"Com o Pé sobre um Vulcão": Africanos Minas, Identidades e a Repressão
Antiafricana no Rio de Janeiro (1830-1840)
E
studos contemporâneos têm procurado entender a formação/transformação das
identidades escravas, africanas e crioulas nas experiências da escravidão no
Brasil. Para além das abordagens que transformavam africanos e seus
descendentes em "coisas", destituídos de esperanças e recordações,
transformados em números do tráfico e totalmente passivos diante das supostas
lógicas inexoráveis de um sistema social, surgem pesquisas que tentam conectar
as vivências escravas ' contextos urbanos e rurais apresentam diferenças ' não
só com as sociedades africanas, via de regra romantizadas, mais
fundamentalmente com contextos atlânticos (até transatlânticos) de reinvenções
e reinterpretações culturais. É bom destacar que ' ainda que por outros
percursos ' tem ocorrido uma retomada de um debate intelectual com longa
trajetória. No Brasil, excetuando alguns estudos clássicos,1 pode-se dizer que
tem havido uma "redescoberta" da África, para pensar os escravos e a
escravidão.2 Esforço este que pouco tem avançado para pensar os anos
imediatamente pós-emancipação.
Não necessariamente a escravidão, mas o negro apareceu como foco de estudo no
Brasil na virada do século XIX para o XX, associado ao Folclore e aos temas da
diversidade cultural brasileira. Falava-se em reminiscência da cultura africana
no Brasil. Era necessário classificá-la e também escolher seus cenários. A
África no Brasil teria palcos privilegiados. Estes a guardariam nos seus
mistérios e encantos. Foi um pouco por aí que uma certa antropologia caminhou
numa tradição que ' guardada as especificidades ' percorreu de Nina Rodrigues,
a Arthur Ramos, Edison Carneiro, Roger Bastide e Pierre Verger. Mais
recentemente foram demonstrados os caminhos da "invenção" africana no
Brasil. Havia mesmo, parodiando Góis Dantas, usos e abusos da África no Brasil
(cf. Dantas, 1988). Tradições, não necessariamente inexistentes, mas também
inventadas ou redefinidas. Textos de Manuela Carneiro, João Reis, Renato da
Silveira, da própria Beatriz Góis Dantas, Robert Slenes, Peter Fry e outros já
destacaram isto.3 Contudo este debate ' ainda bem ' está longe de ganhar um
ponto final. Isto não só para o Brasil. Aqui ou acolá, abordagens ' algumas
permeadas não só por uma suposta eloqüência acadêmica ' reaparecem. Ganham
novas formas e outros argumentos. Ênfases e caminhos diversos.
Mas se a África no Brasil podia ter um lugar idealizado, a
"resistência" escrava, aquela fundamentalmente com um sentido
cultural, tinha como espaço privilegiado o quilombo. O outro local da
"resistência" seria o campo da religião. Esta foi a construção de
Histórias e Antropologia da escravidão no Brasil até o início do último quartel
do século XX.
Articulando religiosidade, cultura e "resistência" ' tendo como pano
de fundo o protesto escravo ' um tipo de abordagem foi preponderante. Surgiu
nos anos 30, sob a influência de Nina Rodrigues e outros escritos temáticos da
chamada Antropologia Cultural. A partir deste pressuposto antropológico tinha-
se o objetivo de caracterizar a resistência escrava no Brasil numa perspectiva
da "contra-aculturação". Sabemos que foram nas obras de Arthur Ramos,
Edison Carneiro e, mais tarde, Roger Bastide, que tiveram força interpretações
em torno da idéia de "resistência cultural". Os significados
religiosos das culturas escravas seriam tão-somente recriações genuínas de uma
cultura de pureza africana.
Um dos principais problemas deste tipo de análise foi a conceituação de
"cultura". Em grande medida, esta foi vista como uma experiência
social "estática" ou com mudanças históricas lineares,
primordialmente pela idéia de difusão. As culturas africanas do
"negro" foram assinaladas como parte de um mundo "natural",
em que genuíno e "raiz" eram as palavras-chave (ver Bastide, 1974,
1985; Carneiro, 1964, 1966; Ramos, 1942, 1979, 1935, 1953; Rodrigues, 1900).
Estudos mais recentes, pautados pela História Etnográfica, têm demonstrado como
as comunidades escravas nas Américas fundamentalmente forjaram uma interação e
transformação cultural original e diversificada. Isto mesmo num mundo de muita
opressão e violência. Critica-se, assim, a argumentação, por exemplo, de que
havia uma forte separação entre a construção de identidade dos escravos
crioulos nas plantações e o caráter "africano" das comunidades de
fugitivos (quilombos/mocambos), provocando com isso um grande distanciamento
cultural entre negros nascidos na terra e aqueles no além Atlântico. Havia o
caráter da interação e o desenvolvimento de novas sínteses na constituição das
culturas escravas. Esse processo possivelmente pode ter provocado mudanças
significativas em algumas comunidades. Argumentamos no mesmo sentido de terem
sido criados conteúdos e significados culturais originais tanto nas senzalas
como nos quilombos; nas áreas rurais, expostas ou não ao maior impacto do
tráfico negreiro; ou aquelas que vivenciaram experiências singulares de tráfico
interno; em contextos urbanizados, com grande concentração de africanos,
reconfigurações étnicas e de sociabilidades. Para tais processos ' invisíveis,
opacos e multifacetados ' melhor seria falar, sempre, de recriações e
reinvenções. Para além das dispersas evidências ' e a necessidade permanente de
se remover o pó da documentação disponível depositada nos arquivos ' tomamos
como base um amplo debate teórico e metodológico sobre as especificidades das
culturas escravas nas Américas. Não haveria necessariamente (enquanto modelos
cristalizados e funcionalistas) uma cultura "branca" e, outra
"negra", uma européia ou africana nas Américas, e estas aqui teriam
encontrado uma também única e verdadeira cultura indígena. Pelo contrário,
houve pluralidades culturais ' com semelhanças, diferenças, aproximações e
distanciamentos ' de várias origens que se engendraram, gestando experiências
culturais diversas. Cultura, portanto, deve ser lida (e/ou procurada) no
contexto das experiências históricas de seus agentes.
Significados culturais de origens africanas eram reinventados pelos escravos no
Brasil, não só para a primeira geração de africanos aqui desembarcados, mas
também as seguintes, de cativos crioulos. Podemos pensar as culturas escravas,
não numa perspectiva essencialista de "africanismos" ' ou mesmo como
se os quilombos fossem necessariamente ou exclusivamente lugares ou guardiães
de uma "cultura africana". É possível entender a cultura quilombola
(ou culturas quilombolas para marcar suas complexidades e diversidades) também
como uma extensão da cultura escrava. Senzalas e choupanas podiam ser fontes
constantes de backgrounds culturais para os habitantes dos quilombos, como
estes para as mesmas. É claro que em algumas situações, os impactos
demográficos do tráfico negreiro, a crioulização das populações escravas em
geral e o isolamento forçado de alguns grupos de fugitivos podem ter provocado
interações culturais diferentes.4 O fato é que africanos e crioulos ' e aqui já
há uma generalização ' não estavam completamente afastados nas ruas, nas
senzalas e nos quilombos de outros setores escravos, livres e negros.
Este artigo tem como objetivo, considerando um contexto de forte repressão
antiafricana, pensar a gestação de identidades de africanos, escravos, libertos
e crioulos, especialmente nas áreas urbanas do Rio de Janeiro.5 Partimos
inicialmente de críticas aos pressupostos, que isolam significados de
"cultura" e "resistência" para pensar as experiências da
escravidão e liberdade. Aquelas dos africanos minas ' com a "cor do
mêdo" ' que assolou a Corte na década de 1830 são exemplos preciosos para
refletir sobre movimentos identitários, refundindo (e também transformando)
concepções de "nações" e "etnicidade".
Temores e Malês
Em fins de 1835, o presidente da Província do Rio de Janeiro, Joaquim José
Rodrigues Torres, oficiava ao Ministério da Justiça a respeito dos seguidos
boatos e revelações de "projectos" de insurreições escravas na Corte
e no interior. Talvez, visando acalmar as autoridades imperiais, dizia que tais
rumores eram exagerados, posto que frutos de denúncias que pareciam
"nimiamente tintas com a côr do medo".6 "Tintas com a cor do
medo" eram com certeza as freqüentes denúncias que chegavam à Corte de
vários pontos da Província fluminense e de outras partes do Império. Esta
expressão pode se constituir, para efeito de análise, numa metáfora igualmente
reveladora. Nas mentes daqueles que temiam as revoltas de escravos e suas
conseqüências, o medo tinha, por certo, uma coloração, ainda que simbólica. Era
negra, a mesma que a dos escravos, principalmente os de origem africana. Nesse
sentido, a "cor do medo" podia ter vários significados.
Em meados da década de 1830, devido a repercussões da revolta dos malês na
Bahia, em várias regiões brasileiras temeu-se uma insurreição geral dos
escravos. Na ocasião, em meio a tantos rumores, denúncias e boatos, imagens do
medo se ampliavam. As autoridades e a população em geral, cada vez mais
aterrorizadas com a possibilidade real de eclodir um levante africano, não
mencionavam somente os episódios ocorridos em Salvador em 1835. Renascia
igualmente o fantasma haitiano. Em janeiro de 1836, uma denúncia anônima é
enviada ao governo imperial, lembrando-lhe o "exemplo da Ilha de São
Domingos". O denunciante, na ocasião, baseava-se em informações relativas
ao achado, junto a um escravo, de "um papel que servia de plano para
ensinar como os pretos saberão juntar no dia 24 e 25 para começar a matança dos
brancos e pardos". Em um tom alarmante, o anônimo pedia providências mais
efetivas por parte das autoridades do Império, uma vez que acreditava que logo
a sociedade, em particular a Corte, seria vítima de uma "nuvem
negra", representada por uma desordem de africanos. O medo ganhava mais
significados simbólicos. Alguns possivelmente imaginavam uma grande tempestade
que se abateria sobre todos os "brancos", uma vez que a "nuvem
negra" se preparava para escurecer todo o céu.
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O fantasma do haitianismo atacaria em outros lugares. Algumas denúncias diziam
existir um "cafre" haitiano, chamado Moiro, que estava convidando os
escravos das vilas do Bananal, Areias, Barra Mansa e São João Marcos, no Rio de
Janeiro, para se insurgirem e que já havia mesmo cerca de sete mil cativos
envolvidos nesse plano. Fato interessante é que o dito haitiano foi preso e
"não negou" as acusações de que estaria convidando vários cativos
para participar de uma insurreição, "porém disse, que estava
brincando". Brincadeira ou não, o certo é que as autoridades provinciais
pediram a expulsão deste haitiano do Brasil.
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O medo, ao que parece, cruzava fronteiras e mares. O secretário do Foreign
Office Bandenel, afirmaria, diante do Select Committee on the Slave Trade, que
"uma insurreição muito séria de escravos havia acontecido na Bahia que
assustou muito o governo, todo o governo do Brasil" (Cunha, 1985:72). O
Ministro da Justiça, já em março de 1835, solicitava às autoridades policiais
da Corte providências "indispensáveis" para a "tranqüilidade dos
habitantes da Capital", evitando "a reprodução das cenas da
Bahia". A própria Assembléia Provincial do Rio de Janeiro enviou uma moção
às principais autoridades do Império, denunciando a existência de
"sociedades secretas" na Corte. Nestas havia a participação e mesmo a
contribuição financeira de escravos e "livres de cor" para que
"agitadores encarregados de propagar doutrinas subversivas", e
disfarçados de vendedores ambulantes espalhassem-nas junto aos cativos nas
áreas rurais (ibidem:74; Chalhoub, 1990:187).
Os temores em relação aos malês baianos e aos rebeldes haitianos misturavam-se
agora para projetar um fantasma de um movimento internacionalista de
sublevações escravas. Diversas autoridades temiam a existência de planos de
revoltas articuladas entre escravos de várias partes das Américas com a
participação de abolicionistas ingleses e emissários internacionais. Ainda em
1835, o Ministro da Justiça recebe um ofício reservado do agente diplomático do
Brasil em Londres, afirmando que: "noticias recentes do Sul dos Estados
Unidos" confirmavam haver "muitos indivíduos mandados por várias
Sociedades de Philantropia e Emancipação" da Inglaterra com "o fim de
promoverem a liberdade" dos escravos, "excitando a levantes,
espalhando entre eles idéias de insubordinação". A repressão teria sido
imediata, posto que vários destes "emissários" foram "apanhados
e enforcados imediatamente, outros ameaçados, e muitos negros, ou mortos ou
rigorosamente castigados". Preocupado com o Brasil ' certamente com as
imagens do levante malê na mente ' o tal agente diplomático sugeriu
providências (inclusive com recursos para "despesas extraordinárias")
tais como "introduzir em uma ou mais das Sociedades Philantropicas da
Inglaterra, pessoa de confiança que pudesse dar conta de qualquer tentativa
contra o sossego do Brasil que nelas se originasse".
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Na movimentada década de 1830 não era só a revolta malê que atormentava as
autoridades do Império quanto a possíveis repercussões junto aos escravos. As
rebeliões regionais, que pipocavam desde o Sul farroupilha até o Norte cabano,
ameaçavam a estabilidade da Regência, que ainda não completara quatro anos de
turbulenta existência. Como que prenunciando tormentosos acontecimentos, apenas
quatro dias depois de desencadear o protesto malê em Salvador (ainda
desconhecido no Rio) foi preso um preto mina acusado de "curador de
feitiços".10 Naquele contexto, o medo dos africanos minas da Bahia foi
mais um ingrediente perturbador para a já tensa situação entre as forças
policiais e a massa escrava e popular no centro da Corte.
Na repressão desencadeada na capital do Império ' e, por certo, em outras
províncias e cidades, para além de Salvador ' em 1835 e 1836, o foco principal
foi, de fato, o perigo representado pelos africanos ocidentais, os minas, como
eram genericamente denominados.11 Em todos os boletins policiais da Corte ' e
mesmo no interior da província fluminense ' eles alcançam uma presença não
vista antes. Segundo Karasch, no Rio de Janeiro da primeira metade do século
XIX, os africanos da Costa Ocidental eram quase 7% da população escrava
africana. Já Holloway demonstra, com os registros de prisões, que os africanos
minas representavam 17% e 8,9%, respectivamente, da população escrava africana
e geral no Rio de Janeiro em 1850.
12
As repercussões do levante malê de 1835 não intimidaram os minas no Rio de
Janeiro. Pelo contrário, os estimularam ainda mais a se levantar contra a
opressão dos escravistas. Em Santa Rita, o preto mina José foi condenado a dois
meses de prisão por desobedecer a um oficial de Justiça e ter empregado a força
contra o mesmo (ANRJ, IJ 6, 170, "Partes... 2.5.1835").
Mas um dos maiores mistérios do ano de 1835 foram os chamados "Clubes de
Africanos" na Corte. Ao que tudo indica, eram centros de reuniões de
africanos libertos ou livres, que agora eram, mais do que tudo, razão principal
da dor de cabeça das autoridades. Estes africanos podiam ser mascates livres
vindos do outro lado do Atlântico (pombeiros), que coabitavam com africanos
escravos e libertos em casas alugadas que serviam de centros de encontro.13
A intensidade do pânico na Corte podia aumentar com os assustadores boatos de
revoltas escravas nas áreas rurais. Barra Mansa, Bananal, Resende, Areias, São
José do Príncipe, foram alguns dos municípios nos quais rumores de levante
colocaram a população em polvorosa. Para alívio dos governantes, quase todos
estes boatos eram mais fruto da paranóia da elite escravista do que sinais de
uma explosão próxima. Mas a tensão no ar não diminuiu. Em Piraí, comarca de
Barra Mansa, foram achadas, como sinais de uma revolução escrava próxima,
bandeiras com os dizeres "Viva a Santa Cruz". Depois se reconheceu
pertencerem a uma festa de coroação de rei negro. Em Areias foram presos
cinqüenta negros suspeitos de sediciosos, e apreendidas bandeirolas e mais
instrumentos. Em São João do Príncipe foram detidos mais de cem escravos. Em
Resende chegou-se ao cúmulo de se prender três pretos que estavam em um jogo de
cartas. Posteriormente uma testemunha dos planos do levante confessou ao juiz
de paz de Bananal que estava embriagado.14
A draconiana legislação repressiva de junho de 1835, ordenando a pena de morte
para escravos acusados de matar seus senhores ou próximos, condenados em
processos sumaríssimos, é logo colocada em prática no Rio, como remédio contra
o medo endêmico do levante negro. Mas faltava carrasco para a execução da pena
máxima. O Chefe de Polícia tenta, em vão, até com promessa de comutação de
pena, convencer os presos a tomar o lugar do algoz. Mas a solidariedade do
cárcere era mais forte. Aliás, mesmo dentro das cadeias o clima era de
insurreição. O carcereiro da ilha de Santa Bárbara enviou um ofício ao Chefe de
Polícia da Corte apontando a "insubordinação" dos presos, que se
recusam aos trabalhos ordinários nas celas, como carregar água, os quais
"nem os pretos cativos querem fazer".16
O segundo semestre de 1835 continuou tormentoso para as autoridades. Além dos
capoeiras, número significativo de escravos são presos por conduzirem armas, ou
mesmo por desacato a autoridade. Uma simples comparação dos boletins mensais de
prisão, de 1833 e 1834, demonstram a escalada insurreta. Mais do que nunca, as
ruas da Corte em 1835 são tomadas pela maioria africana e escrava na cidade.
Nem os símbolos visíveis da dominação, como os libambosde negros acorrentados,
intimidam a avassaladora onda rebelde que percorre a cabeça dos pretos e pretas
da cidade. Os proprietários brancos ficam enclausurados em suas casas, com medo
da onda negra nas ruas.
A vaga revolucionária que toma o Império, fazendo eclodir levantes de Norte a
Sul do país, chega inevitavelmente à capital do Império, e não vem somente da
Bahia. Felipe Moçambique, ao ser levado para o Calabouço do Castelo para ser
supliciado, fez amaldiçoar seus captores, pois "disse que havia de
acontecer aqui o mesmo que aconteceu no Pará", onde a rebelião dos cabanos
tomou o poder na capital da província (ANRJ, IJ 7,
"Partes...12.11.1835"). A Corte não estava de modo nenhum isolada do
contexto do Império. E o contexto do Império era também Atlântico.
Em alguns momentos ' como Chalhoub bem definiu ' nas ruas da Corte, o medo
ficaria sólido como uma rocha. Em julho de 1835, um estranho ofício foi parar
na mesa do temido chefe de polícia da Corte, Eusébio de Queiroz Coutinho Matoso
Câmara. Era sobre a apreensão, junto a africanos, de um papel escrito com
"bizarros sinais", aparentando ser um alfabeto indecifrável. Ninguém
na repartição policial soubera decifrar tais escritos. Para decifrador foi
convocado um africano nagô. O africano ' não sem aparentar dificuldade '
prontamente afirmou que aquele era um alfabeto usado por um povo que vivia ao
norte de sua terra original, na África Ocidental, para onde os jovens de
famílias proeminentes eram mandados, e que era usado pelos sábios de sua gente.
Pausadamente ele traduziu o que parecia uma prece muçulmana, mas que reproduzia
um diálogo entre defensores da paz e apologistas da "guerra". Não
pode haver dúvidas que a tal "guerra" na realidade era um sinônimo
para rebelião.16
Ainda que com significados bastante enigmáticos (além da dificuldade ou então
temor do próprio africano convocado para decifrar o texto),
17 fica evidente ' a partir da tradução ' que o escrito servia como uma espécie
de talismã para a guerra, e que o poder das palavras servia "como amuleto
mágico paracombatentes".18 Surgiam no final os "riscos" que, na
verdade, eram as assinaturas em língua árabe. Afirmou o chefe de polícia que
era um escrito religioso, de fé muçulmana, mas que ele vagamente percebeu como
de origem "oriental". No final, chegou-se a uma conclusão: o escrito
pertencia a um "clube", ou grupo, que se reunia regularmente.
Seguindo, porém, as opiniões do intérprete, Eusébio afirmaria que o talismã não
era perigoso à ordem pública, mas apenas uma oração misteriosa, fruto das
crendices supersticiosas do povo nagô.
O poderoso Eusébio de Queiroz, com toda a sua sagacidade como Chefe de Polícia,
mesmo na quadra melindrosa que se estava atravessando em 1835, não percebeu o
potencial oculto por trás daquelas misteriosas palavras, que aparentemente
permaneceram enigmáticas ' quem sabe justamente devido ao auxílio do intérprete
nagô. Era sintoma de uma ameaça preocupante para a ordem escravista na Corte e
outras partes do Império.
Estes misteriosos escritos testemunham a chegada, na Corte do Rio de Janeiro,
de uma ameaça que já tinha estremecido corações e mentes na Província da Bahia
' os mina-nagô, que havia muito pouco tempo tinham encabeçado o mais fugaz e
violento levante já ocorrido na cidade de Salvador, colocando em polvorosa a
sua população e autoridades. A partir daí os africanos ocidentais ' conhecidos
como minas no Rio de Janeiro ' vão realizar um verdadeiro êxodo da cidade de
São Salvador para a capital do Império, movimento que vai transferir em
definitivo para as ruas da Corte imperial o medo que assolava a capital baiana.
O amuleto mina que caiu nas mãos do chefe de polícia pode sugerir um embate que
se travava nos subterrâneos da complexa comunidade escrava, muitas vezes longe
dos olhares e ouvidos dos vigilantes da ordem. Um embate que vai ter
repercussões profundas nos caminhos futuros do protesto escravo. Um embate
entre os defensores da rebelião aberta, e aqueles que apontam outros caminhos.
Por mais que tenhamos nas mãos apenas conjecturas, as palavras do escrito malê
apontam claramente duas opções: o caminho da "guerra", que indica o
levante, a insurreição, a rebelião generalizada ' como tinha ocorrido havia
pouco nas ruas de Salvador ' e a alternativa talvez de resistência indireta,
por meio da burla, da organização secreta, da fuga ' e por que não, da sedução.
A frase inicial, como apontou o próprio Eusébio de Queiroz, indica que o papel
era um talismã, de um tipo muito utilizado pelos malês muçulmanos da Bahia,
como mostrado por João Reis,19 um amuleto para o combate, um protetor mágico
das horas da refrega. A discussão encetada pelos personagens era profundamente
política. Ela marcava os rumos futuros do movimento escravo ' mas que
influenciavam livres, libertos e forros. Parece que ao final da prédica vence a
proposta da "guerra", pois pelo menos ela é a mais defendida. Mas
neste momento ' princípios do ano de 1835 ' o dilema ainda era forte.
A precipitação do levante de 25 de janeiro em Salvador teve graves
repercussões. A repressão aos escravos e aos africanos em geral se agravava dia
a dia. O cerco se fechava sobre as comunidades afro-muçulmanas da cidade,
muitas das quais invisíveis. As prisões se enchiam de suspeitos. Os africanos
livres e libertos, que teoricamente gozavam de todos os direitos do resto da
população livre, sentiam na carne o quanto o estigma da cor e da origem pesava
sobre eles (cf. Flory, 1977; Abreu, 1999).
Uma onda de refugiados africanos rapidamente converge para fora da cidade de
Salvador, e o destino de muitos é um só: a capital imperial, centro da maior
comunidade africana urbana do país e do Continente. Em abril de 1835, a chegada
de um brigue com 98 escravos da Bahia, de todas as origens, soou o alerta. O
chefe de polícia impede o desembarque antes de uma profunda investigação. Emite
ordens imediatas aos responsáveis pelo porto para que barrassem a entrada de
todos os escravos e principalmente africanos vindos da Bahia, até segunda
ordem. O medo da contaminação malê varreu os pensamentos de Eusébio de Queiroz
logo após as primeiras notícias do levante na Bahia. Mas ele não podia impedir
o alastramento dos temores.20
Já havia africanos envolvidos diretamente na insurreição de janeiro em
Salvador, transitando pelas ruas do Rio. Em maio, dois deles têm negados seus
pedidos de permanência, e são deportados sumariamente, mesmo apresentando a
ficha policial limpa antes requerida. É que o chefe de polícia sabia a
penetração e as facilidades que estes africanos tinham no seio da comunidade
escrava na Corte.21 O medo se instala diretamente no coração da cidade.
O final da década de 1820 e o início da seguinte foi de extrema politização de
grupos subalternos normalmente alijados de qualquer articulação com o poder
formal (cf. Ribeiro, 1991-1992).22 Lógico que 1835 também é um capítulo dessa
trama, e ele não pode ser deslocado da conjuntura das rebeliões regionais como,
por exemplo, a Cabanagem, no Pará. Quando um preto mina é preso por estar
levantando uma "bandeira tricolor", símbolo da França revolucionária,
em pleno centro do Rio de Janeiro, é sintoma de que a politização chegou a um
grau intolerável para as camadas conservadoras da sociedade.23
Não eram apenas libertos africanos fugindo da repressão, ou fugidos embarcando
clandestinamente nas rotas costeiras. Escravos implicados no movimento baiano
eram levados pelos seus senhores para serem vendidos "longe da
terra", e no Rio de Janeiro era onde se conseguiam talvez os melhores
preços. Isto sem contar os crioulos da Bahia, que vinham na esteira da vaga
africana e que facilmente se envolviam nos conflitos intestinos das comunidades
negras na cidade.
A Corte assiste, neste dias aflitos, a uma verdadeira caçada aos minas. Mesmo
aqueles que aparentemente nada podiam contra o poder policial são presos como
potenciais incitadores de possíveis levantes, como o cego Teotônio Antônio,
preso pelo crime de "fazer adivinhação e dar fortuna".24 Os libertos
africanos ocidentais já estavam na mira das autoridades desde certo tempo. Já
em 1830, as autoridades da Bahia tentavam limitar a mobilidade destes libertos,
para impedir que alguns se tornassem elos de ligação entre comunidades
distantes e, pior, estimuladores de revoltas que estremeciam as montanhas da
província.25
O fantasma do liberto africano verdadeiramente assombrava a Corte Imperial. A
documentação reservada do chefe de polícia forma um testemunho candente
daqueles dias agitados na capital do país. O Regente Feijó emite longa circular
a Eusébio de Queiroz ' que também serve para subdelegados e juízes de paz '
para ficar de sobreaviso quanto aos rumores de reuniões ou outros sinais
inquietadores nas vizinhanças. A ordem é não ser surpreendido com a presença
numerosa dos temidos minas e "tranqüilizar os ânimos dos habitantes desta
capital que porventura possam estar receosos da possibilidade de reproduzirem-
se nelas as cenas de horror que tiveram lugar na cidade da Bahia pela
insurreição dos africanos". Recomendava aos Juízes de Paz para procederem
aos "mais escrupulosos exames sobre os pretos Minas que possam residir em
seus respectivos distritos, se na casa que habitam há reuniões de outros e por
maneira que possam causar desconfiança".26 O Ministro da Justiça planejava
uma operação policial de grande envergadura, realizando batidas nas casas
coletivas de africanos minas simultaneamente em vários pontos da cidade.
As autoridades policiais da Corte estavam por certo se baseando na experiência
da polícia baiana, que desbaratou o esquema da rebelião exatamente quando se
antecipou, obrigando os revoltosos a precipitar a eclosão da revolta, o que se
revelou fatal para os conspiradores. No Rio de Janeiro, os angus,ou zungus,
casas coletivas de reuniões para africanos e crioulos, que já eram proibidos
pelo menos desde 1833, podiam ser os centros nervosos de uma virtual explosão
social, e por isso a pressão sobre elas se tornou cada vez maior.27
As casas de feitiço, sempre vigiadas, mas de certa forma antes toleradas pela
falta de evidência de ligações com a resistência direta, eram em 1835 focos
perigosos. Os minas feiticeiros, reconhecidos nas comunidades negras urbanas
como célebres adivinhos e mágicos, sofreram implacável perseguição, nos cantos
mais desertos da cidade. A região do Valongo, antigo ponto de chegada dos
negreiros, também tinha suas "casas de feitiços".28 Foi numa delas
que certamente o chefe de polícia encontrou o papel com os enigmáticos dizeres
na língua malê.
Mas a histeria conspiratória não dava frutos. As informações que Eusébio de
Queiroz e Manoel Alves Branco, Ministro da Justiça, exigiam sobre uma larga
rede de intriga montada pelos minas de um extremo a outro da cidade não
chegavam (idem, Códice 334, f. 10 v.; 8.3.1835).29 Entretanto, a cúpula da
polícia na Corte não esmoreceu. Energicamente renovou seus pedidos aos
subordinados, agora incluindo as irmandades de pretos, que pontilhavam na
cidade velha. Com certeza o recinto sagrado de Santa Efigênia foi alvo das
razias policiais, que perscrutavam seus altares e capelas em busca de quaisquer
indícios que levassem à "conspiração Mina" ou às célebres
"reuniões secretas de homens de cor". Solicitava o chefe de polícia,
através de circulares, a vigilância "deles, de dia e de noite, não só por
meio de seus inspetores, como também pelos cabos de ronda e patrulhas" e a
confecção de "um mapa completo dos homens de cor dos respectivos
distritos", no qual "se declarasse seus nomes, condições, estado,
modo de vida, naturalidade, qualidade e que se informassem sobre as irmandades
religiosas que assistissem esta gente, em que dias [e] horas se reuniam, se
contava que eles tinham alguma tendência sediciosa ou ensinam [sic] a fins
políticos que pudessem ser perigosos a sociedade".
A gravidade do problema na Corte nos princípios de 1835 era tão assustadora que
o próprio Ministro da Justiça passa a deliberar pessoalmente sobre a questão
dos africanos Minas, deixando em segundo plano o chefe de polícia, normalmente
a figura máxima nas questões de ordem pública na capital do Império. Este
ofício enviado ao chefe de polícia ' como outro secretíssimo ' demonstra que o
medo chegou com força e definitivo nos mais altos níveis de Estado.
Infelizmente não conseguimos localizar este "mapa". Seria um
instrumento fantástico para localizar a distribuição do "perigo mina"
na cidade do Rio de Janeiro, e mais ainda, um recorte inédito das comunidades
escravas e africanas na Corte.30
A documentação policial sigilosa cita a chegada de um novo livro com
"caracteres africanos" na mesa do chefe de polícia, resultado de uma
das inúmeras batidas. Seria semelhante ao papel escrito com caracteres árabes
que vimos acima, o amuleto falando em "guerra" que tanta atenção
mereceu dos mais altos funcionários da Secretaria de polícia da rua da Guarda
Velha nos idos de fevereiro de 1835? Fica difícil ter certeza, mas a chegada
deste misterioso livro só ocorreu em outubro, muitos meses depois, o que pode
indicar que a comunidade malê continuou produzindo seus escritos, mesmo sob a
pressão permanente das batidas policiais. Enviado pelo juiz de paz do 1º
distrito de São José, era um "livro escrito com caracteres africanos"
e temia-se que nele houvesse "doutrinas perniciosas que tanto podem
comprometer as famílias e perturbar o sossego público como atestam os funestos
exemplos que tem havido em algumas províncias e principalmente na Bahia"
(ANRJ, Códice 334, 10.11.1835, f.14).
O Regente Feijó mandou decifrar o que parecia ser um código secreto dos pretos,
que tinha de ser descoberto para barrar as comunicações entre os diversos
núcleos da pretensa conspiração. Estrategicamente, deveriam ser primeiramente
convocadas duas pessoas ' certamente africanos ' que "pareçam
entendidos" e mandá-los "separadamente decifrar aqueles caracteres e
observar se a decifração combina ou varia em pontos e sinais". Deveria
haver muita cautela e também recursos extras para tais investigações. Restam
poucas dúvidas de que o livro foi escrito no alfabeto árabe dos minas-malês.
Nos últimos dias de 1835 seriam determinadas ao Juiz de Paz de Santana
investigações junto a uma casa da Rua Larga de São Joaquim onde parecia haver
"reuniões de pretos Minas, a título de escola de ler e escrever".
Tais encontros eram realizados diariamente, à tarde. Na mesma freguesia, na
ocasião, um outro alvo da repressão foi o preto mina Manoel. Em sua casa, rua
Formosa da Cidade Nova ' havia suspeitas de "reuniões" de
"pretos de mesma nação", além de ele ser conhecido como curandeiro
(cf. Chalhoub, 1990:187-188). Antes de 1835 não existem evidências de escritos
feitos por escravos na cidade do Rio de Janeiro, e já vimos o quanto o perigo
malê se encarna nos sinais e indícios encontrados pela polícia. As medidas do
Ministro de separar os intérpretes era uma cautela contra possíveis burlas dos
africanos tradutores, que poderiam assim ajudar seus companheiros envolvidos.
Até o final da década outros escritos Minas ainda atormentaram as autoridades
(ANRJ, Códice 323, V.14, 24.1.1839, f.12).31
Vemos assim que o fantasma que assolava a Corte não era um problema local, ou
mesmo baiano, mas uma questão mais ampla, que abarcava grande parte do Império.
A imagem que nos vem ' utilizando o jargão médico que começava a entrar em voga
neste momento ' é que o império sofria uma contaminação generalizada, por conta
do expurgo ocorrido na cidade de Salvador, e esta infecção se somava com outras
realidades preexistentes de protestos escravos. As crises políticas regenciais,
como no Rio Grande do Sul e no Pará, contribuíam para agravar ainda mais as
expectativas.
Mas a Corte constituía-se numa caixa de ressonância. Um grande levante escravo
no coração da capital podia estimular uma sucessão de insurreições por todo o
país, que no mínimo comprometeria a estabilidade da instituição escravista, e
no máximo o próprio regime político vigente. A Corte era um dos focos
preferenciais deste movimento continental. Já se falava nas ruas que três mil
negros pegariam em armas ao explodir o levante. E inclusive se tinha até
divulgado o local onde se iniciaria a rebelião: a freguesia de São José, um dos
locais prediletos para moradia dos minas(ANRJ, Códice. 334, 18.12.1835 e
22.12.1835, f.17).
Um dos exemplos de como as informações chegavam desencontradas às autoridades
foi relatado pelo próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros, João Francisco
Carneiro de Campos. Ele recebeu uma carta anônima de um cidadão relatando como
soube dos rumores de levantes que ocorreram na cidade. O denunciante anônimo
estava andando pela cidade, até por questão de saúde, quando chegou a uma casa
de negócios no Largo do Capim que pertencia a André Avelino Rodrigues, irmão do
Marechal Manuel Jorge Rodrigues. O caixeiro da casa então revelou que uma
terceira pessoa "de caráter e bem intencionado" lhe avisara que o
número de negros prontos para iniciar o movimento chegava a três mil, e mostrou
ao informante uma carta que escrevera para um seu irmão, avisando da
proximidade do levante. O denunciante dizia estar fazendo isto "pela
pública causa do Brasil" e para ajudar a evitar a "tal
desgraça". Pedia para o Ministro ocultar seu nome e pensar na
"prosperidade do império", tomando as medidas cabíveis (idem, s/d.,
f. 16, AN). Era este o clima em dezembro de 1835, um final de ano com muita
agitação.
Mas não era apenas na Corte que o caldeirão fervia. O presidente da província
do Rio de Janeiro enviou um ofício sigiloso ao Ministro da Justiça dando conta
de um plano urdido entre escravos das áreas rurais e aqueles da cidade para se
unirem numa potencial rebelião. Não só isso. Ele já tinha informação do nome de
um dos cabeças do movimento: um tal Andrade, pardo forro, que tinha casa de
quitandasna rua do Rosário. Para agravar ainda mais a tensa situação, denúncias
de uma organização secreta orquestrada por ciganos e pretos forros para roubo
de escravos e o envio dos mesmos para fazendas do interior fecha a agenda
política do atribulado ano de 1835.32
Um recurso usado cada vez mais pelas autoridades do Rio de Janeiro e
principalmente da Bahia para se livrar de libertos minas incômodos foi a
deportação para a África. A Assembléia Legislativa da Bahia, também em 1835,
chegou a solicitar a criação urgente de uma colônia em algum ponto do litoral
africano, visando o repatriamento dos africanos livres e alforriados (cf.
Cunha, 1985:77). No pós-1835, um crescente fluxo ' que podemos chamar de
refluxo, parafraseando Pierre Verger33 ' de africanos libertos cruza o
Atlântico, geralmente para Angola, mas também aportando em Serra Leoa e até
Moçambique (Jornal do Commércio, 5/2/1836).
Um destes navios, para azar e pânico das autoridades policiais na Corte, teve
problemas em alto mar, e foi obrigado a entrar na barra para realizar reparos.
Trazia 46 "pretos forros de nação Mina" entre homens, mulheres e
crianças. Todos apresentavam passaportes rubricados pelo chefe de polícia de
Salvador. Mas não adiantou. Eusébio de Queiroz foi terminante em proibir, de
qualquer modo, o desembarque dos minas do brigue português Funchanlena. O
máximo que permitia era a transferência para outro navio, mas pisar em terra
jamais. O chefe de polícia sabia que os minas iriam encontrar uma vasta
comunidade de iguais na Corte, e que dificilmente eles seriam pegos aqui. Os
africanos só tiveram do Rio de Janeiro a vista. Em 21 de dezembro o brigue
levantou âncoras (ANRJ, Ij6 171, ago./dez.1835, 4.12.1835 e 21.12.1835).
Ao receio das autoridades com os minas se somava a preocupação com o tráfico
clandestino de africanos. O número de africanos desembarcados estava
aumentando, mesmo com toda a repressão. A legislação passa a controlar cada vez
mais de perto negros vindos em navios mercantes ou mesmo de guerra. Mas a
diferença básica entre africanos boçaisa bordo de negreiros e africanos da
Costa da Mina "ladinos", e por isso mais perigosos, não escapava às
autoridades.
Na realidade, as autoridades do Rio de Janeiro estavam lutando em duas frentes:
de um lado africanos minas, escravos vendidos para a Corte por proprietários
baianos temerosos; de outro, africanos minas, libertos, que por seus próprios
recursos se movimentam num verdadeiro êxodo para a capital do Império. Para
melhor racionalizar a repressão, era preciso tratá-los com cuidados
semelhantes. Os direitos que deviam ser reconhecidos a um liberto ou livre
tinham de ser esquecidos. O clima na Corte de 1835 em diante se assemelhava a
uma guerra étnica contra uma nação determinada. Outras nações parecem ter sido
esquecidas no furor repressivo, apesar de o perigo mina poder ser lido como uma
ameaça de articulação de todas as nações mantidas no cativeiro.
Na prática todos os africanos e crioulos vindos da Bahia caíam na mira das
autoridades policiais. Em janeiro de 1836 uma pista concreta chega nas mãos do
chefe. Dentro do boné de um preto revistado por uma patrulha de polícia na
freguesia de São José se encontra um papel com instruções sobre uma possível
rebelião no natal de 1835. Ordena-se imediato interrogatório do preto e se
enviam ofícios aos subdelegados para ficarem de prontidão. A descoberta de um
plano de insurreição escrava em Sacra Família, província do Rio, no mesmo
momento, era a conexão conjunta do levante que se temia.34
Mas não era só o fantasma da rebelião dos malês que atormentava as autoridades.
A revolução dos cabanos no Pará também chegou aos corações e mentes da
população negra na Corte, como já destacamos no episódio com Felipe Moçambique.
Em abril de 1836, um africano liberto de nação moange, de nome Adão José da
Lapa, dono de casa de quitandas na rua da Guarda Velha, ao ver sua moradia
invadida por policiais disse que arbitrariedades iguais "já deram cabo do
Pará e estes atos já tem posto o Rio de Janeiro no estado em que se vê".
35
Estas advertências podiam ser leituras diferenciadas de escravos e libertos que
traduzem em síntese uma destacada diferença: enquanto o levante malê de 1835
conheceu fracasso, abortado pela delação, o movimento dos cabanos em 1836 ainda
era vitorioso, expulsando a elite senhorial da capital da província e
efetivamente tomando o controle da região. Estas diferenças com certeza estavam
presentes na mente de africanos, crioulos, libertos, escravos e homens livres
pobres. Neste mesmo contexto, aliás, sai a primeira deportação de africano
ocidental na Corte: Antônio Nagô, vindo da Bahia, e preso sem passaporte.
Antes, José Mina, escravo de um tenente tinha sido encontrado em Santa Rita com
quatro espingardas e três pistolas. O chefe de polícia considerou o caso
gravíssimo.36
Seduções e Identidades
A presença dos africanos ocidentais, os minas, não foi só em Salvador e Rio de
Janeiro. Eles aparecem em outras cidades escravistas brasileiras já no período
colonial, assim como em áreas rurais e mesmo em quilombos. Inês Oliveira já
demonstrou como os minas e outros africanos ocidentais poderiam ser
classificados em termos étnicos para a Bahia nos séculos XVIII e XIX (cf.
Oliveira, 1997). Analisando a população escrava de origem africana na Capitania
de Minas Gerais, também destacam-se as presenças significativas de escravos,
tanto trazidos da África Ocidental ' chamados também ali genericamente de minas
', como escravos provenientes do Centro-Sul da África, principalmente os
angolas. Baseando-se em Boxer e Russel-Wood, Mott argumenta sobre a
predominância também de africanos oriundos da Costa da Mina na primeira metade
do século XVIII, "apesar da significativa presença Bantu na maior parte
das localidades e períodos da zona aurífera". Mott chamou a atenção
igualmente para o fato de o termo mina ser muito genérico (ver Boxer, 1963 e
Russel-Wood, 1982 apud Mott, 1988:100-103).37 Embora as identidades étnicas dos
vários povos africanos que vieram escravizados para o Brasil não possam ser
desconsideradas na perspectiva de uma análise a respeito da constituição e
organização de mocambos no Brasil, principalmente nos séculos XVIII e a
primeira metade do XIX, já sugerimos como mocambos ' e demos destaque para
aqueles mineiros ' foram formados por africanos de diversos grupos étnicos e
mesmo escravos nascidos no Brasil. Sem generalizações, é possível argumentar
que este fenômeno de complexidades étnicas africanas (e também de crioulização)
nos quilombos brasileiros foi recorrente, podendo o impacto de um determinado
grupo étnico africano ter ocorrido circunstancialmente numa ou noutra região e/
ou período.
Ainda que com suas diferenças étnicas, lingüísticas e culturais, os africanos,
tanto nos quilombos como nas senzalas, procuraram compartilhar objetivos e
estratégias para conquistar ' de que modo escolhessem ou fosse possível ' suas
liberdades. Em alguns momentos, porém, tais diferenças podem ter atrapalhado.
Em 1719, por exemplo, comentava-se a notícia de que os escravos minas e angolas
preparavam um grande levante na Capitania de Minas Gerais. Informações dadas ao
Conde de Assumar revelavam que os escravos "tinham maquinado", para
deflagrarem a insurreição "para a noite de quinta-feira santa, os negros
do Rio das Mortes, Forquim, Ouro Branco, São Bartolomeu, Ouro Preto e de outras
partes". As autoridades descobriram a preparação desta insurreição com
tempo suficiente para reprimi-la. Dizia-se, contudo, que os escravos acabariam
tendo êxito caso não houvesse disputas étnicas, uma vez que "entre eles
[havia] a diferença de que os negros de Angola queriam que fosse Rei de todos
um do seu Reino, e os minas também de que fosse da mesma sua pátria".38
Mesmo não conseguindo os escravos uma aliança étnica forte suficiente para
fazer deslanchar aquele levante, as autoridades coloniais mineiras ficaram
sobressaltadas. Em 1725 já determinavam que os senhores destinassem para o
trabalho nas Minas Gerais os cativos de naturalidade angola, em detrimento dos
minas, sob a justificativa de serem os primeiros mais "confidentes, mais
sujeitos, e obedientes", enquanto que os últimos eram temidos pelo seu
"furor, valentia", podendo assim "animar a entrar em alguma
deliberação de se oporem contra os brancos". Os minas eram acusados
igualmente de serem "feiticeiros" (cf. Costa Filho, 1960-61
apudMoura, 1972). É bom destacar que Malês poderiam não estar somente em
Salvador.39 Para o Rio de Janeiro ' e também para as áreas urbanas de São Luís
e Recife ' também podemos considerar a presença de escravos africanos do Sudão
Central, islamizados, e exportados pelo Golfo de Benim, entre o final do século
XVIII e as primeiras décadas do XIX.
Abordagens revisionistas têm analisado as implicações metodológicas de
considerar a permanência de grupos étnicos africanos ' aparentemente
definitivos ' a partir das experiências do tráfico e escravidão nas Américas.
Tem sido fundamental relativizar os paradigmas da concentração x dispersão e da
heterogeneidade x homogeneidade no sentido das denominações africanas ou
"nações" em termos de nomenclatura e taxonomias étnicas. O caráter
permanente das reconstruções deve ser avaliado, considerando, entre outras
coisas, o número reduzido dos principais portos de embarques de africanos
relacionados, em contraste com as vastas regiões africanas alcançadas pela rede
terrestre do tráfico. Destacam-se, igualmente, as profundas diferenças entre os
léxicos étnicos das várias micro-sociedades africanas, na visão dos
traficantes, africanos ou europeus, e dos senhores (cf. Morgan, 1997:130-1, 136
ss.; ver, também, Gómez, 1998; Hall, 1992; Mullin, 1992; Thornton, 1992).
Africanos recém-chegados podiam conhecer vários caminhos visando, ao mesmo
tempo, a sua "integração" nas sociedades escravistas e a sua inserção
étnica, agenciando novos espaços de vida, trabalho e identidade. Entre estes
caminhos havia aqueles da ótica senhorial e aqueles das comunidades escravas em
contextos específicos. Redefiniam-se as lógicas de dominação, assim como
identidades e formação de comunidades escravas.
Num importante trabalho publicado recentemente, abrindo caminho para a retomada
de debates e pesquisas sobre identidades africanas e crioulas nas experiências
escravas, Mariza Soares apresenta os minas no Rio de Janeiro desde o século
XVIII. Com fontes originais, Mariza argumenta ' destacando os limites para
pensarmos "nações" africanas, considerando a fragmentação da
documentação e as construções do tráfico negreiro ' sobre a gestação de
identidades dos minas e sua articulação com irmandades e outras formas
associativas (ver Soares, 2000).40 É certo que muito antes que o medo mina se
instalasse na cidade do Rio de Janeiro, os africanos ocidentais já ocupavam um
lugar peculiar no meio da escravaria. Este lugar era marcado pelas alianças
construídas pelos minas com outros grupos sociais, mesmo não escravos. Como
explicar que funcionários do consulado da Inglaterra tenham enfrentado a temida
Imperial Guarda de Polícia para salvar dois minas, pertencentes ao cônsul, que
foram detidos pela mesma guarda?41 Esta proximidade entre minas e as
autoridades inglesas vai assumir sombrios contornos nos anos seguintes, quando
cresce a pressão britânica contra o tráfico atlântico de africanos para o
Brasil. Mas para as autoridades o que realça na personalidade dos minas era seu
caráter rebelde, o que colocou em alarme os responsáveis pela ordem pública na
cidade.
Múltiplos, os africanos ocidentais ocupavam vários ângulos da preocupação
senhorial e policial, como Apolinário Mina, que além de capoeira, foi preso por
desobediência e resistência.42 Decerto esta versatilidade era uma rara
qualidade entre as diferentes nações africanas, e garantiu aos minas uma
invulgar penetração no seio da heterogênea comunidade escrava do Rio de
Janeiro. Além disso, alguns eram familiarizados com a cultura letrada, herança
das tradições muçulmanas em sua terra, e isto também lhes conferia um papel
especial, quando vemos a quantidade de requerimentos escritos por pretos minas
para conseguir a sua liberdade, algo pouco comum na cultura afro-carioca do
século XIX.
Mas os minas não encarnavam apenas o perigo da sublevação geral, mas também
eram mestres de um outro ofício que provocava tremendas dores de cabeça nas
autoridades e senhores da cidade: a seduçãode escravos, que era uma forma de
atrair o cativo com algum artifício e depois enviá-lo ' com inteira
participação dos próprio escravo ' para fora da cidade, geralmente para alguma
fazenda ou mesmo para quilombos suburbanos. Diferente do roubo, a seduçãomuitas
vezes era realizada com a participação ativa do próprio "roubado", o
que nos permite colocá-la como mais um variante da fuga, mesmo que não
representasse uma "negação do sistema".
O subdelegado da Freguesia de São José ' onde se concentrava grande parte dos
africanos ocidentais ' foi o primeiro a protestar contra as repetidas
solicitações de passe dos minas. Era para que pudessem ir para ao interior da
província comprar galinhas que aparentemente pretendiam revender nas ruas da
Corte, mas que na realidade, pelo olhar desconfiado do subdelegado, era tudo
pretexto para permitir que os minas percorressem as senzalas da província,
"convencendo" seus moradores a irem para a Corte, onde os esperava
uma densa comunidade africana e talvez a liberdade.43 As seduçõesde cativos
estavam neste momento se dando no sentido do campo para a cidade. Isto é, havia
diversos cativos de fazendas interessados em usufruir das possibilidades de
trabalho e socialização que a cidade permitia. Esta rota do campo para a cidade
vai engrossar nas décadas seguintes.
Assim, a partir dos anos 1840 vemos como os minas no Rio, antes de se tornarem
os líderes da temida rebelião, estavam se tornando os artífices da sedução,
gozando de um incomum prestígio frente às outras nações de escravos, algumas
pouco predispostas à confiança mútua. Também não pode ser esquecido que muitos
minas eram libertos, cujo controle era muito mais difícil do que dos cativos,
daí a novidade da medida requerida pelo subdelegado. Assim, vemos como os minas
abrem mais um canal de comunicação entre escravos da cidade e do campo,
estreitando relações entre os dois mundos, afinal mais próximos do que supõe a
historiografia sobre escravidão.
A seduçãoocorria também dentro da cidade. O intrincado labirinto de becos e
vielas fazia com que fosse fácil ocultar um escravo, até que fosse possível
mandá-lo para fora da cidade ou mesmo que ele se mantivesse como forro em algum
subúrbio distante.44 A rede de seduçãode escravos montada pelos minas nunca foi
devassada em sua plenitude.45
Em outras partes do Império os ventos da sedição ainda corriam na direção dos
minas. Informações de uma conspiração de "homens de cor" no Rio
Grande do Sul capitaneada por pretos minas mostram que o êxodo não se dirigia
somente para o Rio, mas se espalhava por outras províncias, já estremecidas
pelas convulsões da era regencial. A informação de uma "conspiração da
gente de cor" arquitetada por dois pretos minas, revela que tais temores
já eram interprovinciais.46
A questão dos minas era ampla, e por mais que na Corte talvez tivessem mais
projeção ' pelo papel político da capital e a grande população negra e africana
ali residente ' era nas províncias mais estremecidas pelos movimentos políticos
que eles encontravam facilidade para se esconder em meio à população escrava, e
talvez maior impacto de suas ações. Na Corte, o medo da rebelião generalizada
diminuía com o correr da década, mas os ataques contra senhores por escravos
minas reforçavam a aura de rebeldes e incorrigíveis que estes africanos gozavam
entre a população branca e proprietária.47 Os casos se sucediam, reforçando a
fama de incontroláveis que tinham os minas
.
A mobilidade destes africanos ocidentais pelas rotas litorâneas de cabotagem
entre as cidades do império era impressionante. Mas o retorno para a África
também não era raro, e há fortes indícios da existência de uma rota subterrânea
para este continente aberta principalmente para os libertos. Africanos
navegando nos dois sentidos do Atlântico não era raro, mas parece que entre os
minas novamente o que se suspeita é de uma rede de cumplicidade, oculta dos
olhares da polícia, semelhante àquela que leva escravos para dentro e para fora
da cidade.48
A denúncia insólita de que africanos livres Minas "sedutores" de
escravos estavam indo e voltando da Costa da África revela o quanto a rede
oceânica tecida pelo tráfico negreiro podia ser reutilizada por libertos no
sentido de ligar margens do Atlântico (ANRJ, Ij6 194, jun./dez. 1839,
31.7.1839). Curioso também é o castigo oferecido pelo Chefe de Polícia, Eusébio
de Queiroz, a estes "sedutores": a deportação para a África.
Ironicamente a lei que jogou na ilegalidade o tráfico atlântico previa que os
africanos livrescapturados na repressão fossem retornados para a costa de onde
embarcaram.
O que primeiro realça desse ofício do chefe de polícia Eusébio de Queiroz para
o Ministro da Justiça é a presença de africanos livresentre os minas da Corte,
como fica claro quando se menciona que seus serviços foram
"arrematados". Como se sabe estes africanos livresficavam sob a
custódia do governo, mas por negligência ' ou interesse ' muitos desapareceram
depois de entregues temporariamente a proprietários de prestígio, que deveriam
"educá-los" e alimentá-los. Mas a grande maioria se perdeu no meio da
escravaria que vagava pela cidade.49
Eusébio de Queiroz sabia também que os africanos contrabandeados pelo tráfico
ilegal não podiam ser considerados meros boçais, incapazes de qualquer
articulação com outros agentes sociais, mas que eles perceberam de sua condição
limite, e lutariam pela efetivação de sua liberdade, como aconteceu várias
vezes na segunda metade do século XIX. Ao comentar a legislação que proibia o
tráfico de africanos para o Brasil, o chefe de polícia em 1833 avisou que um
dia os africanos contrabandeados perceberiam que antes de serem
"peças" eles tinham sido ilegalmente contrabandeados, e que os
senhores nesse dia estariam muito próximos de perder suas "peças" sem
que os agentes do Estado pudessem fazer coisa alguma.50
Os minas africanos livresaparentemente conheciam melhor sua ambígua condição, e
jogavam com este estado sui generis para viver na prática apartados de seus
senhores, em seu ambiente preferido: a vasta malha urbana escrava do Rio de
Janeiro. A seduçãoera obviamente uma atividade marginal, mas com certeza seus
serviços eram cobiçados por ciganos e até escravos ansiosos para deixar a
cidade pelo campo, ou vice-versa.
Talvez a condição ambígua de africano livre' alguém que teoricamente era livre,
mas vivia as mesmas agruras dos escravos, sob jugo senhorial ' ajudasse na
penetração deles dentro da comunidade escrava em geral. Mas o fato é que os
minas ' independente de serem escravos, libertos, livres ou africanos livres'
gozavam de certo "passe livre" na babel de línguas e culturas que era
cidade africana do Rio. Aliás, num recente artigo, Beatriz Mamigoniam explora
as estratégias dos minas, especialmente os africanos livres, inventando suas
escravidões e emancipação (ver Mamigoniam, 2000).
Certa feita Eusébio de Queiroz vislumbrou o vasto esquema da seduçãode escravos
montado pelos minas na cidade do Rio. Um ofício do presidente da província do
Rio mostrou ao chefe de polícia que tudo que ele vira antes era apenas a ponta
do iceberg. Era o caso de uma escrava chamada Catarina Cassange, pertencente a
um tal Manuel da Rosa, e que fora seduzidana Corte por um preto mina de nome
Aleixo, oficial de barbeiro e morador na rua dos Ferradores. Junto com outro
escravo ' também seduzido' eles foram enviados para Guapy, distrito de Magé, na
Província do Rio, e entregues a Joaquim Mina, que tinha uma venda naquela
região.
Era a ponta do outro lado da rede. Mas a história não terminou. Catarina ainda
foi enviada para um quilombo em um lugar denominado Laranjeiras. Ali deu à luz
uma criança, e depois foi enviada a um certo Parnaso, administrador de uma
fazenda pertencente a um tal Damião. A negra recebeu ali outra criança para
cuidar ' talvez o preço da estadia ' e os dois foram batizados na vila de Magé,
junto com outra "cria escrava" do Parnaso.51 Além disso, o tal
Joaquim Mina ' conexão rural da rede mina de sedução' comprava a lenha oriunda
do quilombo e tinha "bastantes relações com os habitantes dele".
Vemos assim montado um quadro que pode definir os caminhos da seduçãode
escravos: africanos minas bem localizados na Corte, donos de vendas e tabernas
nas zonas de fazendas, quilombos ocultos nas serras, protegidos ' talvez por um
pacto de colaboração ' por administradores e afinal escravas domésticas
arranjadas no mercado paralelo, por preço bem mais acessível, em tempos de
tráfico clandestino. Dificilmente a rota seria cumprida sem livre e espontânea
vontade da escrava.52
Esta vasta rede ligando quilombos suburbanos com as movimentadas ruas da Corte
era também articulada pelos minas, e não vemos estrutura semelhante antes da
chegada deles em grandes números no Rio após 1835. Por mais que o espectro da
rebelião ainda seguisse os minas, era nos subterrâneos da seduçãode escravos e
da organização clandestina que eles fizeram sua fama, e ao dissabor das
diferentes autoridades. Nos anos 1840, a deportação dos minas para a África '
principalmente Angola ' tornou-se uma arma efetiva das autoridades, como no
caso de Alexandre e Salvador, levados para Benguela como castigo por seus
crimes contra a "propriedade".53
O apogeu dos minas na Corte do Rio de Janeiro foi a década de 1840. Para onde o
olhar das autoridades se dirigisse lá estavam: como líderes de virtuais
levantes imaginados, chefes de grupos perdidos no emaranhado de casas, ou
provedores de redes de contrabando de cativos entre a cidade e as fazendas. Mas
os minas não eram apenas "sedutores". Eles também eram
"seduzidos" e assim também entravam na circulação clandestina da
mercadoria escrava, como Sabino Mina, que confessou ter sido roubado na Bahia
por um guarda nacional (ANRJ, Códice 323, V.16, 18.11.1841, f.44).
Os minas que causavam maiores problemas aos fiscais da ordem pública eram os
não escravos: libertos, livres, africanos livres. Estes usufruíam de uma
mobilidade que permitia grande versatilidade dentro e fora dos mundos da
escravidão. Um caso extraordinário foi o de Felício. Tinha sido, inicialmente,
entregue como africano livreao político José Paulo Nabuco de Araújo ' talvez
parente do político José Tomaz Nabuco de Araújo, pai do abolicionista Joaquim
Nabuco. Depois de "bons serviços" ele subitamente muda, na visão do
conselheiro, e se torna rebelde. O conselheiro então envia uma representação ao
chefe de polícia requerendo a deportação do africano mina para fora do Império
com receio de vingança de parte de sua antiga "peça".54 Ou seja, em
1831, Felício foi entregue ao senhor Paulo Nabuco, possivelmente capturado na
repressão ao tráfico, vindo do norte da linha do Equador, proibido desde 1815,
já que nesta data a lei ampla de novembro de 1831 ainda não fora decretada.
Após uma fuga malsucedida, é levado para a Casa de Correção, onde passa pelas
agruras que esperavam os fugitivos. Nunca mais, na opinião de seu senhor, ele
voltará a ser o mesmo (ANRJ, Ij6 202, 1844, 27.7.1845).
Como podia um cativo que durante anos tinha se comportado da forma mais
"dócil" na visão senhorial se tornar o símbolo do rebelde, do
insurreto? Este exemplo é um momento perfeito para perceber como as leituras de
"comportado" e do "incorrigível" podiam ser acopladas em um
mesmo personagem, variando somente as circunstâncias exteriores. Assim os tipos
sociais tão falados do "Pai João" e do "Zumbi", supostos
paradigmas dos extremos da escravidão, na realidade eram apenas diferentes
conjunturas, que podiam ser amoldadas, inclusive, pela visão dos escravos (ver
Silva, 1989). No caso, Felício se comportou nos moldes prescritos pela ordem
senhorial enquanto esta atitude podia refletir em ganhos, mas mudou
radicalmente quando percebeu possibilidades maiores de agenciamento com a fuga
(cf. Carvalho, 1998, esp. cap. 13).
Seria Felício Mina um africano livreque se "ladinizou", usando a
terminologia do próprio chefe de polícia vista acima, e descobriu seu
verdadeiro espaço dentro da sociedade? Difícil dizer sem contextualizar com a
situação política vivida que na década de 1840 era muito agitada e de extrema
politização. Vale a pena destacar que o africano Felício foi entregue ao seu
senhor numa quadra turbulenta da vida social no Rio de Janeiro. Depois da
"hospedagem" da Correção passou um ano sofrendo de
"reumatismo" possivelmente seqüelas dos castigos sofridos na prisão.
Após ser tratado voltou a fugir e depois capturado. Recalcitrante, passa a
hostilizar outros escravos da casa, talvez acomodados demais a sua condição,
para ele. Felício termina pedindo asilo na casa de um curador, de onde se
comprometeu a manter os pagamentos do "jornal" ao seu senhor, como
todo cativo de ganho. No final, o mina afirma que ficaria sob custódia do
curador "enquanto os ingleses o não vinham buscar para protege-lo".
A parte mais extraordinária dessa passagem é a rara leitura de um africano
sobre a presença inglesa na repressão ao tráfico clandestino. Tal fala do
africano deixa claro que os ingleses são lidos como aliados dos cativos e que
podiam ser agenciados para ajudar a pender para o lado desejado os conflitos
com o senhor. Assim, africanos capturados pela Comissão Mista Brasil-Inglaterra
eram, nesta visão, protegidos da crueldade senhorial. Este recurso ' ou esta
possibilidade ' era aberta através do curador dos africanos livres que
voluntária ou involuntária intermediava esse mecanismo (cf. Rodrigues, 2000).
Esta é uma clara percepção dos aliados possíveis nas leituras das experiências
do cativeiro, uma visão política de que há brancos que podem trazer benefícios
à liberdade, e há aqueles que são inimigos inconciliáveis ' no caso, o
conselheiro Nabuco de Araújo. Mas o relato do conselheiro do Império não tinha
acabado. No relato de Nabuco, este africano era a prova da incorrigibilidade
dos minas da África Ocidental, pois conseguiu provocar o temor do seu próprio
Curador, que pede a polícia proteção contra o africano livre. Assim Felício
acabou de novo na Casa de Correção. Curiosa também é a negociação à distância
entre o mina "colocado ao ganho" e seu virtual proprietário, que
denota a margem que este tipo de ocupação escrava permitia frente ao senhorio.
Digno de menção também é uso de cartas pelo africano mina, não só para o
senhor, mas também a familiares e adversários. Estas cartas visavam na certa
semear a cizânia entre amigos e clientes do poderoso político, uma arma
inesperada para uma população quase inteiramente analfabeta.55
Causa espécie também ver um político renomado como um conselheiro do Império
desistindo da queda de braço com um reles escravo, já que depois Nabuco
desistiu, remetendo definitivamente o mina para a Casa de Correção. De acordo
com ele, nas várias visitas que fez à Correção para comprovar se o negro tinha
dobrado sua espinha, ele confessou que "jamais o viu disposto a humilhar-
se, achando-o sempre altivo, negando-se a fazer qualquer serviço que o
humilhe".
Felício é o protótipo do que durante anos será o africano mina autêntico, na
visão dos viajantes e contemporâneos: altivo, inteligente, enérgico, decidido,
e uma outra faceta pouco conhecida, profundamente político no sentido de
negociador, articulador. Parece que o Conselheiro Nabuco de Araújo encontrou na
senzala um rival à altura. Mas as condições do africano vão se degradando, sua
margem de manobra diminuindo. O medo do conselheiro, porém, era ainda maior,
ele pede a deportação de Felício para Angola ou Serra Leoa.
A legislação sobre africanos livresestabelecia o prazo de "serviços"
por 15 anos, que já estava terminando por volta de 1844 quando o livreé afinal
deportado. Mas é realmente marcante o temor que Nabuco de Araújo nutria pelo
ardiloso Felício Mina, principalmente quando ele se tornasse livre de todo, ele
que deveria ter sido um dos primeiros africanos a entrar na condição de
livrepela Comissão Mista, a julgar pelo número 13 da matrícula.
Afinal Felício foi deportado para Angola.56 A proverbial habilidade deste mina
não era um caso isolado. Um ano depois um outro mina, Henrique José,
concentrava as preocupações das mais altas autoridades da justiça e da polícia
do Império. O novo chefe de polícia da Corte, Luís Fortunato de Brito Abreu
enviou, em 1845, um longo ofício ao Ministro da Justiça apresentando Henrique
José, mais um preto mina no centro das atenções, e que também deveria ser
deportado (ANRJ, Ij6 204, maio/dez. 1845, 30.6.1845).
Henrique não era um africano livre,mas sim um liberto, porém este detalhe não
diminui sua periculosidade frente aos olhares da cúpula da polícia carioca. A
prisão não era castigo bastante para ele, no olhar das autoridades, daí o
recurso extremamente usado nesta década da expulsão do Império. No caso do
"Riscadinho" (seu apelido pode ser derivado das marcas tradicionais
do africano mina, que são três riscos no rosto57) o temor era tão grande que o
chefe de polícia pediu sua deportação para no máximo 48 horas após a prisão.
Diferente de Felício, um mestre na arte da fuga e da intriga, Henrique era uma
liderança na rede de seduçãode escravos, que já vimos acima, e tinha sua base
de operações nas casas de angu, ou zungus, para onde africanos e crioulos
convergiam. Os cativos "seduzidos" eram levados para estas casas, e
depois clandestinamente dirigidos, por terra ou por mar, para fora da Corte,
onde eram entregues para outros senhores ou introduzidos em quilombos ou
"ajuntamentos" de negros nos subúrbios, como ocorreu ' já destacamos
' com Catarina Cassange, como já colocamos. Para agravar ainda mais o quadro:
"Riscadinho" era um informante da polícia que, segundo relato de seu
superior hierárquico, não era confiável, pois era um dos líderes das então
célebres casas de pombearda Corte Imperial, um outro nome para os
zungus
.58
Henrique "Riscadinho" era um informante de polícia,59 mas pelo jeito
utilizava sua posição para se beneficiar e, quem sabe, fornecer informações
para as comunidades escravas e africanas urbanas, como um autêntico agente
duplo. Merece destaque a parte em que o chefe de polícia descreve as
habilidades do africano, talvez num discreto gesto de admiração à quem enganou
a polícia "tantas vezes". Em nenhum outro documento policial do Rio
de Janeiro da primeira metade do século XIX percebemos uma autoridade tão
poderosa como o Chefe de Polícia da Corte descrever de uma forma tão
impressionante as qualidades de inteligência e habilidade de um negro africano
da Costa da Mina.
O tributo pago pela autoridade-mor da ordem policial na cidade à esperteza de
"Riscadinho" é um testemunho do quanto os escravos e os africanos, em
particular os minas, alcançaram um alto patamar de liderança e experiência.
Enquanto nos primórdios do século XIX tínhamos somente rápidas passagens nos
livros de prisões de africanos, agora as autoridades dedicam verdadeiros
relatórios aos ousados minas, e seu proeminente papel na mudança da política
escrava na cidade do Rio.
O último africano-ocidental desta galeria é aquele do qual menos temos
informações. Cesário Mina aparentemente foi um recém-alforriado que depois da
assinatura da carta de liberdade não cumprira seus "deveres" de
liberto, como continuar prestando serviço ao senhor, e reverência por sua nova
condição de "dependente". Passou a ameaçar seu ex-senhor, o qual
pediu o castigo rotineiro: deportação para a África.60
O chefe de polícia assumira por inteiro a visão do negociante, de nome João
José Pereira, e insistira com o Ministro da Justiça para efetivar a
deportação.61 Cesário afinal foi deportado para Benguela (ANRJ, Ij6 211, 1848,
26.1.1848), juntou-se a talvez vasta comunidade de Minas em Angola, apesar de
que alguns não tiveram esta sorte.62 Seria interessante um estudo sobre esta
comunidade de "retornados" de africanos minas em Angola, quem sabe
nos moldes dos retornados da Costa da Mina ainda nos finais do século XIX.63
Mas o que nos interessa é que o medo em relação aos minas era tamanho que
haviam fundados receios que mesmo presos eles ainda continuariam exercendo
funções de liderança na comunidade de africanos e crioulos da Corte. A
deportação para a África podia ser vista por alguns membros da elite branca
como um prêmio para os genericamente chamados de "africanos", mas era
melhor do que ter cérebros ardilosos e perigosamente inteligentes na direção de
uma vigorosa comunidade negra no coração de uma cidade coalhada de africanos e
escravos.
A atração que a cidade exercia sobre minas libertos ' conseqüência, entre
outras coisas, do vasto corpo social de semelhantes vivendo dentro de seus
estreitos limites ' era tamanha, que eles desafiavam todas as regras para
usufruírem dela. Como então explicar que Cesário tenha conseguido, dez meses
depois, voltar para a Corte? Teria vindo num navio negreiro clandestino? Teria
arrancado colaboração dos nativos de Angola para embarcar numa belonave
mercante?64
Que estranha atração era esta que a Corte exercia sobre os minas da Bahia? O
Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX é a maior cidade africana do
mundo Atlântico, mas esta leitura não era resultado apenas de números
populacionais, mas sim de política. Talvez em nenhum outro lugar do Ocidente se
podiam forjar lideranças dentro do mundo urbano escravo e africano que
polarizassem uma massa tão grande em um espaço tão limitado.
Os minas ficaram célebres nas Ciências Sociais por seu exclusivismo étnico, mas
no Rio de Janeiro eles exercitavam exatamente o pendor contrário, entrando e
saindo de todas as tribos, dialogando com todas as nações, construindo vasta
clientela, dentro e fora da escravaria, e intimidando por seu prestígio a
arrogância de certos senhores. Seu poder não era pessoal, mas fruto da base
social interétnica que tinham por trás. Em suma, nos anos 1840 os minas
corporificaram a liderança política da escravidão urbana, antes deles talvez
difusa e fragmentária.
Até a metade do século os africanos minas eram um destacado fator de
preocupação e receio por autoridades e senhores do Rio de Janeiro. Somente
quando o tráfico atlântico cedeu ' e os africanos passaram a ser vendidos para
as grandes fazendas do interior ' é que o "perigo mina" começou a
diminuir paulatinamente. Mesmo assim, até o final da instituição da escravidão
na cidade, os minas eram um referencial de liderança política ainda
ameaçador.65
No crepúsculo da primeira metade do século, em 1849, com seus renovados temores
' forças navais inglesas pressionando pelo fim do tráfico, escravaria inquieta
nas senzalas do café ' o chefe de polícia da Corte enviou um longo relatório ao
agora Ministro da Justiça, Eusébio de Queiroz, conhecedor como ninguém do
"perigo mina", demonstrando a complexa organização que os minas da
Bahia tinham construído na Corte em 15 anos de exílio.
Verdadeiras sociedades secretas se ocultavam nas brenhas da cidade,
aparentemente com destinação religiosa, mas o que era mais aterrador, mantendo
vasta correspondência com comunidades do mesmo tipo em outras províncias, como
Bahia e Minas Gerais, e possivelmente na língua árabe, pois de acordo com o
chefe de polícia as cartas eram redigidas em "escrituras de cifras".
Tudo indica que nesta época os africanos ocidentais da Bahia tinham montado uma
vasta rede que se espalhava por ampla parte do Império, que mesmo não voltada
para o fim de uma rebelião generalizada, já representava por si só uma ameaça
para a ordem que se queria manter (Diário do Rio de Janeiro, 5/12/1849:4).
Em 1849, o medo da repetição do levante malê na Corte tinha recuado, mas a
capacidade organizativa destes minas era ainda um portento, e sua habilidade em
ocultar estas estruturas dos olhares da repressão, magistral. Mas ' talvez para
alívio dos africanos minas ' o responsável pelo policiamento da capital
concluiu que os papéis tinham apenas função religiosa, com preces do Alcorão,
isso tudo talvez com a cumplicidade de tradutores africanos. Será o mesmo ardil
utilizado com o temido Eusébio de Queiróz em 1835?
De acordo com o relato do então chefe de polícia, Antônio Simões da Silva, a
partir do Rio de Janeiro esta rede estendia seus tentáculos até as províncias
vizinhas, talvez utilizando códigos sociais invisíveis para as autoridades,
apesar de o alfabeto árabe já ser de longe conhecido das autoridades, numa
autêntica rede de casas de culto, talvez irmã da rede de sedução. O certo é que
o medo guiou os agentes da repressão. Parece, contudo, que a batida da polícia
não teve muito resultado, pois os africanos detidos foram libertados.
Aparentemente o chefe de polícia Simões da Silva encontrou em 1849 as mesmas
barreiras que Eusébio em 1835 ao tentar decodificar o complexo código de
significados da língua malê. Mesmo entendendo o sentido literal das palavras,
eles foram, tudo indica, incapazes de perceber os sentidos políticos ocultos
nos papéis malês, que apontavam os rumos, contraditórios ou não, da cultura
política dos escravos e africanos.66 O chefe de polícia, porém, não deixou de
considerar a tradição rebelde dos minas, e decidiu não tirar os olhos deles,
ordenando que fossem vigiados de perto. E também não lhe escaparam os vínculos
inevitáveis com a escravidão. Antônio Simões foi perspicaz o bastante para
entender o vínculo entre religião e revolta, tão importante em 1835, e no final
de seu longo ofício admitiu que as idéias religiosas podiam ser utilizadas por
"fanáticos" contra a escravidão, e que este sentido político do culto
era perigosos, pois foi exatamente "o que se encontrou quando houve a
insurreição dos escravos em 1835".
No apagar das luzes da primeira metade do século XIX a sombra ameaçadora do
levante malê ainda era percebida nas ruas do Rio de Janeiro. Este levante que
jamais houve, que nunca foi concreto, só nos receios e apreensões dos
dirigentes do Estado imperial na Corte, fez história. Mobilizou esforços,
mostrou, mesmo em relances, as entranhas do leviatã negro que colocava em
sobressalto moradores e autoridades da maior cidade escrava do país.
Mas na década de 1840, os negros minas, longe de serem somente rebeldes
incorrigíveis, também partilharam da conjuntura particular que se vivenciava. A
alternativa da seduçãofora um caminho forjado na impossibilidade de efetivar
amplos movimentos armados coletivos dentro da cidade, ou pela vigilância
extrema da ordem policial e senhorial, ou mesmo pelas divisões latentes na
grande maioria negra da cidade. Entretanto, paradoxalmente, eles também foram
aliciados por interesses políticos de grupos das camadas senhoriais.
Desta forma podemos compreender o ingresso de representantes desta nação nos
conflitos políticos que dividiam a elite branca na década de 1840, como em
1842, quando eles foram arregimentados pelos conservadores na luta contra os
insurrectos liberais, que tinham se levantado nas províncias de São Paulo e
Minas Gerais (cf. Marinho, 1977 apud Mattos, 1986:34). Nas duas últimas décadas
da monarquia, os comentaristas políticos do tempo observavam espantados, a
aliança entre o Partido Conservador e os nagôas, um grupo de capoeira que
reunia diversas maltas que dominavam parte da cidade, e participaram ativamente
dos conflitos eleitorais e políticos da era da Abolição (cf. Soares, 1998).
Qual o legado dos minas, e qual seu papel na história do protesto negro na
cidade? Por mais que pareça que os minas desapareceram junto com os velhos
africanos remanescentes do tráfico no final do século XIX, temos fortes
indícios que eles tiveram papel destacado no imaginário dos trabalhadores
negros urbanos da virada do século. No final do século XIX a tradição oral da
capoeira citava com insistência os guayamúse os nagôas, dois conglomerados de
maltas que dominavam a cidade pelos anos 1870 e 1880. Os nagôasse encastelavam
principalmente em São José e Santana, onde, décadas atrás, os minas-nagôs
tinham seus redutos. As origens da tradição nagôaera derivada de uma raiz
escrava e africana, esta última, por sua vez, derivada também dos minas-nagôas
e seu êxodo das praias de Salvador até as ruas do Rio de Janeiro.
Assim, estes minas-nagôs, que construíram uma legenda de altivez e rebeldia
entre senhores e autoridades, também foram inevitavelmente lidos por grupos
subalternos, e estes incorporaram aquilo que era perigoso para uns, como audaz
e corajoso para eles. Desta forma, grupos de identidades étnicas diferentes dos
minas podem ter introjetado seus valores, e seus signos, sabendo talvez o
pânico que estes símbolos causavam na mente dos donos do poder. Os nagôasdos
últimos anos da monarquia ' incorporando crioulos, brancos, portugueses '
permitiram a continuação da tradição, até a virada do século, quando a Praça 11
era o notório refúgio das memórias nagôs, e berço do samba.67
* * * * * *
A repressão aos africanos minas na Corte continuaria até o fim do século.
Muitos deles retornaram à África. Outros tantos se reorganizaram em padrões de
moradia própria, ocupações, reconfigurações religiosas e identitárias em várias
áreas da cidade. Em 1853, autoridades ainda continuariam invadindo casas de
africanos libertos minas e nagôs, alegando conspirações. Africanos libertos
enchiam as prisões. Sentimentos de insegurança pública eram reavivadas para
justificar intolerâncias e truculências. Tais medidas forçaram o êxodo de
muitos deles para África. Um observador estrangeiro diria que os temores quanto
às insurreições eram "francamente desmedidos". Na Bahia, o vice-
cônsul inglês ironizava a permanência de tais temores em 1856, posto que
bastava a descoberta de "elegantes escritos árabes" para africanos
serem perseguidos, encarcerados e banidos (cf. Cunha, 1985:80).
Em 1836, um articulista anônimo do Jornal do Commérciodefendia, pioneiramente
para os padrões brasileiros, a extinção da escravidão, mas o móvel para idéia
tão drástica naquele remoto ano não era a elevação do "elemento
servil" ou a modernização do Império, mas o medo de que o levante malê da
Bahia se alastrasse para a Corte, levando todo o Império de roldão.
"Não vimos a Bahia ainda a pouco ameaçada de uma medonha
insurreição africana? Não sentimos aqui também os mesmos receios?
Nada, nada disto é bastante para desenganar-mos que estamos
continuamente com o pé sobre um vulcão" (Diário do Rio de
Janeiro, 1/10/1836:1).
Ao longo do século XIX, os africanos ocidentais, seus descendentes e outros
africanos continuaram a redefinir constantemente suas identidades. Identidades
negociadas. A pergunta, considerando não só africanos, mas também crioulos '
como aqueles vindos de Salvador posteriormente pelo tráfico interprovincial '
era tanto quem é mina, como quem não é. No Rio de Janeiro urbano, talvez
buscando proteção, africanos de vários grupos étnicos ficariam ' em termos de
reconfigurações étnicas ' sob um grande "guarda-chuva" mina, como
aquele nagô para Salvador. Eram reprimidos, mas também temidos. São várias as
imagens e personagens de negros "feiticeiros" minas nos romances do
século XIX. Por outro lado, construindo e agenciando identidades, estes
africanos minas e outros controlavam uma parte do mercado de trabalho com as
quitandeiras. Estabeleciam padrões de moradias e sociabilidades.
Também africanos islamizados ' os malês ' podem ter organizado algumas
comunidades na Corte do Rio de Janeiro. Com medo da repressão, do estigma e
protegendo a sua religiosidade podem ter ficado invisíveis. Pedaços destas
comunidades ' reforçada pela continuidade do êxodo de africanos e seus
descendentes de Salvador para o Rio de Janeiro até as primeiras décadas do
século XX ' aparecem nos textos de João do Rio. Vários cronistas e a memória
oral das comunidades negras da chamada "Pequena África", na velha
Praça 11 e também nos bairros Saúde, Santo Cristo e Gamboa revelam sobre os
"tios" e alufás. Outros "misteriosos manuscritos árabes" de
africanos islamizados apareceriam (ver Lopes, 1988:68-72; ver, também, Moura,
1994; Vargens & Lopes, 1982).
Viagens de libertos africanos e seus descendentes para África e o retorno para
o Brasil não seriam incomuns. Em várias regiões africanas, as identidades ' e
posteriormente argumentos diácriticos de "nacionalismos" étnicos '
acabariam sendo refeitas com ingredientes das experiências de libertos que
retornaram (cf. Matory, 1999; Turner, 1995). Este movimento de realinhamentos
identitários de ex-escravos que retornaram para a África nos ajuda a entender
as possíveis construções simbólicas e agenciamentos de identidades de africanos
nas experiências da escravidão e liberdade no Brasil. Talvez seguindo estas
pistas poderemos vislumbrar tradições transétnicas e étnicas de reconfigurações
de identidades africanas, crioulas, escravas e livres. Os africanos minas
formariam, assim, comunidades intra-atlânticas e transatlânticas. E as margens
do Atlântico pareciam querer ficar estreitas.
Notas
1.
Produzindo uma abordagem política e cultural do tráfico ' que não só refletiam
impactos demográficos ' já em meados dos anos 80, João Reis oferecia reflexões
instigantes para pensar as reconfigurações das experiências africanas (e
islâmicas) da escravidão urbana de Salvador (cf. Reis, 1986).
2.
Ver os estudos recentes de Slenes (1991-1992, 1995, 1995-1996, 1999).
3.
Ver, entre outros, Cunha (1985), Fry & Vogt (1996), Reis (1996-1997),
Slenes (1991-1992), Silveira (1988). Na bibliografia internacional há várias
perspectivas de interpretações sobre a criação de culturas e identidades dos
africanos. Há também muita polêmica. Ver, entre outros, Agorsah (1994), Barnes
(1992), Mintz & Price (1992 ou 1976), Mullin (1992); Palmié (1995), Stuckey
(1987), Thornton (1992) e Vlach (1992).
4.
Ver, além do trabalho clássico de Moura (1972), entre outros, Reis & Gomes
(1996); sobre maroons, ver a revisão das análises em Price (1988-89); ver,
ainda, Craton (1982), Gaspar (1985) e Genovese (1983).
5.
A inspiração inicial para este texto nasceu com os nossos papers e os debates
quando do I Seminário Afro-Carioca, na mesa-redonda intitulada
"Referências Míticas Africanas no Rio de Janeiro", no dia 6 de
outubro de 1999 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
6.
ANRJ, IJ1, maço 859, Ofícios de Presidentes de Província (RJ), Ofício do
Presidente da Província (RJ) enviado ao Ministro da Justiça, 18.3.1835.
7.
Idem, Códice 334, Carta denúncia anônima, s.d.- GIFI, pacote 5 B 515. Ver,
também, ANRJ, Ofícios do juiz de paz do primeiro distrito de São José ao chefe
de polícia da Corte ao ministro da Justiça, 20.2.1836; códice334. Arquivo
Nacional.
8.
APERJ, Ofício do juiz de paz da Vila de São João do Príncipe ao vice-
presidente da província (RJ), 30.5.1835; fundo PP, coleção 80, e ANRJ, Ofício
do vice-presidente da província (RJ) ao ministro da Justiça, 18.5.1835. Ver,
também, Ofício do ministro da justiça ao chefe da Corte, correspondência
citada, códice 334, f. 2 v.
9.
AHI, Ofício do agente consular do Brasil em Londres ao ministro dos
estrangeiros, 2.9.1835. Missões Diplomáticas Brasileiras,ofícios reservados
(Inglaterra), códice 217-3-3. Ver, também, ANRJ, Códice 334, Transcrição do
ofício citado de 2.9.1835, f. 14 v. e 15 v.
10.
Os dois casos foram no 3º Distrito do Sacramento. Ver ANRJ, Ij6-170,
"Partes... 28.01.1835".
11.
O melhor estudo discutindo as denominações, representações e classificações
étnicas dos africanos ocidentais e minas no Brasil, aparece em Oliveira (1997).
12.
Ver Karasch (2000:46-47, tabela I.3) e Holloway (1998:268, apêndice 4), dados
também citados em Mamigonian (2001:83).
13.
ANRJ, IJ 6 170, Ofício do Chefe de Polícia ao Ministro da Justiça. AN. Em
julho de 1831, o Chefe de Polícia denunciou ao Ministro da Justiça a chegada de
nove africanos de Angola que vinham exercer ofício de quitandeiros. De acordo
com o encarregado, eles coabitavam em certas casas com outros africanos
libertos e escravos, que serviam também de refúgio para fugidos, e centros de
receptação de objetos roubados pelos cativos de seus senhores, e mesmo para
sedução e vendas de escravos para fora da cidade. ANRJ, Ij6 ' 165, 1831-32, 28.
7.1831.
14.
ANRJ, Ij6 ' 170, jan.-jul, 1835, Ofícios do Chefe de Polícia, respectivamente
4.5.1835, 20.5.1835, 4.6.1835.
15.
Sobre a legislação repressiva do pós-1835 ver Reis op. cit. "O
castigo" pp. 254 ' 281. E Colleção das Leis do Império do Brazil 1835, Rio
de Janeiro, Typografia Nacional, 1864. Decreto de 10/06/1835. O objetivo era
encontrar um carrasco para o município de Vassouras, onde novo levante foi
abortado. Ele recorreu ao Arsenal de Marinha, a Casa de Correção, ao Aljube,
Santa Bárbara, e todas as fortalezas do Rio. O esforço foi em vão. Ver ANRJ,
Ij6 ' 170, jan./jul. 1835, 29.7.1835.
16.
ANRJ, Ij6 170, jan.jul. 1835, ofício do chefe de polícia ao ministro da
justiça.
17.
Idem. "Inclusa vai a tradução que eu dele pude obter, mas não poderá
escapar da penetração de V. Exc. a pouca exatidão de uma versão feita por um
preto de uma língua que lhe é estranha, sendo certo que muitas vezes bastante
me custou a entender o que ele dizia. Para entender as primeiras palavras da
tradução é necessário saber que no escrito original supõe ele um poderoso
talismã contra os sucessos maus da guerra, e quando marcham para a guerra
costumam dissolver o papel escrito em água que bebida os faz invulneráveis, ou
mesmo cada soldado leva consigo uma linha escrita, e então se persuadem de que
as espingardas em vez de fogo despejam sobre eles água. Na conclusão do escrito
aparecem uns poucos de riscos que são as assinaturas. Notei que quando ele lia
falava em Alli, que quer dizer Deus, chama, grande sacerdote, Braima sacerdote
e outras palavras, que me parecem assemelhar-se a de que usam os orientais. A
vista do contexto da tradução parece-me que aquele escrito contém as
deliberações de algum club que eles formaram, mas ao mesmo tempo as palavras do
princípio e as explicações do preto sobre o uso que lhe costumam dar dá a
entender que não é mais do que oração misteriosa na qual supõem os nagôs
grandes virtudes. Se V. Exc. tiver a bondade de me enviar outros escritos
talvez se consiga avanço maior". Continuamos a pesquisar estes e outros
escritos sobre os malês no Rio de Janeiro e suas repercussões.
18.
Em pesquisa em andamento ' com fontes inéditas ' continuamos a rastrear estes
"medos" com relação aos malês e africanos ocidentais no Rio de
Janeiro, entre 1830 e 1880. Sobre escritos malês, ver as interpretações
críticas em Reis (1988).
19.
"A palavra escrita, que os malês utilizavam, tinha grande poder de
sedução sobre os africano só familiarizados com a cultura oral. Os amuletos
eram em geral feitos com papéis contendo passagens do Alcorão e rezas fortes.
Esses papéis eram cuidadosamente dobrados ' operação que também tinha sua
dimensão mágica ' e colocados numa bolsinha de couro toda costurada"
(Reis, 1985).
20.
Era o brigue Triunfo, com 98 escravos: 95 nagôs, 1 crioulo, 1 tapa, 1 pardo e
1 benguela. Todos pertenciam a José de Cerqueira Lima, negociante da Bahia. O
navio chegou ao Rio em 4 de abril de 1835. ANRJ, Ij6 170, jan.jul,1835,
8.4.1835. Em um ofício ao secretário de visita do posto Eusébio afirma que
"a respeito dos escravos vindos da Bahia não permita o desembarque de
nenhum, ainda que apresente passaporte, sem apresentar folha corrida.",
ANRJ, Ij6 170, jan.jul.1835, 21.3.1835.
21.
"Estes não apresentaram e agora é que depois de estarem com termo de
reexportação se apresenta esta folha corrida. Se tal precedente passar todos
desembarcaram, porque nada é mais fácil do que apresentar uma folha corrida
limpa a um escravo que já se acha aqui". Os dois que requerem foram presos
no levante de 1835. Ij6 170, jan.jul. 1835, 27.5.1835. Ver também Colleção das
decisões do governo do Império do Brazil,[doravante CDGIB] 1835, Rio de
Janeiro, Typographia Nacional, 1864, "Limita a certos escravos vindos da
Bahia a exigência da folha corrida". Decisão de 13.4.1835, p. 75.
22.
Sobre as crises regenciais, os temores de revoltas e motins e o papel da
opinião pública na Corte, ver Basile (2000).
23.
ANRJ, Ij6 170, jan.jul.1835, "Partes... 27.5.1835, 1º distrito da
Candelária. Foi preso o preto Mina Manoel José Henriques por levantar uma
bandeira tricolor em um pau e usar expressões insultantes."
24.
ANRJ, Ij6 170, Partes... 1º Distrito da Freguesia de Santana, 10.4.1835. Na
mesma semana são presos o preto Mina liberto Daniel João, por crime de injúria,
e o preto José, de nação Mina, que diz ser forro, por uma bofetada.
25.
"Por quanto a toda presunção e suspeita de que tais pretos são os
incitadores e provocadores dos tumultos e comoções a que se tem abalançado os
que existem na escravidão". CLIB, 1830, Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1876. Decreto de 14.12.1830. "Estabelece medidas policiais que
na província da Bahia se devem tomar em relação aos escravos e pretos forros
africanos", p. 96.
26.
ANRJ, Códice 334. Correspondência reservada da polícia, 1833-1846, 17.3.1835.
27.
Sobre zungu, ver Soares (1998).
28.
ANRJ, Códice 334. Correspondência reservada da polícia, 1833-1846, 17.3.1835.
"Previno V. Exc. que na rua do Valongo próximo ao teatro que ali há me
informam que reside um preto, a quem muitos outros se dão o maior respeito, e
que ali vão iniciar-se em princípios religiosos e cumpre portanto fazer
averiguar pelo juiz de paz respectivo".
29.
"Não constando ainda resultado algum das diligências que por aviso
reservado de 17 do corrente se ordenara aos juizes de paz desta cidade, Engenho
Velho e Lagoa de Freitas, cumpre que V. M. ordene que enviem a esta Secretaria
de Estado com a possível brevidade as informações que lhe foram recomendadas
sobre a conduta dos pretos Minas e libertos e respectivos distritos".
30.
No Brasil uma tentativa instigante de mapear comunidades africanas e crioulas
em áreas específicas encontra-se com sucesso em Reis (1986). Mais recentemente
têm aparecido estudos com pistas sugestivas nesta direção. Ver Caron (1997),
Chambers (1997), Hall (1992) e Goméz (1998).
31.
"Para facilitar a inteligência de alguns manuscritos de pretos Minas eu
rogo a V. Exc. que se digne ordenar que na Biblioteca Pública se entregue ao
francês José Poix morador na rua dos Ourives nº90 um dicionário que lá existe
de árabe para latim em 4 volumes que se restituirá no prazo de um mês".
32.
Códice 334, 22.12.1835, f.17 e 28.12.1835, f.19, "Cartas particulares me
dizem também que alguns pretos asseveram haver acordo entre eles e os da cidade
e de que um tal Andrade pardo forro, que tem casa de quitandas rua do Rosário é
um dos agentes do plano que se há de por em execução".
33. Um estudo de fôlego, e com muitas pistas levantadas a partir de fontes,
continua sendo Verger (1987).
34.
ANRJ, Ij6 172, jan./jul. 1836, 26.01.1836, ofício do ministro da justiça ao
chefe de polícia e deste ao juiz de paz do 1º distrito de São José (AN. Cód.
334, f. 20, 26.1.1836 e 7.1.1836, f. 19. Foram achados também proclamações
políticas nas esquinas de rua do Rosário com Ourives (idem, Ij6 172, jan./jul.
1836, 30.4.1836.
35.
ANRJ, Ij6 171, ago./dez. 1835, Partes...12.11.1835 e.Ij6 172, 2.2.1836.
36.
ANRJ, Ij6 172, 2.2.1836 e Ij6 172, jan./jul. 1836, 27.6.1836 e Ij6 172,
Partes...5.5.1836, 1º distrito de Santa Rita.
37.
Também baseado em Boxer destaca Mott: "O que os portugueses e luso-
brasileiros chamavam Costa da Mina para os ingleses e batavos incluía os
territórios que iam do cabo de Palmas aos Camarões. Como a maior parte dos
negros era exportada pelo porto de Judá, ao serem arrolados seus nomes nos
tumbeiros ou quando vendidos no Brasil, no mais das vezes eram identificados
tão-somente pelo local de embarque, aumentando ainda mais a enorme diversidade
cultural e lingüística do étimo 'Mina'. O grosso, porém, dos escravos
classificados como Mina era, a partir dos primórdios do século XVIII, do grupo
lingüístico Iorubá, sendo Gêge ou Nagô", pp. 103. Os escravos africanos da
Costa da Mina eram, de fato, preferidos no comércio negreiro para a Capitania
de Minas Gerais. Ver: ZAMELLA, 1990:185
38.
ANRJ, Códice 80, Correspondência ativa e passiva dos Governadores do Rio de
Janeiro com a Corte (1725-1730), Volume 2, pp.75-6.
39.
Estudos comparativos demográficos sobre a escravidão urbana poderiam ser
tentados. Para uma análise recente sobre o tráfico do Sudão Central de
africanos islamizados para o Brasil, ver Lovejoy (2000).
40.
Têm aparecido vários estudos sobre irmandades e as possibilidades de
interpretar as redefinições de identidades sociais a partir de festas e
práticas mortuárias. Ver, a respeito, Abreu (1998); Oliveira (1995); Reis
(1997); Rodrigues (1997). Mais uma vez, foi Reis (1995) quem apresentou
análises renovadoras sobre a temática. É bom lembrar que as hipóteses
instigantes de Silveira (1988) precisam ser testadas
41.
ANRJ, Códice 323, V.7, 03/01/1828. Ofício do intendente de polícia ao ministro
dos negócios estrangeiros, f.88 v. O intendente pede também a remessa dos
pretos ou processará os fâmulos.
42.
ANRJ, Ij6 169, 1834, Partes...1º distrito da Candelária, 24.5.1834.
43.
ANRJ, Ij6 174, 15.2.1837, ofício do subdelegado do 1º distrito de São José ao
chefe de polícia, AN. Há ainda um grande processo na justiça de crime de
sedução de escravos na Freguesia da Candelária (Ij6 174, 8.4.1837).
44.
Antônio Mina, escravo de Francisco de Barros, foi preso por ter sido
encontrado na casa de Manuel Francisco e estar convidando os escravos destes a
fugirem. Ver ANRJ, Ij6 185, set./dez, 1837, Partes...1º distrito de Santana,
19.10.1837.
45.
Manoel Mina, escravo do padre Queiroz e Faustino Mina, escravo de Manuel de
tal, foram presos como sedutores de Joaquim Congo, que também foi preso. Ver
ANRJ, Ij6 185, set./dez. 1837 Partes... 6.12.1837.
46.
ANRJ, Ij6 191, jan./maio 1839, 29.12.1838 e 15.1.1839. A documentação sobre
passaportes de escravos sendo vendidos para o Rio Grande do Sul é muito vasta
no Arquivo Estadual da Bahia.
47.
Caso interessante é o de Antônio Mina, que tentou matar seu senhor com golpes
de um compasso, e depois tentou fugir, sendo perseguido pelos outros escravos
(cf. ANRJ, Ij6 194 '' 31.6.1839 e 1806).
48.
Sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX, ver Algranti
(1988), Karasch (2000), Silva (1988) e Soares (1988).
49.
Sobre legislação referente a africanos livres,ver Soares (1989:253).
50.
CLIB, 1833, Typographia Nacional, 5/12/1833, "Das providências a respeito
do tráfico de africanos", p. 545.
51.
ANRJ, Códice 323, V.15, Ofício enviado ao presidente da província do Rio de
Janeiro pelo chefe de polícia da corte. 14.9.1839, f.59.
52.
ANRJ, Códice 323, V.15, Ofício do chefe de polícia da corte ao chefe de
polícia de Niterói, 22/10/1839. O preto mina liberto Antônio Barreto foi
processado na justiça por sedução e furto de escravos (ANRJ, Ij6 194, jun./dez.
1839, Partes...1º distrito de Santana, 17.9.1839).
53.
ANRJ, Ij6 194, jan.dez. 1839, 06/09/1839. Em fevereiro de 1839 foi a vez de
José Mina e Rufino Mina serem deportados para Angola na escuna portuguesa
Pallas. Ofício do chefe de polícia ao cônsul brasileiro em Angola. ANRJ, Códice
323, V.15, 09/02/1839.
54.
"Tenho a honra de passar as mãos de V. Exc. a inclusa representação do
Conselheiro José Paulo Figuerôa Nabuco de Araújo, contra um africano de nome
Felício, nação mina, cujos serviços em outro tempo foram dados pela provedoria
da Comarca, pela razão que o mesmo conselheiro expõe vê-se na necessidade da
medida por ele proposta de fazê-lo reexportar e por isso peço a V. Exc. que se
digne autorizar-me para tal fim". Ver ANRJ, Ij6 202, 1844, Ofício do Chefe
de Polícia ao Ministro da Justiça, 24.7.1844.
55.
"[...] vendo-me todos os dias perseguido com cartas em que aquele
africano me pedia [para] retira-lo do castigo, em que prometia inteira emenda,
e tendo até feito [o pedido] à minha mulher em carta por mim recebida depois de
sua morte, assim como a pessoas que comigo tem divida".
56.
Foi realizada a deportação em 8 de agosto de 1844. Ver ANRJ, Ij6 207, 1844,
12.8.1844.
57.
Sobre a marcas faciais dos minas e outras "nações", ver Prado (s/d:
287).
58.
Curiosamente, muitos dos mercadores nativos de escravos na África eram
chamados "pombeiros" (Prado, s/d.:287).
59.
ANRJ, Ij6 204, mai./dez. 1845, 12.6.1845, Ofício do chefe de polícia ao
Ministro da Justiça.
60.
ANRJ, Ij6 211, 1848, 21.1.1848, Ofício do chefe de polícia ao Ministro da
Justiça.
61.
ANRJ, Ij6 211, 1848, 25.1.1848: "Em aditamento ao meu ofício tenho a
honra de dirigir-me a V. Exc. declarando que o preto africano cuja deportação
solicitei tem o nome de Cesário, sendo a deportação solicitada por João José
Pereira, que tendo sido seu senhor o forrou, benefício este que não o salvou da
ingratidão que hoje manifesta o beneficiado".
62.
Antônio Mina, pedreiro, solteiro foi pronunciado em 12 de junho de 1839 por
ferimentos graves no seu senhor Joaquim da Silva Nazareth, condenado à morte e
a "pagar as custas" [sic]. Foi sentenciado com base na lei de 10 de
junho de 1835 (ver ANRJ, Ij6 194, jun.dez. 1839).
63.
Sobre retorno de africanos libertos brasileiros para a África, ver Cunha
(1985), Turner (1981) e Verger (1987). Ver, também, sobre
"retornados" africanos e ex-escravos cubanos, Sarracino (1991).
64.
ANRJ, Ij6 211, 1848, 06/10/1848. Cesário voltou para Angola em 14 de novembro
de 1848. Ibidem, 15/11/1848.
65.
Em 1863, a nação mais numerosa entre os africanos escravos presos na Casa de
Detenção da Corte era a dos minas (36%). Livros de Entrada na casa de Detenção
da Corte. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
66.
Para uma reflexão clássica sobre os sentidos políticos da cultura escrava e
africana no contexto urbano, ver Reis (1989).
67.
Sobre a Praça 11 e a Freguesia de Santana como refúgio da colônia baiana no
Rio de Janeiro, ver Moura (1994).