O impacto do delirium na família/cuidadores
Introdução
Com o aumento da população idosa em todo o mundo, as perturbações
neuropsiquiátricas como o delirium (ou estado confusional agudo) adquirem
inevitavelmente maior importância, afectando mais de 30% dos idosos
hospitalizados (Saxena & Lawley, 2009).
O delirium caracteriza-se por alterações do nível da consciência, da cognição
ou da percepção (não atribuídas a demência preexistente ou estabelecida), que
se desenvolve ao longo de um curto período de tempo (horas/dias), com curso
flutuante. Acresce ainda, pela história clínica e exames físicos/laboratoriais,
o facto de ser uma perturbação causada por doença médica, intoxicação/
abstinência de substância ou por múltiplas etiologias (American Psychiatric
Association[APA], 2000).
Esta síndrome neuropsiquiátrica surge como um problema grave, potencialmente
evitável e, muitas vezes, não reconhecido, estando por isso relacionado com o
aumento da morbilidade e da mortalidade nestes doentes (Siddiqi, House, &
Holmes, 2006).
De modo consistente com estes dados, torna-se fundamental uma identificação
precoce e uma intervenção adequada que contribuam para a diminuição das
consequências associadas a esta perturbação (National Institute for Health and
Care Excellence[NICE], 2010).
Neste contexto, o envolvimento das famílias e/ou dos cuidadores no
reconhecimento do delirium, bem como na prestação de cuidados ao doente,
desempenham um papel crucial (O'Malley, Leonard, Meagher, & O'Keeffe,
2008). As informações dos familiares e/ou cuidadores sobre o estado cognitivo
prévio do doente, bem como sobre alterações do estado mental observadas durante
o internamento hospitalar, quando partilhadas com os profissionais de saúde,
podem ser úteis para a avaliação de algumas das características do delirium,
nomeadamente o seu início agudo e o curso flutuante e, poderão igualmente
auxiliar no diagnóstico diferencial com demência (Martins e Fernandes, 2012).
A inclusão da família na abordagem do delirium assenta ainda na importância da
sua presença junto do doente e na ajuda prestada no processo de comunicação e
na sua reorientação. O delirium tem sido descrito como uma experiência bastante
desagradável pelos doentes, sobretudo pelas emoções vivenciadas durante este
episódio, nomeadamente medo, ansiedade e sensação de ameaça. Em muitos casos,
estas surgem associadas à presença de perturbação da percepção e de delírios
(O'Malley et al., 2008), podendo a presença da família ajudar o doente a lidar
de forma mais ajustada. Neste âmbito, alguns estudos (ex. Stenwall, Sandberg,
Eriksdotter Jonhagen, & Fagerberg, 2008) referem que os doentes
consideraram ter sido benéfico e reconfortante a presença dos seus familiares
durante o episódio de delirium, valorizando a sua intervenção de suporte.
Por outro lado, a família poderá ainda ajudar os profissionais de saúde na
comunicação eficaz com o doente, bem como na sua reorientação, através do uso
de diversas estratégias (ex. repetição da data, hora, local, motivo pelo qual
está internado, ou identificação das pessoas presentes). A disponibilização de
objectos familiares (ex. fotografias, calendário e relógio), bem como de ajudas
instrumentais (ex. óculos, aparelho auditivo) facilita também este processo de
reorientação (Caraceni & Grassi, 2011).
Contudo, e apesar da integração da família na abordagem do delirium ter
sobretudo consequências benéficas, há que ter em consideração que poderá
tornar-se numa experiência traumática, para além dos doentes, também para os
seus familiares, que revelam níveis elevados de stress perante estas situações
(ex. Breitbart, Gibson, & Tremblay, 2002; Bruera et al., 2009).
O presente artigo pretende analisar e sintetizar os estudos existentes sobre o
nível de stress provocado pelo delirium nos familiares e/ou cuidadores.
Metodologia
Este estudo consiste numa revisão não sistemática da literatura, de artigos
publicados na PubMed, no período de 2000 a 2012, cruzando o termo "delirium"
com "distress", "impact" e "family", "caregiver", "relatives". Foram
considerados os seguintes critérios de inclusão: (1) diagnóstico de delirium
com critérios padronizados (ex. Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders/DSM-IV-TR) (APA, 2000) e/ou instrumento de avaliação e (2) avaliação
do nível de stress de uma forma sistemática em familiares de doentes adultos/
idosos com delirium. Os estudos em língua não inglesa, bem como os casos
clínicos, foram excluídos desta revisão.
Na pesquisa inicial, os resumos identificados foram avaliados por dois autores
desta revisão, de forma independente e cega, obedecendo rigorosamente aos
critérios de inclusão e exclusão previamente definidos. Caso não fossem
suficientemente esclarecedores, procedeu-se à análise do artigo na íntegra.
Posteriormente, possíveis discordâncias foram resolvidas por consenso entre
autores.
Os estudos que cumpriram os critérios de inclusão foram avaliados e comparados
quanto às seguintes características: objectivo, desenho de estudo, amostra,
contexto, critérios de inclusão e exclusão, instrumentos de avaliação do nível
de stress e principais resultados.
Foi igualmente efectuada uma análise da bibliografia dos artigos seleccionados.
Resultados
Num primeiro momento, foram identificados trinta e oito artigos, dos quais onze
foram recrutados para análise. Destes, foram excluídos três. Da análise à
bibliografia dos artigos seleccionados, foram ainda adicionados mais três
artigos, perfazendo um total de onze estudos (cinco transversais, um
prospectivo, três qualitativos e duas revisões da literatura). Os principais
dados/resultados relativos aos níveis de stress na família/cuidadores extraídos
dos estudos analisados estão sumarizados na Tabela_1.
A maioria dos estudos integrou amostras de familiares (na sua maioria adultos,
do sexo feminino e cônjuges) de doentes idosos, internados em cuidados
paliativos, com recurso a metodologias quantitativas e escalas de tipo Likert,
para a avaliação do nível de stress provocado por delirium. Alguns estudos
avaliaram estes níveis face ao delirium na sua globalidade (ex. Breitbart et
al., 2002) enquanto que outros avaliaram face a cada um dos sintomas
percepcionados pelos familiares (ex. Bruera et al., 2009).
De um modo geral, as famílias e/ou cuidadores revelaram níveis de stress
bastante elevados e mesmo superiores aos registados para os profissionais de
saúde e para os doentes (Breitbart et al., 2002; Bruera et al, 2009), sendo
sobretudo associados ao agravamento do estado de saúde do doente, presença de
agitação psicomotora, sintomas psicóticos, labilidade emocional e discurso
incoerente (Breitbart et al., 2002; Morita, Hirai, Sakaguchi, Tsuneto, &
Shima, 2004; Morita et al., 2007).
Importa igualmente referir que, não só é elevado o número de familiares que
consideram o delirium como uma experiência extremamente stressante, mas também
o grau deste nível de stress é considerado como grave e/ou substancial
(Breitbart et al., 2002; Bruera et al., 2009).
Além disso, a família interpretava esta experiência como um sinal de
aproximação da morte, resultado de dor/desconforto ou dos efeitos de medicação
(Cohen, Pace, Kaur, & Bruera, 2009; Morita et al., 2007; Namba et al.,
2007), o que contribuiu, igualmente, para os elevados níveis de stress
apresentados.
Morita et al (2007) verificaram ainda que estes níveis mais elevados de stress
foram sobretudo reportados pelos familiares mais jovens e do sexo masculino.
Finalmente, Buss et al (2007) constataram a presença de uma associação
significativa entre delirium e ansiedade generalizada, que se manteve após
controlo de variáveis como a sobrecarga do cuidador e outras experiências
stressantes relacionadas com o doente.
Discussão
Apesar da elevada morbilidade e mortalidade associadas ao delirium estar bem
documentada, existem poucos estudos sobre as suas repercussões nos familiares
e/ou cuidadores destes doentes (O'Malley et al., 2008; Partridge, Martin,
Harari, & Dhesi, 2012).
À escassez dos trabalhos que estudam estas consequências na família, associa-se
a difícil comparação dos respectivos resultados pela utilização de diferentes
métodos de avaliação dos níveis de stress (avaliação global do delirium vs.
avaliação face a cada sintoma), inclusão de diferentes grupos/amostras de
estudo (delirium terminal vs. delirium reversível) e diversificação de
contextos (cuidados paliativos vs. enfermarias).
Para além desta heterogeneidade dos estudos, deve ser salientado que a maioria
dos estudos selecionados integrou familiares de doentes com cancro em fase
terminal, pelo que é necessário esclarecer se os elevados níveis de stress
identificados correspondem ao delirium propriamente dito, ou são explicados por
outras variáveis como a percepção da aproximação da morte (Bruera et al., 2009,
Partridge et al., 2012).
Por outro lado, deve igualmente destacar-se a variabilidade das interpretações
dadas pelos familiares aos sintomas de delirium (Morita et al., 2004). Ainda
assim, e apesar dos limites assinalados, é possível constatar que a ocorrência
de um episódio de delirium causa um impacto significativo e negativo nestes
familiares, traduzido em níveis aumentados de stress.
Um outro dado relevante prende-se com o facto dos familiares identificarem um
maior número de sintomas no doente durante o episódio, em comparação com os
profissionais de saúde, sugerindo que os familiares podem constituir uma fonte
fidedigna de informação e/ou observação do comportamento do doente durante o
seu internamento, bem como da sua resposta ao tratamento em curso. No entanto,
esta identificação de sintomas pelos familiares poderá ser sobrevalorizada pela
ansiedade associada à situação vivenciada (Bruera et al., 2009) e que deve ser
igualmente salvaguardada.
Por outro lado, a discrepância na identificação de sintomas por familiares e
profissionais, poderá contribuir para que o delirium constitua, frequentemente,
um factor de conflito, na medida em que surgem diferentes perspectivas quanto
ao sofrimento do doente e à necessidade de intervenção (Bruera et al., 2009).
Salvaguardando o eventual efeito subjectivo associado à carga emocional da
situação vivenciada pelos familiares, tem sido recomendado que as observações
quanto aos sintomas/comportamentos do doente devem ser consideradas, com
recurso a escalas de observação ou a instrumentos de avaliação estandardizados
(Bruera et al., 2009), reduzindo o risco de viés. Neste plano, destaca-se o
Family Confusion Assessment Method/FAM-CAM (Steis et al., 2012) desenvolvido
recentemente como um método de detecção do delirium, de fácil aplicação e
cotação, sendo preenchido com base nas informações/observações de familiares e/
ou cuidadores.
Finalmente, as repercussões negativas associadas ao delirium e descritas nos
estudos analisados, apontam para a necessidade de intervenções
psicoterapêuticas e/ou psicoeducativas de suporte ao familiar, com o objectivo
de o ajudar ao longo de todo este processo (Caraceni & Grassi, 2011; NICE,
2010). A necessidade de mais estudos sobre a experiência do delirium, bem como
sobre o impacto destas intervenções, nomeadamente na redução da ocorrência,
gravidade e duração desta perturbação, foi destacada pelas mais recentes
guidelines (NICE, 2010).
De um modo geral, estas intervenções devem considerar os seguintes princípios:
a) identificar e responder às preocupações e necessidades dos familiares; b)
identificar as reacções emocionais, que possam ter como consequência
comportamentos desadequados (ex. redução do número de visitas ao doente); c)
promover a comunicação entre a família e os profissionais de saúde responsáveis
pelo doente; d) envolver a família no plano de cuidados/assistência; e)
disponibilizar informação/educação sobre o delirium (Caraceni & Grassi,
2011).
No que concerne a este último ponto, a componente educativa deve focalizar-se
na abordagem dos seguintes aspectos do delirium: sintomas (em particular
desinibição, agitação, alucinação e delírios); curso flutuante (as fases
transitórias em que o doente parece estar bem não significam, necessariamente
recuperação); possíveis causas (ex. alterações metabólicas, medicação, relação
com demência) e opções de tratamento (incluindo efeitos secundários dos
tratamentos farmacológicos) (Caraceni & Grassi, 2011; NICE, 2010).
Neste âmbito, os familiares que participaram nos estudos de Gagnon et al (2002)
e de Keyser, Buchanan, e Edge (2012), com intervenções psicoeducativas,
consideraram fundamental a disponibilização de informação sobre o delirium (ex.
factores de risco, sinais de delirium) a todos os familiares e/ou cuidadores.
A presente revisão surge como um contributo para uma melhor compreensão do
estado da arte sobre a experiência do delirium vivenciada pelos familiares e/ou
cuidadores.
O processo de revisão baseou-se numa análise qualitativa, sintetizando os
principais resultados dos artigos incluídos, não recorrendo a qualquer técnica
ou critério estandardizado. Além disso, salienta-se que os resultados
apresentados devem ser analisados, tendo em consideração as limitações já
referidas, dos estudos incluídos no presente trabalho.
Conclusões
É actualmente reconhecida a importância do papel que as famílias e/ou
cuidadores desempenham no reconhecimento e na prestação de cuidados ao doente
com delirium. Esta consciencialização é paralela à identificação dos elevados
níveis de stress e dificuldades emocionais envolvidas, que podem comprometer a
assistência prestada ao doente e, nessa medida, devem também ser identificados
e alvo de intervenção.
Neste sentido, torna-se indispensável o desenvolvimento de intervenções de
suporte, com a avaliação da sua eficácia, nomeadamente na redução destes níveis
de stress vivenciados por estes familiares e/ou cuidadores.