Agenciamentos Políticos da "Mistura": Identificação Étnica e Segmentação Negro-
Indígena entre os Pankararú e os Xocó
Apresentação
A exclusividade do interesse nas cosmologias nativas, mitologias heróicas,
estruturas de parentesco e sistemas de diagnóstico e cura, que marcam a
antropologia americanista, cede cada vez mais a uma contaminação desses temas
por questões relacionadas aos contextos coloniais e tutelares, à mobilidade
geográfica e social e, finalmente, às questões relativas à identidade. Dado o
crescente conhecimento e reconhecimento públicos da mobilização política de
populações que se imaginam, se organizam e se apresentam como indígenas por
todo o Continente, o tema da identidade étnica é cada vez menos evitável,
esteja a sua abordagem vinculada ou não ao quadro teórico da etnicidade. Além
disso, mesmo na linha de estudos já estabelecida sobre as relações
interétnicas, os temas de interesse começam a ultrapassar os limites dos
dualismos que marcaram, por exemplo, uma boa parte da Antropologia e da
Sociologia brasileiras desde a década de 1950, centradas, respectivamente, nas
oposições índios/brancos e negros/brancos. Os contrastes tornam-se mais
complexos, incluindo outros grupos minoritários, mas, principalmente, a
confrontação cruzada entre eles, em que a dualidade entre "o branco"
e "o outro" já não é mais a chave explicativa de tudo.
O trabalho seminal de Roger Bastide sobre as "Américas Negras",
publicado em 1967, que já tinha como motivação os dilemas políticos
relacionados tanto à emancipação da população afro-americana das cidades,
quanto à descolonização africana (cf. Bastide, 1973:7-10), apontam para a
importância das trocas entre negros e indígenas na conformação de todo um tipo
cultural americano. O ponto de partida de Bastide era justamente a observação
dos dados históricos sobre o encontro entre as formas de resistência negra e
indígena ' "Dans le marronage, l'africain a recontré l'indien"
(ibidem:77) ', seu campo de observação eram as estruturas rituais religiosas, e
seu horizonte teórico era a questão da mestiçagem, a "fusão de
civilizações", geradora de uma cultura "negra" original. Os
frutos dessa perspectiva continuam brotando no campo de estudos das religiões
afro-americanas e, recentemente, têm fecundado também trabalhos que se
pretendem renovadores da antropologia americanista (cf. Losonczy, 1997).
Portanto, ainda que não seja um tema ou um campo de estudos privilegiado, as
trocas e sínteses entre as heranças étnicas indo-americanas e africanas já
possuem uma pequena história na disciplina. Este texto, no entanto, busca
abordar o mesmo tema, mas de uma perspectiva distinta, estando motivado por um
outro contexto e apoiado em outros pontos de partida, campos de observação e
horizontes teóricos.
Nos últimos dez anos, particularmente em função da emergência social do tema
dos "remanescentes indígenas" e dos "remanescentes de
quilombos", as Ciências Sociais e a Historiografia brasileiras1 têm
revelado um aspecto da realidade rural que não era objeto nem dos "estudos
étnicos", nem dos "estudos raciais", ou dos estudos sobre
"campesinato", mas que agora surge com a força de uma evidência.
Trata-se das comunidades rurais que se mobilizam politicamente por territórios
de uso tradicional, com base em um vocabulário e uma organização social de tipo
étnico, respaldadas, ou mesmo motivadas, pela introdução do reconhecimento
legal de seus direitos no ordenamento jurídico nacional. Nesse quadro, os
"remanescentes indígenas" saíram na frente, tornando-se especialmente
visíveis depois da expansão das emergências indígenas da década de 1970,
particularmente no Nordeste, onde elas eram mais surpreendentes. No final da
década de 1980, mas de uma forma muito rápida, os "remanescentes de
quilombos" também entram em cena, ampliando o campo de observação do
fenômeno.
Por isto, o ponto de partida desse exercício não são as formas de resistência
histórica de índios e negros ' ainda que elas sejam fundamentais para
compreender o que vem ocorrendo ', mas a sua tradução ou recriação
contemporânea. Seu campo de observação são as formas de organizar socialmente e
construir memorialmente as diferentes heranças deixadas por essas
ancestralidades. Seu horizonte teórico é dado pelo problema dos agenciamentos
classificatórios da "mistura", categoria de uso corrente, mas que
assume significados variados para esses grupos sociais. Foi no desenvolvimento
da pesquisa entre os Pankararú, localizados no sertão pernambucano de Tacaratú,
submédio São Francisco, que as questões já enunciadas mostraram sua pertinência
(Arruti, 1996). Ainda que não tenham tido um tratamento especial naquela
ocasião, elas motivaram o redirecionamento das investigações seguintes (Arruti,
1997a) e a busca de um campo de observação empírica mais adequado. Esse segundo
campo de observação veio a ser constituído pelos Xocó e seus vizinhos, os
negros da comunidade do Mocambo, localizados no sertão sergipano de Porto da
Folha, às margens do baixo São Francisco (Arruti, 1997b).
Este texto reconstitui a conexão entre esses exemplos, buscando colocá-los em
uma perspectiva comparada, que os aproxima não por suas semelhanças, mas por
seus contrastes. É possível lê-los como soluções quase opostas, tanto para a
situação de "mistura" originária, quanto para as formas de
segmentação posteriores, em que o lugar do negro no interior ou na periferia da
sociedade indígena ganha significados distintos. A sobreposição dessas
situações consiste, portanto, em um primeiro exercício comparativo que não tem
a pretensão de produzir conclusões, mas de ampliar e sistematizar o repertório
das questões suscitadas. Para isso, um primeiro bloco reconstituirá o contexto
histórico mais geral que, de certa forma, unifica esses exemplos, enquanto
produtos de uma política colonial e imperial de produção de territórios
poliétnicos, cujo destino manifesto era a homogeneização da população
sertaneja. Veremos que diversos expedientes classificatórios foram acionados na
descrição e administração dessas populações, mas também foram reapropriados por
elas. Em um segundo bloco, passamos à descrição da situação Pankararú, na qual
o lugar do negroapresenta uma forte ambigüidade no interior da memória
indígena, passando da plena absorção histórica, de caráter matrimonial e
ritual, à função de argumento faccional, frente à simbologia e à pragmática da
"remanescência". No terceiro bloco, há a descrição da situação de
vizinhança e parentesco entre índios Xocó e negros do Mocambo, que parece
caminhar, irregularmente, em uma direção oposta ao do primeiro exemplo, indo da
diferenciação categórica, ainda que variável, até a aliança como
"remanescentes", indígena e quilombola. Em ambos os casos, a análise
dos agenciamentos da "mistura" são indissociáveis dos contextos
colonial e tutelar, da mobilidade social e geográfica e, finalmente, das
questões concernentes à identidade e sua "manipulação".
2. Perspectivas Histórica e Discursiva da "Mistura"
Depois da eliminação do poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos,
da transformação dos aldeamentos em vilas (1758), e do incentivo oficial aos
casamentos mistos entre portugueses e índios (1775) (Hoornaert, 1992), foi a
vez do que podemos caracterizar como a política das "reuniões". Nela,
sob o argumento de que em vários dos aldeamentos restava apenas um pequeno
número de sobreviventes, alguns deles eram extintos e suas populações
reagrupadas junto às de outros. Tais medidas, que constituíram uma verdadeira
estratégia da mistura
,2 seriam complementadas pelo ataque ao relativo "isolamento" que os
aldeamentos restantes ainda permitiam aos indígenas. No início do século XIX, o
governo imperial voltaria a incentivar a ocupação não-indígena das terras das
antigas missões e aldeamentos, como forma de criar uma população finalmente
homogênea (Cunha, 1992), e ao mesmo tempo absorver, na estrutura estatal,
núcleos populacionais administrativa e economicamente já plenamente
estruturados.
Finalmente, em 1850, entre outras transformações cruciais, a "lei de
terras" mandava incorporar às propriedades do Estado as terras das aldeias
de índios que "vivem dispersos e confundidos na mesma população
civilizada". Vale ressaltar que, então, o argumento já não era apenas de
caráter quantitativo (poucos índios em muitas terras), mas qualitativo,
comportamental. Assim, as próprias comissões criadas para percorrer os estados
discriminando as terras públicas são incumbidas de verificar o quanto as
populações dos aldeamentos indígenas ainda mantinham sua tradições e sua
autonomia com relação ao mercado regional, ou seja, o seu grau de
"mistura". É importante perceber a simultaneidade entre os trabalhos
de discriminação das terras públicas, as políticas de implantação da imigração
estrangeira, de libertação dos escravos através do "fundo de
emancipação" do Império e a criação de diferentes tipos de
"colônias" (agrícolas, militares, de indigentes, de órfãos etc.).
Políticas que, combinadas, refletem uma conjuntura em que se tentava remodelar
o padrão de controle da mão-de-obra rural pobre, em uma intensa busca da medida
exata entre a tutela daquela população, que a ordem demandava, e a liberação de
homens e terras que o progresso pedia. Isso faz com que a extinção dos
aldeamentos indígenas no Nordeste seja menos o desdobramento de uma política
indigenistacom lógica própria, do que um elemento de um quadro mais amplo que
compõe a reordenação dos padrões de intervenção e controle sobre a população
rural pobre nordestina num momento de transição das relações de trabalho para o
capitalismo. A seguir descreveremos o resultado que essa política comum
alcançou tanto no caso dos Pankararú, quanto no caso dos Xocó, para em seguida
seguir mais de perto o desdobramento em cada um deles.
A produção de territórios poliétnicos
No caso dos Pankararú, segundo o levantamento realizado por Hohental (1960), os
registros mais antigos do etnônimo são de 1702, surgidos nos relatórios das
Missões das ilhas do São Francisco junto a outros três grupos, os Kararúzes (ou
Cararús), os Tacaruba e os Porús. Mais tarde, na Informação Geral e Descrição
de Pernambucode 1740, há notícias dos Pankararú (Brancaruz) e dos Porús em
outros dois aldeamentos missionários localizados em ilhas do São Francisco e é,
finalmente, com a criação do aldeamento de "Brejo dos Padres",
possivelmente em 1802 (ibidem), a partir do ajuntamento destes com os Umã,
Vouvê e Jeritacó (Barbalho, 1985), que se define sua atual localização. Nesse
território poliétnico, em função das reiteradas tentativas estatais e
missionárias, foram reunidos ainda grupos "brabios" da Serra Negra,
ancestrais dos grupos hoje conhecidos como Kambiwá e Kapinawá, conforme relatam
documentos escritos3 e a história oral Pankararú. Não possuímos informações
censitárias detalhadas sobre o aldeamento do Brejo dos Padres nesse período,
apenas duas contagens gerais, produzidas no bojo do seu processo de extinção.
Em 1857 relatava-se a existência de 290 índios, distribuídos em 96 famílias e,
em 1878, 363 índios distribuídos em 96 famílias.
4
Quanto aos Xocó, Hohental descreve situação semelhante, mas sugerindo a
existência de grupos territorialmente descontínuos. As primeiras notícias sobre
os "Chocaz" são de 1749 e 1761 e os localizam em Pão de Açúcar (SE).
Mais tarde, tal etnônimo (ou variante) é identificado simultaneamente em três
localidades. Na Ilha de São Pedro, município de Porto da Folha (SE), em Olho
D'Água do Meio (AL), área atualmente ocupada pelos Tingui-Botó, e em Porto Real
Colégio (AL), em terras de um antigo aldeamento jesuíta do século XVI
(Hohental, 1960), onde teriam se reunido aos Kariri, originando os atuais
Kariri-Xocó. Há ainda notícias de índios autodesignados Xocó nos sertões de
Pernambuco nos anos de 1802 e 1804, quando Frei Vital de Frescarollo os teria
retirado das matas, catequizado e "reunido" aos "Umãos
Vouvê" no aldeamento de Olho D'Água da Gameleira.5 Quanto à sua população,
Frei Vital informa que, em 1804, os Xocó "amansados" seriam 36, vindo
a formar com os outros um total de 130 índios. Sobre a Ilha de São Pedro, há um
censo do 1829 (do qual falaremos adiante) que os relaciona em número de 139.6
O processo de expropriação e de extinção oficial dos aldeamentos dos estados do
Nordeste chegaria a termo ao final da década de 1870. Em Sergipe, os
presidentes de Província nem mesmo esperaram a instituição da comissão de
demarcação de terras para resolver pela inexistência de índios, ainda que pouco
tempo antes manifestassem a carência de missionários para administrar seus
aldeamentos (Dantas e Dallari, 1980). Já em 1853, o governo provincial consegue
a extinção da Diretoria Geral de Índios de Sergipe e decreta a extinção de
todos os seus aldeamentos. Não obstante, no plano local, Frei Doroteu, que
havia sido trazido à Missão de São Pedro de Porto da Folha poucos anos antes,
em 1849, continuou o seu trabalho de catequese junto àquela população até 1878,
ano de sua morte. Nesse ano, o presidente de província decretava, mais uma vez,
a extinção daquela Missão Indígena e informava ao governo central que
"nesta Província não existem aldeias, nem mesmo verdadeiros índios",
apenas, continuava ele, "um ou outro indivíduo que conserva o sangue das
antigas raças [mas que] perde-se no meio de uma população mais ou menos
civilizada" (ênfases minhas).
7 Discurso ambíguo, que revela o quanto a plasticidade das categorias pôde
funcionar no exercício do poder sobre aquelas populações. Assim é que, em 1882,
as terras da antiga Missão puderam ser divididas em oito fazendas que, em 1888,
foram aforadas pela Câmara Municipal, enquanto os Xocó começavam a realizar
viagens periódicas ao Rio de Janeiro em busca de seus direitos.
É também em 1878 que a Comissão de Demarcação de Terras Públicas de Pernambuco
comunicava que os aldeamentos da província já estavam todos extintos e as suas
terras divididas em lotes familiares.8 Tais lotes teriam sido distribuídos
entre as famílias de "caboclos" dos antigos aldeamentos e, a parte
restante, vendida em hasta pública. No ano anterior, os Pankararú haviam vivido
o momento inaugural daquela a qual eles se referem como a "época das
linhas", isto é, da repartição do seu território em duas faixas paralelas
de lotes, distribuídos entre jagunços e escravos dos proprietários locais.
Libertados pelo "Fundo de Emancipação", tais escravos, em lugar de se
dispersarem pelo território provincial, foram fixados nos lotes familiares do
Brejo dos Padres, permanecendo sob a área de influência de seus antigos
proprietários e ampliando a diversidade étnica daquele território de
"mistura" e de reserva de mão-de-obra.9 Conforme os documentos
oficiais, o aldeamento de Brejo dos Padres foi dividido em 114 lotes (entre
151.230 m2 e 302.500 m2), 96 deles distribuídos entre as famílias indígenas.10
A memória Pankararú, no entanto, contradiz essa versão, esclarecendo que apenas
uma parte das famílias indígenas ganhou lotes nas "linhas", restando
às outras a alternativa de subirem as serras que cercam o Brejo dos Padres ou
dispersarem-se.
Em um mesmo golpe, a oligarquia local aparentemente eliminava os empecilhos
legais impostos pela estrutura da Missão Indígena, livrava-se do ônus de uma
eminente abolição da escravidão negra, ao mesmo tempo em que criava um reserva
local de trabalhadores nacionais, fruto da "mistura" entre eles. Isso
permite reconhecer o horizonte histórico da "mistura" que marca o
discurso sobree dessesíndios e negros, mas não esgota seus significados. A
seguir destacarei como a "mistura" é também o elemento que dá
mobilidade aos enquadramentos classificatórios dessas populações. Meu argumento
é que ela fornece o fundo plástico fundamental aos agenciamentos discursivos de
semelhanças e identidades, capaz de permitir a mobilidade dos indivíduos e
grupos entre as categorias classificatórias dominantes. Essa mobilidade tem
repercussões tanto no plano do exercício de poder, quanto o seu reconhecimento
tem em nossas análises históricas e sociológicas.
"Qualidades"
De acordo com a "Relação dos Habitantes da Freguesia de São Pedro de Porto
da Folha" fornecida pelo vigário da Missão Indígena homônima, a população
desta Freguesia dividia-se em 309 "portugueses", distribuídos por 69
fogos e 139 "indígenas", distribuídos pelos 46 fogos da Ilha de São
Pedro, onde funcionava a sua Missão.11 Criada em meados do século XVII, a
Missão Indígena de Porto da Folha, "reunia" diversos grupos indígenas
designados coletivamente como Aramurus ou Orumarus (aparentemente o etnônimo
entre eles dominante) como recompensa por sua colaboração militar com os
portugueses na luta contra a presença holandesa na região (Dantas e Dallari,
1980). A Missão foi, durante muito tempo, o único posto avançado através do
qual o Estado Imperial se fazia representar em todo o vasto Sertão de Porto da
Folha até que, em meados do século XIX, começassem a surgir as primeiras vilas
e suas estruturas municipais. Tal Relação é, portanto, a única contabilidade
pública daquela população do sertão interior sergipano do período, o que somado
ao seu caráter relativamente detalhado, lhe atribui uma importância que
ultrapassa a sua utilidade estatística, para lhe situar como demonstrativo das
formas de classificação disponíveis aos aparelhos de Estado, isto é, a forma
pela qual os habitantes daquele sertão eram pensados, repartidos e
administrados.
Depois de dividir toda a população recenseada em dois blocos,
"índios" e "portugueses", o vigário divide esta segunda
categoria censitária em várias colunas dedicadas às suas diferentes
"qualidades". Assim é que "português" revela-se um rótulo
composto por apenas 31 (10%) "brancos", aos quais se somavam 175
(57%) "pardos", 100 (32%) "pretos" e 3
"indígenas" (1%). Além disso, se observarmos a composição dos
agrupamentos familiares, veremos que dentre os 69 "fogos"
classificados como "portugueses", 17 (25%) eram constituídos por
casais de "pretos" ou compostos por "preto" e
"pardo". Além disso, a análise desses dados deve reconhecer ainda
que, mesmo as distinções entre branco, pardo e preto, que poderíamos tomar como
uma referência mais direta à "cor" das pessoas, não parece estar
baseada em critérios claramente definidos e exclusivos, mas em uma composição
entre variantes onde origem, cor de pele e, podemos imaginar, situação
socioeconômica, inserção religiosa e ritual, prestígio social, funcionavam como
variáveis num sistema em permanente reavaliação.
Na segunda metade da Relação, destinada ao registro dos "aldeados", o
vigário não acrescenta a mesma coluna "qualidade", aparentemente numa
simples economia de energia no preenchimento do censo, já que, por definição,
só "índios" eram "aldeados". Se compararmos, no entanto, o
que ocorreu com a outra metade da lista, dedicada aos "portugueses",
fica claro que tal supressão opera, de fato, uma naturalização da relação
existente entre o recorte administrativo "aldeados" e a
"qualidade", ou rótulo étnico "índios". Essas considerações
são reforçadas pela forte mobilidade da população compulsada, caracterizada
pelos dados da própria Relação: dos 309 "portugueses", 135 (44%)
tinham origem em outra freguesia e, entre estes, 26 (8,5%) eram
"pretos" livres e 17 (5,5%) "pretos" escravos. Dentro do
aldeamento não era diferente: dos 139 "índios", 61 (44%) provinham de
outras freguesias ou províncias vizinhas, da mesma forma que aqueles 3
"índios" não aldeados, ditos "portugueses". Como tive
oportunidade de descrever em outro trabalho (Arruti, 1996), tais migrações eram
muito comuns entre as populações dos diferentes aldeamentos em torno do São
Francisco, e é muito pouco provável que um sujeito ou família mantivesse sempre
e necessariamente a situação de "aldeado" durante essas constantes
viagens.
Isso não quer dizer que a reunião dessas pessoas sob o mesmo rótulo de
"portugueses" ou de "índios" seja um erro de categorização
do vigário. Meu argumento é que esse tipo de operação, que reúne e separa em
função de critérios variáveis e aparentemente arbitrários, faz parte da própria
natureza dos agenciamentos classificatórios: eles funcionam como ferramentas
que permitem agir sobre a realidade e cujo compromisso não é com a substância
dos objetos classificados, mas com a pragmaticidade da taxinomia gerada a
partir deles e sobre eles aplicada. No caso do nosso vigário, importava-lhe
apreender a população segundo o critério básico de ela ser aldeada ou não, isto
é, segundo a binarização entre aqueles que estavam ou não submetidos à sua
administração. A distinção entre índios e portugueses, neste caso, não é uma
distinção nem étnica, nem de cor, mas uma distinção que corresponde aos lugares
dos homens num determinado arranjo de liberdades e subordinações. A discussão
sobre a clareza que o vigário possa ter tido sobre a natureza instrumental dos
"rótulos" não deve, no entanto, obscurecer a questão fundamental,
relativa aos efeitos sociais desses agenciamentos classificatórios. Uma
apreensão direta e realista dessas categorias, que as quer tomar por dados da
realidade, tende a fazer com que as interpretações históricas e sociológicas
desconheçam justamente os seus conteúdos históricos e sociológicos, que operam
não como dados, mas como
discursos sobre a realidade
. 12
Assim, o termo "qualidade" manifesta um tipo de recorte das
diferenças entre os homens que não parece poder ser traduzido adequadamente por
nenhuma das classificações que nos são familiares, como cor, classe, raça ou
etnia. É reveladora a semelhança que essa situação encontra com o sistema de
classificações sociais desenvolvido na América espanhola, apesar da enorme
distância que separa o estilodaquela administração colonial em lidar com as
diferenças étnicas e o estilo adotado pela colonização portuguesa e pela
prática colonialbrasileira.
A administração espanhola também reconhecia as diferenças étnicas no interior
da sua população para lhes dar diferentes estatutos jurídicos, reduzindo-as a
um quadro bastante limitado de categorias, que incluíam, além dos espanhóis e
dos índios, diversas castas que, seguindo a tradição jurídica hispano-medieval,
estavam submetidas a legislações específicas13. Ao conjunto dessas distinções
era dado o nome de "calidad". Nesse caso também a "calidad"
era acionada não como uma classificação fixa, mas como um estatuto que
resultava da composição de variáveis como extração étnica, nível econômico e
relações políticas, que permitiam uma importante mobilidade jurídica aos
indivíduos e famílias (Baud et alii, 1996).
Vale lembrar que na situação colonial espanhola o baixo status dado aos índios
tinha, como uma contrapartida relativa, a garantia de um governo próprio e a
permanência em suas terras, motivando a que, sob certas condições, espanhóis
pobres preferissem ser absorvidos nos pueblos. No caso da situação colonial
portuguesa e imperial brasileira, a substituição da escravidão indígena por sua
progressiva despossessão territorial e pela transformação da identidade
indígena em estigma, fez que essa mobilidade assumisse, em termos gerais e no
longo prazo (mas nem sempre em situações históricas precisas e particulares),
apenas um sentido, aquele que leva de índio a caboclo e, deste, a branco.
Assim, a noção de "qualidade" nos permite propor o primeiro aspecto
do problema da plasticidade destes rótulos, retrospectivamente tomados como
sólidos demarcadores de fronteiras naturais, mas em realidade, referidos a um
enquadramento classificatório flutuante, conforme a mobilidade da população
local e os interesses das agências classificatórias.
A presença do indigenismo oficial no Brasil, já no século XX, por exemplo, cuja
motivação primeira era acelerar e controlar aquela passagem entre índio e
branco, pensada como natural, introduz novos elementos nesse jogo de
"qualidades" que terão efeitos paradoxais, como observaremos por meio
da situação dos Pankararú.
Fronteiras
Dispomos de alguns dados históricos sobre a questão da "mistura"
entre os Pankararú que iluminam outros aspectos da problemática dos
agenciamentos. Em 1950, o encarregado daquele Posto Indígena consultava a
Inspetoria Regional sobre a possibilidade de aceitar o retorno para a área
indígena de "índios que daqui se ausentaram há mais de dez anos",
antes, portanto, da demarcação da área.14 O encarregado explicava que
"ultimamente [...] têm procurado retornar ao aldeamento dezenas de pessoas
que daqui se ausentaram muito antes de ser criado o posto indígena e que,
convidadas pelo primeiro encarregado, quando da época de sua criação, para
retornarem às suas antigas residências, não aceitaram o convite". Ele
mesmo, particularmente considerava que aquelas pessoas já "se encontram
emancipadas da tutela indígena", não só por morarem há tantos anos fora da
área indígena, mas principalmente por sua "franca promiscuidade com
civilizados, em cujo meio constituíram família". É interessante como essa
forma de discernir os que estão fora dos que estão dentro da área indígena
fazendo referência quase exclusiva à "mistura", obscurece uma série
de questões envolvidas nessa tentativa de "retorno". Em primeiro
lugar, obscurece as razões pelas quais os que estavam fora queriam voltar à
aldeia. Em segundo lugar, obscurece a natureza da "fronteira" que
está em jogo, já que ela pode ser simultaneamente étnica, territorial ou
jurídica, como o uso da categoria "emancipados" sugere. Antes de
tentarmos esclarecer essas questões, vejamos alguns outros dados.
Em um dos últimos relatórios do SPI, de 1966, outro encarregado traduz em
números aquilo que o relatório anterior obscurecia. Ao referir-se à população
sob a administração do posto indígenanão como índiosou remanescentes indígenas,
mas como "mestiços" ou "caboclos", esse encarregado
agregava sob a ampla categoria de "assistidos", além destes, os
"particulares casados com [os] ditos mestiços".15 Compunham tal
população de "assistidos", 2.488 "mestiços de índios pancaraús
com brancos e negros" e 95 (47 mulheres e 48 homens)
"particulares".16 Ampliando ainda mais essa categoria, o relatório
dava também os números dos "mestiços pancararús que estão com residências
fora das terras deste Posto Indígena, vivendo uns em municípios adjacentes, e
outros em outros estados" (ênfases minhas). Eram 633 pessoas, cerca de um
quarto da população total da área. Assim, a elasticidade da qualidade de
"assistidos" opera um duplo movimento que traduz os fluxos da
"mistura" através das fronteiras Pankararú, isto é, aquele que
indianiza os que são trazidos de fora para dentro do território indígena e
aquele que permite manter a indianidade dos que saíram desse território.
Nesse último caso, pode-se falar em dispersões familiares que, aos poucos, dão
lugar a diferentes formas de reterritorialização Pankararú. Existia uma pequena
concentração de famílias em uma rua da antiga cidade de Petrolândia (hoje
alagada), mas também existiam famílias em pequenos ranchos temporários,
dispersos pelas margens do São Francisco, em geral trabalhando "de
meia". Em todos esses casos, no entanto, a aldeia continuava sendo a
referência fundamental, para onde os índios voltavam semanal ou mensalmente.
Outra concentração tinha lugar em Água Branca (atual Pariconha, AL), formada
pelas famílias que no final do século XIX haviam sido expulsas pelas linhas,
mas que não deixaram de manter contato regular com o Brejo dos Padres. Uma
terceira concentração era a de São Paulo que, desde a década de 1940, mas
principalmente a partir de 60, atraía muitos Pankararú como "paus de
arara" para o trabalho na construção civil e na Companhia Elétrica.17
De qualquer forma, o fato de estarem fora das fronteiras geográficasda área
indígena não significava que estivessem fora da fronteira étnica Pankararú e o
que demandavam era serem incluídos pela fronteira jurídica dos
"assistidos" do órgão indigenista. A essa demanda os dois
encarregados a que nos referimos responderam de formas inteiramente opostas,
ainda que a categoria da "mistura" ganhasse um lugar igualmente
central em ambas as avaliações, seja como critério de inclusão ou exclusão.
Como foi sugerido por Cardoso de Oliveira (1960), a importância dos Postos
Indígenas e da definição de um território garantido para o processo de
identificação étnica está no laço criado pelos direitos associados ao rótulo
"índios", representados, entre outras coisas, pela assistência que,
paradoxalmente aos objetivos assimilacionistas, reforça a adesão a uma
identidade indígena.
Entretanto, na situação Pankararú a distinção entre "assistidos" e
não-assistidos não correspondeu sempre à distinção entre os que estão e os que
não estão na área. Muito menos à distinção entre aqueles que passam a valorizar
ou desvalorizar a identidade indígena. O governo tutelar agrega às relações
rituais e de afinidade ou parentesco uma relação entre a identidade e o
território indígena (agora espaço jurídico), que passa por uma referência aos
"direitos". Voltando, assim, às nossas observações sobre as
"qualidades", uma identificação étnicanão é produto apenas de uma
"contrastividade", mas da composição dessas fronteiras, étnica,
jurídica e territorial. Ou, de outra forma, é um modo de classificar sujeitos
que os inclui tanto em grupos locais quanto em arcabouços jurídicos e políticos
estatais.
As partes seguintes deste texto buscam explorar esse ponto de partida, a partir
da análise dos mecanismos de segmentação que, recentemente, vieram a distinguir
mais claramente índios e negros entre os Xocó e os Pankararú. A sobreposição
das situações vividas nesses dois grupos com relação à mesma questão, nos
servirá como um primeiro ensaio sobre as variantes que atuam na definição das
diferentes soluções dadas à "mistura", quando esta é confrontada com
as "qualidades" e "fronteiras" a que fazem referência os
novos "direitos".
3. As "Sementes" da Diferença: Mistura e Faccionalismo Pankararú
Apesar de ser considerada pelos Pankararú como a mais brutal das interferências
dos fazendeiros sobre a vida tribal, a extinção oficial do aldeamento do Brejo
dos Padres, a sua repartição em lotes e a expulsão de parte de suas famílias
para a alocação de ex-escravos, não significou a dissolução do grupo indígena
enquanto tal. A vida ritual da aldeia foi transformada pela fragmentação e
dispersão das famílias, mas não foi anulada. As festas deixaram de se realizar
nos grandes terreiros coletivos de antes, mas continuaram existindo num formato
mais discreto, fragmentado em vários terreiros menores que correspondiam quase
que a cada uma das unidades familiares dispersadas pelas serras em torno. Isso
permitiu que, depois do impacto mais brutal, uma progressiva acomodação levasse
à lenta reaproximação entre as famílias expulsas do Brejo e as que haviam
ficado "misturadas" nas "linhas". Da mesma forma, as
famílias que haviam se dispersado por outras regiões, criando núcleos autônomos
ou sendo absorvidas por outros núcleos, também puderam restabelecer suas
relações de parentesco, voltando a participar das festas mais importantes. Um
processo de acomodação que, se até pouco tempo caracterizaria a própria idéia
de uma miscigenação e aculturação irreversível, foi o mesmo que permitiu aos
Pankararú, 60 anos depois de sua extinção oficial, se recomporem como
identidade indígena.
Processos semelhantes foram vividos em outros aldeamentos, mas a
particularidade Pankararú está, acredito, no fato de eles terem gerado um
recurso próprio e original que lhes permitiu recusar e subverter a
"redução" imposta pela "mistura". Independentemente de sua
designação oficial, os Pankararú construíram uma nominação memorial, digamos
assim, composta dos nomes de cada uma, ou das principais etnias que foram
"reunidas" no Brejo dos Padres. Segundo o que todas as pessoas
adultas do grupo estão habilitadas a dizer, com algumas pequenas variantes, o
verdadeiro nome da aldeia é Pancarú Canabrava Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de
Fulô. Esse nome composto é de conhecimento geral, mas não encontra um uso
corrente ou vinculado a situações especiais, guardando a única função de uma
explícita reserva de memória, um recurso mnemônico que permite reter e evocar a
identidade dos "troncos velhos" de que descendem.
Se, por meio dessa nominação memorial, os Pankararú reconhecem que já são fruto
de uma "mistura" de "troncos velhos", é também por meio
dela que eles impõem resistência a essa mesma "mistura", enquanto
processo de indiferenciação. A manutenção desses sobrenomes lhes permite
imaginar-se enquanto unidade política e social sem que para isso tenham que
condenar irremediavelmente as "sementes" da diferença.18 Isto porque
cada um desses sobrenomes representa a possibilidade de novas dispersões, que
eles denominam por "enxames". Se, no passado, diferentes grupos
puderam ser reunidos num mesmo território como estratégia de sobrevivência,
parece-lhes perfeitamente coerente que hoje, também como estratégia de
sobrevivência, de um grupo possam surgir outros, cuja migração multiplicaria os
territórios indígenas.19
O que desejo chamar a atenção nesse quadro é, primeiro, para a tendência à
realização de sínteses socioculturais a partir de fragmentos de populações
dispersas e profundamente fraturadas; em segundo, para a ausência de um lugar
nessa nominação memorial para os escravos recém-libertos que, no entanto,
igualmente foram absorvidos na síntese do Brejo dos Padres. Adiante abordaremos
a natureza dos limites dessa mitológica da "mistura" Pankararú.
Mitologias faccionais
Os sobrenomes são um recurso integrador das ancestralidades que legitimam os
Pankararú como "tronco velho" indígena, o que dá a uma determinada
"mistura" um sentido positivo e potencializado. A ancestralidade
negra, por outro lado, entra nesse sistema de legitimação com um sinal
negativo, não por qualquer incompatibilidade ritual ou proibição nas trocas
matrimoniais, mas em função daquilo a que os seus "direitos" fazem
referência. Por isso, se os negros não ganham um lugar na nominação memorial, é
porque eles são uma peça-chave no vocabulário faccional Pankararú.
Existem basicamente duas grandes narrativas Pankararú sobre a sua expropriação
territorial e identitária, duas narrativas coloniais que se opõem
simetricamente. Uma delas explica a área a partir de sua repartição em três
círculos concêntricos, onde o menor círculo, o centro geográfico da área,
corresponderia ao conjunto de moradores mais puramente índios, o círculo
intermediário corresponderia aos moradores "misturados" e o círculo
maior à área tomada pelos posseiros. Essa narrativa produz a imagem de um grupo
compacto que vai progressivamente sendo assediado pelo avanço civilizatório,
que lhe toma as terras e a própria identidade, num movimento de fora para
dentro, contra o qual resta uma resistência localizada em um centro territorial
política e etnicamente intacto. Nessa narrativa, o apossamento e a mistura
seriam fruto da ingenuidade de seus antepassados, que deixaram que os posseiros
fossem chegando aos poucos, tomando emprestado um pasto, um bebedouro, usando
uma fonte d'água, até que os índios se vissem forçados a sair das suas terras,
expulsos pelo gado e pelas "linhas". Não me ocuparei aqui das
análises estruturais produzidas a partir dessa espécie de diagrama, que
expressaria uma "cosmologia nativa" (Ribeiro, 1992), mas de como tal
imagem implica em uma mitologia faccional.
A segunda narrativa descreve a expropriação não como um progressivo avanço de
fora para dentro, mas como uma tomada abrupta do próprio núcleo territorial.
Uma intervenção dada num só golpe pelos poderes locais, que teriam repartido as
melhores terras, isto é, as terras do "Brejo", em linhas de lotes e
as distribuído entre jagunços e negros, que passaram a ser conhecido pela
designação geral de "linheiros". Parte dos índios teria fugido
imediatamente para outros locais e parte teria se refugiado nas serras que
contornam o Brejo. Aqueles que ficaram nos lotes teriam realizado alianças com
o invasor, na forma de casamentos, relações de trabalho ou da pura submissão,
enquanto os que fugiram, o fizeram por preferirem trocar as facilidades
ecológicas do Brejo pela irredutibilidade étnica e moral. Por isso, nessa
leitura inversa, as famílias das serras, que estão nas bordas da área, seriam
as mais puras, enquanto as do Brejo seriam as mais misturadas.
O confronto entre essas versões não nos fornecem nem concepções abstratas sobre
o universo, nem vestígios de estruturas mentais, nem versões objetivas de um
fato passado, mas discursos sobre o território e a etnicidade. Desencontros
entre diferentes concepções do ser Pankararú, que definem papéis nas lutas por
classificações, lutas por se fazer ver e fazer crer, por dar a conhecer e se
fazer reconhecer, por impor a definição legítima das divisões do mundo social e
com isso fazer e desfazer grupos (Bourdieu, 1989). É frente a esse quadro mais
amplo de uma mitologia colonial que se torna mitologia faccional que a
representação sobre os negros entre os Pankararú deve ser compreendida.
Temos, portanto, o fenômeno da "mistura" repartido em três níveis
distintos. Em um, é fruto da "reunião" de diversos "troncos
velhos" na formação da síntese Pankararú, traduzida por meio da nominação
memorial e que surge hoje como um capital simbólico frente à possibilidade que
ela abre aos Pankararú em gerar novas "pontas de rama". Em outro, é
fruto da invasão e da permanência dos "posseiros", pondo em risco não
exatamente a identidade indígena, mas o seu território, já que
"posseiro" é o termo de oposição mais elementar em relação ao qual se
define a própria identidade Pankararú. Nesses casos, porque a fronteira entre
"índios" e "posseiros" é categórica e domina toda a
representação pública do drama territorial vivido pelos Pankararú, as situações
de possível ambigüidade que envolvem parentescos e casamentos, ainda que possam
provocar controvérsias internas, são passíveis de um arbitramento, quando então
pessoas autorizadas decidem pela absorção ou exclusão da pessoa em situação de
identidade duvidosa. Finalmente, no terceiro nível de representação da
"mistura", relativo aos "pretos", essa ambigüidade não é
passível de arbitramento, pondo em risco justamente a identidade indígena. A
partir dela não se define o "contraste" com o não-índio, mas uma
espécie de modulação interna aos Pankararú, que se faz entre o puro e o impuro.
Esse lugar encontra correspondência na ambigüidade do estatuto dos negros
introduzidos na área indígena por meio das "linhas", já que ao mesmo
tempo que eram invasores e instrumento da dominação senhorial, eram também
objeto dessa dominação, grupo igualmente estigmatizado social e religiosamente.
Ambigüidade de estatuto que corresponde à ambigüidade na forma pela qual foram
absorvidos socialmente e recusados simbolicamente.
Mas uma explicação que recorre apenas ao simbólico é insuficiente. Como chama a
atenção Bensa (1998), ao remetermos o comportamento social a quadros de
significação muito amplos (o simbolismo das mitologias ou das lógicas nativas),
acabamos tomando por explicação o que é apenas a redução da complexidade das
situações empíricas. O significado desse terceiro nível de representação da
mistura Pankararú só ganha inteligibilidade por meio do exame de situações
particulares e locais que permitem compreender a acusação de "preto"
como resposta para problemas que surgem no interior de interações precisamente
situadas.
"Negro" como termo acusatório
Quando comecei a interessar-me pelo destino daquelas famílias negras no
interior da área indígena, percebi, simultaneamente, que esse era um tema
praticamente interditado e extremamente difícil de ser mapeado por meio de
genealogias, ou qualquer outra forma de reconstrução objetiva dos laços de
descendência. Apesar disso, no interior da área indígena existem regiões às
quais o senso comum indígena associa à identidade negra, em função da
existência de traços físicos ou ritualísticos.
Na "rua dos pretos", localizada no centro do Brejo dos Padres,
concentram-se os rezadores apontados como feiticeiros, personagens que estão
formalmente excluídas do campo ritual do Toré. O feiticeiro, ou aquele
"que trabalha pela esquerda", é diretamente associado pelos Pankararú
a uma prática religiosa de origem negra, em oposição aos "que trabalham
pela direita", lançando mão dos "particulares", que seriam
puramente indígenas. Oposição que leva a uma disputa no plano ritual que, para
ser possível, coloca em perigo a própria distinção categórica entre ambos os
tipos de "trabalhos". Como me foi alertado por alguns informantes, a
capacidade que os rezadores "da direita" teriam de desfazer feitiços
jogados por rezadores "da esquerda" leva a crer que aqueles não
seriam completamente estranhos às práticas destes. Suspeita que nos permite
colocar em suspenso não a indianidade dos "rezadores da direita", mas
a nitidez dos limites que separam, no interior da própria lógica ritual
Pankararú, o que é "puramente indígena" daquilo que é fruto da
composição como o que eles consideram herança negra.
Na serra, por outro lado, há um terreiro que concentra grande número de
referências religiosas de diferentes origens, ganhando com esta capacidade de
compatibilização, grande notoriedade. Na sala da casa do dono desse terreiro
existe um grande altar de cimento, com um nicho para a imagem de Santo Antônio,
padroeiro da aldeia, cercado de imagens associadas ao culto da jurema e ao
panteão umbandista, assim como fotos de familiares mortos e referências aos
Encantados, como o maracá e o círculo de penas usado na mascará dos Praiá. Ao
lado da casa, na capela construída em devoção a São José, guarda-se a Cruz dos
Penitentes, usada nas noites de vigília da "tropa de penitentes"
local. O Toré apresentado nesse terreiro apresenta ainda outras
particularidades, como a regularidade do Toré que, realizado aos sábados, surge
associado à reza do "terço" e à presença de Praiás infantis, coisa
inconcebível segundo a "tradição", já que o trato com os Encantados é
"fino" e implica prescrições e envolve "segredos" que devem
estar fora do alcance de uma criança. Toda essa mescla religiosa e sua
aproximação do campo de elementos considerados de origem negra não impede que
esse terreiro seja muito freqüentado, concentrando todos os sábados, junto aos
seus ofícios, a presença de um pequeno comércio local de comestíveis. Nem mesmo
as lideranças mais destacadas da seção norte, às quais é atribuída a manutenção
das tradições, se opõem ao funcionamento desse terreiro ou mesmo à participação
em algumas de suas "festas" ou "brincadeiras".
A existência desses dois pontos gera, portanto, um relativo equilíbrio entre as
duas principais seções políticas da área indígena que, a princípio, deveriam se
anular reciprocamente, se nos restringíssemos ao plano dos "traços
culturais". No entanto, não é a esse campo ritual, onde a mistura torna-se
evidente e pontuada geograficamente, que o termo "preto" faz
referência. Não é com relação a ele que o termo assume o caráter acusatório que
o torna politicamente relevante. Isso ficou claro na primeira entrevista que
realizei com João Tomás, a mais importante liderança da seção norte e uma das
mais importantes na história dos Pankararú em geral, em que se falou
explicitamente do faccionalismo entre as Serras e o Brejo. Foi nela que tive
contato como a segunda versão do mito colonial, que então dava grande destaque
à distinção entre índios e negros, como um único pacote da semântica faccional.
Descreverei mais detalhadamente a situação de enunciação.
Ao chegar à casa do João Tomás, apresentei-me, como de costume, repetindo o
texto monótono sobre meus interesses de pesquisa, em que dava ênfase ao
conflito entre índios e posseiros. João Tomás ouviu-me e, ao contrário do
comportamento que estava acostumado a enfrentar, em que o interlocutor tinha
que ser capturado ao longo de um diálogo monossilábico, ele imediatamente
perguntou-me o que eu achava da situação. A inversão de papéis desconcertou-me
e temi os riscos de começar um contato importante enunciando a opinião
"errada". Tentei desvencilhar-me dizendo que era uma situação
"complicada", mas ele insistiu, pedindo que eu explicasse quem eu
achava que "complicava" a situação, ou "os posseiros" ou
"nós índios". O pronome inclusivo era a pista que ele me dava sobre a
resposta esperada, e eu a segui. No entanto, seu passo seguinte foi justamente
desfazer a inclusividade do "nós" passando a acusar os "índios
do Brejo" de não serem "índios legítimos", mas
"pretos" que teriam expulsado os índios legítimos para cima das
serras. Ao contrário do que seria justo, dizia ele, são os "pretos"
que recebem os recursos da FUNAI, são suas terras que estão sendo
privilegiadas, em detrimento das em que os "índios legítimos" moram,
ainda não homologadas.
Na semana seguinte, em uma segunda visita ao João Tomás, enquanto
conversávamos, chegou um rapaz que vinha percorrendo as casas com um recado das
lideranças do Brejo convocando uma reunião urgente de toda a aldeia,
relacionada ao conflito com os posseiros daquela região. O recado determinava
ainda que João Tomás se encarregasse de avisar da reunião por toda a sua
aldeia, ao que ele respondeu, ironicamente, dizendo que lá não existiam índios,
apenas negros, que não tinham nada a ver com problemas de índios. Depois do
momento de exasperação provocado pelo diálogo com o mensageiro, João Tomás e
sua esposa explicaram-me que, dias antes, as lideranças do Brejo teriam se
recusado a enviar para as aldeias da Serra os mantimentos fornecidos pela
FUNAI. Pouco depois, João Tomás encontraria na feira de Petrolândia o
"delegado da FUNAI" conversando com lideranças do Brejo dos Padres e
este o chamou para explicar a situação: os que estavam ali acusavam-no de
distribuir a parte dos benefícios que cabiam a sua aldeia e às vizinhas, a
negros e brancos da região. Depois de um curto silêncio, ele retrucou afirmando
que, se estava dando mantimento a negros, todos eles eram negros
"assinados no posto indígena" e, como ele não sabia nem ler nem
escrever, nem tinha as carteirinhas e o carimbo da FUNAI, atribuições que
ficavam concentradas com as lideranças do Brejo, em função de suas relações de
parentesco com o chefe de posto, ele não tinha nenhuma responsabilidade nisso.
Fora de situações de enfrentamento direto como essas, o uso do termo
"negro" é parcimonioso, porque não convém tocar em um assunto sempre
constrangedor. A acusação permanece sempre na sua forma incompleta, incapaz de
tornar-se prova, porque não foi feita para isso. Ainda que o rico campo ritual
Pankararú aponte para interessantes cruzamentos de formas rituais negras e
indígenas, que podem ser submetidas ao programa de trabalho de um R. Bastide,
por exemplo, o meu interesse aqui é mostrar como, no plano das práticas e dos
discursos sociais, o uso do termo "preto" entre os Pankararú não
serve para constatar ou reafirmar algo em maior ou menor medida dado a vista de
todos, mas justamente para revelar o que, por princípio, é dissimulado. Seu uso
tem o objetivo de pôr em suspenso a legitimidade de um indivíduo ou agregado
que reivindica direitos. Porque nenhuma das partes está segura de sua
"pureza" e, além disso, porque nenhuma delas tem certeza sobre as
fronteiras que demarcam tal "pureza", a acusação de "preto"
funciona fundamentalmente como vocabulário faccional e seu emprego ganha
sentido apenas enquanto se mantém genérico e maleável. Nesse sentido, as
acusações recíprocas de "preto" não se prestam a uma resolução
objetiva, que possa ser definitivamente solucionada, mas se mantém como recurso
de que se lança mão em momentos críticos de desafio político ou em disputas por
recursos.
Isso exige um rápido esclarecimento sobre o contexto material em que tal
faccionalismo se desenvolve e é traduzido simbolicamente. Quando o SPI
instalou-se entre os Pankararú, em 1940, o local escolhido foi a região central
e ecologicamente mais privilegiada do Brejo dos Padres, acrescentando aos seus
atributos prévios o de sede do órgão tutelar e, progressivamente, de sede
política, até então inexistente. Além disso, a região das serras, que constitui
o contorno do "Brejo", marcada por uma topografia acidentada e seca,
mas que é mais próxima da cidade de Tacaratú, acabou ficando de fora da
primeira demarcação, em função de um muito conhecido caso de suborno do
engenheiro responsável, pelos fazendeiros da cidade, reduzindo a área total de
mais de 14.000 para 8.100 ha. Em conseqüência desses fatores combinados, as
Serras sempre ficaram em segundo plano quanto às "melhorias", como a
construção de escolas, farmácias e casas de farinha, ou quanto à realização de
cerimônias cívicas, inicialmente tornadas verdadeiros potlatchs governamentais,
calculadamente contrastados à rotina de secas e falta de recursos do órgão. A
desigualdade de recursos entre as diferentes regiões da área indígena,
decorrente desses fatores entretanto, durante muito tempo não ofendeu
gravemente a paridade relativa entre as aldeias até que, na década de 1980, uma
série de mudanças regionais relacionadas à construção da Unidade Hidroelétrica
(UHE) de Itaparica afetaram definitivamente esse equilíbrio.
Tais mudanças podem ser resumidas em quatro pontos: a) destruição da velha e
construção da Nova Petrolândia, que se torna o foco de um fluxo de pessoas,
recursos e serviços de dimensões inéditas na região; b) construção de uma nova
estrada ligando Tacaratú e Nova Petrolândia que passa por fora da região das
serras, cortando apenas tangencialmente a área indígena; c) instalação de uma
rica infra-estrutura urbana na pequena vila de Jatobá, próxima ao Brejo dos
Padres, do lado oposto ao das serras, para alojar os técnicos responsáveis pela
construção de UHE; d) criação de grande afluxo de verbas governamentais para a
região, destinadas aos projetos de desenvolvimento que atenuariam o impacto
socioambiental da UHE e a adesão popular à oposição organizada pelos sindicatos
locais.
Essas mudanças eliminam todos os elementos do contexto que permitiam a
manutenção do relativo equilíbrio entre as aldeias Pankararú do Brejo e das
Serras. Tacaratú, cidade mais próxima às aldeias das Serras, é totalmente
esvaziada em sua importância social e econômica e o fluxo entre ela e a agora
mais distante Petrolândia se inverte. O abandono da estrada que cortava as
aldeias das Serras leva ao seu isolamento com relação aos serviços que já
haviam integrado em seu cotidiano ao mesmo tempo em que o corte da área pela
nova estrada num trecho menos densamente habitado pelos índios amplia o assédio
de posseiros atraídos pelas facilidades criadas por ela. O súbito
enriquecimento de Jatobá leva também até o Brejo, numa extensão quase natural,
serviços como água encanada, luz elétrica e transporte diário, que, no entanto,
não alcançam as Serras. Os projetos de desenvolvimento governamentais, tendo na
área indígena o posto da FUNAI como referência básica, ampliam o volume dos
recursos, mas no mesmo sentido da citada concentração geográfica, levando-os a
serem administrados direta ou indiretamente pelas lideranças do Brejo. Tais
mudanças levam a um crescente desequilíbrio na distribuição de recursos entre o
Brejo e as Serras que vai criar ou alimentar o tenso faccionalismo indígena.
Quando, em 1987, a FUNAI é obrigada pelo BIRD a rever a demarcação de 1940, as
negociações são encaminhadas apenas com as lideranças do Brejo, tomadas então
como lideranças de um grupo homogêneo, que acabam por dar outra dimensão àquele
faccionalismo. Nessas negociações acerta-se, conforme proposta do órgão, a
manutenção da demarcação da década de 1940, que excluía as Serras, em troca da
promessa de retirada definitiva e imediata dos posseiros que ocupavam parte das
terras do Brejo. Esse acordo, que as lideranças das Serras só tomaram
conhecimento mais tarde e por meio da imprensa, leva a uma proposta de
repartição definitiva dos Pankararú em dois grupos, em que as aldeias das
Serras passariam a ter seu próprio pajé e cacique, e um território
independente, isto é, uma área indígena como posto e recursos próprios, chamada
Entre-Serras-Pankararú-Cana-Brava. Assim, depois de ter ajudado a
"levantar" outras aldeias, João Tomás começa a "levantar" a
sua própria.20
4.Os Ícones da "Luta": Segmentação e Aliança Xocó-Mocambo21
No caso dos Xocó o processo é mais recente, apesar de os descendentes dos
antigos aldeados da Ilha de São Pedro realizarem viagens ao Rio de Janeiro em
busca de apoio às suas reivindicações, desde a época do legendário Dom Pedro
II. É apenas na década de 1970, quando a Igreja Católica começa a atuar no
local por meio do movimento de "pastoral renovada", que a mobilização
indígena consegue forçar uma primeira intervenção efetiva do órgão indigenista
oficial. Nessa época, uma equipe missionária mista de leigos e religiosos,
contando com a participação do novo pároco local, inicia um intenso programa de
discussões sobre a realidade local e sobre a história da
"comunidade". Uma das situações privilegiadas por esta forma de
mobilização era a dos sermões que, durante as missas, associavam a mensagem
bíblica ao tema da "luta" pela terra.
Desde então, constantes idas e vindas administrativas e judiciais e atos de
violência por parte dos fazendeiros levam à intervenção de diferentes
instâncias de poder, estadual e federal, transformando os Xocó em um dos ícones
da mobilização política pela terra no Estado de Sergipe, até que, em 1991, a
Ilha de São Pedro (96,8 ha) e as terras da beira rio, denominadas Caiçara
(4.220 ha), são demarcadas e homologadas, apesar de continuarem abrigando
proprietários particulares. Nessa história, a presença negra não remete a
segmentações internas, mas a sucessivas conexões entre agrupamentos
parcialmente sobrepostos social e territorialmente.
O Mocambo de Porto da Folha
Ao lado da área indígena, localiza-se o povoado do Mocambo, com cerca de 80
famílias distribuídas em duas fileiras de casas paralelas ao rio, contando com
um estreito trecho de terras (93,5 ha) ao fundo. Até meados do século XIX, as
famílias dos "negros-do-pé-da-serra", como eram conhecidos os
ancestrais das famílias do Mocambo atual, ocupavam pequenos ranchos, "os
chiqueiros dos antigos", compostos de roça, chiqueiro, e pilão, em geral
localizados próximos de reservas naturais ou artificiais de água, cujos
vestígios ainda encontram-se visíveis. A lei de terras de 1850, que leva à
repartição das margens do São Francisco entre membros da elite estadual para aí
instalarem fazendas de gado, não repercute apenas sobre a Missão indígena. Os
"negros-do-pé-da-serra" também são expropriados de seus ranchos e de
sua autonomia produtiva para serem reunidos em núcleos residenciais compactos e
subordinados às três fazendas, Niterói, Jaciobá e Mocambo, em que seu antigo
território foi dividido. Passam, então, a trabalhar como diaristas ou meeiros
daqueles fazendeiros nas lagoas de arroz, das quais antes usufruíam livremente.
É essa época, e não qualquer momento anterior, que as narrativas apontam como o
"tempo da escravidão".
Esta situação se estabiliza até que em meados deste século a construção de
novas estradas e das barragens ao longo do São Francisco, assim como o medo da
mobilização camponesa, em expansão no Nordeste, levam os descendentes daqueles
fazendeiros a expulsar tais famílias de suas terras. Boa parte delas se
dispersa por outros municípios e estados, mas outra parte concentra-se na
Fazenda São Francisco, formada por uma primeira partilha da antiga Fazenda
Mocambo, situada em uma estreita faixa de beira rio que se alonga por quase uma
légua terra adentro, justamente no limite entre o povoado do Mocambo e o
território indígena. Essa nova fazenda inclui a última lagoa preservada das
mudanças no regime de águas do rio São Francisco, provocadas pela construção de
sucessivas barragens. Além disso, o proprietário desta fazenda, ainda que não
fosse considerado negro, era um antigo morador da comunidade e, em função desta
relação especial, mantém as antigas condições de trabalho, rompidas pelos
outros proprietários. Esse segundo equilíbrio seria finalmente rompido com a
morte deste proprietário e a partilha de suas terras, em 1986.
O processo de partilha da Fazenda São Francisco coincide com o período de maior
atividade Xocó, o que faz com que os novos proprietários, sentindo-se ameaçados
pelo avanço da mobilização indígena e indiferentes aos antigos laços de
patronagem e compadrio de seu pai com as famílias do Mocambo, paralisem, no ano
de 1990, toda atividade que dependia de trabalhadores locais, principalmente a
plantação de arroz na lagoa. Aparentemente, os proprietários reconheciam o
perigo representado pelas relações de parentesco e aliança entre os Xocó e seus
vizinhos, que criam não exatamente uma linha, mas uma larga zona de fronteira
entre os dois grupos, permanente fonte de conflitos e alianças entre eles.
De fato, dentre as famílias do Mocambo, nove têm um dos cônjuges de origem
indígena, sendo sete deles Xocó. Entre seus ancestrais imediatos, o numero
relativo desses casamentos se amplia: em um levantamento preliminar encontramos
outros doze casais mistos, cinco deles correspondendo à geração imediatamente
anterior à atual e sete à geração anterior a esta, o que leva a uma freqüência
mais ou menos contínua de casamentos mistos entre essas comunidades que
corresponde a pelo menos 10% de cada uma das últimas três gerações do Mocambo e
a uma proporção ainda maior no caso dos Xocó. Assim, ambas as comunidades têm
uma memória comum de longo termo. Até meados da década de 1940, por exemplo, o
Mocambo não possuía um cemitério próprio, tendo se utilizado "desde
sempre", do cemitério da Ilha de São Pedro. No início da organização
política dos camponeses das décadas de 1940 e 1950, que atinge, ainda que
residualmente, aqueles agrupamentos, esboça-se uma "luta" comum sob o
rótulo de "trabalhadores rurais". Depois disto, nas décadas de 1970 e
1980, a experiência de mobilização política promovida pela equipe da
"pastoral renovada" entre os Xocó acaba por atingir também parte das
famílias do Mocambo que assistiam às missas na Ilha de São Pedro. Finalmente,
desde o início da década atual, em função das dificuldades enfrentadas pelo
Mocambo quanto à disponibilidade de terras para plantio e pasto e, contando os
"Xocó" com suas recentes conquista territoriais e, com o apoio
financeiro da FUNAI, há uma intensificação das prestações de favores econômicos
(terra para plantio, para pasto e pagamento por dias de trabalho) destes às
famílias do Mocambo.
Esta memória comum, no entanto, nem sempre foi relativa a uma "luta"
comum, reservando um igual espaço ao conflito, principalmente depois que os
remanescentes do aldeamento missionário firmam suas reivindicações com base na
identidade Xocó. O forte engajamento da equipe diocesana de Porto da Folha na
luta indígena fez com que, durante muito tempo, esse fosse um tema obrigatório
também nas cerimônias realizadas na igreja do povoado do Mocambo. Nessas
cerimônias era exigido das famílias negras não só o mesmo engajamento na luta
pela terra, como também insistia-se que elas deveriam participar na luta de
seus vizinhos, tendo em mente uma estratégia de longa duração absolutamente sem
sentido para a população local. Na verdade, nesse período, as famílias do
Mocambo ainda estavam fortemente presas aos laços de dependência econômica e
simbólica aos proprietários locais e essa insistência várias vezes acabou por
converter-se em evitação e mesmo conflito entre as duas comunidades. Além
disso, a recuperação ou produção da identidade Xocó implicou um momento de
expurgo daquelas relações interétnicas, sempre apropriadas por seus opositores
como signo de uma "mistura" deslegitimadora.
Mas foi justamente a estratégia dos novos proprietários em reação à mobilização
indígena e na tentativa de prevenir uma mobilização das famílias do Mocambo,
expropriando-as de sua reserva territorial mais importante que, em lugar de
evitar, desencadeou novas identificações entre as duas comunidades, fazendo com
que a "luta indígena" reverberasse sobre seus vizinhos. Em 1992 um
incidente serve como catalisador dessa conexão. Nesse ano, em função do acordo
firmado pelos Xocó sobre os limites de seu território aparentemente deixar de
fora suas terras, os novos proprietários da Fazenda São Francisco mudam sua
estratégia. Permitem que as famílias do Mocambo voltem a plantar arroz na
lagoa, mas sob novas condições, segundo as quais os trabalhadores perdiam uma
série de direitos anteriormente reconhecidos. Inesperadamente, no entanto,
neste mesmo ano, estoura novo conflito que leva os índios a acamparem nas
terras da fazenda, em torno da lagoa de arroz. Apesar de evidentemente
delicada, a situação não impede que os laços de solidariedade fossem acionados
e que as famílias do Mocambo dessem assistência às famílias Xocó acampadas. Em
retaliação a este apoio, os proprietários proíbem a colheita do arroz já maduro
e soltam o seu gado sobre ele, além de interditarem o trânsito entre as duas
comunidades e instalarem jagunços no local.
Assim, foi no momento em que a penúria ultrapassou a carência para alcançar a
fome e no qual crescia a revolta com as ações dos jagunços da Fazenda São
Francisco (que passaram a entrar periodicamente no povoado atirando para o alto
e ameaçando homens, mulheres e crianças), que as famílias do Mocambo se viram
diretamente envolvidas no conflito indígena e desencadeou-se o seu processo de
mobilização. Retrospectivamente, esse é apontado como o momento de origem da
"luta" dessa "comunidade remanescente de quilombos" que,
então, volta-se sobre seu passado para descobrir nele a originalidade e os
direitos agora reivindicados. Essa versão dos fatos, no entanto, ainda que
factualmente correta, acaba por fazer desse momento o marco no qual tudo tem
origem e ao qual todos os acontecimentos posteriores recuam linearmente, à
forma de um pequeno mito de origem. Ele resume e traduz numa única cena
decisiva o que na realidade é fruto de um processo, de uma sucessão de eventos
nem lineares nem coerentes entre si, e cujo termo final não era o seu fim
(desfecho necessário ou finalidade). Na seção seguinte, um olhar mais detalhado
sobre o período que aí se inaugura mostrará que a comunidade quilombola não
teria surgido desse "evento" como em uma abrupta tomada de
consciência de si mesma, mas como uma trabalhosa separação com relação à
realidade indígena, para a construção de uma imagem de si.
Dos limites equívocos à fronteira étnica
Depois de tomar conhecimento do conflito entre "meeiros" do Mocambo e
os proprietários da Fazenda São Francisco, por meio do padre que prestava
assistência aos Xocó, a equipe da Comissão Pastoral da Terra (CPT22), em julho
de 1992, realizou uma primeira reunião na "comunidade", na qual ficou
claro que, primeiro, a demanda daquelas famílias inicialmente era apenas pela
indenização das plantações destruídas e, segundo, que sua capacidade de
articulação estava fortemente vinculada aos seus vizinhos Xocó, à consulta dos
quais condicionavam qualquer tomada de posição. Na reunião seguinte, que
contava com a participação de 15 índios Xocó, foi escolhido pela primeira vez
um grupo de "representantes da comunidade" de onde começariam a
emergir as "lideranças políticas" que então ficou responsável pelo
levantamento dos prejuízos das famílias e por ir prestar queixa na delegacia,
devidamente acompanhados do padre e de um vereador de Porto da Folha. A segunda
providência foi, aproveitando-se do absenteísmo dos proprietários e animados
pelo apoio dos Xocó e da CTP, ocuparem a sede da fazenda em questão.
A força da mobilização das famílias do Mocambo, no entanto, com o passar do
tempo mostrou-se irregular, o número de participantes nas reuniões coletivas
cai bastante e, em uma reunião de março de 1993, as poucas famílias mobilizadas
diagnosticavam como um dos obstáculos ao engajamento mais amplo das outras
famílias o medo de "espiões". Isto é, pessoas da comunidade que
mantinham laços de fidelidade e dependência pessoal com fazendeiros e
autoridades municipais. Decidiu-se, então, que as reuniões seguintes seriam
realizadas dentro da área indígena Xocó. Esse foi o momento em que a equipe da
CPT passou a se dedicar à preparação dos "trabalhadores" para a
confrontação com os proprietários diante do juizado de Porto da Folha. São
também desse momento as primeiras representações contra as constantes
arbitrariedades praticadas pelo delegado e por policiais do município, algumas
vezes acompanhando os capatazes dos proprietários. Assim, trata-se de um
período de grande importância, no qual a própria definição daquele agregado de
famílias sofre um impacto, em três sentidos.
Primeiro, as ações legais impostas em nome da "comunidade do Mocambo"
são, na prática, o ato de instituição daquelas famílias como um sujeito de
direito frente aos poderes locais. Segundo, a "comunidade" ganhava
uma nova inserção no conjunto das "lutas sociais" da região,
evidenciado ou mesmo construído pelas manifestações de rua que foram
organizadas na ocasião das audiências públicas na justiça, em maio de 1993.
Tais manifestações foram transformadas em verdadeiros eventos públicos, que
centralizavam as atenções da cidade de Propriá e nos quais a população do
Mocambo (presente em grande número) contava com o apoio de representantes dos
Xocó, dos STRs da região e da capital, que traziam faixas e carro de som.
Terceiro, o trabalho de preparação das famílias para os depoimentos em juízo
passava pela "recuperação da memória da comunidade", o que
significava a primeira tentativa de estabelecer uma memória linear e coerente
sobre suas "origens" (problema inteiramente novo para aquelas
famílias), convertendo uma mobilização inicialmente motivada pela recuperação
dos prejuízos de alguns meeiros, na "luta" de toda a
"comunidade" por "sua terra". Essa conversão se deu por
meio do progressivo esclarecimento sobre as formas de confrontação legal
disponíveis que deslocou a discussão do plano dos direitos trabalhistas,
imposta pelos advogados dos proprietários e inicialmente assumida por aquelas
famílias por meio da qualificação de "meeiros", para o plano dos
direitos civis, sob a forma da nova autoqualificação como
"posseiros".
Com isso, o leque de possibilidades abertas ao encaminhamento da
"luta" também era ampliado, sendo reunidos, em uma reunião de agosto
de 1993, em três alternativas: 1) ou permaneciam na área em litígio, forçando o
proprietário a chegar a um acordo relativo às indenizações; 2) ou reivindicavam
o reconhecimento como "remanescentes de quilombos"; 3) ou avaliavam a
área total de que necessitam e pedissem sua desapropriação ao INCRA, para fim
de Reforma Agrária. A primeira opção significava manter (ou voltar a) uma
estratégia trabalhista, quando na verdade todo o movimento da equipe pastoral
levava à sua conversão. A segunda opção era fruto das notícias recentes e ainda
vagas sobre as perspectivas abertas pelos primeiros casos em que o "artigo
68" era aplicado em situações de litígio, no Maranhão, no Pará e na Bahia.
Ficava claro que, para os assessores, a última opção citada era a preferencial,
não só por ser a via na qual aquela militância tinha know-how acumulado, mas
também porque a idéia de uma identificação como "remanescentes de
quilombos" não fazia parte do tipo de representação que as famílias do
Mocambo tinham ou gostariam de produzir sobre si. Por fim, decide-se que uma
opção só seria tomada depois da reunião com os Xocó.
A resistência daquelas famílias à sugestão de se pensarem como
"remanescentes de quilombos" fica mais nítida na discussão, levantada
nesse mesmo momento da mobilização, sobre a possibilidade de alteração do nome
da comunidade, de Mocambo para Mundo Novo. O desapego e mesmo a recusa de um
nome que mais adiante se tornaria tão importante para a mobilização da
comunidade, nos remete à importância de estarmos atentos sobre os caminhos
pouco retilíneos que podem ligar palavras e coisas. Palavra portuguesa de
origem quimbundo (mu'kambu), "mocambo" significa couto de escravos ou
de gado fugido ou simplesmente habitação miserável, podendo assim, sugerir uma
associação direta entre o nome da comunidade e sua identificação como
"remanescente de quilombo". Recordemos, no entanto, que tal nome só é
atribuído àquele agregado de famílias quando é instalada a primeira fazenda de
gado no local, na segunda metade do século XIX. O nome lhes é, assim, atribuído
pela primeira vez ao serem submetidos como agregados à então Fazenda Mocambo,
ganhando um significado local oposto àquele que é dicionarizado. No entanto, a
própria designação desta fazenda encontra sua motivação no riacho homônimo que
drena aquele trecho das margens do São Francisco. Realmente, mais de um riacho
das redondezas é conhecido pelo nome "mocambo" e isto, por sua vez,
está relacionado à forte presença de grupos de negros fugidos que praticamente
dominaram a região durante os séculos XVI e XVII, entre os quais encontram-se
os prováveis ancestrais daquelas famílias. Assim, entre o Mocambo atual e a
definição genérica e histórica de "mocambo" não existem apenas
riachos e fazendas de gado, que desenham veredas circulares, mas sobretudo uma
rede de mediadores e um processo de ressemantizações que colocam em xeque
qualquer impulso de explicação continuísta.23
Assim é que, em agosto de 1993, em um encontro de "formação de jovens
lideranças", chega-se ao diagnóstico de que, apesar das grandes
transformações vividas pela comunidade, ela pouco havia conseguido em termos
práticos. O juiz recusava-se sistematicamente a considerar as ações da
comunidade e esta, por sua vez, havia se deixado retirar da sede da fazenda
ocupada. Segundo o diagnóstico daquele grupo de jovens, essas dificuldades na
mobilização do Mocambo refletiam a demora na solução da "luta Xocó",
já que aos olhos de muitos, esse era um termômetro da viabilidade de suas
próprias demandas.24
Era justamente em função desse lugar de vanguardaque os Xocó ocupavam com
relação ao Mocambo, que a mobilização indígena acaba reverberando: em setembro,
depois de uma reunião no acampamento dos Xocó, ambas as comunidades decidiam
promover ações conjuntas. Uma jovem liderança do Mocambo, que já começava a se
destacar, é instituída nas tarefas de mediador e porta-voz da comunidade,
ficando com a atribuição de intensificar as viagens para a Aracaju, em busca do
apoio do INCRA e de outras agências que já prestavam apoio aos Xocó, assim como
em tentar transferir o conflito da competência das autoridades locais e
estaduais para as federais, sob o argumento do envolvimento de indígenas. Como
desdobramento desta estratégia, há uma nova invasão da área em litígio,
provocando a intervenção policial e a dramática mobilização de toda a
comunidade do Mocambo.
Depois disso, multiplicam-se as reuniões de trabalho com a CPT e de uma
comissão mista Xocó/Mocambo com as autoridades locais, sucessivamente, o juiz
da Comarca, o delegado do Município, o Procurador da República em Aracaju, o
corregedor e o vice-presidente da Justiça do Estado e o procurador estadual do
INCRA, resultando num franco crescimento da mobilização comunitária.25 É nesse
momento que a associação de esforços e a conexão de estratégias com os Xocó
acaba abrindo a possibilidade de uma literal identificação entre aquelas
"comunidades": na última reunião de setembro, comissões do Mocambo e
dos Xocó reúnem-se com o objetivo de avaliar a possibilidade das reivindicações
territoriais dos Xocó serem ampliadas como forma de abarcar também as terras do
Mocambo. Ou seja, tratava-se de avaliar a possibilidade de transformar suas
antigas ligações de parentesco e seu atual vínculo político num contínuo
identitário, fazendo com que a segmentação classificatória que os distinguia
fosse abolida em nome de outros recortes classificatórios também disponíveis.
Surgia, assim, uma quarta alternativa de encaminhamento do conflito, só
eliminada definitivamente depois que a FUNAI, várias vezes consultada durante
os seis meses seguintes, recusa a proposta, fechando todas as condições
práticas daquela reconversão de uma aliança política em uma fusão étnica.
Assim, a alternativa aberta pelo "artigo 68" passava a ser o caminho
para a singularização do Mocambo. E por meio do rótulo de quilombolas, entra em
contato com esse outro campo de militância, o movimento negro, que até então
lhes era desconhecido e a eles desconhecia. Assim, no início de 1994, ao
contrário do que acontecera dois anos antes, quando a CPT havia procurado sem
sucesso o apoio sociedade civil de Aracaju para aqueles
"trabalhadores", a nova convocação é bem-sucedida. Sindicatos,
entidades de direitos humanos, do meio educacional, partidos políticos, o
próprio governo do estado e, finalmente, o movimento negro, respondem
imediatamente ao chamado de apoio à "comunidade remanescente de
quilombos" do Mocambo. No plano interno, a mobilização ganha um novo
fôlego e um novo caráter. Surge o "Movimento de Defesa do Mocambo" e,
mais tarde, em 1995, uma nova associação de moradores26, chamada Antônio Lino
do Alto. Por meio das reuniões regionais de "remanescentes de
quilombos", fazem contato diversas comunidades de todo o país, que também
já começavam a se organizar na forma de associações de moradores baseadas num
modelo de estatuto criado especialmente para atender as
"particularidades" das comunidades remanescentes de quilombos.
A partir da segunda metade de 1994, ao mesmo tempo em que o INCRA começa a
recuar nas posições já assumidas (já havia uma perícia técnica que reconhecia a
área em litígio como passível de reforma agrária), a Fundação Cultural Palmares
constitui uma "subcomissão de estudos" em associação com o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN). A arquiteta do Instituto,
incumbida da perícia, reproduz o procedimento utilizado nos processos de
tombamento de bens (em geral prédios históricos e obras de arte) relativos ao
patrimônio cultural brasileiro27 e no seu relatório relata não ter identificado
"construções anteriores ao início deste século", nem "traços de
cultos afro-brasileiros". Frente aos efeitos politicamente negativos dessa
ausência de evidências materiais, a arquiteta declarou-se incapaz de formular
um parecer (Santos, 1994). Num segundo momento, porém, já no ano de 1995,
depois de uma larga mudança de quadros da Fundação Cultural Palmares, na qual
foram absorvidos alguns antropólogos ex-funcionários da FUNAI, ela passa a
adotar os procedimentos tomados ao modelo do indigenismo e, em lugar do
convênio com o IPHAN, passa a atender às novas demandas por meio de um convênio
com a Associação Brasileira de Antropologia. É neste contexto que sou convidado
a produzir o "laudo antropológico" que levaria ao reconhecimento
oficial do grupo como remanescente de quilombo.28
5. Considerações finais
É claro que as descrições apresentadas realizam um recorte mais ou menos
arbitrário no tempo e o ponto final que lhes impus não implica atribuir a essas
histórias um fim. Novas reviravoltas levaram à criação de novas dinâmicas
territoriais e étnicas tanto entre os Pankararú29 quanto entre os Xocó e negros
do Mocambo,30 que poderiam ainda servir de base para outras reflexões sobre o
mesmo tema. Mas esse recorte específico tem o mérito de nos permitir recortar
analogias e contrastes entre os lugares ocupados pela "mistura" em
tais situações e organizações sociais tão distintas. É sobre eles que,
finalmente, gostaria de retomar algumas considerações.
Por experiência, sabemos que as situações de emergência de grupos indígenas no
Nordeste estão fortemente marcadas pela associação entre a identidade genérica
de índios e os direitos aos quais este rótulo faz referência. Poucos parecem
questionar que o mesmo gênero de relação entre identidade e ordenamento
jurídico exista entre as comunidades que recentemente começaram a assumir-se
como "remanescentes de quilombos". No entanto, esse dado da
experiência tem resistido a encontrar uma tradução conceitual satisfatória,
sendo rotulado como "manipulação de identidade" ou
"justificado" com o recurso à noção de etnicidade. Antes de
reconhecer nessas situações uma fonte de reflexão original, tais soluções
muitas vezes ficam presas ao plano legal da discussão que envolve os
"remanescentes", ou servem apenas para classificar comportamentos,
nada acrescentando à sua compreensão. Dentro de suas claras limitações, esse
exercício buscou estabelecer um outro diálogo com essas questões, decompondo
empiricamente as idéias de "manipulação" e de "identidade",
principalmente por meio do destaque dado nos discursos locais à idéia e ao
exercício da "mistura". Como sugere Pacheco de Oliveira (1998),
trata-se de apreender a função teórica que o uso recorrente dessa categoria
pode ter, de levá-la a sério em sua capacidade de explicitar valores,
estratégias de ação e expectativas dos atores em interação.
No caso Pankararú, por meio de uma nominação memorial, a "mistura"
chega a valer como uma marca de fundação, social e simbolicamente valorada, mas
também seletiva. Dentro do complexo universo de suas interações étnicas, os
três níveis de significado da mistura remetem para formas distintas de produzir
e gerir uma memória, em que o "preto" não pode nem ser absorvido como
ancestralidade legítima, nem ser simplesmente representado como estrangeiro,
contrastante da indianidade. Ali o "preto" é parte constituinte de
uma história e de uma identidade marcadas pelo jogo entre puro e impuro, objeto
de uma mitologia faccional e crivo que busca distinguir as fronteiras daqueles
que devem ter acesso ao conjunto dos recursos escassos de natureza estatal. No
caso Xocó, os "negros" do Mocambo são vistos como totalmente externos
à comunidade indígena, mas efetivamente ligados a ela por um fluxo constante e
contínuo de trocas matrimoniais, econômicas e de alianças conjunturais. Essa
situação, que permitiu manter a independência e relativa integridade de ambos
os grupos, acabou por estabelecer também entre eles uma inconstante
identificação que, depois de recusada e desejada, é reconvertida para ganhar
novos significados, que já não ameaçam suas respectivas integridades. Nesse
caso, a força de um inimigo comum e os limites impostos pelos recursos legais
de que dispõem para combatê-lo, levou a esse acerto identificatório que separa
no conteúdo para reunir novamente na forma, a de "remanescentes". Por
isso, o nascimento da comunidade "remanescente de quilombos" pôde ser
apresentada como a crônica de uma progressiva autonomização com relação à
imagem da comunidade indígena.
Em ambos os casos, poderíamos imaginar outras ricas possibilidades de análise,
fiéis a uma perspectiva etnológica stricto sensu, como aquela sugerida por
Bastide, por exemplo, em que os sistemas de parentesco intercruzados, as trocas
ou sincretismos de suas estruturas rituais ou de seus sistemas de diagnóstico e
cura, ganham destaque. Há, no entanto, nessa perspectiva uma característica que
me parece não fazer justiça a um aspecto de grande relevância nessas situações
e em muitas outras que ainda poderiam ser sobrepostas a elas. Trata-se do fato
de a "mistura", apesar e acima das diferenças entre as duas situações
descritas, não consistir em um fenômeno que essas populações apenas sofrem ou
herdam. Ela não é apenas algo anterior, subterrâneo, inconsciente e que só pode
ser manifesto e pensado pelo próprio antropólogo, quando de sua exegese das
estruturas. A mistura, talvez em oposição ao sincretismo, é objeto de
intervenção direta daqueles que a princípio poderiam ser vistos apenas como
objetos dela. Ela é objeto dos agenciamentos discursivos daquelas populações
que, assim, tornam-se capazes de capturar parte do ordenamento jurídico
dominante em uma relação paradoxal.
Nas situações coloniais, tutelares ou mesmo de estado de direito descritas, a
distinção entre os diferentes rótulos identitários é, sobretudo, uma distinção
entre estatutos legais, que servem para definir aqueles que ocupam, que desejam
ou que devem ocupar diferentes lugares num determinado arranjo de liberdades e
subordinações. Nelas, o ponto crítico que, do interior da mistura permite
produzir a distinção entre índios e negros, não é a "contrastividade"
entre grupos vizinhos, capaz de, em si mesma ou em relação a condicionantes
ecológicas ou demográficas, produzir fronteiras étnicas. Para além dessa
dinâmica, que classifica os sujeitos segundo sua inclusão em grupos locais, em
todo caso presente, é fundamental compreender como a inserção desses grupos em
um determinado contexto administrativo e policial inclui os mesmo sujeitos em
arcabouços jurídicos e políticos estatais e supraestatais, que têm grande peso
sobre aquelas dinâmicas locais.
Separando e mediando a separação entre tais classificações não existe uma
fronteira única e clara, que o sujeitos simplesmente manipulam em função de um
cálculo pessoal racional, mas um complexo de linhas móveis que se combinam de
forma variada de situação para situação. Cada um desses rótulos
classificatórios são, por isso, territórios identitários cuja composição
combina fronteiras geográficas, fronteiras étnicas e fronteiras jurídicas,
enquanto é justamente ao espaço ocupado pelo movimento dessas fronteiras que as
populações estudadas chamam "mistura". Por outro lado, a lógica
estatal, que não é apenas aquela exercida sobre as coletividades étnicas, mas
também aquela que acaba sendo produzida no seu interior (passando a constituir
também a lógica de ação desses grupos), tende a conceber suas identidades como
uma referência aos "direitos" que vinculam o grupo a um determinado
território que se quer administrativamente demarcado. Dessa forma, a
"mistura", que nesse exercício surge como o espaço ocupado pelo jogo
entre os rótulos de índio e negro, torna-se uma questão que não pode ser
resolvida por meio da simples e direta recuperação de uma ancestralidade,
dependendo de um trabalho dialógico entre a memória social, a análise de
contexto e a capacidade de instituir-se como ator coletivo, tendo em vista o
enfrentamento das estruturas de poder, que também são sempre estruturas de
classificação.
Notas
1. Isso não acontece apenas no Brasil. Algo semelhante e comparável vem se
operando também na Colômbia (Arruti, 2000a).
2. Esta é a terceira e última das "estratégias" por meio das quais
originalmente busquei descrever e periodizar o processo e os mecanismos que
levaram à extinção oficial dos índios na região nordeste do país, antecedida
pelas estratégias da guerra e da conversão (Arruti, 1996).
3. "Demonstração dos números das Aldeias existentes nesta província de
Pernambuco, seu pessoal, sua população e extensão que cada uma tem". 13/
dez/1857. Arquivo Público de Pernambuco, coleção Diretoria de Índios, livro D-
11.
4. Relatório de José Luiz da Silva (engenheiro responsável pela Comissão de
medição das terras da província de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr.
Conselheiro Sinimbú (Ministro e Secretário dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas) sobre o aldeamento do Brejo dos Padres. jun /1878.
Arquivo Público de Pernambuco, coleção RTP (Repartição de Terras Públicas)
vol.17, pag.391.
5. Note-se que o etnônimo citado é uma composição de designações já citadas
como grupos distintos na composição do próprio Brejo dos Padres. Informações
retiradas das cartas de Frei Vital compiladas em "Informações sobre os
índios bárbaros dos certões de Pernambuco". Ofício do Bispo de Olinda
acompanhado de várias cartas". Revista do Instituto Histórico e
Geográficos Brasileiro, vol. 46 (1), 1883.
6. Hohental só informa sobre o número da população de Porto Real Colégio em
dois momentos muito posteriores: para o ano de 1932 cita informação que fala em
258 indígenas; para o ano de 1952, ele teria contado pessoalmente 180.
7. Ofício do Presidente da Província de Sergipe ao Ministério da Agricultura em
17 de maio de 1878. Transcrito em Dantas e Dallari (1980).
8. Relatório do Presidente de Província de Pernambuco. 1878. Biblioteca
Nacional / microfilmes: código PR-SPR115.
9. Essas informações encontram correspondência nas listas das "Juntas
Classificatórias" que orientavam a seleção das emancipações que seriam
financiadas pelo "Fundo de Emancipação" do governo imperial. Em 1876
programava-se para os anos seguintes a emancipação 92.855 escravos na província
de Pernambuco, cabendo à freguesia de Tacaratú, em que se localizava o Brejo
dos Padres, 1.406 emancipações (Relatório cit., 1878. BN/micr.: PR-SPR115.0).
10. Relatório da Inspetoria Geral das Terras e Colonização apresentado ao
Conselheiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, presidente do Conselho de
Ministros. 1878. Arquivo Nacional / microfilmes: rolo 030.0.78, código 559.
11. "Relação dos habitantes da Freguesia de São Pedro de Porto da Folha,
segundo nome, qualidade, ocupação, origem, anos de residência e distribuição
pelos fogos". Documento 6, pacotilha 14 da série AG4, Arquivo Público do
Estado de Sergipe.
12. Um exemplo local desse problema pode ser encontrado em Mott (1986).
13. Foi sob esse princípio que surgiram os gobiernos indios,formados por uma
junta del puebloe por um alcaide indio, eleito por um consejo electoralformado
por caciques da nobreza pré-colombiana (Baud et alii, 1996). No caso da
administração colonial portuguesa houve o movimento de desfazer tais recortes
de casta, para em seu lugar deixar estabelecer-se o recorte das grandes
famílias-empresas senhoriais, levando a que o problema da diversidade étnica e
dos ordenamentos jurídicos pré-coloniais fosse subordinado e finalmente
substituído pelo problema da oposição entre público e privado ou entre poderes
centrais e poderes locais.
14. Museu do Índio / microfilmes, rolo 173, fot. 934 e seguintes.
15. Museu do Índio / microfilmes, rolo 175, fot. 91 e seguintes.
16. A esses dados o funcionário agregava uma tabela com o volume das posses de
tais "mestiços" (animais, lavoura cultivada, árvores frutíferas,
casas e cereais comercializados), revelando a idéia de contagem de homens como
a contabilização de patrimônio (M.I./micr.175/fot.91ss).
17. Depois de 1940, as famílias do Pariconha também passariam a receber
assistência regular do posto indígena, até que o seu reconhecimento como grupo
distinto em 1992, deu origem aos Jeripancó. As viagens a São Paulo
estabeleceram um fluxo tão constante que em pouco tempo tornaram-se quase um
momento do ciclo de vida de uma boa parte dos Pankararú, resultando no
agrupamento da favela Real Parque, do bairro do Morumbi que, a partir de 1995,
também passa a reivindicar um território próprio na favela. Uma discussão mais
detida sobre essa extraterritorialidade Pankararú é desenvolvida nos capítulos
2 (segunda parte) e 4 de minha dissertação de mestrado (Arruti, 1996).
18. A "semente" é uma imagem fundamental no sistema ritual Pankararú,
por meio da qual os Encantados se manifestam a uma pessoa e na qual ele fica
contido até que essa pessoa "levante" para ele e a seu pedido, um
Praiá. A relação metafórica existente entre o "levantar Praiá" no
sistema ritual Pankararú e o "levantar aldeia" na sua atividade
política de apoio à emergência de novos grupos, de forma a construir uma
homologia global entre esses movimentos foi exposta em Arruti (1999).
19. Esse é o caso dos grupos Geripancó (AL), Kantaruré (BA) e Pankaru (BA),
ainda que a legitimidade desses últimos, assim como do núcleo de mais de mil
indígenas que ocupam a favela de Real Parque no Morumbi, em São Paulo, e que
também reivindicam o reconhecimento com grupo autônomo, sejam polêmicas para os
Pankararú do Brejo dos Padres. É o caso também dos recém noticiados Kalancó e
Karuazu (AL), sobre os quais os Pankararú ainda não tiveram oportunidade de se
pronunciar.
20. "Canabrava" é o nome que a população local, inclusive da cidade,
atribui à primeira povoação indígena que viria dar origem à cidade de Tacaratú.
Os índios dessa povoação, que depois teriam sido transferidos para o vizinho
Brejo dos Padres, são incluídos entre os ancestrais Pankararú, ainda que o seu
nome não figurasse na fórmula até então mais corrente de sua nominação
memorial. Mesmo frente à resistência da administração regional em assumir o
processo de complementação da antiga demarcação como a criação de uma área nova
e submetida a um corpo político autônomo, em meados de 1998, finalmente, eu
seria convidado a compor um Grupo de Trabalho não mais para rever a demarcação
de 1940, mas para "identificar" a área Pankararú de "Entre-
Serras".
21. Esse bloco consiste no remanejamento dos dados etnográficos apresentados em
um outro artigo, no qual discuto especificamente as questões envolvidas na
emergência de "comunidades remanescentes de quilombos" (Arruti,
1998).
22. É por meio do jogo entre as narrativas coletadas em campo e as informações
retiradas dos "Relatórios de Atividades" dessa entidade, preenchido
pelos membros de sua equipe como uma espécie de caderno de campo coletivo, que
poderemos reconstituir de uma forma bastante enxuta, o percurso das famílias do
Mocambo ao longo desse período. Esse recurso deve estar, com certeza, cercado
de cuidados, já que se trata de uma narrativa que se sustenta num material
orientado por objetivos institucionais e por um engajamento político muito
evidente. Mas seria um erro exagerar nos obstáculos representados por isso, na
medida em que falta a ele o sentido tautológiconormalmente associado a um
sujeito de discurso coerente. Em primeiro lugar, tais relatos são feitos por
pessoas diferentes da equipe ao longo do tempo, em segundo lugar, eles são
produzidos instantaneamente, como unidades isoladas no tempo, não apresentando
os reordenamentos posteriores e globais típicos das "memórias".
23. O emprego do termo "comunidade" também merece um esclarecimento.
Se, por um lado, ele nos remete a discussões próprias ao campo acadêmico (seu
emprego nos trabalhos dos anos 50 e as críticas posteriores), por outro, ele é
também uma categoria, digamos, "nativa", utilizada não só pela
população rural, como também pelos poderes públicos. Sua penetração e
naturalização, que está associada à ação da Igreja, na forma das
"comunidades eclesiais de base", esteve associada ao trabalho de
conversão de unidades sociais discretas em unidade de mobilização. No caso
específico estudado, ao termo "comunidade" ainda são agregados os
novos significados supostos na idéia de "quilombo".
24. A terra Xocó esteve repartida em dois processos administrativos que, assim,
recortavam duas "áreas indígenas", a "AI Ilha de S. Pedro"
e a "AI Caiçara". Essas áreas foram unificadas pelo decreto de
homologação de 24/12/1991, mas o "processo de extrusamento", isto é,
a retirada de ocupantes não-indígenas, seguia um curso confuso até fins de
1999, quando, aparentemente, conseguiu-se a retirada dos ocupantes das antigas
fazendas em que a área estava dividida.
25. Um levantamento de outubro de 1993, realizado pela CPT, identifica entre o
número total de famílias do Mocambo (73, aproximadamente 240 pessoas), 56 que
"estavam na luta", sete (7) que eram "neutras" e nove (9)
que eram "contra".
26. A "Associação de Moradores do Mocambo", que já existia, era
inteiramente monopolizada por uma única família, cujos componentes eram
basicamente os mesmos arrolados no levantamento da CPT como sendo "contra
a luta". Uma nova
27. Tal atribuição não era arbitrária, já que no corpo constitucional o artigo
216 ("Sessão II: Da Cultura"), em seu parágrafo 5o., realizava muito
claramente essa associação entre o tema dos quilombos e os procedimentos
relativos ao "patrimônio": "Ficam tombados todos os documentos e
os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos".
As discussões sobre os "remanescentes" ainda não superaram essa
ambigüidade.
28. A argumentação do laudo (publicado no D.O.U., nº 100, de 28/5/1997, pp.
1111-6) foi apresentada na forma de artigo acadêmico em Arruti (1997).
29. Em meio a uma série de dificuldades administrativas e orçamentárias que em
1999 ainda estavam dificultando a finalização do trabalho de identificação e
demarcação da área indígena Entre-Serras-Cana-Brava-Pankararú, surgiram
impasses internos, relacionados à presença de agregados familiares de outros
grupos indígenas, aos quais João Tomás mantinha-se estreitamente ligado. Essas
famílias, que até então eram um índice da extensão do prestígio político
regional do "levantador de aldeias" e até mesmo um reforço numérico
para suas reivindicações territoriais, depois da morte de João Tomás e com a
perspectiva do estabelecimento de uma fronteira étnico-territorial e
administrativa, perderam seu lugar e legitimidade. Assim, durante os trabalhos
de levantamento fundiário, passaram a representar uma dificuldade
classificatória para o grupo técnico da FUNAI responsável por levantar as
"posses não-indígenas" que deveriam ser indenizadas, já que se, por
um lado, elas são famílias indígenas, por outro, não são Pankararú, como
insistem as novas lideranças.
30. A realização do laudo e o reconhecimento oficial do Mocambo como
remanescente de quilombos além de não ter levado à sua regularização fundiária,
permitiu criar expectativas e temores que se organizaram em verdadeiras forças
políticas internas a ambos os grupos. O temor dos políticos locais em perderem
um significativo "curral eleitoral", confirmado pelo resultado das
urnas localizadas no Mocambo nas últimas eleições, levou ao seu aparelhamento
dos faccionalismos entre as famílias negras. Além disso, reviravoltas na
sucessão das lideranças indígenas Xocó, que levaram à substituição de não só de
pessoas, mas também de lógicas de aliança política, encerraram aquele ciclo de
apoio recíproco, convertendo o antigo argumento memorial que permitiria a
ampliação da área indígena como forma de apoio aos negros, em fonte de uma
disputa étnico-territorial.