Angioacesso autólogo: determinantes da funcionalidade e permeabilidade
Introdução
Segundo o registo da ERA-EDTA Registry Annual Repport 20091, existem cerca de
10152 doentes no país em programa regular de Hemodiálise e 660 realizam diálise
peritoneal, existindo uma prevalência aproximada de 75% de fístulas
arteriovenosas, 20% de catéteres vensosos centrais e 5% de acesso protésico.
Num país de reduzida dimensão como o nosso, trata-se de um número muito
considerável de doentes, implicando morbilidade, mortalidade e custos sociais e
económicos muito elevados.
A morbilidade e mortalidade associada aos acessos vasculares, nomeadamente aos
catéteres de hemodiálise, é muito significativa2. Neste contexto surgiu a
necessidade da criação de guidelines internacionais (KDOQUI, 1997)3 que regulem
a construção, uso e seguimento do angioacesso.
Um dos principais aspectos nelas referidos é o uso preferencial da fístula
arteriovenosa (FAV) dada a sua menor associação a co-morbilidades e
mortalidade1-3. O angioacesso deve ser construído o mais distalmente possível,
sendo o diâmetro interno da veia e artéria superior a 2 mm, no membro superior
não dominante, e com uso prioritário de material autólogo5.
Neste contexto, o estudo realizado pretendeu identificar e quantificar o
impacto dos factores determinantes da permeabilidade e funcionalidade dos
angioacessos autólogos primários na cirurgia de ambulatório, avaliar a taxa de
complicações e calcular a taxa de mortalidade global através da curva de
sobrevida.
Material e métodos
Foram colhidos prospectivamente os dados de 94 acessos autólogos realizados em
88 doentes no ano de 2010. Estes foram construídos no departamento de cirurgia
de ambulatório. O tempo de follow-up variou de 365 dias a 898 dias. Para
efeitos de follow-up os doentes foram contactados telefonicamente, caso esse
contacto não fosse conseguido eram utilizados os dados refrentes à revisãi dos
processos.
Definições
O tempo de permeabilidade primária foi definido como o intervalo desde a
construção do acesso até qualquer procedimento visando a manutenção da
permeabilidade e/ou até trombose do acesso.
O tempo de funcionalidade equipara-se ao intervalo desde a construção do acesso
até à primeira canulação con ceito do angioacesso com sucesso para a realização
de hemo diálise6.
Foram analisados os seguintes factores e o seu respectivo impacto na
permeabilidade: idade, sexo, diabetes mellitus, doença arterial obstructiva
periférica, pacemaker/CDI, cateter de hemodiálise prévio e oclusão de acesso
prévio.
A análise estatística foi realizada usando o programa SPSS® v20.0 sendo a
permeabilidade e funcionalidade estimadas pelo método de Kaplan-Meier e o
impacto dos factores determinantes avaliado pelo teste de log-Rank (variáveis
categóricas) e regressão de Cox (variáveis contínuas).
A maioria destes acessos (cerca de 80-90%) foram efectuados por um mesmo
cirugião vascular ou sob a supervisão deste.
Resultados
Dos 88 doentes incluídos, 39 (44%) eram mulheres e 49 (56%) homens. A idade
média foi de 68 anos (28-89). Cinquenta e um (53,3%) acessos foram construídos
no punho, 8 (8,5%) no antebraço e 19 (37,2%) no cotovelo. As características
demográficas da amostra encontram-se na tabela_1, de ressalvar a elevada
prevalência de diabetes (47%).
A taxa de permeabilidade primária foi de 75% aos 6 meses, 74% aos 12 meses
tendo-se mantido na última observação, aos 780 dias (fig._1). Dezasseis doentes
possuíam uma fístula anterior à data de construção (não funcionante).
Nas FAVs do punho as taxas de permeabilidade foram de 82,2% ao 1º mês, 76,0%
para o 6º mês, mantendo-se na última observação. Já no antebraço foram de
56,0%, tendo-se mantido sempre estáveis. As FAVs do cotovelo registaram
permeabilidade de 74.3% no 1º mês, 71,3% ao 6º mês, tendo-se mantido desde
então (fig._2).
Os factores já referidos em «Material e métodos», com impacto na permeabilidade
foram analisados, encontrando-se representados graficamente (figs._3-8) O seu
impacto foi avaliado pelo teste de log Rank sendo os valores de p < 0,05
considerados significativos. Para todos os factores estudados, o valor de p
mais próximo da significância foi de 0,20 (existência de FAV anterior não
funcionante).
Vinte e quatro (27%) doentes foram reeintervencionados; 3 acessos foram
encerrados por síndrome de roubo sinto mático, 4 doentes com estenose da FAV
susceptíveis de angioplastia e 18 construíram um novo acesso (por trombose).
A taxa de mortalidade foi de 4.5% aos 898 dias.
Todos os doentes que iniciaram diálise pelo angioacesso mantiveram-no funcional
na data da última observação.
Discussão
Os angioacessos primários construídos na nossa instituição estão de acordo com
as principais recomendações das KDOQI sendo maioritariamente localizados no
punho, com taxas de permeabilidade global aos 6 meses de 75% e no primeiro ano
74%, sendo estas sobreponíveis às da literatura; Kazemzadeh7, (patência aos 2
anos de 65%), Kalman8 (54% aos 2 anos) e Fokou (75% ao 1º ano)9.
A trombose do angioacesso ocorre em fases muito precoces do follow-up, havendo
depois uma estabilização das curvas de permeabilidade. As más condições anató
micas encontradas aliadas eventualmente a um perfil hemo dinâmico desfavorável,
poderão justificar este facto.
A permeabilidade no punho foi de 82,2% no 1º mês e 76,0% aos 6 meses e
mantendo-se na data da ultima observação. Numa metaanálise relativa a
angioacessos do punho10, publicada em 20047 com revisão de 30 estudos
retrospectivos observou-se uma taxa de permeabilidade global de 62,5% (IC 95%
58,2-73,0%), tendo sido concluido que embora este acesso seja considerado de 1ª
escolha a falência é muito significativa. Não foi encontrada nesta meta-analise
diferença entre as permeabilidades encontradas nos estudos retrospectivos ou
prospectivos.
Quanto à diferença notória de permeabilidades para o antebraço, esta explica-se
pelo facto de constituir na maioria das vezes uma solução de recurso em doentes
com anato mia desfavorável.
A análise estatística por diferentes factores não evidenciou nenhum factor com
valor impacto significativo na permeabilidade. (p < 0,05). A literatura
apresenta resul tados muito diversos relativo ao impacto de factores. Allon et
al.11 e Kazemzadeh7 descrevem o sexo feminino como o único factor independente
capaz de influenciar negativamente a permeabilidade, já Prischl12 et al não
encontram qualquer relação, resultado concordante com a conclusão da
metaanálise. De salientar a existência de uma percentagem muito significativa
de doentes diabéticos (47%) bem superior à encontrada em muitos dos estudos
retroespectivos revistos o que poderá ter uma influência negativa na
permebilidade.
Dos doentes estudados houve 24 complicações registadas, uma percentagem mais
elevada à obtida por Fokou9, numa revisão recentemente publicada de 626 acessos
em 8 anos com uma taxa global de 16% contudo de realçar que o referido autor
teve taxas de permeabilidade sobreponíveis, 76% ao 1º ano e 51% aos 2 anos. A
taxa de complicações encontrada relacionou-se maioritariamente com trombose do
acesso, cuja intervenção passou por um novo procedimento, recorrendo a um
acesso temporário caso o processo de diálise fosse premente. Dos 4 doentes que
efectuaram angioplastia, 3 deles mantiveram a permeabilidade na última
observação. Este poderá ser um indicador para apostar na «permeabilidade
primária assistida» ao invés do investimento num novo acesso à priori.
Quanto às limitações deste estudo, a primeira assenta na selecção de doentes
para construção de angioacesso ser feita maioritariamente por avaliação
clínica, não recorrendo ao uso sistematizado do eco-doppler como recomendam
actualmente as guidelines. A amostra de reduzida dimensão, não traduziu valores
de prova significativos, embora, os factores conhecidos como desfavoráveis
(sexo feminino, idade, diabetes, doença arterial periférica e doença cardíaca)
exibam de facto uma tendência para a diminuição da permeabilidade que podendo
esta ser significativa com o prolongar do tempo de follow-up e alargamento do
tamanho da amostra.
A taxa de permebilidade primária assistida não foi estimada devido ao reduzido
número de casos, embora pudesse constituir um dado interessante. Não deixa de
ser curiosa uma taxa de mortalidade relativamente baixa (4,5% aos 898 dias),
atendendo ao grupo de risco estudado, o que poderá traduzir uma referenciação
precoce para construção do acesso, tal como recomendado pelas Guidelines.
Conclusão
Sendo assim, é fundamental, a opção da fístula como primeira opção de acesso.
Na nossa instituição esta mos trou ser uma solução com uma baixa taxa de
complicações, que poderá ainda ser mais reduzida com a insti tuição de
protocolos mais rigorosos de follow-up, nomeadamente para os chamados «grupos
de risco». As taxas de permeabilidade obtidas são muito satisfatórias e
concordantes com a literatura13-15. Será de considerar a angioplastia dos
acessos em fases passíveis de intervenção, muito precoces dado a curva de
sobrevida com oclusao nos primeiros dias, evitando a necessidade de partir para
acessos mais diferenciados.
Não foi encontrado nenhum factor que afectasse negativamente a permeabilidade,
o que poderia ser alterado com o aumento da dimensão da amostra ou do tempo de
follow-up, pois havia tendencialmente menor permeabilidade nos determinantes
descritos na literatura como associados a mau prognóstico (idade, sexo
feminino, acesso prévio não funcionante, doença cardíaca isquémica ou doenca
arterial periférica).