Arando na profilaxia das infecções urinárias recorrentes: revisão baseada na
evidência
INTRODUÇÃO
As infecções do tracto urinário (ITU) recorrentes na mulher têm um grande
impacto em termos de morbilidade e custos em saúde, pelo que é fundamental a
sua prevenção.1 As cistites agudas não complicadas são frequentes em mulheres
adultas e aproximadamente um terço destas apresenta ITU recorrentes, definidas
como a existência de, pelo menos, duas infecções durante seis meses ou três
episódios durante um ano.2
Diferentes abordagens têm sido propostas para a prevenção das ITU recorrentes,
incluindo antibioterapia profiláctica e terapêuticas não farmacológicas
(Lactobacillus, probióticos, vacinas e estrogénios intravaginais).2 A emergente
resistência aos antibióticos acentua a necessidade de terapêuticas
profilácticas alternativas, contextualizando o interesse crescente pelo arando
(cranberry, vaccinium macrocarpon). Trata-se de um fruto vermelho abundante na
costa leste dos Estados Unidos da América, usado com fins medicinais desde o
século XVII e objecto de estudo, desde há várias décadas, na prevenção da
recorrência das ITU.1 Em Portugal, estão disponíveis vários produtos que
incluem o arando na sua composição.
O arando é composto por água, ácidos orgânicos, glicose, vitamina C, frutose e
um tipo específico de flavonóides, as proantocianidinas, um subtipo de taninos.
Actualmente, considera-se que o seu mecanismo de acção na profilaxia das ITU se
deve à capacidade das proantocianidinas e da frutose inibirem a adesão das
fímbrias dos uropatogénios (principalmente da Escherichia coli) às células
uroepiteliais e, assim, impedirem a colonização e o crescimento bacteriano.3-4
O objectivo deste estudo é rever a evidência disponível sobre a eficácia do
arando na profilaxia da recorrência das ITU em mulheres adultas saudáveis.
MÉTODOS
Realizou-se uma pesquisa nas bases de dados MEDLINE, UpToDate, Clinical
Evidence, Bandolier, EBM Online, ACP Journal Club, TRIP Database, InfoPOEMs,
The Cochrane Library, DARE, Guidelines Finder, National Guideline
Clearinghouse, Canadian Medical Association Infobase, USPSTF, NICE e Canadian
Task Force on Preventive Health Care, de sistemas, meta-análises, revisões
sistemáticas, normas de orientação clínica e ensaios clínicos aleatorizados e
controlados, publicados entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2010, nas línguas
inglesa, portuguesa e espanhola. Foram utilizados os termos MeSH, Vaccinium
macrocarpon e Urinary tract infections, e a palavra Cranberry.
Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão:
• População: mulheres saudáveis, com idade igual ou superior a 18 anos, com ITU
recorrentes;
• Intervenção: arando (nas diferentes formulações disponíveis);
• Comparação: placebo ou outros métodos profilácticos de ITU;
• Outcome: diminuição do número de episódios de ITU.
Foram excluídas mulheres com factores de risco para infecções urinárias
recorrentes mais frequentes ou complicadas, como gravidez, Diabetes Mellitus,
imunossupressão, anomalia anatómica ou funcional do tracto urinário,
algaliação, infecção urinária activa e hospitalização, manipulação do tracto
urinário ou antibioterapia recentes.
Para avaliação da qualidade dos estudos e atribuição de força de recomendação
(FR) foi utilizada a escala Strength of Recommendation Taxonomy da American
Family Physician (Quadro_I).5
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RESULTADOS
Com a pesquisa inicial foram identificados 127 artigos, dos quais nove cumpriam
os critérios de inclusão: um sistema,6 três revisões sistemáticas,7-9 um ensaio
clínico10 e quatro normas de orientação clínica.11-14
Na revisão do Uptodate, de 2009, sobre infecções recorrentes do tracto
urinário,6 o sumo de arando é referido como sendo uma estratégia profiláctica
eficaz, embora a sua recomendação seja limitada pela inconsistência quanto à
duração da terapêutica e às diferentes formulações e doses de arando utilizadas
nos vários estudos, pelo que lhe foi atribuída uma Força de Recomendação B
(Quadro_II).
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As três revisões sistemáticas foram classificadas com um Nível de Evidência 2
por levantarem questões relativamente às disparidades metodológicas dos vários
estudos analisados. No entanto, todas afirmaram que existe evidência a favor da
redução da taxa de recorrências/ano com a utilização de compostos de arando na
prevenção de ITU recorrentes em comparação com placebo ou Lactobacillus (Quadro
III).7-9
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Segundo a revisão da Bandolier, de 2007, que incluiu quatro estudos com um
total de 779 participantes (85% mulheres, com média de idades de 58 anos), o
arando (sumo ou comprimidos) mostrou efeito na prevenção da recorrência de ITU
(RR=0,5 IC 95%; 0,40-0,80; NNT=14). A duração dos ensaios analisados variava
entre seis e doze meses e as doses de arando entre 50 e 350 ml de sumo ou
comprimidos com 1:30 partes de sumo concentrado. Porém, nenhum dos estudos
justificou o motivo pelo qual foram definidas as dosagens utilizadas. A
posologia variou entre toma diária única ou múltiplas tomas (Quadro_III).7
A revisão da Cochrane, de 2008, incluiu 10 estudos e um total de 1049
participantes (mulheres entre os 21 e os 72 anos), utilizando doses e duração
de tratamento semelhantes às analisadas pela Bandolier, e avaliou a eficácia do
sumo ou comprimidos de arando. Destes ensaios, apenas dois apresentavam
características populacionais que correspondiam às elegíveis para a presente
revisão. A meta-análise destes estudos permitiu encontrar um RR de 0,61 (IC
95%; 0,40-0,91) associado ao uso de arando em comparação com placebo ou bebidas
contendo Lactobacillus (NNT=31). Não se verificou diferença entre as
formulações constituídas por sumo ou comprimidos. Concluiu-se haver uma redução
significativa da incidência de ITU após 12 meses de tratamento com arando
(Quadro_III).8
A revisão sistemática de quatro ensaios, elaborada por Guay em 2009, engloba
uma amostra de 330 mulheres com idades entre os 21 e os 75 anos. Para além das
formulações referidas nas outras revisões sistemáticas, incluiu um estudo com a
posologia de duas tomas diárias de comprimidos com 200 mg durante três meses.
Esta revisão concluiu que o arando está associado a uma redução de 35% na taxa
de recorrências ao ano (NNT=3). Contudo, não é recomendada a utilização do
arando por falta de consenso relativamente à dosagem e formulação preconizadas
e algumas limitações metodológicas dos estudos (Quadro_III).9
O ensaio clínico de Mc Murdo et al., de 2009, foi o único estudo dos analisados
que comparou a utilização do arando com a antibioterapia profiláctica. Este
estudo incluiu 137 mulheres, com idade igual ou superior a 45 anos (média de 63
anos) e história de duas ou mais ITU recorrentes nos últimos 12 meses. A
população do estudo foi dividida em dois grupos, um submetido a tratamento com
500 mg de arando e outro submetido a trimetoprim 100 mg, um vez por dia,
durante 6 meses ou até ao primeiro episódio de ITU. Verificou-se recorrência da
ITU em 36,2% das doentes submetidas ao tratamento com arando, em comparação com
20,6% de recorrência no grupo do trimetoprim, sendo esta diferença não
estatisticamente significativa (p=0,084). Não se registou igualmente diferença
significativa no tempo para a primeira recorrência. Este estudo concluiu que o
arando poderá ser menos eficaz do que o trimetoprim na redução da incidência de
ITU sintomáticas. Tratou-se de um ensaio clínico com algumas limitações
metodológicas, nomeadamente sem dupla ocultação descrita, pelo que foi
classificado com Nível de Evidência 2 (Quadro_IV).10
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As forças de recomendação atribuídas pelas quatro normas de orientação clínica
analisadas foram convertidas para a taxonomia SOR.5 As normas mais antigas, da
Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada, de 2004,11 e da Scottish
Intercollegiate Guidelines Network, de 2006,12 foram classificadas com Força de
Recomendação A. A conversão da classificação das normas mais recentes, da EBM
Guidelines, em 2009,13 e da European Association of Urology, em 2010,
correspondeu a Força de Recomendação B (Quadro_V).14
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A Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada refere que as mulheres
com ITU recorrentes devem ser informadas de que o consumo de sumo de arando
puro diminui o risco de ITU, em oposição às bebidas contendo arando na sua
composição (Quadro_V).11
A norma baseada na evidência publicada pela Scottish Intercollegiate Guidelines
Network recomenda que mulheres adultas com infecções recorrentes do tracto
urinário sejam aconselhadas a ingerir suplementos de arando, de modo a diminuir
a frequência das recorrências. Os autores referem ainda que mulheres
hipocoaguladas com varfarina deverão evitar ingerir arando, a não ser que os
benefícios sejam superiores aos riscos, com uma Força de Recomendação B (Quadro
V).12
A EBM Guidelines, de 2009, afirma que o sumo de arando pode reduzir o número de
ITU sintomáticas ao longo de um período de 12 meses, justificando esta
recomendação essencialmente com base nas conclusões da Cochrane de 2008 (Quadro
V).13
A European Association of Urologyactualizou, em 2010, a sua norma de orientação
clínica baseada na evidência, onde reforça a possibilidade de utilizar métodos
alternativos aos antibióticos, como imunoterapia com lisados bacterianos,
probióticos, acidificação urinária e suplementação com arando. Os autores
consideram, pela análise dos artigos em que se baseiam, que o número de
infecções do tracto urinário pode ser diminuído com o consumo de sumo de arando
(Força de Recomendação B) na dose mínima de 36 mg/dia de proantocianidinas.
Ainda assim, esta alternativa parece não ser tão eficaz quanto os antibióticos
profiláticos, embora não tenham sido analisado estudos que comparassem
directamente estas duas abordagens (Quadro_V).14
CONCLUSÕES
O arando mostrou-se eficaz na redução da recorrência das ITU em mulheres
adultas sem patologias associadas (Força de Recomendação B). Contudo, a
evidência científica que suporta a eficácia do arando não é suficientemente
robusta. Para isso contribuem algumas limitações da qualidade dos estudos, pois
apresentam amostras reduzidas com elevadas taxas de desistência. Paralelamente,
existe alguma heterogeneidade no desenho dos estudos, com utilização de
dosagens díspares e diferentes vias de administração ou formulações.
O potencial impacto desta recomendação na prática clínica torna premente a
realização de novos estudos, desenhados com metodologias mais correctas e
incluindo um maior número amostral, que comparem directamente as diferentes
dosagens de arando e as várias formulações e que avaliem segurança,
tolerabilidade e duração adequadas para o tratamento profiláctico.
Ainda assim, existe um benefício potencial dos produtos de arando na profilaxia
das ITU recorrentes, especialmente como alternativa para as mulheres saudáveis
que preferem evitar ou que não respondem à antibioterapia profiláctica.