Hematoma subdural em Pediatria Diagnosticar e tratar precocemente
Hematoma subdural em Pediatria Diagnosticar e tratar precocemente
INTRODUÇÃO
O hematoma subdural resulta da acumulação de san-gue entre a membrana dural
e o espaço subaracnoideu. Pode estender-se a vários lobos cerebrais, no
entanto, encontra-se limitado pela foice do cérebro e pela tenda do cerebelo.
Caracte-risticamente, toma a forma de um crescente bicôncavo, ao
con-trário do hematoma epidural que tem uma forma biconvexa.
A hemorragia resulta da lesão de pequenos vasos, artérias ou veias (mais
frequentemente estas últimas), com consequen-te sangramento para o espaço
subdural e posterior aumento da pressão intracraniana, podendo resultar em
morte por herniação cerebral. Pode ter uma evolução aguda, subaguda ou crónica
(com instalação de um a três meses).
A etiologia varia com a idade da criança. Nos recém--nascidos pode ocorrer
em 8% dos partos de termo e não é si-nónimo de parto traumático. É
frequentemente assintomático e desaparece em quatro semanas.(1) Em crianças com
menos de dois anos, o traumatismo não acidental é a principal causa, pelo que a
hipótese de maus tratos deve ser equacionada.(2) Em crian-ças mais velhas e
adolescentes, o hematoma subdural resulta de acidentes que provocam
traumatismos graves. Também pode ocorrer após pequenos traumatismos, sobretudo
em crianças com factores de risco(3): alterações hematológicas
(trombocito-penia, hemofilia, anticoagulação);retracção cerebral (drenagem
ventricular no tratamento da hidrocefalia); atrofia cerebral, higro-ma
subdural ou hematoma crónico (após hematoma agudo ou meningite), quisto
aracnóideo, acidúriaglutárica tipo 1, osteogé-nese imperfeita, entre
outras.
Por vezes, a história clínica não fornece informação que su-gira uma
hemorragia cerebral, o que pode atrasar o diagnóstico. Frequentemente, não há
menção a traumatismo.
Na criança as manifestações clínicas principais são: febre, irritabilidade,
letargia, convulsões, coma, défices neurológicos, abaulamento da fontanela,
aumento do perímetro craniano, he-matoma do couro cabeludo, anemia com
palidez cutânea ou choque hemorrágico. Em crianças com menos de dois anos de
idade deve ter-se um elevado índice de suspeição de maus tra-tos, aquando
da realização do exame objectivo. A bradicardia, hipertensão e as alterações
pupilares são sinais tardios pelo que não devemos esperar pelo seu aparecimento
para suspeitar de hematoma subdural. A hemorragia retiniana pode estar presente
em crianças vítimas de maus tratos, nomeadamente na criança abanada ("shaken
baby").(4)
A punção lombar está contra-indicada e a tomografia axial computorizada
cranioencefálica (TC-CE) confirma o diagnóstico revelando a típica imagem
bicôncava, que pode estar associada a herniação, dependendo do tamanho do
hematoma. O trata-mento depende do estado clínico e dos achados
radiológicos; a vigilância clínica, as medidas antiedema (restrição hídrica,
normo/hiperventilação, manitol, cloreto de sódio hipertónico) ou craniotomia
descompressiva podem ser as atitudes.(5) Quando a cirurgia está indicada, esta
deve ocorrer com a máxima urgên-cia. Se a atitude a tomar privilegiar o
tratamento médico, e, se a criança tem um "score" inferior a oito na Escala de
Coma de Glasgow - ECG, é obrigatória a monitorização da pressão
intra-craniana (PIC), além da vigilância clínica e monitorização dos sinais
vitais. TC-CE seriadas podem ser necessárias para monitorizar a evolução ou
decidir da necessidade de tratamento mais agressivo. O seguimento posterior
destas crianças justifica-se pela possibilidade de poder surgir hematoma
subdural crónico e/ou higroma subdural.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino, sete anos de idade, com defeito completo do septo
auriculo-ventricular, sujeito a correcção cirúr-gica três anos antes, tendo
ficado com insuficiência mitral mode-rada. Cerca de dois meses antes do
internamento, foi colocada prótese mitralmecânica. Medicada habitualmente com
enalapril (5 mg, duas vezes/dia) e varfarina (5 mg/dia - três dias,alternando
com 3,75 mg/dia - três dias) após colocação da prótese referida.
Recorreu a um serviço de urgência hospitalar, 48 horas an-tes do
internamento, com febre (38ºC), otalgia, cefaleias inten-sas e episódio
autolimitado de epistáxis. No exame objectivo, não apresentava alteração dos
parâmetros vitais, estava quei-xosa, sem sinais de irritação meníngea, e
com infecção das vias aéreas superiores.
Analiticamente revelava: hemoglobina (Hb) 9,8 g/dl; he-matócrito (Hct) 30%;
volume globular médio 73 fl; plaquetas 523000/µl; leucócitos 14730/µl com 84,5%
de neutrófilos; prote-ína C reactiva (PCR) 7 mg/dl; tempo de protrombina
(TP) 49,4s; INR 4,2; tempo de tromboplastina parcial activado (APTT) 76,4s. A
telerradiografia do tórax era normal. Foi programada a redução da dose de
varfarina para 2,5 mg/dia (três dias), alternando com 3,75 mg/dia (três dias),
terapêutica antibiótica com amoxicilina 90 mg/kg/dia e reavaliação três dias
depois ou antes se se verifi-casse agravamento clínico.
Cerca de 24h depois, é novamente observada por agrava-mento da intensidade
da cefaleia e da prostração. Ao exame ob-jectivo, encontrava-se febril,
pouco reactiva, com rigidez da nuca e sem sinais focais. Analiticamente,
observava-se: Hb 10,8 g/dl; Hct 29,7%, leucócitos 11770/µl com 84,5% de
neutrófilos; plaquetas 495000/µl; PCR10 mg/dl, TP 94,7s; INR 8,25; APTT 73,6s.
Iniciou terapêutica antibiótica com gentamicina (5 mg/kg/dia), cefotaxima(200
mg/kg/dia) e vancomicina (60 mg/kg/dia), assim como plas-ma fresco
congelado, vitamina K e concentrado eritrocitário.
Foi transferida para UCIP do Hospital Dona Estefânia (HDE), no período pós-
ictal de convulsão tonico-clónica gene-ralizada, controlada com diazepam e
fenobarbital, e, ainda, sem recuperação do estado de consciência ("score" de 5
na ECG), pupilas midriáticas, assimétricas, pouco reactivas, com posterior
evolução para anisocória marcada (midríaseà esquerda). A fun-doscopia era
normal; os reflexos osteotendinosos eram difíceis de despertar. Não era visível
hematoma no couro cabeludo. A restante observação não apresentava alterações.
Por suspeita de hipertensão intracraniana devida a hemorragia secundária a
alteração da coagulação, iniciou de imediato ventilação mecâni-ca, medidas
anti-edema cerebral e concentrado protrombínico(Octaplex® em dose adequada ao
valor de INR) com vista a rápi-da normalização da coagulação para eventual
cirurgia.
Na TC-CE, realizada duas horas após admissão na UCIP, apresentava hematoma
subdural agudo à esquerda com desvio da linha média e sinais de encravamento do
uncus (Figura 1).
FIGURA 1 - Hematoma subdural agudo, hemisfério esquerdo, com desvio da linha
médica, em TC-CE, corte axial
A craniotomia descompressiva ocorreu cerca de 45 minutos após a realização de
TC-CE e da reversão da anticoagulação (56 horas após o início da
sintomatologia). Realizada drenagem de todo o hematoma, sem visualização do
ponto sangrante, com consequente expansão cerebral, constatando-se edema
cerebral generalizado. No pós-operatório manteve as medidas anti-edema cerebral
e ventilação mecânica durante quatro dias. Clinicamente, houve regressão da
anisocoria e melhoria progres-siva, apesar de às 48h de pós-operatório ter
havido diminuição do nível de consciência. Fez TC-CE (Figura 2) que não
apresen-tava alterações. Às 32h de pós-operatório, reiniciou
anticoagula-ção com enoxaparina subcutânea (1 mg/kg/dose).
FIGURA 2 - Secção de TC-CE sobreponível à anterior, realizada 24 horas após a
cirurgia, mostrando sequelas da intervenção e resolução do hematoma
A monitorização do nível de consciência foi também feita com Bispectral Index™
apresentando valores médios de 40, posteriormente mais elevados à medida que se
tornava mais acordada.
Foi transferida, ao sétimo dia pós-operatório, para uma en-fermaria de
Pediatria, clinicamente bem, apenas com ptose pal-pebral esquerda da qual
veio a recuperar, estando actualmente sem sequelas.
DISCUSSÃO
O caso ilustra:
1) A importância da suspeição clínica em doentes antico-agulados; a mais
temível complicação do uso de anticoagulan-tes é a hemorragia
intracraniana, sendo a intensidade da anti--coagulação o maior predictor de
hemorragia cerebral. Valores de INR superiores a 3,5 aumentam a sua
probabilidade de ocorrência(6), especialmente se associados a outros factores
de risco (quedas, hipertensão arterial, mal formação vascular, entre outras). O
elevado grau de suspeição, pela clínica altamente su-gestiva de hipertensão
intracraniana, justificam o início de medi-das anti-edema cerebral antes da
realização da TC CE.
2) A relevância da rápida optimização das condições cirúrgi-cas, para não
protelar este procedimento quando está indicado; a descontinuação da
terapêutica anticoagulante uns dias antes de uma cirurgia electiva é suficiente
para normalizar a coagula-ção, no entanto, uma reversão rápida pode ser
necessária em situações de emergência. É frequente o uso de plasma fresco
congelado, vitamina K ou factor VII activado, mas a normaliza-ção do INR
obtém-se mais rapidamente com o uso do complexo protrombínico. O tempo médio
para reverter o INR é 30 minutos a uma hora. O complexo protrombínico é
constituído por factor II, VII, IX e X.(7) Énecessário ter em conta o potencial
risco trombó-tico que advém da administração destes fármacos.
3) A utilização de técnicas não invasivas de monitorização do nível de
consciência; o BispectralIndex™, largamente usado em bloco operatório, avalia
os efeitos dos anestésicos sobre a actividade do cérebro mediante análise da
frequência de onda do electroencefalograma, ajudando a adequar a dose de
anes-tésico. O seu valor varia de zero a 100, correspondendo zero a
ausência de actividade cerebral e 100 a totalmente acordado. Recentemente, tem-
se assistido ao seu uso em unidades de cui-dados intensivos pediátricos
sendo um complemento muito útil, quando disponível.(8,9)
4) A imprevisibilidade da evolução das patologias pediátricas; o hematoma
subdural agudo tem uma taxa de mortalidadede 10 a 20%, sendo as sequelas muito
frequentes. São factores de mauprognóstico a existência de coma, alterações
pupilares, hiperten-são intracraniana, alterações significativas na TC e o
período até à cirurgia descompressiva. No caso clínico aqui apresentado, o
tempo decorrido entre a apresentação dos sintomas e a cirurgia foi demasiado
longo o que, ab initio, faria prever um desfecho des-favorável, ou até
mesmo fatal, e que não aconteceu.