Registo oncológico de base populacional em Portugal: reflexão sobre a situação
atual e perspetivas futuras
REGISTOS ONCOLÓGICOS
Diversos países, incluindo Portugal (1-2), têm desenvolvido programas de saúde
pública ' Planos Oncológicos ' com o objetivo de reduzir a incidência e a
mortalidade por doenças oncológicas e melhorar a qualidade de vida dos doentes
com cancro, através da implementação sistemática de estratégias baseadas na
melhor evidência científica para prevenção, deteção precoce, tratamento e
prestação de cuidados paliativos, com equidade e fazendo o melhor uso possível
dos recursos disponíveis (3). As atividades de vigilância, quando capazes de
fornecer atempadamente informação válida sobre os determinantes e diversos
indicadores de carga de doença oncológica, revestem-se da maior importância no
apoio aos esforços de prevenção e controlo do cancro, desde o desenho dos
planos oncológicos à sua monitorização e avaliação. O registo oncológico é uma
peça essencial neste contexto, podendo ser definido como o processo continuado
de recolha sistemática de dados relativos a novos casos de cancro com o
objetivo de avaliar e controlar o impacto das doenças oncológicas na comunidade
(4).
Os registos de cancro de base populacional têm como objetivo registar todos os
casos incidentes numa determinada população, frequentemente correspondendo a
uma área geográfica bem delimitada. De uma forma geral privilegiam a
exaustividade do registo e a validade da informação, em detrimento da
quantidade de informação recolhida. Na Figura_1 é apresentada a cronologia da
criação e funcionamento dos registos de cancro de base populacional em
Portugal. Os registos de base hospitalar, por sua vez, registam casos
diagnosticados ou tratados nos respetivos hospitais (podendo ser valorizados
nas análises de forma distinta, de acordo com a natureza do contacto desses
doentes com a instituição (4)), independentemente dos seus locais de residência
ou outras características sociodemográficas. Deste modo, o facto de não ser
possível definir claramente a população de onde provêm os casos registados
impossibilita interpretações dos dados a um nível populacional. Contudo, a
recolha de informação para caracterizar os tratamentos efetuados e os seus
resultados está facilitada, pelo que estes registos estão especialmente
vocacionados para responder a objetivos relacionados com a avaliação do
desempenho da instituição nos cuidados prestados a doentes oncológicos e com o
apoio à administração hospitalar, para além de contribuírem com informação para
os registos de base populacional.
OS PRIMEIROS REGISTOS DE CANCRO DE BASE POPULACIONAL EM PORTUGAL
Entre 1956 e 1961 foram desenvolvidas atividades de vigilância das doenças
oncológicas em Lourenço Marques (atualmente Maputo, Moçambique), que podem
considerar-se a primeira experiência de registo de cancro de base populacional
em território Português (5-6). Em Portugal Continental o registo de cancro de
base populacional teve início em 1976, com a implementação do Registo
Oncológico de Viana do Castelo (7-8); também no norte do país, em 1981, foi
implementado outro registo de base populacional em Vila Nova de Gaia (Registo
Oncológico de Vila Nova de Gaia), tendo sido o primeiro a ter os seus dados
apresentados na publicação de referência Cancer Incidence in Five Continents
(CI5) (Tabela_1).
Tabela_1
REGISTOS ONCOLÓGICOS REGIONAIS (ROR)
Os Registos Oncológicos Regionais (ROR) de Lisboa (ROR-Sul), Porto (RORENO) e
de Coimbra (ROR-Centro) foram criados, nos respetivos Centros Regionais do
Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, através da Portaria n.º
35/88 de 16 de Janeiro. Apesar dos primeiros registos hospitalares de cancro
portugueses terem sido criados a partir de 1978 (9), a Portaria que criou os
ROR determinou também a criação de um registo oncológico em cada hospital,
central ou distrital, com a obrigação de recolher e remeter aos ROR da sua área
geográfica dados relativos a doentes com cancro.
Os ROR cobrem a quase totalidade do país há mais de 20 anos. Desde 2007, com a
criação do Registo Oncológico da Região Açores (RORA) que abrange também a
região autónoma dos Açores (10), existem registos de base populacional em todo
o território nacional. A Grécia e o Luxemburgo não têm registos de base
populacional, Espanha, França, Itália ou Suíça não têm cobertura nacional e em
diversos países europeus a cobertura nacional é mais recente que em Portugal
(1), pelo que no contexto europeu Portugal apresenta uma situação privilegiada
em termos de cobertura e antiguidade dos registos oncológicos. Contudo, o atual
contributo dos ROR para o planeamento, monitorização e avaliação das atividades
de prevenção e controlo das doenças oncológicas, apesar de melhorias
substanciais nos anos mais recentes, observadas especialmente no ROR-Sul e no
RORENO, está ainda aquém do seu potencial.
INFORMAÇÃO PRODUZIDA PELOS ROR
A disponibilidade de estimativas de incidência em Portugal e as diferenças
entre registos são ilustradas, numa perspetiva geral, na edição do PNS em Foco
dedicada às doenças oncológicas(11) em que se descrevem as taxas de incidência
de cancro que foram disponibilizadas por cada um dos ROR para esta publicação.
Relativamente ao ROR-Sul, não são apresentados dados referentes à maior parte
dos anos, refletindo o reconhecimento de limitações na qualidade da informação
recolhida nesse período. As diferenças na evolução das taxas de incidência
entre as três regiões, com a região centro a apresentar oscilações acentuadas
em curtos períodos de tempo, possivelmente relacionadas com variações na
qualidade da informação, requerem investigação mais aprofundada. Algumas
publicações do ROR-Centro referem explicitamente que não foi possível incluir
os casos registados em determinados hospitais, o que constitui uma clara
limitação, certamente potenciada pela recente tendência em privilegiar a
publicação de dados definitivos muito pouco tempo após a sua recolha ' em
Dezembro de 2010 já tinham sido publicados os dados referentes a 2009 (12) '
com potencial prejuízo da exaustividade do registo (13). Por outro lado, a
discussão da qualidade da informação disponibilizada pelos registos é, de um
modo geral, insuficiente e realizada de forma distinta nas publicações de cada
um dos ROR (12, 14-15).
A reunião dos dados de cada uma das regiões foi efetuada em apenas três
publicações, com a designação de Registo Oncológico Nacional, referentes a
1993 (16), 2001 (17) e 2005 (18), que apresentam resultados de incidência de
âmbito nacional. Contudo, as diferenças regionais nas estimativas ou na
qualidade da informação não são discutidas, reduzindo substancialmente a
utilidade de uma publicação desta natureza. A publicação de 2005, em especial,
apresenta limitações importantes, dificilmente aceitáveis a este nível,
designadamente as que resultam da ausência de uma descrição detalhada dos
métodos ou de indicadores de qualidade. Por exemplo, o reduzido número de
carcinomas do colo do útero in situ, comparativamente com os carcinomas
invasivos, só é explicável por uma assumida falta de exaustividade do seu
registo, pelo que uma correta leitura deste resultado só será possível com
enquadramento e discussão adequados, e a sua utilidade em epidemiologia
descritiva do cancro é praticamente nula. O facto de os autores de uma
publicação sobre incidência e mortalidade por cancro na Europa em 2006 terem
estimado a incidência em Portugal com base na informação de mortalidade das
estatísticas vitais portuguesas e na razão incidência/mortalidade observada em
Espanha, apesar de neste país haver apenas uma cobertura parcial do território
por registos de base populacional (19), ilustra de forma eloquente o modo como
a utilidade e operacionalidade da informação então produzida em Portugal era
percebida internacionalmente. É de referir que a publicação GLOBOCAN referente
a 2008 (20) já optou pela informação produzida pelos registos portugueses,
refletindo os progressos que se têm verificado nos últimos anos.
A publicação de referência CI5 impõe critérios de qualidade exigentes e na sua
edição mais recente incluiu pela primeira vez dados de incidência produzidos
pelos ROR portugueses (CI5-IX) (21). A ausência de informação dos ROR na maior
parte dos volumes do CI5 (Tabela_1) realça as limitações da informação
disponível para Portugal, mas a recente publicação dos dados de incidência
produzidos pelo RORENO e pelo ROR-Sul representa uma evolução qualitativa digna
de referência, e permite aceder a indicadores de qualidade e a aspetos
relacionados com o funcionamento dos registos que, habitualmente, não são
apresentados nas respetivas publicações regulares.
Relativamente à produção de estimativas de sobrevivência de base populacional,
o ROR-Sul participou nos projetos EUROCARE-3 (22) e EUROCARE-4 (23) e no estudo
CONCORD (24). O ROR-Sul (25) e o RORENO (26) produziram publicações que
comparam a sobrevivência dos doentes com os cancros mais frequentes nas
diferentes regiões das respetivas áreas de influência, que permitem uma
primeira abordagem às desigualdades regionais nestes indicadores de carga de
doença oncológica. Também estes estudos refletem uma evolução no sentido da
consecução de objetivos mais ambiciosos e consentâneos com estruturas da
natureza dos ROR.
O QUE SE DEVE ESPERAR DOS REGISTOS DE CANCRO DE BASE POPULACIONAL?
É amplamente reconhecido que os registos de cancro constituem ferramentas
essenciais para o planeamento, monitorização e avaliação das atividades de
prevenção e controlo das doenças oncológicas. A utilidade da informação
produzida, contudo, depende muito claramente da sua qualidade e o potencial
para que se atinjam padrões de qualidade elevados dificilmente se poderá
dissociar dos recursos técnicos disponíveis, de um esforço contínuo para
melhorar o relacionamento com as diferentes fontes de informação, e da
utilização dos dados reunidos. Estas são condições essenciais para fazer face à
complexidade do desafio que é registar corretamente todos os casos de
neoplasias que ocorrem de novo numa determinada população, e para identificar e
corrigir limitações dos procedimentos adotados e da informação produzida.
Da mesma forma que os objetivos devem ser ajustados à maturidade de cada
registo e aos recursos colocados à sua disposição, os processos adotados em
cada registo, ou o peso relativo dos diferentes elementos de um conjunto de
processos universalmente reconhecido, têm que ser definidos caso a caso, tendo
em conta as especificidades locais. Dificilmente se poderá aplicar uma fórmula
universal para definir a forma de funcionamento mais adequada para cada registo
oncológico.
A capacidade de contribuir para o planeamento, monitorização e avaliação das
atividades de prevenção e controlo do cancro, não se consegue unicamente com a
produção de dados de incidência. O peso de uma estrutura capaz de produzir essa
informação com qualidade dificilmente se consegue justificar se for esse o
único outcome de um registo de cancro de base populacional. Contudo, o registo
dos casos incidentes de cancro de forma completa e válida é indispensável e
condiciona a consecução dos restantes objetivos.
É também essencial que a informação seja produzida atempadamente, sob pena da
sua desatualização limitar a utilidade dos dados. Contudo é fundamental que se
estabeleça um compromisso adequado entre o momento da divulgação dos resultados
e a exaustividade do registo, de modo a evitar que a celeridade na divulgação
de dados atualizados leve a uma subestimação excessiva da incidência (13).
O CONTRIBUTO DA COORDENAÇÃO NACIONAL PARA AS DOENÇAS ONCOLÓGICAS (CNDO) PARA A
PROMOÇÃO DO REGISTO ONCOLÓGICO DE BASE POPULACIONAL
A CNDO definiu o registo oncológico como uma prioridade no âmbito das
atividades de prevenção e controlo das doenças oncológicas e desenvolveu
esforços para dotar os ROR de meios adequados para produzir informação robusta
relativamente aos diferentes indicadores de carga de doença oncológica, em
tempo oportuno, de modo a informar os esforços de planeamento, e orientar,
monitorizar e avaliar atividades de prevenção e controlo. Neste contexto, a
promoção da colaboração de qualidade entre os ROR foi definida como um elemento
essencial de uma estratégia geral de melhoria de qualidade dos registos
oncológicos.
Considerou-se que o desenvolvimento dos ROR nos termos propostos se constitui
essencialmente como um desafio técnico, e não meramente administrativo, que
depende, entre outros fatores, da existência de uma equipa estável e com
competência técnica adequada. Estimou-se que, apesar da necessidade de
adequação às especificidades de cada ROR, a estrutura básica indispensável ao
normal funcionamento do registo deveria envolver uma equipa correspondente a 4
a 5 elementos em tempo integral, incluindo um epidemiologista, um estatístico,
e elementos com competências para o desempenho de funções técnicas nas
atividades do registo e apoio secretarial. Sendo os Institutos de Oncologia os
responsáveis pela coordenação e gestão dos ROR, considerou-se que seria
pertinente consignar nos respetivos contratos-programa uma dotação orçamental
destinada a cobrir os encargos decorrentes da gestão e funcionamento dos ROR.
Foi assim que, por iniciativa da CNDO que mereceu acolhimento favorável da
tutela, a partir de 2008, os contratos-programa dos Institutos de Oncologia
passaram a incluir um anexo referente à atividade dos ROR, em que se
estabelecia a verba a atribuir, assim como um conjunto de indicadores de
produção. Para a contratualização foram definidos objetivos que globalmente
visavam a demonstração da melhoria da exaustividade e qualidade do registo, a
rentabilização dos recursos materiais e humanos e a promoção da visibilidade da
atividade de registo entre os envolvidos no processo. Constatou-se, contudo,
que não houve estrita vinculação a esses objetivos, persistindo uma larga
margem de progressão, em particular no que diz respeito à colaboração dos ROR
no sentido da melhoria substantiva da qualidade e utilização da informação
produzida.
Deste modo, parece ser essencial evoluir no sentido da criação de uma estrutura
que centralize a análise dos dados reunidos pelos três ROR e produza relatórios
de âmbito nacional, com capacidade para interpelar criticamente os registos
relativamente à qualidade e utilidade da informação produzida e contribuindo
para otimizar o uso de recursos e harmonizar procedimentos. Sem prejuízo da
autonomia de cada registo relativamente às opções de natureza técnica efetuadas
e à utilização dos dados produzidos a nível regional, a criação de uma
estrutura nacional, com a participação e colaboração estreita dos três ROR,
parece ser a ferramenta essencial para monitorizar as atividades de registo
oncológico e indexar o seu financiamento a indicadores que reflitam o percurso
no sentido dos objetivos traçados.
CONCLUSÕES
A cobertura de todo o país por registos de cancro de base populacional e a
antiguidade dos ROR colocam Portugal numa situação privilegiada relativamente à
disponibilidade destas estruturas de vigilância, devendo ser explorado o seu
potencial para apoiar as atividades de prevenção e controlo das doenças
oncológicas.
Embora sejam de registar progressos na qualidade e quantidade de informação
produzida pelos registos de base populacional, existe ainda um importante
caminho a percorrer, no sentido de se conseguir informação rigorosa, exaustiva
e diferenciada e que constitua uma base consistente para a definição de uma
estratégia de controlo da doença oncológica e acompanhamento da sua execução. A
descrição clara e detalhada do modo de funcionamento de cada um dos registos e
a discussão sistemática dos diferentes indicadores de qualidade que se podem
associar à informação produzida são essenciais para aumentar a transparência
deste processo e desenhar estratégias específicas para corrigir as limitações
existentes atualmente.
Num contexto em que os recursos nesta área são escassos e em que existem
assimetrias quantitativas e qualitativas na produção dos ROR, é essencial uma
colaboração produtiva entre os registos e a clara vinculação a objetivos que
traduzam a utilização da informação produzida e a discussão de indicadores de
qualidade aceites internacionalmente. A entidade responsável pela coordenação e
execução do plano oncológico nacional, função anteriormente desempenhada pela
CNDO, tendo em conta a sua posição equidistante em relação aos ROR poderá
desempenhar um papel importante como catalisador e dinamizador na consecução
destes objetivos.