Disfonia crónica numa criança
INTRODUÇÃO
A doença do RGE ocorre apenas quando o RGE se torna sintomático. Considera-se
normal até cinquenta eventos de refluxo esofágico por dia e até quatro eventos
de refluxo laríngeo por dia.1 Os sintomas na idade pediátrica variam com a
idade, atingindo uma prevalência de 1,8% a 8,2%.2 Durante o primeiro ano de
vida, o RGE é frequente, porque o esófago é curto e intra-abdominal e o
esfíncter esofágico inferior é imaturo.3 Na idade pré-escolar torna-se menos
frequente, manifestando-se sobretudo por regurgitação intermitente. Na idade
escolar e adolescência, os sintomas são semelhantes aos da idade adulta: azia,
regurgitação, náuseas e epigastralgia. O RGE aumenta o risco de laringite
(OR=2,6), sinusite (OR=2,3), pneumonia (OR=2,3), bronquiectasias (OR=2,3) e
asma (OR=1,9).2
O RLF é o refluxo do estômago para a laringofaringe, originando sintomas da
laringe e da hipofaringe. Pode ser considerado uma manifestação extra-esofágica
do RGE, no entanto é fisiopatologicamente diferente deste; o RGE tem origem
numa disfunção do esfíncter esofágico inferior, enquanto o RLF deve-se a uma
disfunção do esfíncter esofágico superior. O RLF manifesta-se por disfonia
(71%), tosse (51%), globo faríngeo (47%), pigarro (42%) e disfagia (35%).1 Pode
originar edema, nódulos, granulomas e pólipos das cordas vocais, pseudosulcus,
estenose subglótica, laringoespasmo, edema da laringe e hiperplasia da amígdala
lingual.1,4 O diagnóstico faz-se através da clínica e das alterações
encontradas na laringoscopia.1A abordagem terapêutica inclui alterações da
dieta (dieta polifraccionada; última refeição pelo menos três horas antes de
deitar;5-7 abolição de cafeína, teína, álcool, chocolate, menta, citrinos,
tomate, gorduras, comida picante, bebidas gaseificadas e alimentos com
temperaturas extremas),5,8,9 alterações do comportamento (evitar o exercício
nas duas horas que se seguem a uma refeição; não elevar o tom de voz; não usar
roupa apertada; deixar de fumar; elevar a cabeceira da cama cerca de 10 a 15
cm)5-7 e fármacos (inibidor da bomba de protões ' IBP,1,10,11 antagonista dos
receptores H21,12,13 e antiácidos1). O tratamento de primeira linha do RLF é a
supressão ácida com IBP, mas de forma mais agressiva e mais prolongada
comparativamente ao RGE,10,11 sendo necessários pelo menos seis meses para o
desaparecimento das lesões e do edema da laringe.10,14 No entanto, alguns
estudos demonstram que a sua eficácia não é significativamente superior à do
placebo.6,15,16 A mesma controvérsia se verifica quanto à eficácia dos
antagonistas dos receptores H2, aparentemente não superiores aos IBP.17,18,19
DESCRIÇÃO DO CASO
M é uma menina de seis anos, caucasiana, a frequentar o primeiro ano de
escolaridade, segunda numa fratria de dois. Pertence a uma família nuclear na
fase IV do ciclo de Duvall e encontra-se no terceiro nível da classificação de
Graffar. Os seus antecedentes pessoais e familiares são irrelevantes para o
caso que se apresenta.
M recorreu a uma consulta com o seu MF para a realização do exame global de
saúde dos cinco/seis anos. O MF detectou disfonia. A mãe de M referiu que a voz
da sua filha «foi sempre assim» e que não tinha notado outros sintomas
associados, nomeadamente do foro respiratório. A menina foi referenciada à
consulta de ORL, onde efectuou uma nasofaringolaringoscopia. Na sequência foi-
lhe detectado hipertrofia das adenóides, edema da corda vocal direita e sulcus
glottidis(uma depressão nas cordas vocais), tendo sido diagnosticado RLF.
M foi aconselhada a modificar os seus hábitos alimentares (sobretudo
polifraccionar as suas refeições, reduzir o consumo de bebidas gaseificadas e
de chocolate) e comportamentais (essencialmente não elevar o tom de voz). Foi
medicada com esomeprazol (uma saqueta de 10 mg em jejum) e iniciou
concomitantemente sessões semanais de terapia da voz.
Quatro meses depois, a disfonia estava menos acentuada. A
nasofaringolaringoscopia mantinha as alterações já detectadas anteriormente e
ainda edema e nódulos em ambas as cordas vocais. M manteve-se sob as mesmas
medidas farmacológicas e não-farmacológicas, tendo sido reavaliada após cinco
meses. Nessa altura, estava completamente assintomática e objectivava-se apenas
hipertrofia das adenóides. Desta forma, suspendeu o esomeprazol e a terapia da
voz, estando já há sete meses assintomática, mas mantendo a avaliação semestral
em ORL.
COMENTÁRIO
A disfonia é pouco reconhecida pelos doentes pediátricos, pelos seus pais e até
mesmo pelos médicos. A sua etiologia é variada, incluindo o RLF/RGE. A disfonia
poderá ter sido devida exclusivamente ao RLF ou ser a única manifestação do
RGE. O diagnóstico de RLF baseou-se na disfonia e nos achados da
nasofaringolaringoscopia (edema, sulcus glottidis e nódulos das cordas vocais).
Não foi realizada estroboscopia para esclarecimento do sulcus glottidis, porque
foi interpretado como o pseudosulcus encontrado frequentemente no RLF. O
tratamento adequado incluiu o IBP, medidas profiláticas não farmacológicas e
terapia da voz. Após nove meses, houve remissão completa dos sintomas e das
alterações estruturais das cordas vocais.
Não detectar a disfonia atrasa o diagnóstico e o tratamento do RLF/RGE,
aumentando as suas complicações e piorando o prognóstico.