Miosite orbitária numa criança
INTRODUÇÃO
O pseudotumor inflamatório da órbita, actualmente designado por doença
inflamatória orbitária (DIO), é um processo inflamatório dos tecidos
orbitários. Apesar de a etiologia ainda não estar esclarecida, alguns autores
sugerem uma origem de carácter auto-imune, secundária a infecção respiratória
ou outro processo imunomediado(1-5).
A primeira descrição é de 1905, quando Birch-Hirchsfield descreve uma patologia
orbitária caracterizada por aumento do volume palpebral, na qual a exploração
cirúrgica só identificou um processo inflamatório dos tecidos envolventes. No
entanto, só em 1954, Umiker et al(6). o designa desta forma, pela sua
capacidade para mimetizar clínica e radiologicamente um processo maligno.
Na literatura, estão descritas algumas classificações para esta entidade. A
mais utilizada é a classificação de Rootman(7), que se baseia na identificação
de subtipos, de acordo com a estrutura orbitária na qual o processo
inflamatório é predominante: lacrimal; miosítica; anterior; difusa e apical. O
Quadro I compara as características dos diferentes subtipos.
Quadro I 'Comparação entre os subtipos (formas) de DIO(7)
A DIO acomete principalmente adultos, sendo a sua prevalência em idade
pediátrica rara(8). É responsável por cerca de 6% de todas as lesões orbitais.
Destas, apenas 6% dos casos acontecem em crianças(9).
Clinicamente, os doentes apresentam-se com edema e hiperémia palpebrais,
proptose, alteração da motilidade ocular, diplopia e dor. É geralmente
unilateral. Uma apresentação bilateral sugere a existência de doença sistémica
de base. Em crianças, podem observar-se sinais e sintomas de compromisso
sistémico, como febre, cefaleias, vómitos e mal-estar geral(1,8).
O diagnóstico é feito pela história clínica, exames físico e oftalmológico
cuidados, estudo analítico, tomografia computadorizada (TC) ou ressonância
magnética (RM) da órbita/seios da face com contraste, e, em casos duvidosos,
biópsia com estudo anátomo-patológico(1,10).
O diagnóstico diferencial envolve qualquer patologia susceptível de induzir um
quadro orbitário agudo, no entanto, em crianças, é com a celulite orbitária e
com a oftalmopatia tiroideia que mais vezes esta entidade se confunde(1,10).
O tratamento consiste na administração de corticóide via oral, habitualmente
com resposta dramática em 48 a 72 horas. Outras possibilidades terapêuticas com
imunossupressores e radioterapia parecem ter alguma eficácia(1,8-10).
O principal objectivo do presente trabalho é descrever um caso de miosite
orbitária(11,12), um dos subtipos de DIO, em idade pediátrica e ilustrar as
dificuldades no diagnóstico diferencial com celulite orbitária, fazendo
referência a aspectos imagiológicos e terapêuticos.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino, de nove anos de idade, raça caucasiana, natural e
residente em Vila Real, sem antecedentes pessoais relevantes, que iniciou cinco
dias antes da admissão dor ocular direita, acompanhada de edema palpebral
homolateral. É negado qualquer outro sinal ou sintoma acompanhante, incluindo
mal-estar geral, anorexia, emagrecimento, febre, vómitos ou cefaleias. São
negadas infecção respiratória ou gastrointestinal previamente à sintomatologia
actual.
Ao exame objectivo apresentava bom estado geral e de nutrição. Estava apirético
e hemodinamicamente estável. A tiróide era palpável, não aumentada de volume,
de consistência preservada e sem massas. Ao exame oftalmológico tinha proptose,
edema palpebral moderado com rubor local, limitação da elevação e abdução do
olho direito; referia também diplopia vertical no olhar para a direita e para
cima. A acuidade visual, campos visuais, fundoscopia e reflexos pupilares eram
normais. O restante exame objectivo e neurológico não mostrava alterações.
O estudo analítico inicial com hemograma, bioquímica, PCR e VS, não mostrou
alterações relevantes.
A TC da órbita realizada à admissão (Figuras 1 a 3) mostrou ao nível da órbita
à direita, marcado empastamento do recto medial, assim como ocupação
significativa do espaço intra-cónico, com má definição do recto superior e
aumento dos tecidos peri-orbitários, podendo corresponder a lesão de natureza
inflamatória ou lesão de outra natureza.
Figura 1' TC órbita direita (corte sagital) mostra espessamento do recto
superior.
Figura 2' TC órbita esquerda (corte sagital) sem alterações.
Figura 3' TC órbitas (corte frontal) mostra espessamento do recto superior e
recto medial.
Este aspecto é compatível com um processo ocular inflamatório, não se podendo
excluir etiologia infecciosa. Perante estes resultados iniciou terapêutica com
metilprednisolona (2mg/kg/dia endovenosa, durante cinco dias) e antibioterapia
(ceftriaxone + clindamicina) endovenosas, com recuperação quase completa,
persistindo apenas com ligeira limitação na elevação do olho direito (Figura
4).
Figura 4' Limitação da elevação do olho direito.
Perante este diagnóstico iniciou prednisolona 1mg/Kg/dia, durante 10 dias, com
desmame progressivo em quatro semanas, e resolução completa do quadro clínico.
A restante investigação não revelou alterações sugestivas da existência de
outra patologia de base (Tabela 1).
Tabela 1 'Investigação etiológica complementar
O exame neurológico e oftalmológico aos três e seis meses após o início da
doença foi normal, assim como a RM aos seis meses.
Ao nono dia de doença verifica-se recidiva súbita da sintomatologia, pelo que é
realizada RM orbitária (Figuras 5 e 6) que apresentava espessamento do oblíquo
superior, rectos superior e medial à direita e um espessamento dos tecidos
peri-orbitários, traduzindo pseudotumor orbitário (forma miosítica).
Figura 5' RM orbitária (corte frontal ' T2): espessamento do recto superior e
medial.
Figura 6' RM orbitária (corte coronal ' T2): espessamento do recto superior
DISCUSSÃO
O caso clínico presente ilustra as dificuldades para se estabelecer o
diagnóstico de DIO na criança. Por um lado, porque é uma entidade rara nesta
faixa etária e por outro lado, pelo facto de a história clínica e exame físico
simularem um quadro de celulite orbitária.
A criança apresentava alguns sinais e sintomas de celulite orbitária. Apesar de
analiticamente não ser compatível com um quadro infeccioso, a TC orbitária
sugeria um processo inflamatório envolvendo os músculos extra-oculares, não
excluindo etiologia infecciosa, pelo que iniciou antibioterapia e
corticoterapia sistémicas. A evolução clínica inicial foi satisfatória, no
entanto após ter interrompido corticóide verificou-se recidiva das queixas,
pelo que é realizada RM que afirma o diagnóstico de pseudotumor inflamatório
(forma miosítica). Foi reiniciada corticoterapia com resolução completa do
quadro.
Neste caso é curioso observar uma limitação da abdução do olho direito. Este
facto poderá dever-se à inflamação concomitante do oblíquo superior que está em
relação próxima com o recto superior, e cuja sensibilidade da RM não seja
suficiente para permitir esta distinção. Por outro lado a inflamação do recto
medial poderá condicionar uma hiperactividade do próprio músculo limitando a
abdução ocular.
A miosite orbitária é um desafio diagnóstico, como se pode observar no Quadro
II onde se enumeram e caracterizam os diagnósticos diferenciais e suas
diferenças(11-14).
Quadro II 'Diagnóstico diferencial da miosite orbitária (adapt. 12)
Tendo em conta a raridade desta patologia, a realização de biópsia poderia ter
algum interesse(7). No entanto os dados imagiológicos sugestivos, o risco
inerente à realização da técnica e a resposta favorável à corticoterapia
permitiram o diagnóstico.
O valor da ecografia, de fácil acesso e baixo custo, poderá ser importante na
exclusão de massa tumoral e na avaliação dos tendões de inserção dos músculos
permitindo o diagnóstico diferencial entre miosite orbitária e oftalmopatia
tiroideia, havendo atingimento da inserção na miosite(15).
A frequência com que esta patologia se tem associado a infecção respiratória
prévia ou a doenças imuno-mediadas tem levantado a hipótese de este processo
ser mediado por mecanismos de auto-imunidade(1,4-7), facto que não se confirmou
no presente caso clínico.
O tratamento da miosite orbitária é semelhante à DIO. A primeira escolha é a
corticoterapia com prednisolona, na dose de 1 a 1,5 mg/kg/dia, durante uma a
duas semanas com desmame gradual em 4 a 12 semanas(1,8,10-14). Outras
possibilidades terapêuticas com eficácia comprovada em adultos, apesar dos
possíveis efeitos adversos importantes, incluem anti-inflamatórios não
esteróides, fármacos imunossupressores (azatioprina, metotrexato, micofenelato
mofetil, ciclosporina, tacrolimus, anti-TNF α), imunoglobulina G hiperimune,
anticorpo monoclonal anti-CD20 e radioterapia. A cirurgia reconstrutiva tem um
papel fundamental sobretudo nas sequelas resultantes do atingimento muscular
(16-18).
O prognóstico a longo prazo da DIO, e da miosite orbitária em particular, é
muito variável, dependendo, entre outras, do grau inicial de envolvimento das
estruturas orbitárias, do número de recidivas e da resposta terapêutica. Se não
diagnosticado e tratado precocemente a possibilidade de alteração irreversível
da mobilidade ocular e do nervo óptico é uma realidade. Esta criança teve uma
evolução bastante favorável, permanecendo assintomática e com controlo
imagiológico sem alterações, seis meses após o quadro.
CONCLUSÃO
A miosite orbitária é uma doença rara em idade pediátrica cujo diagnóstico e
tratamento atempado são fundamentais. A RM da órbita é o exame de imagem mais
sensível. O seu diagnóstico é feito após exclusão de causas secundárias. A
primeira linha de tratamento é a corticoterapia, mas nos casos refractários a
utilização de fármacos imunossupressores poderá estar indicada.