Gênero e a distância entre a intenção e o gesto
Apresentação
Este artigo tem por objetivo apresentar alguns resultados da pesquisa "Gênero,
Trabalho e Família no Brasil", baseada num surveyrealizado no final de 2003,
com uma amostra representativa da população brasileira.1 O survey fez parte de
uma pesquisa internacional que o ISSP ' International Social Science Program '
conduziu com o intuito de identificar as transformações que vêm sendo operadas
nas relações de gênero, tendo por base as dinâmicas de conciliação entre a vida
familiar e o trabalho pago. A pesquisa procurou investigar as percepções que
mulheres e homens têm acerca dessa conciliação e envolveu aspectos relacionados
com o exercício da maternidade e da paternidade; a conjugalidade, a divisão do
trabalho doméstico e a satisfação com a vida familiar e com o trabalho. Um
conjunto de questões dirigidas especificamente aos inquiridos que viviam
conjugalmente buscou captar as percepções desses indivíduos sobre a divisão do
trabalho doméstico, por meio de perguntas sobre tarefas domésticas e atividades
com os filhos.
Em trabalhos anteriores (Araújo e Scalon, 2004 e 2005) foram apresentados os
resultados mais gerais dessa pesquisa. Neste artigo, selecionamos as questões
que consideramos mais diretamente associadas à problemática da conciliação
entre família e trabalho pago para tentar responder às seguintes perguntas: A
presença das mulheres no mercado de trabalho vem alterando as práticas
tradicionais de divisão sexual do trabalho na família, de modo que se possa
falar de relações de gênero mais igualitárias no Brasil? Há correspondência
entre as percepções e os valores expressos pelos inquiridos, sobre o trabalho
das mulheres, atribuições de homens e mulheres na esfera da família e do
casamento e as suas atitudes2 no cotidiano doméstico das tarefas envolvidas na
reprodução e no cuidado com os filhos?
Na primeira parte, à luz de uma sucinta análise descritiva, apresentamos os
traços centrais das percepções dos entrevistados sobre a igualdade de gênero e
a conciliação entre trabalho pago e vida familiar.3 Em seguida, analisamos como
algumas práticas domésticas envolvidas nessa conciliação são conduzidas no
cotidiano de casais entrevistados. A segunda parte procura estabelecer
possíveis correlações entre os diferentes fatores que influenciam as
percepções, os valores e as práticas reportadas pelos entrevistados, a partir
do uso de análises multivariadas. Por fim, concluímos indicando os principais
traços que se apresentam no Brasil atualmente em relação ao tema.
Perfil da população estudada
De forma breve, apresentamos alguns dados gerais que permitem caracterizar a
amostra em estudo. A média de idade é de 39 anos. A escolaridade é baixa: 67,8%
só chegaram ao primeiro grau e apenas 10% ao terceiro grau, sendo que apenas 6%
tinham concluído o terceiro grau. Quanto à cor ou etnia, 46,3% definiram-se
como branca, 11,2%, como preta, 37,6%, como parda, 1,9%, como amarela, e 3,1%,
como indígenas. Entre os entrevistados, 45% declararam-se chefes de família e
26%, cônjuges. Quanto ao sexo, declararam-se chefes de família 68% dos homens e
32% das mulheres. Entre os respondentes, 59,4% disseram ter menos de 17 anos
residindo no domicílio. Por sexo, considerando também as pessoas que se
disseram desempregadas há mais de doze meses, 53,9 % das mulheres foram
incluídas na categoria de ativas, 30,5% definiram-se como "do lar" e 11,3%,
como aposentadas. Entre os homens esses percentuais foram, respectivamente, de
81%, 0,6% e 13,6%. Ao contrário do que se costuma dizer, a jornada semanal de
trabalho é alta: 59% dos entrevistados trabalham mais de 40 horas. Entre as
mulheres, 30,2% trabalham até 30 horas, 23% entre 30 e 40 horas semanais e
46,6% trabalham mais de 40 horas. Entre os homens, esses percentuais são,
respectivamente, de 14,2%, 18,7% e 67.1%. Quanto à condição conjugal, 63,8% do
total da amostra vivia conjugalmente no momento da pesquisa, categoria definida
pela soma dos que se declararam casados e não-casados, estes últimos vivendo
com alguém. Apenas em 7,6% dos domicílios havia empregada doméstica.
Já o perfil religioso revela o que outras pesquisas já vêm apontando: embora a
maioria da população seja católica (75,2%), tem crescido a proporção de
evangélicos na população (13,7%), o que parece ser maior entre as mulheres.
Gênero e família: tendências recentes
As mudanças na característica dos arranjos conjugais em termos de composição e
de configuração afetiva vêm sendo analisadas por uma vasta literatura (Gornick
e Mayers, 2004; Torres, 2001, 2002, 2004; Bozón, 2004; Aboim e Wall, 2002;
Castells, 2000; Jelin, 1995; Vaitsman, 1994). Em geral, essas análises apontam
para uma profunda alteração dos padrões de organização familiar no que diz
respeito à extensão da família, com a redução de seu tamanho; nos padrões de
conjugalidade, com o aumento de famílias monoparentais e de casais compostos do
mesmo sexo; com maior plasticidade das relações e o afeto se tornando elemento
central que orienta a constituição das relações amorosas e da conjugalidade; e
há ainda um enfraquecimento do patriarcado como referência hierárquica e de
poder, embora este aspecto seja bastante polêmico. Tais mudanças, decorrentes
também do ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho, apontam para
evidências de que os modelos de conciliação entre trabalho pago e vida familiar
baseados na clássica dupla "homem provedor" e "mulher cuidadora" vêm sendo
alterados em direção a um modelo dual, no qual as mulheres permanecem como as
principais "cuidadoras", mas o trânsito entre o espaço doméstico e público se
constitui um dado contemporâneo.
Importa ressaltar que essas dinâmicas de conciliação são também mediadas pela
centralidade crescente que o mercado adquire na vida social contemporânea
(Dedecca, 2004; Gornick e Mayers, 2004), ou seja, por imperativos estruturais e
não apenas internos às relações familiares. Trata-se também de processo e
transições globais, embora a intensidade varie de acordo com as culturas e os
contextos (Norris e Inglehart, 2003; Hirata, 2002).
Muitas dessas tendências, que se apresentam mais ou menos intensas nos
diferentes países de acordo com os contextos específicos, têm operado
favoravelmente sobre as mulheres, ao mesmo tempo em que decorrem, também, das
mudanças nas suas posições em outras esferas, sobretudo no âmbito do trabalho.
No caso do Brasil, um aspecto que merece destaque particular é o que se refere
ao tamanho e à composição das famílias (Berquó, 2002). Embora não existam
muitos estudos longitudinais, a análise de alguns trabalhos mais históricos
sugere que a intensificação do ingresso das mulheres no mercado de trabalho a
partir da década de 1970 contribuiu para essa uma mudança substancial nos
arranjos familiares no país.
De fato, diante do cenário de algumas décadas atrás, o sentido de ruptura que
muitas dessas mudanças adquirem é maior para mulheres. Isso, contudo, não
define a natureza das relações como menos conflitantes. Como salientaram Torres
et al. (2002), os espaços familiares são lugares onde circulam e são geridos
bens materiais e simbólicos que nem sempre são passíveis de consensos entre
seus pares. Não só a individuação abre espaço para maiores demandas pessoais,
como também as condições de uso e de acesso aos recursos tendem a ser objeto de
conflitos.
Em contrapartida, as relações intrafamiliares não são apenas derivadas dos
sentidos subjetivos conferidos por seus membros ou ainda pela dinâmica interna
ao ambiente doméstico. Elas são mediadas também por aspectos exógenos,
decorrentes dos modos de organização da vida pública e dos lugares em que os
indivíduos ocupam e disputam nessas esferas. As dinâmicas organizacionais e o
acesso a determinados tipos de recursos têm impacto sobre a vida familiar e
conjugal tanto quanto estas influenciam as disposições e as chances dos
indivíduos na vida pública. Nesse caso, tais dinâmicas incidem de forma
particular sobre a vida e as chances das mulheres, como tem sido demonstrado
por inúmeros estudos empíricos. Ao contrário dos homens, as possibilidades de
satisfação das mulheres, além dos imperativos externos próprios ao "mundo do
trabalho", são mediadas, também, por suas condições internas à família. Um dos
aspectos mais evidentes quando se analisam as relações entre família e espaço
público é o de que "o doméstico" permanece como o principal elemento de
mediação da vida das mulheres, mesmo que isso ocorra de forma involuntária. Por
essa razão os aspectos "internos" à família ' cuidado ou atividades de
reprodução da vida doméstica ', assim como aspectos envolvendo as mulheres no
mercado de trabalho necessitam ser observados, também, sob o prisma da
interação entre esfera doméstica/familiar e esfera pública, problematizando-
a em relação às articulações com o mercado e com o Estado, a exemplo de vários
autores, como, por exemplo, Esping-Andersen (1990), Fraser (1999) e Crompton
(1999), Gornick e Mayeres (2004), Torres (2004), Arriagada (2004), entre
outros.
Nessas e em outras análises vem sendo ressaltado que as mulheres,
diferentemente dos homens, estão sujeitas a dois tipos de dependência ' do
mercado e da família ', e isto tem impacto sobre sua autonomia e a forma como
organizam e orientam suas ações. O grau de mediação do Estado, por sua vez,
poderia ter efeitos mais ou menos positivos sobre tal dependência à intensidade
do deslocamento: do modelo mais tradicional ou de rigidez de papéis - homem
provedor/mulher cuidadora - em direção a modelos duais mais igualitários de
conciliação, ainda que predominantemente marcados pelo desigual envolvimento de
homens e mulheres com a vida doméstica.
Ao lado desses condicionantes, a cultura surge como relevante para pensar
mudanças e recorrências nas dinâmicas envolvendo as relações de gênero e, com
essa perspectiva, parece-nos particularmente relevante para a compreensão dos
dados do surveyem exame o trabalho de Norris e Inglehart (2003). Esses autores
incorporam fatores estruturais e culturais para estudar e explicar as variações
nas atitudes em relação à igualdade de gênero, entre sociedades e entre homens
e mulheres. Considerando as posições dos indivíduos e também as diferentes
regiões geográficas para pensar as tradições culturais, os autores sugerem que
a desigualdade/igualdade de gênero varia sistematicamente de acordo com o nível
de desenvolvimento político e socioeconômico e os padrões religiosos e
culturais de uma determinada sociedade. Em síntese, advogam que a modernização
das sociedades implica o enfraquecimento dos papéis tradicionais baseados no
gênero. A modernização traz consigo o ingresso das mulheres no mercado de
trabalho, o que conduz a mudanças em diversos aspectos da vida social, na
família e nas esferas públicas e no trabalho. As mudanças nos estilos de vida
de homens e mulheres, especialmente na fase de desenvolvimento pós-industrial,
geram, também, transformações inevitáveis em termos de valores culturais. Tais
valores operam como impulsionadores decisivos de diferenças geracionais dentro
das mesmas sociedades e também de diferenças de acordo com os diferentes níveis
de desenvolvimento político e econômico.
Inglehart e Norris tomam como variáveis relevantes a idade, a educação, o
rendimento, a participação no mercado, a religião(freqüência com que se vai à
igreja), a condição de conjugalidade e a maternidade/paternidade. No âmbito dos
países como um todo, consideram o desenvolvimento humano e o nível de
democracia. Além disso, levam em conta a região geográfica como base de
referência para as diferentes tradições culturais. Os autores concluíram que as
mulheres tendem a ser ligeiramente mais abertas à igualdade de gênero do que os
homens, mas as diferenças entre os sexos são menores do que as diferenças entre
sociedades. Nesse caso, além dos indicadores de desenvolvimento socioeconômico
e político, foram consideradas também os de diferentes tradições religiosas.
Variáveis como educação, rendimento e participação no mercado de trabalho
correlacionam positivamente com igualdade de gênero. Já a idade (ser mais
idoso), a freqüência religiosa, a conjugalidade (ser casado) e possuir filhos
correlacionam negativamente com posições de gênero mais igualitárias. Os
autores concluem que existe um tipo de desigualdade de gênero moderna,
denominada teoria de desalinhamento de gênero.
Há alguns problemas nessa teoria que, no espaço restrito deste artigo, não
poderão ser discutidos devidamente. De qualquer maneira, são explicitados na
própria designação teórica ' "desalinhamento de gênero" ', termo que confere um
sentido linear e progressivo às mudanças. Entretanto, esses problemas não
retiram a validade do argumento central, qual seja, a igualdade e a
desigualdade de gênero são mediadas por múltiplos fatores, particularmente a
cultura, articulando dimensões socioeconômicas e culturais.
Neste trabalho, pretendemos verificar em que medida o gênero se mostra, em
comparação com outras variáveis, relevante na constituição dos valores e das
praticas que organizam a vida cotidiana das famílias no Brasil. Embora o
conjunto de variáveis que podemos definir como "morais" ou culturais não seja
muito grande, é possível reunir variáveis de "percepção" e de opinião, assim
como fatores como religiosidade para pensar sobre a dimensão da cultura e sua
relação com elementos socioeconômicos. Subjacente a este exercício, está a
compreensão de que o processo de modernização ' compreendido em suas dimensões
estruturais e simbólicas ' produz mudanças nas atitudes e nos valores
culturais, mudanças que vêm apontando para uma igualdade de gênero.
Os sentidos do trabalho doméstico para mulheres e homens
Como foi discutido anteriormente, o trânsito entre a atividade de trabalho para
remuneração e as atividades domésticas cotidianas é uma constatação entre a
maioria das mulheres. Além de ser um imperativo de sobrevivência, o trabalho
pago pode e tende a se constituir em aspiração de realização pessoal. Com
efeito esse trânsito ocorre predominantemente entre as mulheres, da casa para o
trabalho. Ao mesmo tempo, o domicílio e a família permanecem como espaços
primordiais de reprodução material e de produção simbólica da vida cotidiana.
Como então conciliar o desejado ou necessário trabalho da mulher com o fato
concreto das atividades domésticas e a maternidade, e quais as dimensões que
legitimam ou tencionam essa conciliação? As respostas às questões envolvendo a
relação entre afeto materno, qualidade de vida familiar e trabalho pago, assim
como aquelas relativas às aspirações individuais das mulheres, fornecem pistas
interessantes a respeito das percepções de ambos os sexos sobre a maternidade e
o lugar das mulheres. A análise dos dados contidos nas Tabelas_1 e 2 (Anexo_1)
sugere que há uma elevada aceitação do trabalho como parte constitutiva da vida
da mulher; maior entre as mulheres, mas igualmente elevada entre os homens.
Como se observa, essa aceitação é acompanhada da permanência da valorização da
domesticidade feminina, particularmente de seu aspecto maternal e, como se pode
notar, isto ocorre, sobretudo, entre os homens. As respostas apontam para a
valorização do trabalho, mas sugerem um outro aspecto, o da permanência ou da
conciliação do espaço tradicional- a casa e a maternidade. Homens e mulheres
concordam quanto à importância ou à necessidade do trabalho pago para as
mulheres, mas não com a mesma intensidade. A percepção dos homens sobre o que
querem as mulheres está mais associada à domesticidade do que a das próprias
mulheres.
É sobretudo em relação aos filhos que a ausência feminina do espaço doméstico e
a possibilidade de conciliação se mostram mais problemáticas para ambos, mas,
sobretudo, entre os homens. É de se supor que, na percepção dos entrevistados,
a ausência das mulheres tenderia a gerar certa carência de afeto, o que poderia
estar associado ao tempodedicado ao exercício da maternidade, e não à qualidade
dessa relação.
Na Tabela_2, a centralidade da maternidade mais uma vez é revelada. A
construção de uma outra identidade feminina ainda parece estar condicionada a
esse lugar materno, sobretudo quando relacionado à fase em que os filhos são
pequenos. Para os homens, porém, além do exercício da maternidade, o lugar de
"esposa" também permanece relevante. Embora exista uma diferença razoável nas
respostas de homens e mulheres quando se trata de trabalhar fora antes de ter
filhos ou quando estes já freqüentam escolas ou saíram de casa, em se tratando
dos filhos pequenos, há certo consenso entre ambos os sexos de que as mulheres
não deveriam trabalhar em tempo integral nesse período. A conciliação com um
trabalho que lhes permita desenvolver as atividades de cuidado dos filhos se
constitui um ideal para parcela significativa das entrevistadas.
Os dados sugerem que, no âmbito dos valores, a afirmação de uma individualidade
do sujeito e de autonomia para se movimentar nos espaços sociais tende a
contrastar com uma identidade que se transforma de pessoa em esposa e mãe. Como
veremos mais adiante, para as mulheres, essa tensão parece ser determinada não
apenas por dimensões de valores, mas também por dimensões concretas de tempo.
Nesse caso, a tensão remete a algo concreto: as cobranças quanto à dedicação
sobretudo aos filhos e a necessidade de trabalho com fins de ganhos financeiros
e/ou a dificuldade de um exercício profissional desprovido de outras atenções.
Um olhar sobre as respostas masculinas indica que os homens permanecem
valorizando mais uma identidade feminina marcada pelos papéis de esposa e de
mãe, e suas expectativas acerca da relação conjugal tendem a ser mediadas por
tais valores.
Os homens e o trabalho doméstico
Até que ponto, às percepções mais igualitárias sobre o acesso das mulheres ao
trabalho e sua realização profissional como direito correspondem percepções
menos tradicionais sobre o tipo de participação masculina na vida familiar e
cotidiana? Em que medida ao já constatado trânsito das mulheres em uma direção
' do doméstico para o público ' corresponde um trânsito masculino em direção
inversa? As respostas contidas na Tabela_3 permitem analisar as opiniões de
homens e mulheres sobre a tradicional divisão sexual de papéis com o foco sobre
os homens, quanto às tarefas domésticas e à figura de provedor.
A aceitação da idéia de divisão das despesas familiares é bastante elevada '
92,5% dos homens e 93,6% das mulheres concordam totalmente ou em parte com a
afirmação. A pergunta mais emblemática quanto à tradicional divisão de papéis é
se o homem deve ganhar dinheiro enquanto as mulheres cuidam da casa (questão
B). Embora os percentuais se reduzam bastante, é sintomático que 52,3% dos
homens respondam que concordam com a tradicional divisão de papéis. É ainda
surpreendente que encontremos 45% de mulheres que aceitem tal afirmação. Como
defender a participação de ambos na renda e, ao mesmo tempo, a permanência dos
papéis dicotômicos tais como são apresentados? As respostas sugerem a seguinte
leitura: sobretudo entre os homens, permanece como percepção uma necessidade
pragmática relacionada com a escassez orçamentária e uma idéia de trabalho que
é aceita, mas com a conotação de "auxiliar", embora de fato não o seja. Essa
percepção acompanha o aceite do trabalho feminino, mas este não necessariamente
significa alterar as representações simbólicas e efetivas acerca dos lugares
prioritários de homens e mulheres na condução da vida cotidiana. Em outras
palavras, o trânsito permanece sob forte influência do tradicional modelo dual
"homem provedor" e "mulher cuidadora", embora o primeiro pólo, de fato, já não
seja mais predominante entre os arranjos.
Perceber o trabalho feminino como auxiliar não é um dado novo. Pesquisas
pioneiras já apontavam para esses resultados (Bruschini, 1990; Hirata e
Humphrey, 1986). Talvez, o que mereça destaque seja exatamente a sua
permanência como um valor ainda forte, embora não mais predominante, e já com
mais de 40% da PEA nacional sendo composta por mulheres. A permanência mais
acentuada da idéia de provedor é confirmada pelas respostas à pergunta sobre
qual a renda ideal para o homem. Enquanto 59% das mulheres responderam ser
aquela igual à da mulher, entre os homens esse percentual foi de 50%. Por outro
lado, 47,9% dos homens acham que devem ganhar mais do que as mulheres, mas
entre elas há ainda uma parcela significativa (38,3%) que concorda com tal
afirmação. Merece destaque o fato de mulheres e homens apresentarem elevados
índices de concordância quanto à necessidade de maior envolvimento masculino
com os filhos e a divisão de tarefas domésticas. O cuidado dos filhos é o item
mais acordado entre ambos os sexos. A divisão de tarefas domésticas já não
obtém índices semelhantes, embora estes continuem elevados. Nesse caso, o corte
de gênero é bastante nítido. São principalmente as mulheres que têm essa
percepção mais igualitária da divisão de tarefas. Sem dúvida, não podemos
considerar que no Brasil ainda estamos diante do homem tradicional e machista
como costumamos pensar. Mas as faces de relações mais igualitárias e de
relações mais tradicionais se mesclam e se evidenciam, indicando aspectos
"modernos" e outros "conservadores" que revelam as ambigüidades da esperada
modernização.
O casamento como valor e aspiração de felicidade
Considerando a tendência contemporânea à constituição de relações orientadas
por escolhas afetivas, e não meramente pragmáticas ou baseadas em sentido de
honra, analisaremos a seguir o lugar que os entrevistados conferem a algumas
dessas escolhas na constituição de relações conjugais, na estruturação de
famílias e no ideal de felicidade.
As respostas contidas na Tabela_4 apontam para as tendências de enfraquecimento
institucional do casamento e valorização de conjugalidades centrada em
satisfações individuais, com maiores margens de manobras para as mulheres. O
dado mais importante a destacar é que, ao contrário do que costuma ser
veiculado pelo senso comum, nesta pesquisa são as mulheres mais do que os
homens que tendem a rejeitar o caráter formal e a concordar que não
necessariamente o casamento constitui o ideal de felicidade.4 Essa tendência é
constatada, também, em respostas que remetem ao que poderíamos definir como o
sentido moral do casamento(questões E e F). Comparativamente, as mulheres
tendem a aceitar mais que o casamento possa ser importante para a criação dos
filhos, mas isso é condicionado a uma situação satisfatória individual de
conjugalidade. Essas e outras questões apontam, portanto, que é nos espaços de
relações afetivas e de escolhas que o individualismo, como valor moderno, que
torna a vida pessoal "um projeto aberto, criando novas demandas e novas
ansiedades" (Giddens, 1991, p. 83), se mostra mais evidente no contexto desta
pesquisa.
Valores "morais": autoridade, hierarquia e direitos individuais
Seguindo o sentido proposto por Giddens (1991) quanto à "democratização da
esfera privada" como projeto que está na ordem do dia, serão analisados
brevemente5 alguns itens do bloco de questões que definimos com "valores
morais". Esta designação deve-se ao fato de tais itens não estarem tão
vinculados a compartilhamento, porém a direitos individuais em relação à
sexualidade e a dimensões de autoridade e posse nas relações de gênero. O uso
da autoridade e da punição como recurso de controle familiar é uma das
características do modelo patriarcal de família que envolve, também, uma noção
de fidelidade e obediência, implícitas na conjugalidade e percebidas como
pertencimento ao outro. Por conta da tendência à maior simetria entre os
membros da família, esperávamos que os inquiridos tendessem a recusar o uso da
força como recurso de solução de conflitos. Considerando a hipótese de que
gerações mais velhas ' e, portanto, em geral, já fora do mercado ' tenderiam a
ser mais conservadores em relação a esses aspectos, selecionamos apenas aqueles
que se definiram como ativos. A primeira coisa a destacar, conforme mostram
alguns dos dados da Tabela_5, é que, nesta pesquisa, a maioria dos homens e das
mulheres recusa o uso da punição ou da ameaça como forma de controle conjugal.
Contudo, é de se notar que as mulheres tendem a ter posições ligeiramente mais
modernas do que os homens, com percentuais mais elevados de recusa. Por outro
lado, vale dizer que não é desprezível o percentual de mulheres, e, sobretudo,
de homens, que ainda consideram válidos tais recursos, fato que, provavelmente,
ajuda a explicar os elevados percentuais de registros sobre violência
intrafamiliar e violência de gênero. Mas como tendência, tais respostas apontam
um enfraquecimento da autoridade masculina e uma maior reciprocidade para com o
"outro". Em se tratando do exercício da sexualidade, as respostas revelam
posições mais abertas em relação aos direitos sexuais como escolha, e, mais uma
vez, tais posições se encontram, principalmente, entre as mulheres. Contudo, em
geral, sugerem que nesse aspecto as relações tendem a ser mais mediadas pelo
desejo mútuo e não tanto pelo poder, embora também não se deva desconsiderar o
percentual de mulheres e, sobretudo, de homens que ainda concebe o direito e a
autoridade masculina como decisivas para que as relações aconteçam.
Entre as questões que definimos como "morais", o tema do aborto, sem dúvida,
permanece como emblemático para o debate sobre valores modernos e relações de
gênero, uma vez que remete ao direito individual das mulheres sobre o seu corpo
e, ao mesmo tempo, está fortemente marcado por aspectos religiosos. Conforme
supúnhamos, a Tabela_6 mostra que o aborto como uma questão de direito da
mulher ' itens A e E ' ainda é predominantemente rejeitado, e sua prática deve
ser punida. Embora mais homens do que mulheres tendam a ser favoráveis à
prisão, a recusa à idéia do direito da mulher tende a ser mais elevada entre as
próprias mulheres. Em contrapartida, diante do tabu que o tema ainda exerce no
país, os índices de concordância à questão E não podem ser desprezados, assim
como os elevados índices de aceitação do aborto em casos de risco de vida da
mãe e anomalia fetal.
Homens e mulheres no cotidiano doméstico
Como foi assinalado, as atividades relacionadas com a reprodução da vida e que
envolvem a divisão de um conjunto de atividades necessárias à organização e ao
funcionamento dos domicílios, o cuidado com as crianças e o uso do tempo
"livre", isto é, tempo de final de semana, formalmente reservado para o
descanso, necessitam ser vistas sob o ângulo das mudanças culturais. Nesse
sentido, englobam necessidades que vão sendo alteradas no tempo e no espaço. A
reprodução da vida e como isso se realiza variam historicamente entre culturas
e de acordo com os contextos socioeconômicos. Pensar como ocorre a divisão de
trabalho doméstico implica considerar que as condições das ações dos indivíduos
são mediadas por seus valores e escolhas, mas também pelos contextos
estruturais e acesso a recursos, aspectos que devem ser contemplados como
impulsionadores ou limitadores de determinadas tendências. Por outro lado, a
análise da divisão do trabalho numa perspectiva de gênero mostra que esses
fatores podem ser mais ou menos relevantes, porém, não são tão determinantes
para alterar substantivamente a característica quase universal da divisão
sexual do trabalho doméstico.
A Tabela_7 condensa o conjunto das atividades domésticas para as quais os
entrevistados foram solicitados a responder. Os dados revelam que a divisão
sexual do trabalho doméstico (sem considerar as crianças) ainda permanece
amplamente dominada pelo padrão tradicional para ambos os sexos. Os homens só
respondem por mais de 50% na atividade de pequenos consertos domésticos.
Algumas atividades, como lavar e passar roupa e/ou cozinhar têm sido
territórios praticamente inexplorados para os homens e assim parecem
permanecer. Embora os percentuais se alterem em algumas circunstâncias, não são
suficientes para indicar que o trabalho pago, mesmo com jornada integral,
conduz a uma situação que possa ser considerada equilibrada na divisão das
atividades domésticas, conforme os dados da Tabela_8.
O "cuidado" e as atividades com as crianças
Como assinalamos, o lugar do cuidado na vida das mulheres tem sido determinante
sobre suas possibilidades de escolhas em relação à vida em geral. De fato, como
observou Duran (2000), excluindo-se os limites biológicos relacionados à função
da gestação, todos os outros aspectos envolvidos no cuidado podem ser
efetivamente desenvolvidos por homens ou mulheres. Não é, entretanto, o que
ocorre no cotidiano.
Na pesquisa, o cuidado pôde ser observado sob dois ângulos: referia-se aos
familiares doentes (Tabela_7) e, sobretudo, ao envolvimento/compartilhamento
com as atividades necessárias à criação dos filhos. Quanto ao primeiro aspecto,
a proporção de indivíduos que não respondeu a essa questão foi muito elevada.
Indicamos aqui possíveis razões para isso: porque não necessariamente uma única
pessoa cuida, ou, ainda, porque a pergunta pode ter sido associada à idéia de
existir alguém doente no momento da entrevista.6 De todo modo, o que podemos
observar no item C da Tabela é que essa atividade continua sendo
predominantemente feminina e, de acordo com as respostas, o envolvimento
masculino permanece muito pequeno quando comparado ao envolvimento das
mulheres.
Sobre o segundo aspecto, os dados da pesquisa confirmam o que foi dito
anteriormente. Os filhos menores de dez anos, quando não estão na escola,
recebem cuidados fundamentalmente da mãe ' 57,6% ' e, em segundo lugar, dos
avós ' 12,1% ', o que deve corresponder, quase na sua totalidade, à figura da
avó. Para as mulheres sem cônjuge, o suporte dos avós é ainda mais relevante. O
cuidado público é residual ' apenas 14,4% dos entrevistados com filhos até 2
anos responderam positivamente à pergunta se os filhos freqüentam a creche, e
só metade freqüenta creche do governo.
A divisão de trabalho doméstico entre casais, visando ao cuidado dos filhos,
sugere poucas mudanças nos padrões tradicionais e confirma o que vem sendo
encontrado em outros estudos. Em praticamente todas as atividades, 70% ou mais
de mulheres respondem que são elas próprias que fazem as atividades listadas,
ao passo que imputam ao cônjuge uma participação inexpressiva. A única exceção
é em relação à atividade de brincar com as crianças, em que a participação
masculina se eleva um pouco conforme pode ser visto na Tabela_8. Por fim, cabe
registrar que também nos finais de semana, as mulheres, bem mais que os homens,
tinham as suas atividades de lazer associadas às crianças e/ou visita a
parentes, ou ainda usavam seu tempo livre para cuidar da casa.7
Certo padrão de respostas e aspectos curiosos e, ao mesmo tempo, reveladores,
emergem desses dados, o que nos faz pensar acerca das formas como homens e
mulheres experimentam e vivenciam essas atividades e a coerência com suas
opiniões. Primeiro, quando comparamos as respostas de acordo com o sexo,
notamos que, sistematicamente, o percentual de homens que respondem ser sempre
eles que realizam as tarefas é mais elevado do que o de mulheres que atribuem
ao cônjuge a responsabilidade pelas mesmas. Há, também, um padrão nas respostas
sobre a divisão igualitária: o percentual de homens que responde dividir
igualmente é sistematicamente maior do que o percentual de mulheres. Por fim,
verificamos que isso ocorre quando de trata de atribuir à empregada doméstica a
responsabilidade para com as atividades: sistematicamente os homens atribuem
mais tarefas às empregadas do que as mulheres o fazem. Esse padrão aponta para
uma importante distinção entre as percepções femininas e masculinas e será mais
bem visualizado quando tratarmos do sentimento de justiça ou injustiça em
relação ao trabalho doméstico, mas revelam, desde já, que não há sintonia entre
o que os homens acham que fazem e o que acham que suas mulheres fazem e vice-
versa.
Relações entre valores e atitudes
Após apresentar alguns dados descritivos, nosso objetivo nesse momento é
compreender em que medida as percepções sobre o papel da mulher na vida pública
e na vida privada têm impacto sobre a divisão das tarefas domésticas. Para
tanto, recorremos a um modelo estatístico de regressões multivariadas. De
antemão sabemos que esse impacto tem sido muito pequeno. Algumas das pesquisas
mencionadas anteriormente, baseadas em séries temporais e em aferições mais
diretas do uso tempo doméstico, têm demonstrado que em uma década o aumento do
número de horas dedicadas ao trabalho doméstico pelos homens se alterou pouco,
em torno de alguns minutos (Hirata, 2002). Essa constatação reforça a
perspectiva discutida acima de que a divisão sexual do trabalho doméstico está
fortemente enraizada na cultura, além de ser influenciada por outros fatores
estruturais e econômicos. Com base nessas considerações e compreendendo que
esse tipo de análise ajuda a visualizar melhor as distintas dimensões que a
pesquisa permite captar, consideramos como uma hipótese subliminar que valores
mais conservadores tendem a produzir percepções de gênero mais conservadoras, a
quais, conseqüentemente, se refletem numa divisão do trabalho doméstico mais
desigual. Nesse sentido, buscamos entender em que medida alguns valores mais
gerais, que transcendem as relações de gênero e não estão relacionados apenas
com as mulheres, têm implicações sobre a maneira de os indivíduos perceberem as
relações de gênero e as práticas familiares. As variáveis utilizadas na
construção de cada índice estão listadas no Anexo_3.
Em primeiro lugar, as correlações bivariadas8 entre os três índices criados
para traduzir valores morais, percepções e práticas mostraram que existe uma
associação positiva entre valores morais e percepções sobre o lugar da mulher
na dinâmica entre o trabalho pago e a família, tanto para homens como para
mulheres (ver Quadro_1, Anexo_2). Isso significa que quanto mais modernos são
os "valores morais" mais igualitárias são as percepções sobre gênero, trabalho
e família. No entanto, a correlação entre valores modernos e práticas
igualitárias só é significativa no caso dos homens. Uma hipótese que pode ser
levantada a partir desse resultado é que as mulheres, independentemente de seus
valores e de suas percepções de gênero, fazem uma avaliação homogênea sobre a
divisão do trabalho doméstico, ou seja, elas percebem igualmente a desigualdade
dessa distribuição de tarefas. As práticas domésticas podem ser medidas
mediante um indicador, denominado "prática", construído com base em um conjunto
de variáveis que discriminam as atividades que os indivíduos realizam em casa e
sua freqüência, já apresentados na primeira parte deste artigo.
É importante observar a diferença por gênero da média de horas semanais gastas
em trabalhos domésticos, de acordo com as respostas dos inquiridos: 17,33 horas
para homens e 37,37 horas para mulheres. Como é de se esperar, o inverso também
ocorre, isto é, quando reportam à média dos cônjuges, essa relação se inverte:
homens dizem que suas esposas gastam 35,59 horas, e mulheres, que seus maridos
gastam 16,00 horas. Já as médias registradas para o índice "prática" repetem o
padrão observado nas variáveis de tempo, pois médias maiores indicam uma
percepção de distribuição das tarefas domésticas mais igualitárias. Os homens
registram médias de 30,57 horas, ao passo que as mulheres, de 24,27 horas. Ou
seja, os homens têm a perspectiva de que as tarefas são mais bem distribuídas,
enquanto as mulheres acreditam que a distribuição seja mais assimétrica e
desfavorável.
Diante do que foi discutido até então e com base nos dados, retomamos a
hipótese de que diferenças nas práticas domésticas estariam vinculadas a
percepções mais ou menos tradicionais sobre o lugar da mulher no mundo do
trabalho e também na esfera privada. Por sua vez, e sem desconsiderar as
observações anteriores, assumimos que a variação nas percepções poderia ser
explicada pelos valores morais; assim, valores morais mais liberais e modernos
levariam a percepções mais igualitárias, e estas à prática de uma melhor
distribuição das tarefas domésticas. Variáveis sociodemográficas explicariam,
por seu turno, os valores morais. Essas hipóteses permitem estruturar um modelo
causal que se aproxima das dimensões analisadas por Norris e Inglehart (2003).
Embora tal modelo esteja longe de esgotar a complexa multicausalidade existente
na construção social do gênero e em suas práticas, ele permite operar com as
distintas dimensões das variáveis incluídas no survey, indo além de sua simples
descrição e tentando compreender as diversas correlações que se estabelecem
entre essas dimensões. O que melhor se ajusta a esse tipo de construção de
hipótese é o modelo de análise de trajetórias (path analysis). Entre as
variáveis sociodemográficas foram incluídas: sexo; idade; escolaridade; zona
residencial urbana/rural; freqüência a culto religioso e condição de ocupação
(trabalha ou não trabalha). As variáveis nominais foram transformadas em
dicotômicas, com valores 0 (zero) e 1 (um). No caso de gênero, o valor 1 (um)
foi atribuído às mulheres; em zona residencial o valor 1 (um) corresponde à
urbana; nas variáveis de trabalho, o valor 1 (um) foi atribuído aos que
trabalham.
A primeira regressão tem como variável dependente a "moral" e como variáveis
independentes: sexo, zona residencial, freqüência religiosa, idade, anos de
estudo e condição de ocupação. Apesar do valor de R quadrado ser baixo, 6,4%, o
modelo é relevante na medida em que os resultados dos coeficientes beta-
padronizados9 apontaram que zona residencial, sexo, freqüência religiosa e
escolaridade têm relação significativa com valores morais no sentido de pessoas
que vivem em áreas urbanas, mais educadas, do sexo feminino e com menor
participação religiosa tendem a ter posições mais modernas no que diz respeito
aos valores morais. O fato de estar inserido ou não no mercado de trabalho não
tem influência sobre as opiniões sobre questões morais, bem como a idade dos
respondentes. A variável de maior impacto é a escolaridade, seguida por sexo,
freqüência religiosa e zona residencial. Condizente com outras pesquisas que
vêm sugerindo certo conservadorismo dos jovens no que diz respeito a valores
morais, constatamos também que ser jovem ou idoso não conta significativamente
para os valores morais que os indivíduos assumem.
Num segundo momento, a hipótese testada foi a relação das variáveis
sociodemográficas e do índice que mensura os valores morais sobre o índice que
reporta percepções sobre gênero, trabalho e família ' nomeado "percepções".
Nesse índice não estão incluídos apenas itens de percepção, mas também aqueles
referentes à opinião. Nesse caso, o valor de R quadrado é 16%, o que pode ser
considerado bom em se tratando de análises sociológicas. Os "valores morais"
representam a maior influência sobre as percepções ' quanto mais igualitários
são eles, mais igualitárias são as percepções. Sexo e escolaridade também
demonstram relação significativa com as percepções, na mesma direção que
apresentaram quando a variável dependente era "valores morais" ' ou seja,
mulheres e pessoas mais escolarizadas tem percepções mais igualitárias. A idade
registrou correlação negativa, isto é, quando cresce o valor da variável idade,
diminui o da variável percepção. Neste caso das percepções de gênero, a idade é
significativa: pessoas mais jovens registram índices mais modernos. O fato de
ser mulher, como era de se esperar, não só tem mais relevância no caso das
percepções do que no de valores morais, mas também apresenta, como variável
independente, o mais elevado grau de significância. Já a religiosidade e a zona
residencial parecem não ter influência direta sobre as percepções, mas
influencia somente os valores morais.
Por último, é apresentado o modelo que inclui como variável dependente o índice
denominado "prática", que se refere à divisão das tarefas domésticas. Quanto
maior o índice, melhor é a percepção ou o julgamento do respondente sobre a
distribuição das tarefas, traduzindo, portanto, a sensação de serem as práticas
mais igualitárias e as tarefas domésticas mais bem divididas entre os cônjuges.
Existe relação entre percepção e prática, o que indica que opiniões
igualitárias se traduzem em atitudes menos conservadoras, sempre considerando
que se está falando da forma como a distribuição do trabalho doméstico é
percebida e sentida pelos respondentes. Contudo, nesse caso, somente a variável
sociodemográfica tem relação significativa com a distribuição do trabalho
doméstico, qual seja, o sexo; e o sentido dessa correlação é negativo. Isto é,
a opinião sobre distribuição das práticas é diretamente associada ao sexo: ser
mulher implica o reconhecimento de que são elas que fazem a maior parte do
trabalho doméstico. Deve-se salientar que esta variável também é pautada em
percepção e opinião, já que os respondentes opinam sobre o quanto fazem na
divisão do trabalho doméstico.
É revelador o fato de que estar ou não inserido em um trabalho pago tem efeito
nulo sobre percepções e práticas. Mas esse fenômeno pode ser explicado pela
alta taxa de inserção dos homens na força de trabalho, que representa
praticamente a totalidade dos respondentes do sexo masculino, influenciando
assim o índice. Por essa razão, a análise não estaria completa sem que os
modelos fossem aplicados somente às mulheres, mesmo porque o interesse desta
pesquisa não é estudar apenas as diferenças de percepção entre homens e
mulheres, mas também as diferenças de percepção entre mulheres com perfis
sociodemográficos distintos. Nesse sentido, é necessário verificar se o fato de
estar ou não inserida no mercado de trabalho tem impacto sobre as percepções,
assim como os diferenciais em educação, geração, área de residência, entre
outros. Ou seja, a pergunta não diz respeito somente ao que explica as
diferenças de opinião e percepção da população como um todo, mas, em especial,
ao que explica as diferenças entre a população feminina, isto é, o que faz com
que as mulheres se diferenciem nessa dimensão das práticas, valores e
percepções sobre seu lugar nas esferas pública e privada.
Novamente, é baixo o R quadrado (6,5%) da regressão que inclui valores morais
como variável dependente e como variáveis independentes sexo, zona residencial,
freqüência religiosa, idade, anos de estudo e condição de ocupação. Ainda
assim, a análise dos beta-padronizados apontou que zona residencial, freqüência
religiosa e escolaridade têm relação significativa com valores morais no
sentido de as mulheres que vivem em áreas urbanas, mais educadas e com menor
participação religiosa tendem a ter posições mais modernas no que diz respeito
a valores morais. O fato de estar inserido ou não no mercado de trabalho
continua não tendo influência sobre as opiniões sobre questões morais, como
havia ocorrido para a população como um todo. Entre as mulheres, a variável de
maior impacto é a escolaridade, seguida de zona residencial e freqüência
religiosa. Nesse primeiro modelo, o resultado para os dados das mulheres foi
similar ao observado para a população em geral. Entretanto, quando a regressão
tem como variável dependente o índice de percepção surgem algumas diferenças. O
R quadrado é de 16%, e a variável "condição na ocupação" mostra ter poder
explicativo: mulheres que estão inseridas no mercado de trabalho têm percepções
mais igualitárias e modernas. Ainda assim, a variável "valores morais" continua
sendo a que tem maior peso no modelo, sendo que idade e escolaridade tem
impacto menor do que inserção na força de trabalho, nesta ordem.
Aqui é relevante destacar que nessa última regressão nenhuma variável tem
relação significativa com a opinião sobre a igualdade ou a desigualdade na
divisão das tarefas domésticas. Essa opinião depende única e exclusivamente de
um fator: o sexo do respondente. Ou seja, esse resultado indica que mulheres de
diferentes níveis educacionais, áreas de residência, gerações, trabalhando fora
ou não, com distintas percepções e valores morais sentem compartilhar uma
experiência comum: a assimetria das tarefas domésticas. Em trabalho mais
detalhado sobre os resultados desta pesquisa (Araújo e Scalon, 2004), mostramos
que, em termos percentuais, havia algumas diferenças entre os índices de
envolvimento das mulheres com o trabalho doméstico de acordo com a condição de
atividade. E isto tem certa lógica. Trabalhar fora tende a implicar em
determinado número de horas disponíveis para essas atividades. Porém, o que
esta parte da análise mostra é que tal fator não se constitui em condição
significativa e suficiente para mudar substancialmente as posições de ambos os
sexos em relação ao trabalho doméstico. Por sua vez, como o índice "percepção"
mostrou-se significativo para o total da população, podemos concluir que esse
efeito se deve à opinião dos homens; ou seja, homens com percepções e opiniões
mais igualitárias tendem a perceber suas práticas domésticas também como mais
igualitárias.
É ainda relevante analisar a relação entre o número de horas semanais que
homens e mulheres responderam dedicar ao trabalho doméstico e as percepções dos
entrevistados sobre fazer a parte justa nas tarefas domésticas, conforme mostra
o Quadro_2 (Anexo_2).
Nesse ponto, homens e mulheres estão sendo analisados separadamente. Assim, a
análise de variância mostra que existe uma associação significativa entre as
horas de fato dedicadas ao trabalho doméstico e o sentido de justiça da
participação neste. Isto é, homens que reportam fazer mais do que o justo, de
fato, dedicam mais horas do que aqueles que dizem fazer o justo, e, estes, mais
do que os que reconhecem fazer menos que o justo. O que chama atenção é a
discrepância nas médias de horas trabalhadas entre os sexos ' as mulheres
dedicam às tarefas domésticas, em média, mais do que o dobro de horas que os
homens ' isto ocorre entre todos os três grupos, a saber, que fazem mais do que
o justo, o justo e menos do que o justo.
É interessante observar que o número de mulheres que reportam fazer mais ou o
justo é bem mais elevado do que o de homens. De fato, o número de mulheres que
diz fazer "menos do que o justo" é bastante reduzido ' quinze casos', da mesma
forma, o número de homens que diz fazer "mais do que o justo" é pequeno ' 31
casos. Quando considerado o número efetivo de horas dedicadas ao trabalho
doméstico, verifica-se que os homens que acreditam fazer "mais do que o justo"
trabalham, em média, menos horas do que as mulheres que reconhecem fazer "menos
do que o justo", apesar de devermos ter cuidado ao analisar esses dados, uma
vez que o número de casos é pequeno. De qualquer maneira, as médias de horas já
indicavam a discrepância entre a dedicação das mulheres e dos homens às
atividades domésticas. Mas os resultados também apontam certa discrepância
entre o que dizem fazer efetivamente e o sentido que atribuem a essa
responsabilidade. Isto porque, embora reconheçam trabalhar muito mais, não
predomina entre as mulheres um sentido de injustiça, o que revela ainda uma
forte naturalização sobre suas responsabilidades domésticas. Quanto aos homens,
embora reconheçam fazer muito menos e a proporção dos que reportam fazer "menos
que o justo" seja bem maior do que entre as mulheres, o que indica algum olhar
crítico, o fato é que o sentido que predomina entre eles é o de justiça, o que
também parece revelar a permanência de um ideal de provedor no qual as
atividades domésticas entram como ajuda e auxílio e não como dado constitutivo
da reprodução de sua vida.
Por fim, procuramos analisar também as respostas sobre a freqüência com que os
respondentes dizem discordar de seus cônjuges sobre a divisão do trabalho
doméstico.10 As respostas reforçam a suspeita da discrepância acima mencionada,
dada a baixa freqüência de conflitos registrados: 78,8% das mulheres e 81,2%
dos homens responderam que nunca ou raramente têm conflitos sobre a divisão das
atividades domésticas.11 É interessante observar que mesmo entre as mulheres
que se identificaram como ativas 77,8% dizem que quase nunca ou raramente têm
conflitos com o cônjuge. Embora esse dado aponte para um fraco grau de tensão,
os dados relacionados com número de horas, distribuição de atividades e
avaliação de justiça permitem considerar a possibilidade de que essa tensão,
motivada pelas respostas anteriores sobre percepções e o crescente envolvimento
feminino com o trabalho pago, seja mais elevada, mesmo quando não se traduz em
conflitos explícitos.
Conclusão
Como melhorar a relação entre vida familiar e trabalho? Essa foi uma das
perguntas feitas aos inquiridos e que comportava resposta por ordem de
preferência em relação a um conjunto de estratégias. Homens e mulheres
responderam, como primeira opção, poder trabalhar mais para ganhar mais
dinheiro. A escolha parece apontar para uma característica mais pragmática e
monetarizada que a vida social vem adquirindo nos últimos tempos e para o
modelo fluido, de necessidade de satisfação imediata como elemento associado à
satisfação em geral, nos moldes sugeridos por Bauman (1994). No caso do Brasil,
há ainda que se considerar a precariedade das condições de vida que marca o
cotidiano de boa parte da população. Mas o interessante é que as primeiras
opções feitas pelas mulheres, que se assemelham, no tipo de atividade, às
opções dos homens, estão relacionadas ao trabalho e, em seguida, ao lazer. Com
efeito, nas diferentes situações as respostas, particularmente das mulheres,
apontaram para a atividade de trabalho pago como um dado constitutivo e também
valorizado como construção identitária da vida social.
A análise de multivariância, com base no modelo de trajetória, indica que
determinados fatores socioeconômicos contribuem para valores morais e
percepções mais igualitárias. A escolaridade importa na formação de valores
morais mais modernos. A análise sobre as percepções mostrou que, em geral, as
mulheres tendem a ter posições ligeiramente mais igualitárias do que os homens
quanto a) ao papel do trabalho na realização profissional; b) à capacidade de
exercer maternidade fora do casamento, c) ao próprio papel do casamento na
construção da felicidade; e d) à sexualidade. Mas nem todas as mulheres pensam
do mesmo modo. Assim como para a população geral, ser de zona urbana, ter fraca
religiosidade e elevada escolaridade contam em se tratando de valores mais
modernos. O trabalho pago influencia na construção dos valores e das
percepções. Se em relação aos homens a condição de atividade não altera muito
seus valores, entre as mulheres percebemos que, além da escolaridade, a
condição de ocupação ' estar ou não inserida no mercado de trabalho ' revela a
importância da atividade de trabalho pago como elemento de redefinição de
valores. Em geral, mulheres que trabalham têm percepções mais críticas acerca
das práticas tradicionais e apresentam opiniões mais favoráveis à igualdade de
gênero. De outra parte, em relação ao que definimos como "práticas", os
resultados corroboram pesquisas feitas em outros países que apontam para uma
fraca relação entre percepções e práticas e entre condição de atividade e
práticas. As opiniões tendencialmente mais igualitárias não se traduzem em
práticas mais compartilhadas por parte dos homens. É certo que há algum
condicionamento, na medida em que o tempo dedicado ao trabalho doméstico
aumenta um pouco quando ambos trabalham, mas não de forma significativa. A
dimensão do gênero surge como extremamente relevante, e o sexo determina os
limites das práticas. Em outras palavras, a divisão sexual do trabalho
doméstico e as atribuições de homens e mulheres relacionadas com o trabalho de
reprodução cotidiana da vida social permanecem como um dos aspectos menos
permeáveis às mudanças que marcam a sociedade contemporânea.