Venezuela, as bases organizadas do operariado do
petróleo, numericamente diminuto, e que é o que conta no país bolivariano, são
aliadas do grande capital que gravita em torno da indústria petrolífera, e
Chávez recorre ao bolivarismo, que é um recurso do especial culto a Bolívar,
para cimentar o que não é mais classe social. Nos dois casos, semelhantemente
ao brasileiro, o sistema político-partidário passava por uma grave crise, com a
desmoralização total ' mais que no caso brasileiro ' dos importantes e
tradicionais partidos. Mas Chávez e Kirchner, em meio à indeterminação
provocada pela simultaneidade da crise econômica com a destruição do sistema
partidário, tentam atravessar o Rubicão em direção a Roma, ao contrário de
Lula.40 As diferenças provavelmente se explicam pela crise econômica
devastadora na Argentina e na Venezuela, enquanto no Brasil o que estava em
curso era mais uma mudança na estrutura do poder real no interior do
empresariado que uma crise econômica de porte. Sem juízos de valor, é preciso
tentar uma compreensão sociológico-política da nova ordem de coisas na
periferia devastada pelo evidente desbalanceamento na equação das forças
político-sociais. Com a debilitação das bases populares, o peso do outro lado
agrandou-se, ainda que sem nenhuma unidade do lado burguês, porque os setores
que estão ganhando com a financeirização/extroversão da economia não soldam os
interesses mais gerais. E a forma populista do apelo político completa o
trabalho de desbalanceamento: o governo enrascou-se na armadilha de supor que
sua eleição apelava à unidade nacional, e qualquer movimento organizado lhe
parece um obstáculo à unidade da qual se pensa mandatário.
A hegemonia é quase impossível, devido à enorme desigualdade. Um intransponível
fosso entre as classes torna uma quimera qualquer experiência comum no espaço
público, que aliás se privatiza aceleradamente. Escolas de elite, hospitais de
grife, mais de 200 helipontos na capital paulista enquanto Nova York tem apenas
quatro, impondo já controle do tráfego aéreo de helicópteros, condomínios-
guetos, polícias privadas cujos efetivos superam a soma das polícias públicas e
das Forças Armadas. Sendo da ordem do simbólico, a hegemonia não pode se firmar
sem um mínimo de plausibilidade da igualdade, vale dizer, sem um mínimo de
materialidade da igualdade. Ora, o fosso da desigualdade na sociedade
brasileira sendo abissal já não pode ser transposto na ordem do apenas
simbólico. E ela se alarga. Em 2004, o número de milionários no Brasil cresceu
6%, enquanto a economia recuava menos 0,3%, e matéria do correspondente do
Financial Times dava conta do boom dos artigos de luxo, com a abertura de duas
filiais da Tiffany em São Paulo, com a terceira loja a ser brevemente
inaugurada. Os dominados respondem com a violência privada: o crescimento
exponencial da criminalidade é a prova da impossibilidade de hegemonia.
Alcança-se pelo crime aquilo que a implausibilidade da igualdade já negou.
À ausência de hegemonia, o PT respondeu não apenas com o recuo do Rubicão,
entregando-se à Roma dos dólares, que fica entre a Avenida Paulista e Wall
Street. Na pior tradição do patrimonialismo brasileiro, tratou de preencher a
máquina do Estado, em todos os níveis, assim como a direção das empresas que
ainda restam ' e são muito importantes ' e organismos paraestatais, como os
fundos de pensão, com seus militantes. Ressalvados os cargos e funções mais
importantes da formulação da política econômica, a presidência e diretorias do
Banco Central e a presidência do Banco do Brasil, que foram entregues a
operadores do mercado financeiro e de capitais; nesse sentido, foi além do
governo FHC, pois este colocou nessas funções intelectuais e economistas
filiados ao PSDB que, na maior parte dos casos, depois de exercerem o poder
migraram para gordas consultorias ou transformaram-se em banqueiros, a ala
direita ' nem tenho mais tanta certeza! ' da nova classe ornitorrínquinca. No
caso do governo Lula, nenhum dos mais notórios ocupantes dos cargos acima
citados é ou foi militante do PT, e não são conhecidos, propriamente, como
intelectuais, ainda que isso não seja garantia de nada.
A mídia crítica do governo, e também os partidos de oposição, martelam
insistentemente sobre o "aparelhamento" ' um termo do léxico da esquerda ' do
governo e do Estado pelo PT, esquecendo-se de suas próprias práticas. Convém
indagar sobre essas relações que se instalam entre partidos e governo, ou mais
amplamente, partidos e Estado. A partir de Vargas, a maior parte das carreiras
do serviço público civil foram estruturadas no modelo burocrático do mérito, da
competência, da impessoalidade. É claro que a cultura patrimonialista
brasileira moldou, a seu modo, essa weberianização do serviço civil da União,
dos Estados e municípios. A ditadura começou um lento processo de desmonte das
carreiras civis do Estado, e naquele período também teve início uma espécie de
modalidade norte-americana de intercâmbio entre servidores públicos e
empregados ou empresários do setor privado.
Com o PT no governo, o que ocorre é parecido com o que se deu nas experiências
socialistas. A aparência é de uma total ocupação do Estado pelo partido, mas
olhando-se mais de perto o fenômeno real é o oposto: o partido dissolve-se no
Estado e no governo. As tarefas, funções, obrigações, enfim, as razões de
Estado impuseram-se sempre sobre a função do partido no sistema político. Ao
invés do Estado partidarizar-se, ocorre a estatização do partido. A opacidade
dessas relações deve-se a que as experiências socialistas foram sempre de
partido único, o que não permite uma dissecação que torne mais nítido o quadro.
O PT, felizmente, não está num sistema político de partido único.
A estatização do PT é, em parte, produto do fato de que o partido, ao assumir o
governo, transforma-se em partido da ordem, no sentido rigoroso do termo. Disso
advêm, em primeiro plano, suas contradições com as organizações de classe, com
os movimentos sociais e com o que a literatura vem chamando, de modo amplo,
"sociedade civil".41 Como partido, ele cresceu subvertendo a ordem,
desordenando-a; como governo, sua primeira tarefa é a da conservação da ordem.
Essa tensão e essa mudança de "posições" são quase inescapáveis, mesmo em se
considerando que a capacidade de organização da sociedade cresceu enormemente
nas décadas de "invenções" políticas.42
Sob condições de decomposição de sua base classista, o simétrico crescimento do
poder de classe não-unificável da burguesia e a proeminência em seu interior da
"nova classe" dos administradores dos fundos de pensão, o PT respondeu com sua
própria estatização, que toma a forma de ocupação dos cargos e funções no
governo, para justamente processar o acesso aos fundos públicos. É a
substituição da política pela administração, na impossibilidade da política,
que é dissenso, escolha, opção, dentro de um conjunto de determinações. O
"realismo" do PT é sua estatização e sinal da insuficiência da hegemonia, como
processo real do conflito. A estatização é a forma dos partidos políticos na
periferia capitalista. São, doravante, partidos estatais. O declínio do PSDB,
fora do governo, é da mesma ordem: apesar de seus intensos esforços para
mostrar-se como o partido da nova burguesia globalizada, esta apóia o PT, isto
é, o governo e o Estado. A oposição que o PSDB tentou liderar é anêmica, sem
lastro popular e sem adesão pelo empresariado.43 O próprio FHC faz de conta que
é o representante por excelência do empresariado globalizado, mas reparando bem
ele apenas surfa numa espuma de efeitos especiais, entre os quais se inclui a
intimidade com personalidades internacionais, como o ex-presidente Bill
Clinton. Posa de "príncipe" no sentido maquiaveliano, mas ele mesmo sabe que,
como disse o marqueteiro ao seu amigo Bill, aconselhando-o no andamento de sua
primeira campanha à presidência dos EUA, "é a economia, estúpido" que decide as
votações e é o Estado o novo "príncipe" de si mesmo.44
Chegado a esse ponto, o sistema lançou-se além da hegemonia. Bases classistas
em decomposição, populismo emergente pela própria decomposição de classe,
burguesia não-unificável pela predominância do capital financeiro e "nova
classe" cuja formação é sobretudo processual tornam quase impossível a formação
de consenso, a "direção moral" da sociedade. E, paradoxo dos paradoxos, no
tempo neoliberal, estatização dos partidos e da política, no anverso da
privatização da economia e da vida. Essas privatizações têm sentidos opostos: a
da vida é o sinal da insegurança, e aparece como subjetividade forjada numa
sociabilidade da incerteza. A da economia não se opõe ao Estado: ao contrário,
se realiza pelo Estado como violência da acumulação primitiva não-
universalizável. Daí que a estatização da política e no limite sua total
militarização ' que já ocorre nos EUA ' se transforme no substituto da
hegemonia. O PT realiza na periferia esse novo paradigma, ante o qual
empalidecem todas as antigas teorias da política.
A teoria da política, em sua vertente liberal, há muito foi dominada pela
teoria econômica do mix neoclássico-marginalista-monetarista, com exclusão,
evidentemente, da vertente keynesiana. Há, também, um casamento com o
pensamento weberiano, aliás porque o próprio Weber bebeu da fonte marginalista
da Escola de Viena. O imperialismo da teoria econômica se manifesta absoluto
nas teorias da "escolha pública" e da "escolha racional". As conseqüências
dessa conquista e dessa capitulação dariam lugar a uma vasta discussão, para a
qual está disponível uma ampla literatura.45 A caducidade da própria teoria
econômica não serviu de advertência para os riscos de inutilidade do novo
domínio da teoria da política pela teoria econômica, o que significa dizer que
a capacidade de interrogação do fenômeno real da política pela "nova" teoria da
política reduziu-se a quase zero. A adoção dos pressupostos de escolha, se já é
caduca num sistema totalmente oligopolizado e em certos ramos nitidamente
monopolista ' o caso do quase total controle do acesso à Internet pelo software
da Microsoft ', beira o ridículo que a teoria da política trabalhe agora com
escolha, competição, informação perfeita, equilíbrio, soberania do eleitor,
custos de oportunidade, jogos e outros simulacros da teoria econômica
convencional.
O problema é mais grave porque a própria política é hoje inteiramente dominada
pela economia. As empresas se converteram em atores políticos de primeira
plana. Como pessoa jurídica, a empresa sempre deteve mais poder que os
trabalhadores, que são, no limite, pessoas físicas. A luta de classes inventou
os sindicatos para transformar as pessoas físicas dos trabalhadores em pessoas
jurídicas. Mas os novos modos de produzir e organizar anulam o caráter coletivo
dos sindicatos, o que significa dizer que a política perdeu um ator importante.
E as desregulamentações abriram um espaço que vem sendo ocupado pelas empresas
como ator político fundamental. O Estado mínimo da falsa utopia neoliberal não
é mínimo na economia, como pregam os tolos: ele se faz mínimo é na política.
Num movimento de pinças simultâneo, o Estado se faz máximo na economia e mínimo
na política, e os dois lados projetam uma economia sem política, portanto sem
disputa. A hegemonia gramsciana tem pouco poder heurístico para desvendar a
natureza do conflito de classes, e "a longa marcha através das instituições",
como método da pedagogia da produção do consenso que poderia produzir o novo
poder na sociedade, deixou de ser plausível. Por isso, os partidos como o PT, o
novo príncipe, também se institucionalizam e perdem, assim, o poder de operar
as rupturas. O triste PRI mexicano profetizou, ainda na terceira década do
século XX, em sua própria denominação de "revolucionário institucional", a
estatização dos partidos revolucionários na periferia. O PT confirma, no Brasil
do século XXI, aquela profecia. O sistema para o qual se tende na periferia
capitalista é o totalitarismo neoliberal:46 a cartada do governo Lula
instituindo por medida provisória o foro privilegiado para o presidente do
Banco Central, Henrique Meirelles, foi uma clara exceção à regra democrática da
igualdade. Soberano é quem decide a exceção, diz a sentença de Carl Schmitt, o
teórico do nazismo. Chega às raias do absurdo, se não estivesse tudo
fundamentado na exasperação da própria exceção da classe trabalhadora do
universo burguês promovida pela globalização/reestruturação produtiva, que
tenha sido um presidente ex-trabalhador e ex-sindicalista que tivesse cruzado
não o Rubicão, mas os umbrais do totalitarismo.
POST-SCRIPTUM
O "Momento Lênin" foi escrito há um ano e meio, aguardando publicação no livro
que o Cenedic organizou, e que sairá pela Boitempo até agosto, e na Novos
Estudos neste número de julho. De lá para cá, muita água passou pelo moinho que
moveu aquele texto, e alguns esclarecimentos se impõem. Preferi essa forma de
PS em lugar de modificar o texto original, pois falsificaria sua datação
histórica.Não gostaria de transmitir ao leitor a falsa impressão de que o texto
antecipava alguns dos outros "momentos" do ano 2005 e primeiro semestre de
2006, sobretudo a crise do "mensalão". A ciência social não deve prestar-se à
falsificação do tipo Nostradamus, mas certamente ela também não é aleatória.
Daí que, sem fingir termos "previsto" certos desdobramentos da conjuntura
política, a verdade é que é possível encontrar em "O Momento Lênin" uma
fundamentação teórico-conceitual-analítica que acolhe os eventos posteriores
sem violentar suas premissas nem negar suas conclusões; a revelação da
deslavada corrupção do PT não é tão surpreendente, se se tem em conta o quadro
mais específico do controle de importantes fundos de pensão por membros do
partido, sobretudo sindicalistas. A importância de tais fundos no sistema
financeiro brasileiro ' pois são aplicadores institucionais dos mais
importantes ' já abria para a virtualidade da luta quase gangsteril entre
grupos econômicos digladiando-se pelos "favores" dos fundos de pensão. O
episódio anterior, ainda sob FHC, de como o Previ bandeou-se para o consórcio
que finalmente ganhou a privatização da Vale do Rio Doce antecipava a corrupção
revelada posteriormente, e o envolvimento com grupos como o Opportunity e
Brasil Telecom ' ambos compraram os serviços do mesmo grupo de espionagem, a
Kroll, que espionou até o então ministro das Informações de Lula ' desde o
governo FHC e ampliando-se no governo Lula indicava claramente que o "caminho
de Garanhuns" incluía promiscuidades entre o público e o privado que não se
esperaria de um partido criado para remodelar o sistema partidário-político
brasileiro. No geral, e não é desnecessário dizê-lo, mantenho a análise e suas
conclusões, mas elas não são neutras: me permiti tirá-las do movimento político
dos três anos e meio do governo Lula, o objetivo central do texto. A
neutralidade não existe em ciência social, pois prefiro seguir o conselho de
Gramsci: ter uma posição e a partir dela efetuar os movimentos teórico-
analíticos da interpretação. Mas não se trata de "sacações": como o leitor
poderá assegurar-se, busquei ancorar-me sempre nos eventos históricos, sem ser
apenas seu espelho, nem esconder meu total desacordo com o governo Lula.
De certo modo, a surpresa maior do período decorrido desde a redação inicial de
"O Momento Lênin" não foi a adoção do neoliberalismo como política do governo
Lula dentro do ciclo inaugurado por Fernando Collor de Mello e fortemente
acelerado nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso; a análise da própria
candidatura, da vitória e dos alinhamentos políticos já prenunciava, com alto
grau de certeza, o caminho do governo Lula. Escrevi para a Folha de S.Paulo,
ainda antes da posse, o texto "Entre São Bernardo e a Avenida Paulista", que
tratava, precisamente, da capitulação do governo Lula; outro texto, publicado
no mesmo jornal já em 2003, "Tudo que é sólido desmancha-se em... cargos", que
foi também meu desligamento público do Partido dos Trabalhadores, denunciava
taxativamente não apenas a capitulação mas a transformação do partido em
"correia de transmissão" do governo.
Portanto, a surpresa maior foi a perda do patrimônio ético do Partido dos
Trabalhadores, não apenas imerso mas ator central da fortíssima corrupção que
há um ano e meio abala a política brasileira, e pasmemos todos, não abala a
economia, o que diz muito da irrelevância da política. Não adianta dizer que a
mídia é a responsável, nem como o panglossiano presidente Lula, que nada foi
provado, nem que o PSDB fez igual, e que essa é a tradição brasileira. Aliás,
retifico: panglossiano é o que o presidente não é: trata-se de um político
useiro e vezeiro, e sabe-se hoje, desde seus tempos de sindicalista, nas piores
práticas do que se pode chamar, em geral, de cultura política brasileira, ou
nos termos do clássico Sergio Buarque de Holanda, do arraigado patrimonialismo
que no Brasil não cede lugar à modernização das relações sociais; ao contrário,
o patrimonialismo ou a "cordialidade" é permanentemente atualizada pela abissal
desigualdade social, que torna a democracia uma quimera. Essa perda não se
limita ao Partido dos Trabalhadores: é uma catástrofe para a esquerda, até
mundial, e um prolongamento infinito da "via passiva" brasileira, pois a
sociedade encontra-se, agora, sem "direção moral" no forte sentido gramsciano:
as possibilidades da transformação social ficam, outra vez, congeladas, e
remetidas às calendas, pois a construção da hegemonia não é um processo fácil,
nem seus atores podem ser substituídos.
Como o Partido dos Trabalhadores chegou a ser um dos arquitetos da violência
anti-republicana da corrupção deslavada? Tampouco tratou-se de um "raio num dia
de céu azul", embora a profundidade e extensão do atoleiro ético em que o PT
submergiu não pudessem ser previstas nem pelos mais exigentes cânones da
ciência social. Fundamentos ' pode ter fundamento um atoleiro? ' desse desastre
já se estruturavam nos pequenos escândalos de prefeituras geralmente
desimportantes, na transformação de quadros partidários em dirigentes de fundos
de pensão das estatais ' tema tratado em O ornitorrinco e repetido em "O
Momento Lênin" ' e finalmente na intensa burocratização do partido, numa
tendência anunciada há um século por Robert Michels. Plagiando Edward Gibbon, o
grande historiador da decadência do Império Romano, se o declínio do Partido
dos Trabalhadores foi um processo longo, sua queda é um deslocamento brusco,
que se consumou com a chegada do partido ao governo. Ali deu-se a estatização
do partido, e não o aparelhamento do Estado, que é a crítica mais freqüente ao
assalto dos cargos públicos por militantes do PT. A caneta que nomeia 20 mil
funcionários ' quando, diz-se, o presidente da França ao empossar-se nomeia
apenas 300 ' é o grande fator de corrupção, pois transforma militantes em
funcionários e ideologia em interesses materiais: a grande maioria desses
cargos e funções recebe salários várias vezes acima da média brasileira, e os
"marajás" das grandes empresas estatais tiram remunerações que vão muito além
de 30 vezes o salário-mínimo brasileiro. Além disso, as funções de governo
obrigam ao contato diário com as grandes empresas, o que abre o flanco para
todo tipo de corrupção; nas grandes empresas estatais, elas são mesmo parte do
núcleo duro da grande burguesia globalizada. O BNDES é o maior banco de
desenvolvimento do mundo, a Petrobrás situa-se hoje entre as 15 maiores
empresas de petróleo do mundo e é a maior empresa da América Latina, o Banco do
Brasil é o maior banco brasileiro, acima dos do setor privado, e a lista seria
longa para dar conta de que as empresas estatais não estão do lado externo da
corrupção, mas são seus ativos empreendedores. Coisa parecida já havia
acontecido com o governo Fernando Henrique Cardoso, no capítulo das
privatizações. E o PSDB também é um partido estatal: fora do poder, ele minguou
tanto que não consegue manter um candidato à presidência minimamente
competitivo mesmo em São Paulo, onde o tucano presidenciável foi governador nos
últimos seis anos, e vice de Mário Covas durante seis. O contato do PSDB, ou de
seus principais membros paulistas, com os grandes interesses econômicos de São
Paulo, ainda no remoto governo peemedebista de Franco Montoro, em 1982,
corrompeu desde o inicio os fundamentos do partido que se apresentaria como
laico e republicano, preenchendo um lugar vazio no naipe partidário-ideológico
brasileiro.
Com essa (des)armação político-ideológica-material, o PT transformou-se, como
já foi dito, em "correia de transmissão" do governo, assim mesmo escanteado das
grandes decisões na área econômica, e o que está em construção é o petismo-
lulismo, a versão brasileira para o novo populismo que desta vez não é a forma
autoritária de inclusão do operariado na política, mas seu contrário: é a forma
democrática (?) de sua exclusão da política. O presidente passa por cima das
instituições e de seu próprio partido. A abissal desigualdade brasileira posta
sob o fogo cerrado da blitz neoliberal, privatizações, desregulamentações,
ataque aos direitos, produziu não um individualismo, mesmo o possessivo, mas
uma tremenda agudização no caminho da barbárie: a competitividade numa
sociedade desigual não tem nada para transformar-se em individualismo
democratizante, mas se converte num perigoso canibalismo social e político.
Episódios até hoje não esclarecidos, como os assassinatos de Celso Daniel,
prefeito da cidade industrial de Santo André, coordenador do programa de
governo de Lula em 2002 e muito provavelmente seu (ex)futuro ministro da
Fazenda, e de Toninho de Campinas, prefeito da segunda maior cidade do Estado
de São Paulo, deixam no ar suspeitas de envolvimento de militantes ' e até de
dirigentes ' do próprio Partido dos Trabalhadores nas relações promíscuas que
provavelmente geraram os crimes, os quais o PT imediata e definitivamente
classificou de "crimes comuns"; as famílias dos assassinados sempre declararam
que se tratou de crimes políticos e o próprio Ministério Público empreende
investigações na mesma linha. Um gangsterismo muito parecido com o que se deu
em outros partidos da esquerda latino-americana ronda o ambiente. Aliás, foi o
Partido Comunista da União Soviética, sob Stálin, quem transformou a luta
partidária e política em gangsterismo. Muito recentemente, a cidade de São
Paulo, a maior e mais importante do país ' incluída junto com Pequim, Cidade do
México, Cairo, no rol das maiores cidades mundiais ' foi paralisada por ordem
do chamado PCC (Primeiro Comando da Capital), uma organização criminosa,
fortemente arraigada nos presídios, que desafiou a polícia e produziu uma
matança de 150 pessoas, entre bandidos, policiais e gente comum do povo. A tudo
isso, o Estado responde com os programas típicos do círculo vicioso da pobreza:
Bolsa-Família é seu principal atout. Uma sociologia barata diz que a
criminalidade, o PCC e seus similares são produto da pobreza e da favelização;
isto é falso: a criminalidade, a violência, o PCC e outras organizações
criminosas geram-se nas favelas porque estas é que são ilegais numa democracia.
E então PCCs escondem-se na ilegalidade das favelas: não se está falando aqui
de ilegalidade no sentido jurídico, mas no sentido forte de que os níveis de
pobreza no Brasil são um atentado à cidadania dos pobres. O PCC e seus
similares tiram partido dessa ilegalidade, e como nela não há lugar para o
contrato, eles exercem sobre elas e eles (os pobres) o terror da ilegalidade:
as ocupações das crianças pobres como "aviadores" e "olheiros" dos
narcotraficantes e a omertá imposta aos moradores são as formas desse
aproveitamento da ilegalidade.
Depois desse vasto repertório de capitulações e fracassos, pode-se manter ainda
a analogia introdutória do Rubicão atravessado por Lênin e recusado por Lula? A
comparação entre os dois personagens é insustentável, desde logo, qualquer que
seja a condenação bem-pensante do líder russo e a benevolência com respeito a
Lula. A Revolução de Outubro foi a abertura do longo ciclo das revoluções
proletárias e abriu também as portas para a social-democratização do Ocidente
desenvolvido capitalista, que é o que está sendo posto em xeque pelo
neoliberalismo. O governo Lula não tem, evidentemente, esse protagonismo, mas
não constitui latino-americanismo nem brasileirismo demodés reivindicar que um
êxito democrático-republicano com tendência socialista do governo Lula
significaria para a América Latina um tournant decisivo para sair do atoleiro
neoliberal e da posição subordinada na globalização capitalista contemporânea e
do futuro, e para a esquerda mundial uma atualização de sua missão
civilizatória e revolucionária.
Portanto, a analogia do Rubicão atravessado com o Rubicão recusado mantém-se, a
meu ver, por aquela razão principal e mais: Lênin percebeu o fracasso de
Kerensky e da via democrática num país apenas saído da servidão, e investiu na
desestruturação total do sistema que Kerensky buscava refazer; Lula fez
exatamente o programa de Kerensky, e por isso fracassou, embora ainda não tenha
encontrado seu Lênin. A "indeterminação" nos dois casos é similar, pois o
Rubicão de Lênin também estava altamente pré-determinado pelo expansionismo
capitalista russo sob a égide dupla franco-alemã; é a Revolução que o revoga.
Lula, sua eleição e seu governo foram altamente pré-determinados pela intensa
globalização e desestatização: seu governo não as revoga, mas as sanciona e se
submete a elas. Havia alguma chance para uma trajetória diferente? Trótski
responde na sua História da Revolução Russa que seu primeiro volume tratou de
mostrar como era implausível a Revolução, enquanto dedicou os livros que se
seguiram a demonstrar como a Revolução desfez a contradição, fazendo-se. No
primeiro caso, a brecha que a liberdade abria num contexto altamente conturbado
foi alargada pela Revolução; no segundo caso, brecha semelhante foi fechada
exatamente pelo partido que havia contribuído para criá-la. Lênin atua num
contexto de um capitalismo em crescimento na Rússia; Lula num contexto de um
capitalismo totalmente implantado e cuja dinâmica foi extrovertida.. Uma
resposta completa e satisfatória à questão colocada pelos amigos e companheiros
da New Left Review exigiria outro "Momento", a que já estou dedicado, mas por
enquanto ainda falta passar muita água sob o moinho desse fracasso para
decifrar sua (i)moralidade.47
[1] Relatório final do projeto temático Fapesp O pensamento nas rupturas da
política. Este trabalho, embora de assinatura individual, origina- se das
discussões e da temática que o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania
(Cenedic) vem organizando desde o ano 2000.Sem o concurso ativo dos meus
colegas, ele não poderia ser elaborado,e meus agradecimentos são,pois,o
reconhecimento de minha dívida, que espero aumentará no correr dos anos.
[2] Leon Trótski. A história da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
[3] O desenvolvimento do capitalismo na Rússia,de Lênin,pode ser considerado a
primeira e sistemática exposição de um caso de subdesenvolvimento, assim como
o capítulo Peculiaridades do Desenvolvimento da Rússia e o apêndice I do 1º
volume d'A história da Revolução Russa.O termo narodnik, populista em russo,
designava uma concepção política ancorada no caráter especial,nas bondades do
povo russo, com o que deslizava para o paternalismo como base de um projeto
nacional de autonomia dentro do capitalismo. Não está muito longe do que a
literatura depois atribuiu aos regimes chamados populistas da América Latina da
época da arrancada da industrialização autoritária. Observe-se que esse
populismo surge apenas com a turbulência provocada pela industrialização
acelerada em sociedades que, no caso russo, ainda não haviam saído inteiramente
da servidão, formalmente abolida apenas na segunda metade do século XIX, e que
no caso brasileiro, a escravatura foi declarada extinta em 1888. Os teóricos
latinoamericanos pais da teorização sobre o populismo certamente se apropriaram
das referências russas.
[4] Vladimir Lênin. Teses de Abril e Cartas de longe. Belo Horizonte: Veja,
1979.Coleção Polêmica.
[5] Ver o seguinte trecho das Teses: Fraternização. 2. O que há de original na
situação atual da Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que deu
o poder à burguesia por causa do grau insuficiente de consciência e organização
do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o poder ao proletariado e às
camadas pobres do campesinato.
[6] Trótski reconhece esse momento de indeterminação ao escrever a última frase
do capítulo XXIII do 1º volume de sua História: Este 1º volume, consagrado à
Revolução de Fevereiro, mostra como e por que ela devia ficar reduzida a nada.
O segundo e o terceiro volumes mostrarão de que modo a Revolução de Outubro
arrebatará a vitória. Lênin: A questão não é saber se os operários estão
prontos, mas para que e como devemos prepará-los. Projeto de artigo ou de
discurso em apoio às Teses de Abril, in:Teses de Abril, op.cit.6] Trótski
reconhece esse momento de indeterminação ao escrever a última frase do capítulo
XXIII do 1º volume de sua História: Este 1º volume, consagrado à Revolução de
Fevereiro, mostra como e por que ela devia ficar reduzida a nada. O segundo e o
terceiro volumes mostrarão de que modo a Revolução de Outubro arrebatará a
vitória. Lênin: A questão não é saber se os operários estão prontos, mas para
que e como devemos prepará-los. Projeto de artigo ou de discurso em apoio às
Teses de Abril, in:Teses de Abril, op.cit.
[7] Lênin, na tradição de Marx, com seu gosto pelo exame empírico, debruça-se
sobre as expressões quantitativas do surgimento da classe, ao contrário de
apenas pensá-la ideologicamente. E estuda minuciosamente a diferenciação do
campesinato, a tipologia da velha e da nova indústria, o crescimento do
assalariado, a eclosão das greves. Ver, por exemplo, as referências nos artigos
sobre as greves em Sobre os sindicatos, in. Teoria e História. São Paulo:
Editora Pólis, 1979 e o minucioso estudo do desenvolvimento do capitalismo em
El Desarrollo del Capitalismo en Rusia. Moscú:Editorial Progreso,1979.
[8] Esse subtítulo é uma sugestão do que poderia ter sido uma conclusão de Adso
de Melk,perguntando ao seu mestre Guilherme de (Occam) Baskerville, depois do
incêndio da esplêndida abadia: Mestre, saímos do labirinto?. Guilherme
poderia apenas ter olhado de través as cinzas e restos fumegantes da primorosa
construção D'après, sem a permissão do autor,Umberto Eco.O nome da rosa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. É a pergunta que se pode fazer ao governo
Lula: saiu do labirinto do neoliberalismo?
[9] O acréscimo devo a meu colega e amigo Leonardo Mello e Silva, professor do
Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e pesquisador do Cenedic. Seguindo as
regras do calendário promulgado pela Revolução Francesa, deveria ser o 22
Prairial de Luiz Inácio, data da Carta ao Povo Brasileiro, as Capitulações de
Junho. O golpe de Lula foi o de qualificar- se como o líder e candidato da
contestação ao neoliberalismo e, travestindo- se de imperador, adotálo como
política de governo, sem reconsultar seu eleitorado. Tipicamente bonapartista.
[10] Essa conjuntura foi estudada pelo autor no relatório do projeto temático
Fapesp de 2002, e foi publicada como artigo com o título Política numa era de
indeterminação no livro República, Liberalismo, Cidadania. Fernando Teixeira
da Silva, Márcia R. Capelari Naxara e Vírgina C. Camilotti (orgs.). Piracicaba:
Editora da Unimep,2003.
[11] Era numa circunstância que não o afetava muito a sério a conhecida
incongruência das idéias, e sua difusão sem um ponto central, característica da
atualidade, cuja singular aritmética vai de cem a mil sem ter a unidade.
Robert Musil. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989,p.17.
[12] Estudei a conjuntura messiânica da eleição de Fernando Collor de Melo em
Collor: a falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago Editora,1992.
[13] Minha avaliação do governo FHC encontra-se em Política numa era de
indeterminação, op.cit., o que já adiantava no artigo A Derrota da Vitória: a
contradição do absolutismo de FHC, in Novos Estudos, março de 1998. Já em
março de 1996, a mesma revista,em seu número 44,dava conta de minha avaliação
negativa sobre o governo FHC, no debate promovido pelo Cebrap em
26.1.1996,sobre o primeiro ano de exercício do primeiro mandato, quando o êxito
do Plano Real em derrubar a inflação fascinava a todos.
[14] Slavoj Zizek.Bem-vindo ao deserto do real.São Paulo:Boitempo,2003.
[15] Veja-se a diferença. Lênin: 1. A falência econômica é iminente. É por
isso que eliminar a burguesia seria um erro. (Essa é uma dedução burguesa).
Quanto mais iminente é a falência, mais é urgente eliminar a burguesia.
Projeto de artigo ou de discurso em apoio às Teses de Abril, in: Teses de
Abril, op. cit. Em direção contrária, a Carta ao Povo Brasileiro, ou As
Capitulações de Junho,anuncia e jura que os contratos serão respeitados, e o
conservadorismo da política econômica justifica-se com o argumento de não
promover rupturas que desestabilizariam a economia e o governo.
[16] Ver,do autor,Política numa era de indeterminação, op. cit.
[17] Para uma história e avaliação do sindicalismo cutista, ver Roberto
Veras. Sindicalismo e democracia no Brasil: atualizações do novo sindicalismo
ao sindicato cidadão. Tese de Doutorado. Depto. de Sociologia da FFLCH-USP. São
Paulo,2002
[18] Ver Francisco de Oliveira e Alvaro Comin (orgs.).Os cavaleiros do anti-
apocalipse: trabalho e política na indústria automobilística. São Paulo:
Entrelinhas/Cebrap,1999.
[19] Wolfgang Leo Maar, professor de Filosofia na Universidade Federal de São
Carlos, em seminário promovido pelo Cenedic.
[20] Gravação revela atrito entre Furlan e Lessa. Folha de S.Paulo, 25/7/
2004.O áspero diálogo, relatado na matéria, entre o ministro e o presidente do
BNDES mostra, outra vez, a disputa não apenas de sentido, mas de poder entre
frações desenvolvimentistas nacionalistas e não-nacionalistas, quase repetindo
os anos 1950, quando Campos como autoritário- desenvolvimentista opunha-se aos
nacionalistas-desenvolvimentistas. Mas parece que Lessa não dispunha de ampla
base de apoio no empresariado, mesmo porque as antigas clivagens nacionalistas
versus nãonacionalistas há muito já não fazem sentido, o que revela, por seu
lado, o anacronismo do governo Lula. Também houve disputa semelhante no governo
FHC, e os não-nacionalistas também a ganharam, embora os nacionalistas tenham
enriquecido formidavelmente. O tempo passa rápido e a descartabilidade é
implacável: em novembro de 2004, Carlos Lessa foi demitido do BNDES,
supostamente em razão de suas polêmicas declarações sobre a política e o
presidente do Banco Central.
[21] É interessante observar-se que a oposição à predominância da orientação
neoliberal na política econômicaé agora liderada e representada pelos
economistas da linha desenvolvimentista, que no passado foram ligados ao PMDB.A
reunião de agosto do CDES dedicou-se à discussão do desenvolvimento, e suas
figuras estelares foram todas de economistas desenvolvimentistas do eixo IE-
Unicamp/IEI-UFRJ. Nenhum dos economistas propriamente do PT, que fazem uma
oposição à esquerda, esteve na reunião, convocada pelo ministro Jacques Wagner.
Sequer foi convidado Paul Singer,militante histórico e referência da esquerda
brasileira, além de membro do governo na qualidade de secretário nacional de
economia solidária do Ministério do Trabalho.
[22] As enormes dívidas desses setores foram contraídas na euforia do real
igual ao dólar que vigorou até 1999, quando a poderosa crise cambial pôs a nu o
fundamento da estabilização sob o Plano Real. A desvalorização posterior do
real evaporou os planos mirabolantes de modernização acelerada.
[23] Em julho de 2004, os jornais noticiaram o término da primeira etapa do
programa Brasil em Três Tempos, coordenado pelo ministro Gushiken. Pelas
notícias, trata-se de fato de pesquisas e cenários sobre o sexo dos anjos,
devendo iniciar-se, segundo os mesmos jornais, a fase de detalhamento em
projetos e em articulações concretas entre os grupos empresariais e o governo.
[24] A tese de Benedito Tadeu César, de quem fui co-orientador junto com o
prof. André Villas-Lobo, do IFCHUnicamp, produziu um excelente levantamento, e
interpretação, do caráter de classe do PT. Afiancei, à época, essa
interpretação, mas os ulteriores desenvolvimentos do PT o descaracterizam como
um partido de trabalhadores, que certamente ainda se incluem nele, mas não lhe
dão a marca.Ver Benedito Tadeu César. PT: A contemporaneidade possível. Base
social e projeto político(1980-1991). Porto Alegre: Editora da Universidade/
URFGS,2002.
[25] Francisco de Oliveira. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco.São Paulo:
Boitempo,2003.
[26] Ignácio Rangel vaticinou que o capital financeiro surgiria no Brasil pelas
mãos do Estado, e a dívida como setor privado era seu sinal mais claro. Como em
muitos dos seus famosos paradoxos, Ignácio acertou na previsão, mas equivocou-
se ao pensar que o capital financeiro subsiste sem o Estado,e não contemplou a
possibilidade de que a financeirização de uma economia periférica, longe de ser
sinal de maturidade para financiar seu próprio crescimento, pode se transformar
no seu oposto, no contexto do capitalismo globalizado. Deve-se dizer, como
esclarecimento, que o Previ do Banco do Brasil é anterior à ditadura militar,
que o tomou como modelo para criar fundos semelhantes nas demais empresas
estatais.
[27] Em julho de 2004, veio à tona o caso de espionagem feita pela empresa
Kroll, a serviço de acionistas da Brasil Telecom, que se debruçou também sobre
as atividades e ligações de importantes personagens do governo Lula. Menos que
o interesse sherlockiano sobre revelações do que Elio Gaspari chama a
privataria, uma privatização feita por pirataria, o que o imbroglio revela é
o papel da nova classe no sistema financeiro brasileiro. E apesar das
acusações de exagero na conceituação de uma nova classe, o ministro Gushiken
é o maior confirmador da tese:em matéria sobre o imbroglio, ele justificou sua
interferência junto aos fundos de pensão, dizendo que eles têm por obrigação se
meterem na administração das empresas das quais têm quotas, para defenderem os
interesses de seus acionistas. Sublinhe-se acionistas: o ministro não falou de
trabalhadores. Viva o Ornitorrinco! Folha de S.Paulo, edições de 22/7/2004; 23/
7/2004; 24/7/2004 e 25/7/2004.
[28] Ver Leda Paulani. Sem esperança de ser país: o governo Lula, 18 meses
depois. In: João Sicsú, Luiz Fernando de Paula e Renaut Michel (orgs.).
Desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. São
Paulo:Manole,2004.
[29] Leda Paulani,idem.
[30] Ver a revista Primeira Leitura n. 29,de julho de 2004.A dívida interna
como financiamento de gastos além das receitas é de uso universal,mas no Brasil
é muito recente, pois anteriormente os governos usavam a emissão monetária.
Desde Delfim Netto, o uso da dívida começou a ser maisimportante, mas a
exponencialidade de seu crescimento é um feito que se deve creditar ou
debitar ? a FHC. Ainda segundo o mesmo número da citada revista
inegavelmente uma revista tucana , o estoque total da dívida interna era de 60
bilhões e 700 milhões de reais em 1994, quando FHC se elegeu. Em dezembro de
2002,quando entregou a presidência a Lula, havia saltado para 623 bilhões,
havendo se multiplicado por dez.
[31] O mesmo não acontece com outros grandes produtores/exportadores de
petróleo, sobretudo os países árabes e a Venezuela,que não conseguiram montar
uma estrutura industrial em torno da exploração do óleo. O caráter privado da
indústria petrolífera nestes casos talvez ajude a explicar a falha, e no caso
venezuelano a total dependência do país às exportações do óleo implantou uma
doutrina de mercado livre que abortou a industrialização.
[32] Ver,do autor,Política numa era de indeterminação, op. cit.
[33] Os dados são de Marcio Pochmann. A década dos mitos: o novo modelo
econômico e a crise do trabalho no Brasil. São Paulo:Contexto,2001.
[34] Mesmo para os que dão de barato que houve uma capitulação do PT e de Lula
aos interesses capitalistas, neste caso devido ao forte peso da nova classe
na estrutura de comando do PT, ainda intriga a total conversão do presidente,
em tão pouco tempo, às teses que antes condenava. Minha própria interpretação é
que Lula nunca foi de esquerda, e seus horizontes ideológicos nunca foram muito
além dos valores individualistas. Hoje presidente, Lula confessou que sempre o
incomodou ser catalogado como de esquerda. A professora Isleide Fontenelle,
autora do excelente O nome da marca (Boitempo, 2002), tem uma hipótese mais
psicanalítica: ela acha que a conversão de Lula é da ordem do desejo recalcado.
No momento em que a vitória eleitoral se configurou, ocorreu o desrecalque, e
seus sonhos se sobrepuseram à ideologia que involuntariamente havia
encarnado, tanto pela construção do PT como partido de esquerda, quanto por
seus inimigos.Com seu carisma,ele impôs essa conversão ao partido e a seus
seguidores, mas talvez ele próprio não se dê conta da contradição no plano da
política entre o poder do seu carisma e o desejo inconsciente. É uma hipótese
instigante,e é claro que a burguesia está pouco preocupada com o que ocorreu
com a cabeça de Lula. Ela tem interesse apenas na sua cabeça de presidente.
Mas Isleide não está inventando: em entrevista à revista Veja, em 1997, Lula
declarou à repórter Thais Oyama: Quero ser rico e anônimo, cansei de ser pobre
e famoso. E mais: Eu sempre tive o sonho (olha aí Isleide) de ir ao Massimo
um dos restaurantes mais caros de São Paulo e vou fazer plástica quando
tiver condições ( ) quero tirar essa papada aqui do olho. Citado por Gilberto
Maringoni. - Governo Lula: uma derrota histórica dos trabalhadores. In:
Palavra Cruzada. http://geocities.yahoo.com.br. Acesso em 9/11/2004.
[35] O termo foi cunhado por Alain Lipietz,referindo-se à adoção e adaptação do
chamado modelo fordista de produção e organização do trabalho em economias
subdesenvolvidas. Miragens e milagres: problemas da industrialização no
Terceiro Mundo. São Paulo:Nobel,1988.
[36] Ver Cibele Rizek e Leonardo Mello e Silva, relatório do subprojeto
Trabalho e qualificação no complexo químico paulista.Mimeo;Leonardo Mello e
Silva,Trabalho em grupo e sociabilidade privada.São Paulo:Editora 34, 2004;
Milena Bendazzoli, O consenso dos inocentes. Dissertação de mestrado. Depto. de
Sociologia da FFLCH-USP,2003.
[37] Há diferenças metodológicas entre o IBGE e o Dieese. O primeiro apura
apenas o desemprego aberto, enquanto o segundo inclui também o desemprego
disfarçado e a chamada taxa de desalento,isto é,pessoas que já desistiram de
procurar emprego.
[38] A CUT, a outrora poderosa central cuja afinidade com o PT é notória o
partido, afinal, foi formado principalmente pela liderança sindical que
posteriormente formou a própria central , renovou sua direção já sob o novo
governo.Lula interferiu diretamente e afastou o presidente João Felício, que
era candidato à reeleição, com fortes chances de manter-se, posto que sua
categoria,a dos professores do ensino oficial fundamental e médio, é hoje a
maior entre os sindicatos filiados à CUT. Como isso poderia levar a central a
opor resistências à reforma da previdência dos servidores públicos, Felício foi
convidado a renunciar, e Lula indicou o metalúrgico Luiz Marinho,
anteriormente presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo e
Diadema, para presidir a CUT. Os metalúrgicos foram uma das categorias,junto
com os bancários, mais atingidas pela globalização/ reestruturação produtiva, e
embora seja uma das categorias mitológicas do chamado sindicalismo cutista,
seu poder de dissuasão é notoriamente declinante. É sintomático também que ex-
bancários tenham sido dois poderosos ministros do governo Lula, os ex-ministros
Gushiken e Berzoini,este operador da reforma da previdência. Mas estão ali não
como ex-bancários, mas como membros da nova classe. Nem o populismo de
Vargas,nem sobretudo o de Goulart, tinha ousado tanto.O paradoxo é que a
central, construída para combater o peleguismo, tenha se transformado em
correia de transmissãodo governo do PT.
[39] Vale lembrar, uma vez mais, como a mídia, ao tempo radiofônica, fez sua
entrée triunfal na política com o nazismo,um meio técnico para passar por cima
das instituições mediadoras, atualizando a presença do führer, descartando-
a para reapresentá-la como nova. Ver o insubstituível Walter Benjamin,A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas, vol.1.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
[40] Tariq Ali, em artigo especial para a Folha de S.Paulo, Chávez dá
esperança aos pobres, edição de 18/8/ 2004, relata uma conversa com Hugo
Chávez em que este declara:Não acredito nos postulados da revolução marxista.
Não aceito que estejamos vivendo num período de revoluções proletárias. A
realidade nos diz isso todos os dias.O que ele está dizendo é que não há
classe operária na Venezuela que possa ser o agente de revoluções que ele chama
de marxistas,isto é, que siga os cânones clássicos interpretados pelo marxismo.
[41] Evelina Dagnino, Os movimentos sociais na emergência de uma nova noção de
cidadania.In:Evelina Dagnino (org.), Anos 90: política e sociedade no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1994;Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática,
Os movimentos sociais e a construção democrática. In: Idéias 5(2)6(1).
Revista do IFCH. Campinas: Unicamp, 1998-1999.
[42] É assim que entendo o período que se estende desde as primeiras
manifestações e desafios à ditadura militar até a eleição de Fernando Collor de
Melo, em 1989.Ver Política numa era de indeterminação, op. cit., e também Os
movimentos sociais e a construção democrática,Idéias,op.cit.
[43] O episódio,em agosto de 2004, do vazamento de informações da CPI do
Banestado sobre o pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal de banqueiros e
altos executivos do mercado financeiro, provocou uma intensa movimentação de
todos os partidos todos para encerrar rapidamente os trabalhos da CPI,
devolvendo- se ao Banco Central os dados relativos aos referidos banqueiros e
executivos,pois não estavam sob suspeita. Sherlock Holmes se mataria de riso.O
que fica para além do personagem de Conan Doyle é que deputados e senadores
provavelmente receberam um recado: se prosseguirem nas apurações, não haverá
mais financiamento de campanha.
[44] Ver entrevista à revista Primeira Leitura, em que ele se oferece como o
único capaz de renegociar a dívida interna brasileira, que ele mesmo
exponenciou,porque só ele tem credibilidade para tal façanha sem provocar a
fúria do grande capital especulativo. Todos confiam nele, que não dará calote.
Se o governo Lula fracassar, é claro que ele poderá voltar ao governo,
reconduzido por alguma crise, mas não porque seja o representante da grande
burguesia.
[45] Para um apanhado extremamente interessante das armadilhas ideológicas da
teoria econômica, desde os utilitaristas estilo Mill, e sobretudo para conhecer
as raízes do pensamento de Hayek, ver a tese de livre-docência de Leda Paulani,
Modernidade e discurso econômico, FEAUSP, 2004,e o livro de Francisco Teixeira,
Trabalho e valor: contribuição para a crítica da razão econômica. São Paulo:
Cortez,2004.
[46] Abordei essa questão em Privatização do público,destituição da fala e
anulação da política:o totalitarismo neoliberal. In: Francisco de Oliveira e
Maria Célia Paoli (orgs.).Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e
hegemonia global. O texto foi tido como exagerado e produto de um humanismo
abstrato no dizer de Luiz Jorge Werneck Vianna. Mas está se ampliando o número
de intelectuais que estão chamando pelo mesmo nome de totalitarismo o sistema
que está sendo gerado pelo capitalismo globalizado, sob a implacável liderança
norte-americana, com suas guerras preventivas, e cuja característica
totalitária é exatamente a exclusão das classes trabalhadoras da política e
sua estatização.
[47] Concluído no inverno de 2006, da nossa desesperança. Obrigado, Rodrigo
Naves, pelos comentários sempre precisos e generosos; obrigado, amigos da New
Left Review, especialmente Susan Watkins, pela leitura atenta e crítica,
obrigado, meus amigos do Cenedic, que me influenciaram bastante para escrever
este ensaio, e obrigado também John Steinbeck pela sugestão para o fechamento
deste PS.