Mário de Andrade ainda vive? O ideário modernista em questão
Daniel foi o primeiro classificado no mais difícil vestibular de uma
universidade pública, o vestibular de medicina da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (Uerj) em 2003, com a nota mais alta entre todos os candidatos. O
jovem de 25 anos foi entrevistado pela Rede Globo de televisão no seu programa
de domingo, o Fantástico. Sem medo das câmeras, com um sorriso largo e rosto
moreno, cabelos cortados rente à cabeça, o jovem disse ter se declarado pardo
na ficha de inscrição do primeiro vestibular das cotas para negros e pardos,
instituídas por força de lei, porque vinha de uma família de "origem negra".
Tendo uma bisavó negra, achava que não poderia se considerar branco e decidiu
declarar-se pardo. Daniel pode ser considerado de aparência típica brasileira,
um Macunaíma, podendo escolher entre as categorias negro, pardo, preto,
indígena ou mesmo branco e podendo ser visto também da mesma forma pelas outras
pessoas. Na verdade, declarou sua cor porque os candidatos ao vestibular da
Uerj em 2003, pela primeira vez em nossa história, foram induzidos a escolher
entre duas categorias negro/pardo ou branco, pois se havia instituído 40% de
cotas para negros e pardos, além de 50% de cotas para estudantes de escolas
públicas.1 O candidato em questão não precisava do sistema de cotas para entrar
na universidade, pois foi o que teve o melhor desempenho entre todos os
candidatos no vestibular. Ele já tinha se posicionado contra o sistema de cotas
e assim como muitas pessoas que enviaram cartas aos jornais com suas opiniões
depois que o sistema foi implantado em 2002, e mesmo quando foi instituído dois
anos antes.2
Uma outra candidata com a mesma aparência "misturada" de Daniel, também
entrevistada em outro programa de TV, disse que não se declarou negra ou parda
com medo de ser considerada mentirosa, pois a lei diz que os candidatos devem
firmar sua própria identidade, "sob as penas da lei". Desolada por não ter
obtido uma vaga, apesar de ter tido nota superior a muitos que se declararam
negros ou pardos, disse que pensava em entrar na justiça para fazer valer o seu
direito.
Qual o significado desse acontecimento, a mudança de uma lei, e como pode
afetar a estrutura de nossa sociedade baseada em um sistema de valores que não
aposta na oposição, mas na complementaridade, no que une e não no que separa?3
Minha intenção neste trabalho é refletir sobre a hipótese de que se inicia uma
espécie de terremoto na maneira pela qual o Brasil pensa o Brasil no alvorecer
do século XXI. Com a recente legislação sobre cotas para negros nas
universidades e no serviço público federal a idéia de nação misturada da
"fábula das três raças" parece ter sido questionada, cedendo lugar à noção de
uma nação dividida entre negros e brancos.
Pela primeira vez na nossa história desde os anos de 1920, a elite brasileira
parece ter lançado por terra as bases do pensamento que permitiu a criação de
nossa cultura mais radicalmente nacional e cosmopolita. O ideário de
brasilidade modernista de Mário e Oswald de Andrade, de Paulo Prado e Sérgio
Buarque de Holanda, de Gilberto Freyre e Di Cavalcanti, de Tarsila do Amaral e
Anita Malfati está sob suspeita. Todo o esforço empreendido nos anos de 1930
para positivar a mestiçagem parece estar sendo posto a baixo. Os números das
desigualdades raciais, divulgados recentemente por Ricardo Henriques e Roberto
Martins do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) por ocasião da
preparação da III Conferência Mundial das Nações Unidas4 ocorrida em Durban, na
África do Sul, em 2001, passaram a constituir uma "verdade" da nação.
O Brasil deve se pensar, agora, a partir das categorias "negro" e "branco",
construídas para desvendar a nossa estrutura social, e não a partir de seu
gradiente de cor que aproxima os pólos negro e branco. Os números descrevem uma
sociedade partida entre negros e brancos, como o faz também a introdução de
cotas, ou reservas de vagas, para "negros" na função pública federal e nas
universidades do Estado do Rio de Janeiro. Há, contudo, uma pergunta que paira
no ar: por que só agora esses números, já conhecidos pelo menos desde os anos
de 1950 com o Projeto da Unesco,5 e que foram mais estudados nos anos de 1970,
com os trabalhos de Nelson do Valle Silva (1978), Carlos Hasenbalg (1979) e
Oliveira et al. (1983), saíram do círculo restrito dos poucos especialistas do
tema e ganharam a mídia, transformando-se em contra-discurso ou em negação de
uma versão da nossa nacionalidade que até ontem estava presente inclusive no
discurso dos militantes dos movimentos negros?
Cabe indagar: será que a nação segregada nos números é a mesma presente nos
bairros das periferias, na mente dos cantadores, nas salas de aula
desconfortáveis dos cursos pré-vestibular do Movimento do Pré-Vestibular para
Negros e Carentes (PVNC)? Há ainda alguma forma de interpretar o mito da
democracia racial como um mapa para a ação social e compromisso com o
igualitarismo como fez Peter Fry (2000) ao discutir as interpretações de Pierre
Bourdieu e Loic Wacquant (1998) sobre as ações afirmativas no Brasil? Há como
servir a dois senhores, de um lado apostar na mistura, no que une, e, de outro,
no que é diverso e separa? Esses dois modelos vêm sendo discutidos e
destrinchados por Peter Fry em inúmeros de seus trabalhos desde o clássico
"Feijoada e soul food" nos anos de 1980 até os recentes artigos sobre as
conseqüências das políticas coloniais, reunidos no livro A persistência da
raça, Fry (2005b).6
Neste trabalho, volto-me para os nossos heróis fundadores porque acredito ser
correto retomar o debate de onde começou. É com certeza difícil discorrer sobre
essas transformações que agora se apresentam carregadas de muita moral
"politicamente correta". Mas é impossível se calar diante desses
acontecimentos. Essa nova versão de um Brasil que é imaginado ou deveria ser
imaginado como uma nação segregada em duas "raças"7 tem seduzido muitos adeptos
não só entre os movimentos sociais como entre os bem pensantes de nossa
sociedade.8
Macunaíma e o Manifesto antropófago
Em 1928, Mário de Andrade publicava o clássico Macunaíma: um herói sem nenhum
caráter dedicado a Paulo Prado, que no final do mesmo ano publicaria o seu
Retrato do Brasil. O romance é uma história baseada em lendas e mitos
brasileiros.9 O personagem central, Macunaíma, foi construído a partir da
descrição feita pelo naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg em Vom Roroima
zum Orinoco (Do Roraima ao Orenoco) publicado, em cinco volumes, entre 1916 e
1924.
Mário não estava só nesta empreitada que foi a de sua geração. Seu argumento,
no entanto, não surgia do nada. É preciso lembrar que se ancorava em idéias
enraizadas na nossa cultura já no século XIX, basta pensar na tese de Carl F.
von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, vencedora do concurso
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1836.10 Esta monografia
marcou o futuro de nossa historiografia ao descrever nossa história a partir da
mescla de brancos, negros e índios na "raça brasileira" usando a metáfora do
encontro entre três rios. O argumento da "raça" era tão forte que Mário numa
primeira versão de Macunaíma teria optado pelo epíteto de "herói de nossa
raça". Só mais tarde é que mudou para "herói de nossa gente". No entanto,
tomarei aqui o romance como um marco para pensar o que muda e o que permanece
no nosso ideário de nação nos últimos tempos.11
Sei também que entre 1928 e 2000 muitas coisas mudaram e não se pode apenas
dizer que o modernismo é nossa única herança, mesmo porque havia diferentes
modernistas e diferentes perspectivas já naquela época. Não estou dizendo que
existem apenas os "adeptos da brasilidade" e os "contra", como alguns podem
interpretar. O ideário modernista mudou nesses trinta anos e influenciou, de
forma diversa, muitas gerações desde a década de 1920.12 A contestação desse
ideário também foi surgindo ao poucos com a persistente crítica ao "mito da
democracia racial" empreendida pelos movimentos negros desde pelo menos os anos
de 1950. Não vou aqui descrever esse processo que foi tão bem analisado por
Fabiano Dias Monteiro (2003) em sua dissertação de mestrado. Neste trabalho vou
deixar de lado o longo processo que gerou os dois modelos e buscar, carregando
nas tintas, opor duas versões que estão sendo postas na mesa neste início do
século XXI.
Voltando ao romance Macunaíma, embora seja uma história já clássica, não custa
refrescar a memória. Mário começou o livro, que chamou de poema ou rapsódia,
relatando o nascimento do nosso herói:
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a
índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram
de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de
seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
' Ai que preguiça!...
e não dizia mais nada.
...As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que "espinho que
pinica de pequeno já traz ponta," e numa pajelança Rei Nagô fez um
discurso e avisou que o herói era inteligente (Andrade [1928] 1984,
p. 9).
A história é longa e conta como Macunaíma, nascido preto, de mãe índia, virou
branco quando foi parar na cidade depois de sair da mata virgem. O encontro de
Macunaíma com a cidade é belíssimo e descreve, às avessas, o espanto dos
colonizadores diante da cultura e da sociedade indígenas. É na cidade que se
desenrola a trama principal. Macunaíma busca a muiraquitã e no decorrer da
narrativa vira, além de branco, inseto, peixe e até mesmo um pato. Decide
travestir-se de francesa para seduzir Venceslau Pietro Pietra, o gigante
Piaimã, comedor de gente, companheiro de uma caapora velha chamada Ceiuci,
também antropófaga e muito gulosa, para reconquistar a muiraquitã. Resolve
procurar o terreiro de Tia Ciata e lá pede a Exu que o auxilie a reaver a
muiraquitã. A descrição do terreiro é maravilhosa e tia Ciata ' uma mãe-de-
santo que ficou na história dos cultos afro-brasileiros ' manda Exu castigar
Venceslau Pietro Pietra em cena ontológica. Macunaíma procura até uma bolsa de
estudos para ir para a Europa, e o romance termina como um mito de origem,
descrevendo como o herói virou brilho bonito, mas inútil, de estrela da
constelação da Ursa Maior.
Macunaíma é uma ficção escrita em seis dias. Mário de Andrade revelou a sua
descoberta do herói em um prefácio que nunca chegou a publicar junto com o
romance. Telê Porto Ancona Lopez, em edição crítica do romance, transcreve o
trecho em que Mário revela a sua intenção e o significado que deu à sua
descoberta:
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a
preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a
entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito
verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem
caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim,
porém, a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da
minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino
apenas uma realidade moral não, em vez, entendo a entidade psíquica
permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior,
no sentimento, na língua, na História, na andadura, tanto no bem como
no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem
civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os iorubas e os mexicanos. Seja
porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de
séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter.
Brasileiro não. Está que nem o rapaz de 20 anos: a gente mais ou
menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de
afirmar coisa nenhuma. [ ] Pois quando matutava nessas coisas topei
com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói
surpreendentemente sem caráter. (Gozei). (Andrade, 2001, p. 169).
Mário e a geração modernista pensavam que a história era ancorada no mais
profundo inconsciente da nossa sociedade, a ponto de Oswald chamar o romance de
a Odisséia brasileira. Será que pensavam mal? Teria sido toda essa invenção de
um país misturado, mestiço e onde o mito de igualdade entre as "raças" estava
no cerne da utopia, uma ficção de uma elite que não conhecia e nem via o que
estava à sua volta? Seria esta uma invenção ou mito, no sentido de farsa ou
mentira, que ganhou o mundo, transformando o nosso destino de uma sociedade
inviável, porque mestiça, em desiderato e fonte de todo o espanto?
Pensavam os modernistas e muitos depois deles que era preciso transformar os
campos de trigo em verdes plantações de abacaxi ou como disse Mário, em carta
de 1940, ao jovem poeta Alphonsus de Guimaraens Filho referindo-se a versos de
"Lume de estrelas":
Com o caso do "canavial" já não concordo com você. Si trigo é mais
universal (não há dúvida), o é numa universalidade perigosa, Bíblia-
via-Europa. "Canavial" é exótico em Rilke? Não há dúvida e é isso que
me interessa prá humanidade de você, pra não-esteriotipação de você:
é que se você tivesse falado sem vir através de canaviais, ou
cafezais, ou de terras de ferro, isso seria sua humanidade, sua
Minas, seu Brasil, sua América. "Trigo" é, no caso, um remígio do
condor. Se observe bem e você verá que é (Andrade e Bandeira, 1974,
pp. 16-17).
Era preciso também gostar de ser brasileiro por acaso e por escolha e não
querer ser outro. Era preciso descobrir o universal no nosso particular para
transformá-lo em universal ou como dizia o próprio Mário:
Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo
nem mesmo nacionalismo Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa
só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto
das nações que hoje em dia dirigem a Civilização da Terra, tem de
concorrer com esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o
singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e
alargar a Civilização (Inojosa, apud Moraes, 1999).
Mais contemporâneo não poderia ser e diante de tanta moral politicamente
correta, Mário parece estar discutindo com aqueles que hoje querem pensar a
partir do que aqui é falta, ausência, vazio em comparação com outras sociedades
ditas civilizadas. A proposta modernista imaginava uma nação que tinha como
singularidade a sua forma de lidar com as diferenças. Manuel Bandeira em sua
Apresentação da poesia brasileira conta como Mário pensava a estética e a
brasilidade. Sobre o tema da brasilidade diz Mário: "Só sendo brasileiro, isto
é, adquirindo uma personalidade racial e patriótica (sentido físico) brasileira
é que nos universalizaremos, pois que assim concorreremos com um contingente
novo, novo assemblage de caracteres psíquicos para o enriquecimento do
universal humano" (Mário, apud Bandeira, s.d., p. 127).
O modernismo foi um movimento estético que tinha uma maneira toda própria de
pensar a mistura e a busca de uma identidade que não fosse aquela do
universalismo iluminista, mas que fosse universal. Em nome da afirmação radical
de nossa identidade, Oswald de Andrade assinou o manifesto do grupo no mesmo
ano da publicação de Macunaíma, 1928, o Manifesto antropófago que resumo aqui,
com pena de não poder mostrá-lo na íntegra:
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente. [...].
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,
de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados
de paz.
Tupi, or not tupi that is the question (Andrade, 1978, p. 13).
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós
a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do
homem (Idem, p. 14).
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de
senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de
Alencar cheio de bons sentimentos portugueses (Idem, p. 16).
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto
a felicidade (Idem, p. 18).
Era preciso descobrir a felicidade, ou seja, aquilo que nos tirava do destino
trágico que nos impunha a dominação européia. Ainda não tínhamos tido a
experiência da Segunda Guerra Mundial e nem tampouco do holocausto, e a
declaração dos direitos do homem, citada no manifesto, era a da Revolução
Francesa, considerada pobre pelos jovens e rebeldes intelectuais que se
empenharam em desvendar esta idéia de uma nação misturada e que estava unida
pela antropofagia dos Tupi que comeram o bispo Sardinha e com ele a Europa
vista daqui.
Mas terá sido esta uma quimera de um grupo da elite que estava ausente da nossa
realidade? Gilberto Freyre ([1933] 1995) foi um dos que estavam na trilha
modernista e Casa-grande e senzala teve a primeira edição revista por Mário de
Andrade.13 Era preciso transformar o país do pesadelo do conde Gobineau,14 que
só via um fim trágico para tanta mistura, em uma utopia que nos colocaria em pé
de igualdade com a Europa de Descartes.15 Falo aqui do "pesadelo de Gobineau",
porque ele é quase um ícone de uma geração de adeptos do darwinismo racial,16
que jogou todas as suas fichas na idéia de que um país de "raças" mistas era
inviável. Esse não era apenas o seu pesadelo, mas o grande fantasma que
atormentou uma geração de pensadores do século XIX e que volta aqui e ali a
assombrar ainda no século XX. Parece que o pesadelo renasce nessa grande
mudança do século que começamos a viver. Afinal, a versão de um país dividido
em brancos e negros é uma versão contemporânea da idéia de que a mistura é ruim
e nos torna inviáveis.
Assim, uma geração de escritores e artistas pintou o Brasil da Mulata, de Di
Cavalcanti,17 do Abapurú e da Negra, de Tarsila do Amaral.18 E algumas gerações
depois deles continuaram pensando e inventando um país que não teme esta
mistura e faz dela a delícia e a dor de ser o que somos. Não vou nomear todos,
mas não se pode esquecer dos Concretos, e, sobretudo de Augusto de Campos e seu
poema "Luxo". E o que dizer então do movimento tropicalista e daqueles jovens
dos anos de 1960 que até hoje compõem canções que falam do nosso paradoxo de
ser Haiti e não ser o Haiti.19 Também não se deve esquecer do clássico filme de
Joaquim Pedro de Andrade que, em 1969, faz uma releitura de Macunaíma,
transformando o livro em obra cinematográfica que revela sua contemporaneidade.
E o que dizer então dos trabalhos de Luiz Alphonsus
O conceitual caboclo
20 e Índia e mato ' paródia e metáfora da Negra de Tarsila ' se não fosse essa
interpretação do Brasil inaugurada por Mário de Andrade e os modernistas na
década de 1920.
Outros percorreram os caminhos de Mário nas suas viagens do Turista aprendiz.21
O mesmo Hermano Vianna (1995) já havia revelado histórias fantásticas da
construção do samba no Rio de Janeiro. A partir da descrição do encontro, em
1926 de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Pedro Dantas, Heitor Villa
Lobos e Luciano Garret com Patrício, Donga e Pixinguinha, imortalizados por
seus apelidos no panteão da música popular brasileira, Hermano Vianna nos leva
a descobrir o mistério do samba. O "encontro" ocorreu bem antes da publicação
de Casa-grande e senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936), livros que foram
fundamentais para a definição da identidade moderna brasileira. Redescoberto
por Hermano Vianna (1995) no livro O mistério do samba, hoje referência
fundamental, esse encontro é um achado para se compreender os caminhos traçados
pela história do samba e de nossa identidade.
Não se pode esquecer também Roberto DaMatta em toda a sua obra, que se diz
herdeira de Sérgio Buarque de Holanda, e especificamente em sua contribuição
toda particular no seminário "Multiculturalismo e racismo", organizado pelo
Ministério da Justiça e que contou com a presença do então presidente Fernando
Henrique Cardoso em Brasília no ano de 1996.22
Neste seminário ouviu-se pela primeira vez os ecos do debate entre essas duas
concepções de nação. Aqueles que propugnavam uma nação que tem como mito e
desejo uma sociedade igualitária, em que a "raça" não seja tomada como
característica de distinção e desigualdade. Deste lado estavam os que se
identificam e identificam a nossa brasilidade em Macunaíma. Fábio Wanderley
Reis (1997), na conferência intitulada "Mito e valor da democracia racial", e
Roberto DaMatta (1997), na palestra "Notas sobre o racismo à brasileira",
defenderam esta posição Do outro lado estavam aqueles que descreviam este
desiderato da nossa nacionalidade como falsa consciência, como falta, como o
que nos falta porque comparam a nossa maneira de pensar a diferença com outras
sociedades que pensam "raça" a partir da oposição e não da mistura. Esses
últimos rompiam com o mito Macunaíma, que viam como ilusão, e entre eles
estavam os muitos pesquisadores norte-americanos e alguns brasileiros ao lado
de militantes novos e históricos.
Entre os pesquisadores brasileiros que propõem tratar desigualmente os
desiguais, destaco a participação de Antonio Sergio Guimarães, que desde então
escreve sobre o tema e que, nesse seminário, expôs de forma muito cartesiana os
pressupostos deste tipo de engenharia social e de sua aplicabilidade no Brasil.
Mas havia outros como Thomas Skidmore (1997), Carlos Hasenbalg (1997), Angela
Gilliam (1997), Anthony Marx (1997) e George Reid Andrews (1997). Ativistas de
movimentos negro e o senador Abdias do Nascimento, que não foi convidado para a
mesa, da platéia, faziam inúmeras intervenções se posicionando ao lado desses
últimos.23
Sem dúvida o debate que se iniciou no final dos anos de 1990 não apagou de
jeito nenhum as vozes dos que ainda se pautam pela versão da fábula das três
raças como mito fundante da nação brasileira. Poderia ir listando e me
lembrando de muitos que beberam na fonte do modernismo ou que foram buscar
inspiração na escuta sensível dos muitos negros, morenos, mulatos, escuros,
alvos, claros, marrons etc. que vivem esses encontros entre classes nos muitos
rituais existentes na nossa sociedade.
Terá sido todo esse esforço e muitos livros inesquecíveis na nossa memória
escritos em vão? Teriam sido seus autores apenas copiadores de uma mensagem que
acabou como ideologia, transfigurando-se em refúgio de uma elite racista, como
dizem muitos hoje? A dúvida e a pergunta não são infundadas. Hoje, o mito
Macunaíma está sob severa crítica, pois inventando uma nação dividida entre
negros e brancos, e destruindo aquele herói misturado e plástico com políticas
de Estado que exigem a classificação bi-polar, apresenta-se em seu lugar um
outro conceito de nação. Quem ousaria criticar Mário de Andrade? Parece que os
que querem inventar um Brasil dividido em negros e brancos estão, sem se
aperceber, muitas vezes destronando o mito Macunaíma, pois este funda uma nação
baseada na mistura, na plasticidade desta mistura e na possibilidade de ser
índio, branco e preto ao mesmo tempo. O presidente Fernando Henrique Cardoso em
mensagem do dia 21 março de 2001, dia Internacional pela Eliminação da
Discriminação Racial, contribuiu para esse destronar de nossa maneira toda
particular de combater o racismo, porque querendo instrumentos para diminuir a
exclusão social jogou fora o bebê com a água do banho ao dizer: "Não é fácil
desmantelar estruturas mentais e institucionais fortalecidas durante séculos de
escravidão, exclusão social e visões românticas de 'democracia racial'". Há
ainda os que usam adjetivos mais fortes para criticar essa matriz do
universalismo como o fez Ricardo Henriques em entrevista concedida a O Globo em
21/4/2002:
[...] é romper com a matriz republicana francesa. Todos nós fomos
culturalmente educados e a grande maioria estudou numa base dessa
grande matriz francesa universalista, que acha que o imperativo da
igualdade é a melhor matriz para fazer qualquer intervenção, tratando
todos por iguais. Esta é a estratégica mais cínica de lidar com o
problema.
Tudo leva a crer que os revisores dessa legião de fundadores da brasilidade
parecem estar propondo mudanças radicais naquela concepção de nação misturada e
formada da mistura, que é plástica e ambígua na classificação e
autoclassificação, em nome do combate ao racismo, disto que chamam de ideologia
racial brasileira e em favor do fim das iníquas desigualdades raciais. As cotas
para negros são um dos pilares que sustenta essa reorientação do projeto de
nação que parece estar em curso. São, basicamente, duas as principais idéias
que estão subjacentes às propostas dos revisores da brasilidade modernista:
* Construir uma nação dividida entre "raças" que se opõem ' negra e branca
', e passar da idéia de integração para um ideário de separação sob a
bandeira da "diversidade".
* Abandonar o ideal da democracia liberal francesa, pelo liberalismo da
democracia norte-americana, propondo tratar desigualmente os desiguais e
tomar o "mito da democracia racial" como ideologia que mascara a
realidade.
Essa mudança de rumo de um projeto de nação não se faz sem riscos. A mudança é
radical porque toma o que era próprio da nossa maneira de tratar a diferença
como algo espúrio e que deve ser extirpado mediante políticas públicas como,
por exemplo, com as cotas para negros no serviço público e em instituições
públicas de ensino superior. A versão que dá origem a esta política de combate
à desigualdade parece não só suspeitar de Macunaíma. Ela aniquila Macunaíma
porque sendo política de Estado obriga as pessoas a se definirem não nos moldes
de nosso herói fundador, mas como negro ou branco, e sendo política de Estado
afeta a sociedade como um todo. A nova política de cotas adotada em muitos
níveis das instituições federais, nas universidades públicas do Estado do Rio
de Janeiro e em muitas outras universidades públicas do país, obriga as pessoas
a se identificarem sem nenhuma dúvida entre estes dois pólos: ou negro ou não
negro.24
O Governo Federal enviou em 2004 para o Congresso Nacional um projeto de lei
que institui cotas para negros e estudantes de escolas públicas nas
universidades federais. O projeto ainda está tramitando ao lado de outros vinte
que já estavam lá tratando do mesmo tema. O ministro da Educação tomou os
cuidados necessários para que a política de cotas raciais e sociais fosse
discutida no Congresso Nacional, pelos representantes do povo.
Mas as cotas já tinham sido adotadas pelo Ministério da Educação por meio da
portaria nº 30 de 12 de agosto de 2004, como política de Estado. A portaria
cria o critério "raça/cor" para a concessão do benefício do Financiamento ao
Estudante de Ensino Superior (Fies). O Fies é um empréstimo destinado a custear
as mensalidades de estudantes de instituições de ensino superior particulares '
esse crédito existe há muitos anos. Até agora o critério de concessão era a
pobreza ou renda. Com a nova portaria o estudante que preenche o formulário
responde ao quesito ' "raça/cor". Se a resposta for "negra", terá 20% a mais de
chances de ganhar o benefício. O candidato que for selecionado para a
entrevista final terá de apresentar "a certidão de nascimento do pai e/ou da
mãe, na qual conste, em pelo menos uma delas, informação de que o(a) genitor(a)
é da raça/cor negra".
Recentemente o MEC, por intermédio do Conselho Nacional de Educação, exarou
outro documento importantíssimo e muito pouco debatido também, as Diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. José Roberto Pinto de
Góes (2004) foi o primeiro a nos alertar sobre elas em recente artigo n'O
Globo. As diretrizes dizem que, conforme "alerta o movimento negro", aqueles
que reconhecem sua ascendência africana são negros (pretos e pardos). Ou seja,
as escolas devem ensinar o sistema de classificação racial adotado pelo
"movimento negro".
A política de cotas é uma política pública que tem conseqüências lógicas que
afetam a sociedade como um todo no presente e também o seu destino. A primeira
é a necessidade de definir aqueles que serão objeto do benefício. Por isso a
Universidade de Brasília exigiu as tais fotografias no ato da inscrição e a
portaria do Fies, a certidão de nascimento com a "raça" do genitor(a). A
segunda é a necessidade de educar a população para "a consciência" da "raça".
Essas diretrizes são, portanto, necessárias para a criação de uma educação
racializada e na qual o "movimento negro" tenha uma participação ativa. A
terceira conseqüência é a idéia de orgulho étnico. Depois se pode imaginar uma
escola dividida entre brancos e negros.25 O cenário mais próximo é o de um país
dividido.
O modelo estatístico do IBGE, que vem pesquisando há pelo menos cem anos o
lugar social da população brasileira, optou por um caminho que respeitava a
ambigüidade de nosso sistema. As categorias ("preto", "pardo", "branco,"
"amarelo" e "indígena") adotadas nas estatísticas oficiais eram menos
radicalmente opostas a Macunaíma porque permitiam a inclusão de um maciço grupo
de pardos, misturados de toda a sorte, que podiam eventualmente migrar para
branco ou para preto. Na versão que derruba Macunaíma não haverá outra escolha
possível a não ser entre "branco" e "não branco".26
Como teria sido possível esta guinada tão profunda no ideário que marcou a
nossa história do século XX? Como puderam essas propostas de mudança ser
aceitas tão rapidamente, inclusive pela mídia, a ponto de terem sido tema das
agendas políticas dos candidatos nas eleições presidenciais de 2002 e terem
conquistado grande parte da elite contemporânea dos bem-pensantes? Estarão as
pessoas que foram seduzidas por estas políticas conscientes de que estão na
trajetória de destruição do ideário modernista?
É difícil descobrir as razões da mudança e mais difícil ainda imaginar que o
ideário modernista pudesse ser tão rapidamente descartado. Será que realmente
foi lançado por terra? Será que os proponentes das políticas de cotas se
percebem como contestadores do ideário modernista? Apesar de querer acreditar
naqueles que afirmam que nada mudará porque somos o que somos e vamos deglutir
tudo isso à nossa maneira, não há como deixar de pensar que as mudanças
propostas poderão afetar as bases do ideário modernista.
Agora é preciso traçar um pouco dessa história
Em a Ilusão do concreto (1991), descrevi as preocupações que afligiam os
pesquisadores do tema e muitos militantes ao longo dos anos de 1970 e 1980. Com
dados levantados por ocasião dos eventos do centenário da Abolição da
Escravatura, afirmei que a preocupação central dos bem-pensantes àquela época
era com o que se chamava cultura negra e não com as desigualdades raciais.
Descrevi o paradoxo de nosso sistema de classificação racial que embora baseado
no gradiente de cores não deixa de mencionar a oposição, seguindo o fio
condutor tecido por Oracy Nogueira (1985) em 1950, Moema de Poli Teixeira
(1986) na década de 1980 e muitos outros antropólogos que nesses anos de 1980
descreveram um Brasil da mistura.27
Nas décadas de 1970 e 1980 um grupo de estudiosos do tema estava preocupado em
estimular novos pesquisadores a mergulhar no estudo sobre desigualdades raciais
e sobre o racismo. Esse grupo, liderado por Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do
Valle Silva (1978), refletia sobre as razões do silêncio na literatura
sociológica de então a respeito do racismo e das desigualdades raciais. Segundo
o grupo, tal silêncio teria sido produzido pela visão herdada de Florestan
Fernandes (1965) que considerava o racismo uma sobrevivência do passado
escravista e acreditava que à medida que a sociedade se tornasse mais
desenvolvida o racismo tenderia a desaparecer. Assim sendo, a pesquisa sobre o
tema se apagou do cenário das ciências sociais que enfatizou os aspectos
culturais herdados desse passado.
Impressionada também com os números das desigualdades raciais voltei-me para a
pesquisa sobre os mecanismos produtores dessas desigualdades e afirmei que era
o medo de falar naquilo que opõe e separa, ou seja, em brancos e pretos, o que
dificultava o avanço das pesquisas Os meus dados, recolhidos em ampla pesquisa
qualitativa, reforçavam a hipótese de que no Brasil preferimos pontes a margens
no dizer clássico de Roberto DaMatta.28 Considerei os dados levantados no ano
do centenário como indício de que o Brasil poderia ter algo a ensinar ao mundo,
sobretudo diante das trágicas guerras étnicas que assolavam a Europa Oriental:
A explosão do racismo no seio das sociedades do primeiro mundo, que
esperavam ter superado suas divergências "étnicas" e diferenças
sociológicas, está fazendo com que mais e mais estudiosos se voltem
para a questão. Talvez essa influência consiga sensibilizar os
intelectuais brasileiros (Maggie, 1991, p. 105).
Naquela época, porém, duvidei de Mário de Andrade. Pensei que a recusa em falar
das desigualdades sociais e raciais e a insistência no discurso sobre uma
cultura negra significavam que as idéias que marcaram a minha juventude e os
meus primeiros escritos estavam servindo para deixar cegos os brasileiros
diante do racismo presente no nosso cotidiano. Estariam enganados os jovens
antropólogos dos anos de 1970, que em outras viagens de aprendizagem como
etnógrafos descobriram um Brasil que se caracterizava por uma cultura da
mistura, do encontro entre desiguais, nos terreiros de umbanda (Maggie, [1975]
2001), na "Feijoada e soul food" (Fry, 1983), no samba (Goldwasser, 1975) ou em
prédios da Utopia urbana em Copacabana (Velho, 1971)?
Busquei caminhos para sair desse impasse que angustiava uma geração de
antropólogos seguidores das linhas traçadas por Mário de Andrade. Minha
primeira providência foi chamar mais parceiros para o debate, formando, no
Laboratório de Pesquisa Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma geração de novos
pesquisadores interessados no estudo da "questão racial". Com essa equipe de
estudantes e outras antropólogas do Rio Janeiro e de São Paulo já tínhamos
iniciado em 1988 uma ampla pesquisa qualitativa sobre o ano do centenário da
Abolição.29 Um dos interessantes resultados dessa pesquisa, além, é claro, dos
artigos e das teses que dela se originaram, foi o de ter estimulado muitos
estudantes a se dedicarem ao tema, a concluírem seus estudos na graduação e
prosseguirem a carreira acadêmica no mestrado e no doutorado. Com apoio da
Fundação Rockefeller, organizei em 1994, no IFCS, o Programa Raça e Etnicidade,
trazendo pesquisadores brasileiros e de muitos outros cantos do mundo para
discutirem e repensarem a questão. Ao longo desses anos revisitei os meus
primeiros escritos e, refazendo a trilha da antropologia que entende "raça"
como construção social, além das discussões com esse grupo de antropólogos de
várias procedências e tendências, pude me reconciliar com o ideário modernista.
O resultado daquele programa foi como uma retomada do Projeto da Unesco, pois
brasileiros e estrangeiros se uniram para pesquisar temas que já estavam
esquecidos de nossa literatura sociológica. Naquela altura não se falava em
cotas e os pesquisadores descobriram muitas outras dimensões de identidade
entre seus "nativos". Na introdução do livro Raça como retórica (Maggie e
Rezende, 2002), que traz alguns resultados desse programa, sinalizei a
necessidade de pensar, como na tradição modernista, a contribuição do Brasil
para engrandecer e enriquecer a civilização.30
Também organizamos no IFCS, de 1998 a 2000, o Programa Cor e Educação e fizemos
um levantamento completo do que estava sendo pensado e realizado como política
pública para diminuir as desigualdades raciais. Descobrimos então que o Brasil
ainda se pensava misturado. A maioria dos nossos entrevistados ainda achava que
o sistema de cotas não era a melhor solução para enfrentar o racismo. Fizemos
um estudo de caso de um movimento social que começava a ganhar, a cada dia,
mais e mais adeptos, o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC). Este
estudo indicou que a estratégia de nomear os negros ao lado dos carentes
representava uma maneira de reconhecer a questão "racial" sem deixar de falar
nas desigualdades sociais e de classe. O movimento do PVNC propunha outro
caminho para superar as nossas iniqüidades sociais. Voltarei ao tema do PVNC
mais adiante, mas é preciso dizer que, quando apresentamos o resultado dessa
pesquisa no ano de 2000, o campo estava minado e tudo estava sendo tratado com
um tom moral e acusatório. Já era muito difícil recolocar o modernismo no seu
lugar. Os números das desigualdades entre "negros" e "brancos" tinham ganho a
mente dos bem-pensantes e da mídia que agora pareciam se mostrar a favor de uma
estratégia que incluísse a reserva de lugares para negros. Para eles, a nossa
sociedade deixava de ser o lugar da mistura e do híbrido para ser entendida
como dividida nitidamente entre negros e brancos.
Se a tradição da antropologia fazia com que buscássemos auscultar o que dizem
os nossos nativos sobre o tema da "raça", os proponentes dessa outra versão
menos macunaímica e menos antropofágica de nossa cultura baseavam-se em que
fontes?
Em artigo intitulado "Silêncio nunca mais", a jornalista Miriam Leitão revelou
as fontes que a fizeram se convencer de que era preciso mudar o paradigma e que
o caminho seriam as cotas. Diz ela:
As cotas são mesmo polêmicas. Eu sou a favor. Achei mais convincentes
os dados de Roberto Martins e Ricardo Henriques e os argumentos de
tantos negros que ouvi que provam que políticas universalistas não
conseguiram, durante os últimos cem anos, enfrentar a distância entre
pretos e pardos, de um lado, e brancos, de outro. Li os textos de
especialistas como Antonio Alfredo Guimarães e Hélio Santos, vi o
quadro de Nelson Valle e Silva que compara salários de negros e
brancos no mesmo extrato social. Conversei com a governadora Benedita
sobre os talentos que ela achou na montagem do governo e que estavam
escondidos, por serem negros. Fui a debates como os do professor
Hédio Silva, na PUC de São Paulo; do ex- ministro Raul Jungman, na
Fiesp; da ONU; da Cândido Mendes. Entrevistei negros, brasileiros e
estrangeiros. Abri minha mente e deixei entrar a força das convicções
de quem estudara ou vivera o problema. As cotas não são as únicas
ações afirmativas, mas elas têm a força de empurrar o debate. Ação
afirmativa é um campo amplo no qual políticas públicas, ações
privadas podem começar a construção de menos desigualdade étnica no
Brasil (O Globo, 22/12/2002).
Miriam Leitão apresentou de forma muito clara o que pensam aqueles que foram
convencidos pelos números de Roberto Martins e Ricardo Henriques:
O racismo brasileiro é diferente do americano, mas tem sido muito
eficiente em apartar as duas metades da população brasileira. Por não
ter ocorrido aqui a grosseria da política de segregação, nos
conformamos com um quadro de injustiça intolerável. E nos iludimos
com o discurso de que o Brasil se miscigenou e, assim, dissolveu o
problema. Da miscigenação, nossos álbuns familiares são testemunhas.
O truque do racismo brasileiro foi não exigir atestado de origem. Foi
dar aos brancos de pele mais chances, mais portas abertas, mais
ascensão, mais poder (O Globo, 22/12/2002; grifos meus).
Nessa versão nossa nação é descrita como constituída de duas metades estanques.
Embora Miriam Leitão reconheça que nossos álbuns de família estejam recheados
dessa mistura, acredita que eles são fruto de um "truque", de um ilusionismo e,
dizendo isso, põe abaixo aquilo que estava no cerne da utopia modernista. O
Brasil, de Mário de Andrade, traçara um caminho próprio depois de comer o bispo
Sardinha. Agora, segundo esta versão da nossa nação, é preciso jogar a
estratégia do encontro e da mistura fora e adotar outra baseada no que Miriam
Leitão está chamando de atestado de origem. Uma gota de sangue negro...? Quem
sobraria para aplicar as cotas?
Há uma contradição que aparece no discurso de Miriam Leitão e em muitos outros.
Se, de um lado, falam em um país dividido entre brancos e negros, de outro, não
contestam o que chamam de miscigenação ou mistura dos nossos álbuns de família.
O que Mirian Leitão propõe então é uma mudança radical na nossa concepção de
nação, na qual os indivíduos buscarão um atestado de origem. Mas e o que
fazemos então com aquela mistura que está nos nossos álbuns?
O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996 no seminário organizado
pela Secretaria de Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, exortava os
pesquisadores a descobrirem uma saída criativa e nossa para o problema:
Nós, no Brasil, de fato convivemos com a discriminação, convivemos
com o preconceito, mas "as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como
lá" o que significa que a discriminação e o preconceito que aqui
temos não são iguais aos de outras formações culturais.
Portanto, nas soluções para esses problemas, não devemos simplesmente
imitar. Temos de ter criatividade, temos de ver de que maneira a
nossa ambigüidade, essas características não cartesianas do Brasil '
que dificultam tanto em tanto aspectos ', também podem ajudar em
outros aspectos... É melhor, portanto, buscarmos uma solução mais
imaginativa (Cardoso, 1997, p. 14).
Em outro discurso, por ocasião do dia mundial de combate ao racismo em 2000,
mudava o rumo da conversa e propunha:
Este ano de 2001 é especialmente importante na luta contra a
discriminação racial. Em agosto, a comunidade internacional realizará
na África do Sul uma conferência mundial contra o racismo, a
xenofobia e a intolerância, em que se avançará no diagnóstico das
manifestações contemporâneas do racismo, discutindo suas causas,
identificando suas vítimas e analisando estratégias para seu combate
e superação. O Governo e o povo brasileiro estão engajados nesse
combate. Resta muito a fazer para a plena superação do racismo no
Brasil. Não é fácil desmantelar estruturas mentais e institucionais
fortalecidas durante séculos de escravidão, exclusão social e visões
românticas de "democracia racial". No entanto, muito já tem sido
feito. Medidas como a reforma dos parâmetros curriculares e o reforço
da fiscalização contra a discriminação no mercado de trabalho
exemplificam o empenho de meu Governo nessa luta. Mas é importante
que essas medidas continuem a se multiplicar, que tenham seguimento,
e que a sociedade e os meios de comunicação reflitam com veracidade e
com orgulho o fato de que somos realmente uma nação multi-étnica e
multicultural. Nossa identidade mestiça é, sem dúvida, um dos
aspectos centrais das realizações históricas que celebramos com os
500 anos do Descobrimento.31
Uma nação multi-étnica e multicultural e mestiça é uma contradição em termos.
Ou somos multi-étnicos ou somos misturados. Assim, voltando ao argumento da
jornalista Miriam Leitão, como dizer que nossos álbuns de família revelam as
nossas mistura se vivemos numa sociedade só de negros e de brancos?
Certo ou errado nosso mito de origem fala que nós, brasileiros, somos um povo
que veio de três "raças" diversas que aqui se uniram para plantar uma nova
civilização. Macunaíma é o herói sem caráter porque estamos ainda, como disse
Mário de Andrade lá pelos idos de 1928, como meninos de 20 anos buscando a
nossa identidade. Como fazer para lançar esse mito por terra? Teríamos que
reinventar o mito de Macunaíma e fazer como na brincadeira séria de Richard
Morse (1990) um herói com bastante caráter?
Não se pode tomar as categorias empregadas nas estatísticas oficiais como
representação social de toda a sociedade porque são, na verdade, um modelo
construído pelos analistas a partir das realidades vivenciadas de muitas
maneiras no cotidiano da vida social. Essa realidade do modelo não está contida
na mente dos que vivem as realidades cotidianas. No entanto, o risco é que
afirmando como verdade universal esse modelo analítico ele pode acabar fazendo
parte da vida cotidiana e pode, ao fim e ao cabo, reinventar mesmo as
representações sociais, como profecia que se cumpre por si mesma.
Quem tem medo de mudar?
É evidente que os alarmantes números das desigualdades "raciais" indicam um
racismo renitente no Brasil. Mas como tentar extirpar esse mal? Os proponentes
das cotas acham que temos de abandonar o ideário modernista, tratando-o como
"truque". Mas eles vão realmente nos levar a superar nossas iniqüidades? Eis a
minha dúvida.
Para encontrar uma solução mais interessante, é preciso fazer como Mário de
Andrade e sair dos números que nos dão uma fotografia em preto e branco, e nem
isso, porque as estatísticas não revelam os muitos tons de cinza que fotos em
preto e branco contêm. As estatísticas não são como filmes que revelam a
diacronia, as cores e as variações das formas. As estatísticas são modelos
construídos que é preciso rechear de sangue, carne e músculo. Para buscar
entender o que os números não podem revelar, aquilo que fundamenta nossa vida
cotidiana, a saída é escutar e saber ouvir os muitos negros, brancos, morenos e
pobres que serão afetados por esta mudança proposta, que sem dúvida alguma não
custará muito para os próprios proponentes. Nosso país tem de buscar a inclusão
de quase 80% da população que está fora de muitos importantes ganhos da
cidadania. É preciso ir mais fundo para buscar as soluções que afetarão os
sujeitos dessa história, e não se deve esquecer que para isso há muito a fazer
para incluir milhares de jovens que ainda não conseguem terminar sequer o
ensino fundamental.
Foi isso que fez um grupo de jovens pobres da periferia do Rio de Janeiro
unindo-se em um movimento intitulado Pré-Vestibular para Negros e Carentes
(PVNC) que citei mais acima. Acho que há aí uma pista que não deveria ser
perdida. O movimento conseguiu atrair centenas de jovens que, beneficiados
pelas políticas de inclusão universais, conseguiram terminar o ensino médio e
queriam ter acesso a vagas nas universidades públicas do Rio de Janeiro. É
preciso dizer que ainda são poucos os que terminam essa fase do percurso
escolar. Apenas 30% da faixa etária de jovens conseguem chegar ao fim do ensino
médio. Esse grupo de jovens das periferias e dos bairros pobres da cidade,
muito ativo, não queria ser cooptado por ideologias das agências financiadoras
nacionais ou estrangeiras. Não aceitava apoio de qualquer fonte a não ser dos
professores que davam aulas gratuitamente, ou na forma de empréstimos de salas
de aula em igrejas ou associações de moradores e até, algumas vezes, de escolas
da rede pública. Queriam discutir entre si e desenvolver uma estratégia criada
por eles mesmos. Durante alguns anos conseguiram atrair não só militantes que
se autoclassificavam como negros, mas também muitos brancos pobres e outros
color blind, como um dos alunos que respondeu a um survey realizado pela minha
equipe de pesquisa em 1994 se definindo como flicts, em referência à belíssima
história de Ziraldo (1984).32
Este movimento teve um enorme sucesso de mídia e seduziu muitos jovens
estudantes que buscaram aquelas salas desconfortáveis tanto para aprender como
para ensinar. Nomeando os negros ao lado dos carentes, o movimento conseguiu
dar uma solução racialmente não neutra e ao mesmo tempo ser sensível às muitas
maneiras que esses estudantes têm de se autoclassificarem. A eficácia do
movimento deve-se certamente à garra desses jovens que buscavam sair do caminho
das balas da polícia e dos traficantes e do isolamento em que se encontravam
por estarem fora das possibilidades de competir com seus colegas mais bem-
aquinhoados pela fortuna e herança educacional. Ao longo da década de 1990,
desde a sua inauguração em uma paróquia de São João de Meriti e sob a liderança
de frei Davi, o movimento cresceu de forma espetacular. Muitos Núcleos, como
são chamados os grupos que se reúnem em igrejas, associações de moradores ou
escolas, foram sendo criados e seus coordenadores, organizados em uma direção
geral, discutiam constantemente os rumos do PVNC.
Até o ano da conferência de Durban em 2001, a maioria dos coordenadores era
contrária à introdução de cotas. Suas lideranças queriam que os estudantes
conseguissem por mérito e esforço próprios galgar um lugar no sistema de ensino
superior e com isso talvez terem mais chances de sair dessas periferias nas
quais a presença do Estado é quase nenhuma e onde os jovens estão à mercê de um
outro "movimento": "o movimento" que no dizer popular significa o tráfico de
drogas.
Depois de Durban, com a introdução da política de cotas para negros nas
universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro, o PVNC passou por uma
transformação muito importante. Algumas de suas lideranças tiveram o seu ânimo
diminuído e muitas abandonaram o movimento atormentados com dúvidas sobre o
caminho a seguir. No dizer de uma ex-coordenadora: "A mudança gerou dúvida e
intranqüilidade. Se de um lado, quem sabe, diminuiremos as desigualdades, com
essa política, de outro lançaremos por terra o mérito". Finalmente, disse ela:
"a dúvida maior é: como combater o racismo usando a raça?"33 A maior
transformação não veio, no entanto, dos que arrefeceram o ânimo, mas das
propostas feitas por frei Davi. Esse padre dominicano que é um dos heróis
fundadores do PVNC criou uma outra organização, o Educafro, que se define como
um movimento para afrodescendentes e carentes e que ao contrário do PVNC
aceitou doações de agências estrangeiras, rompendo com a proposta de autonomia
financeira. Situando agora os carentes ao lado daqueles que têm origem
africana' afro ' como critério de escolha de seus estudantes, o Educafro
redefiniu os rumos do PVNC. Frei Davi organizou o Educafro como uma franquia,
buscando seduzir os muitos núcleos do PVNC que quisessem se identificar com a
proposta que acabou vitoriosa também neste movimento: a descendência deve ser
tomada como base para a autoclassificação. Assim, aqueles que não quiserem
excluir os mais brancos de seu álbum de família, certamente estarão excluídos
dos cursinhos.
Que não se acuse Mário de Andrade de racista! Foi a sua geração e sob sua
liderança que se iniciou o movimento mais radicalmente anti-racista depois de
séculos de racismo dito científico. Mas talvez os que estão propondo o fim do
ideário modernista sejam, no fundo, mais crentes em Macunaíma e no Manifesto
antropófago do que a autora destas linhas. Talvez acreditem que comeremos o
multiculturalismo hoje como o bispo Sardinha e não avaliam os riscos para a
estrutura quando eventos como esses que descrevi mais acima ocorrem. Como disse
Marshall Sahlins (2004), a estrutura corre riscos ao ser invadida pelos eventos
que mesmo sendo interpretados à luz da tradição podem transformá-la de forma
radical.
As mudanças estruturais produzidas pelas leis e normas exaradas pelo Estado,
que descrevi aqui, ou seja, a criação de uma engenharia social baseada na
bipolaridade racial, afetará muito mais a população misturada e flicts que vive
nos imensos subúrbios e periferias das cidades. Mas como disse Miriam Leitão,
todos nós estamos juntos nisso. Quem se responsabilizará pelas conseqüências?
Muitas pessoas que leram versões iniciais deste trabalho me perguntaram o que
fazer então? Respondo sempre que há muito o que fazer para combater o racismo e
as desigualdades no nosso país e que já não é sem tempo de começar. A primeira
providência para qualquer campanha anti-racista deveria certamente começar,
como muitos vêm dizendo desde o início deste debate, por destruir a própria
idéia que o faz nascer: a idéia de "raça".
NOTAS
1 A Assembléia Estadual do Rio de Janeiro instituiu as cotas para as
universidades do Estado em 2000. A primeira lei de cotas raciais instituía 40%
de vagas para estudantes que se auto-declarassem negros/pardos. A lei foi
modificada em 2003, e os candidatos agora têm que ser pobres em primeiro lugar
e há 20% de cotas para negros (e não mais negros/pardos). Sobre as normas do
vestibular nas universidades do Estado do Rio de Janeiro implantadas por força
de lei, ver a tese de doutorado de Elielma Ayres Machado (2004) e o artigo de
Carla Ramos (2004), que está concluindo sua dissertação sobre o tema. Peter Fry
vem chamando a atenção para essa criação do racismo a partir de leis e normas
racializadas, ver, mais especificamente, Fry (2003).
2 Maggie e Fry (2002 e 2004) analisaram esta questão descrevendo as
representações sobre cor e raça assim como mérito e esforço próprio.
3 Em Medo do feitiço levantei essa hipótese quando discuti as acusações de
feitiçaria no Brasil Republicano (ver Maggie, 1992).
4 III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
5 O projeto da Unesco, como ficou conhecido, foi realizado a partir das
propostas de Artur Ramos, representante brasileiro nesta organização, depois do
fim da Segunda Guerra Mundial, e substituído por Luiz Aguiar da Costa Pinto por
ter falecido precocemente. Costa Pinto propôs que o escopo da pesquisa fosse
ampliado para incluir todo o Brasil e não só a Bahia como originalmente estava
previsto. A idéia era justamente desvendar o que se pensava ser uma cultura que
tinha resolvido de forma não violenta as suas diversidades étnicas. Marcos Chor
Maio tem um importante trabalho no qual descreve todo os trâmites dessa
história e discute as obras que resultaram desse esforço de pesquisa (ver Maio,
1997).
6 Tenho trabalhado com Peter Fry há muitos anos desde que estreitamos a nossa
amizade por ocasião da defesa de minha dissertação de mestrado nos anos de
1970. Além de amigo, Peter Fry foi meu orientador na tese de doutorado e vem
sendo desde então um interlocutor com o qual venho repartindo angústias e
descobertas. As idéias aqui expressas foram discutidas com ele em inúmeras e
constantes conversas e discussões formais e informais.
7 A palavra "raça" estará sempre entre aspas para frisar o fato de que é
categoria nativa e não conceito, pois a moderna ciência da genética já destruiu
as bases científicas em que a palavra foi alicerçada no século XIX.
8 Agradeço a Everardo Rocha os comentários que me incentivaram a persistir
nesta investigação sobre os rumos do ideário modernista.
9 Gilda de Mello e Souza em o Tupi e o alaúde ([1979] 2003) faz uma das mais
belas leituras do romance e vê a sua estrutura também toda feita da mistura, do
bricolage. Lendo esse livro recentemente reeditado fiquei ainda mais
impressionada, porque a autora de forma clara e precisa mostra como o livro é
uma meditação "extremamente complexa sobre o Brasil". A leitura que a autora
propôs "é menos a de uma interpretação triunfal e retoma a indicação pessimista
de Mário [...]". Certamente a afirmação que vejo no romance não é de modo algum
incompatível com essa visão ambivalente. Afinal, foi na nossa cultura mestiça,
misturada e ambígua que, como mostrou Gilda de Mello e Souza, Mário foi beber,
mesmo estando também mergulhado na cultura mais cosmopolita e universal.
10 Monoel Luiz Salgado Guimarães tem uma importante contribuição para a
discussão desse livro fundador da historiografia brasileira (ver Guimarães,
2000).
11 O livro clássico de Mário de Andrade tem sido interpretado por muitos quando
se discute a questão racial por ser mesmo um paradigma dessa versão de uma
brasilidade mesclada de brancos, negros e índios. Lílian Schwarcz discutiu o
assunto em duas ocasiões: se na primeira, em 1995, defendeu o mito dos ataques
daqueles que o interpretavam como mentira, falsa consciência, na segunda, em
1998b, optou por um outro caminho tentando conciliar o mito com os dados das
desigualdades raciais. Discordo de sua última interpretação, porque vejo o mito
ou a fábula das três raças e a própria idéia de democracia racial como um
ideal, algo que se busca, como uma vontade e um desiderato. Esse desejo de
igualdade, esse sonho é uma forma toda nossa de combater o racismo ou poderia
ser a nossa contribuição particular a esta luta pelo fim do racismo. Neste
artigo tento enunciar os argumentos que me levam a pensar de forma diferente.
12 Agradeço a Lilia Schwarcz a leitura generosa e cuidadosa de uma primeira
versão deste artigo. Seus comentários ajudaram-me a repensar a história do
nosso mito de origem e as heranças do século XIX que marcaram a construção do
"herói de nossa gente".
13 O estudo mais completo que rediscute Casa-grande & senzala, apresentando
uma análise complexa dessa obra é o de Araújo (1994). É preciso também discutir
a expressão democracia racial que foi muitas vezes atribuída a Gilberto Freire
e, segundo Guimarães (2002), foi cunhada mais tarde, por Roger Bastide e não em
no livro de Gilberto Freyre.
14 O conde Arthur de Gobineau foi embaixador francês no Brasil e escreveu, em
meados do século XIX, o Ensaio sobre a desigualdade das raças (1853-1855). Nos
anos em que permaneceu no Brasil como chefe da delegação diplomática, segundo
relato minucioso de Lilia Schwarcz "parecia respeitar apenas o imperador do
Brasil [...] todos os demais na opinião desse embaixador francês, 'pareciam-se
como macacos'" (Schwarcz, 1998b, p. 372). O conde Gobineau tinha uma visão
pessimista sobre a miscigenação, para ele sinal de degeneração que fazia com
que não houvesse futuro para nosso país. Lilia Schwarcz (1993) discutiu a obra
de Gobineau e o debate que se travava entre pensadores daquela época em O
espetáculo das raças. Segundo a autora, as idéias de Gobineau repercutiram mais
no Brasil do que no exterior.
15 É preciso também ler Schwarcz (1999) sobre a importância de Casa-grande
& senzala para a interpretação da sociedade brasileira. Diz Schwarcz: "O
'cadinho de raças' aparecia como uma versão otimista, mais evidente aqui do que
em qualquer outro lugar: 'Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro,
traz na alma quando não na alma, e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta,
do indígena e/ou do negro', afirmava Freire fazendo da mestiçagem uma questão
ao mesmo tempo nacional e distintiva" (Schwarcz, 1999, p. 276).
16 Para uma análise do pensamento racial no século XIX, ver Schwarcz (1993).
17 Ver a Mulata de Di, Cavalcanti de 1928 no site www.dicavalcanti.com.br/, que
apresenta toda a obra do pintor.
18 Ver o Abapurú de 1928 e a Negra de 1923, de Tarsila, no site
www.tarsiladoamaral.com.br/.
19 Cf. canções de Caetano Veloso, "Haiti" e "Americanos".
20 O artista plástico Luiz Alphonsus, da geração Conceitual, só para citar um
deles, fez dois trabalhos que remetem a esta influência modernista. O
conceitual caboclo e Índia e mato fazem parte da coleção Gilberto
Chateaubriand.
21 Ver o livro de fotos de Hermano Vianna, que refez uma das viagens de Mário
de Andrade (Vianna, 2000).
22 Esse seminário, organizado pelo Departamento de Direitos da Cidadania do
Ministério da Justiça, teve a maioria das comunicações reunidas em livro
organizado por Souza (1997).
23 Monica Grin (2000) discutiu esse evento e as várias posições em jogo em
excelente análise em sua tese de doutorado.
24 Recentemente uma polêmica surgiu ao ser introduzido um método novo de
identificação de candidatos que optaram pelas cotas no vestibular da UnB. Para
uma discussão da questão, ver Maio e Santos (no prelo).
25 Para os que se posicionam a favor da política de cotas raciais, elas se
constituem em um caminho mais curto para uma consciência racial que está
ausente e deve ser reforçada. Eduard Telles (2004) afirma que este atalho é
necessário para a diminuição das desigualdades raciais na educação. Fry
(2005a), em resenha ao livro de Telles, pergunta se esse não seria um caminho
sem volta e se a destruição da noção de democracia racial como ideal não é uma
forma de jogar fora o bebê com a água do banho.
26 José Murilo de Carvalho (2004) em recente artigo chamou a atenção para o
genocídio estatístico dos pardos que vem ocorrendo na divulgação dos dados
sobre desigualdades raciais. O autor descreve como a questão vem sendo tratada
a partir do século XIX nos censos demográficos e argumenta que esta mudança
atual significa uma reviravolta na nossa concepção de nação.
27 Ver, por exemplo, Peter Fry (1983), Roberto DaMatta (1987b), Manuela
Carneiro da Cunha (1985).
28 Ver DaMatta (1987a).
29 Cito aqui alguns desses trabalhos que partiram dos dados recolhidos ao longo
do ano do centenário da Abolição da Escravatura: Schwarcz (1990), Birman (1990,
1997), Damasceno (1997), Cavalcanti (1997), Farias (1997), Moutinho (1997) e
Maggie (1989).
30 Ver em Maggie e Rezende (2002) uma seleção dos ensaios produzidos por
pesquisadores que participaram do Programa e que também revisitaram o tema com
pesquisas tanto no Brasil quanto no estrangeiro.
31 Mensagem do presidente da República por ocasião do Dia Internacional pela
Eliminação da Discriminação Racial (21/3/2001, www.mj.gov.br, grifos meus).
32 Ver Maggie (2001).
33 Uma estudante universitária ex-coordenadora de um Núcleo do PVNC e agora
estudante de ciências sociais.