Iatrogenia grave desconhecida, notificações e notificadores: resultados da
actividade da Unidade de Farmacovigilância do Centro
INTRODUÇÃO
A farmacovigilância tem como objectivo a detecção, avaliação e prevenção de
reacções adversas a medicamentos (RAM) após a sua comercialização,1,2
constituindo uma RAM «qualquer reacção nociva e involuntária a um medicamento
que ocorra com doses geralmente utilizadas no ser humano para profilaxia,
diagnóstico ou tratamento de doenças ou recuperação, correcção ou modificação
de funções fisiológicas».3 A notificação espontânea (NE) é um método da
farmacovigilância que permite identificar, documentar e avaliar suspeitas de
RAM tendo as vantagens de abranger todos os medicamentos comercializados e
todos os doentes, particularmente os que integram populações sub representadas
nos ensaios clínicos, para além de poderem detectar RAM raras e/ou de longo
tempo de latência.4-6
As RAM reportadas são um contributo insubstituível para o melhor conhecimento
da iatrogenia medicamentosa, do perfil de segurança dos medicamentos e para a
monitorização contínua das suas relações benefício/risco.6
Em Portugal, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P.
(INFARMED) é responsável pelo Sistema Nacional de Farmacovigilância (SNF).7 O
SNF foi criado em 1992 e posteriormente descentralizado em 2000 com a criação
das unidades regionais de farmacovigilância (URF).7 As suspeitas de RAM são
notificadas por profissionais de saúde a uma das quatro unidades de
farmacovigilância ou à Direcção de Gestão do Risco de Medicamentos (DGRM) do
INFARMED, através do envio de boletins de notificação por correio postal ou
electrónico, telefone ou através dos sítios da internet das URF. Os
profissionais de saúde podem solicitar por telefone ou e-mail à DGRM o envio
dos boletins de notificação ou podem imprimir o boletim de notificação
disponível no site do INFARMED e enviá-lo à DGRM devidamente preenchido por
correio postal.8,9 Em alternativa, os profissionais de saúde podem solicitar
também às URF o envio de boletins de notificação ou recorrer aos seus sítios da
internet para inserir online os dados relativos às RAM sem necessidade de
preencher os boletins em papel.10 Os boletins de notificação são ainda
distribuídos como documento incluso do Prontuário Terapêutico.
A Unidade de Farmacovigilância do Centro (UFC), sediada na AIBILI (Associação
para Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem), recebe todas as NE
provenientes da área geográfica correspondente à Administração Regional de
Saúde do Centro (ARS-C).
Constituíram objectivos deste estudo: caracterizar as RAM notificadas à Unidade
de Farmacovigilância do Centro (UFC) entre Janeiro de 2001 e Agosto de 2011
quanto à causalidade imputada, gravidade e conhecimento prévio; documentar o
contributo dos profissionais de saúde notificadores de RAM para a
farmacovigilância em Portugal; identificar os grupos farmacoterapêuticos com
maior prevalência de notificação; e identificar novo conhecimento produzido
decorrente da actividade da UFC.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional, transversal, descritivo incluindo as NE
provenientes da área geográfica correspondente à ARS-C.
Foram incluídas as NE recebidas na UFC entre Janeiro de 2001 e Agosto de 2011
que verificaram critérios de inclusão primários (identificação de doente,
medicamento suspeito, acontecimento adverso e notificador) e secundários
(informação completa sobre nível de causalidade imputada, conhecimento prévio
avaliado e gravidade documentada).
A codificação das RAM foi feita de acordo com a terminologia MedDRA (Medical
Dictionary for Regulatory Activities). A codificação MedDRA é uma terminologia
médica específica e padronizada, desenvolvida pela Conferência Internacional de
Harmonização (ICH), para facilitar a partilha de informação entre as
autoridades reguladoras e a indústria farmacêutica sobre regulamentação de
produtos médicos (medicamentos, dispositivos médicos) utilizados por seres
humanos. É utilizada para registo, documentação e monitorização da segurança de
produtos médicos nas fases de investigação e desenvolvimento e pós-
comercialização.11,12
Os medicamentos foram classificados de acordo com o Prontuário Terapêutico,
porque é um documento de referência extensivamente utilizado pelos
profissionais de saúde (médicos, farmacêuticos e enfermeiros) no decorrer das
suas actividades profissionais e que segue a Classificação Farmacoterapêutica
Portuguesa.13
O nível de imputação de causalidade entre a RAM e a exposição ao medicamento
suspeito foi classificado segundo os critérios da Organização Mundial da Saúde
(OMS), pelo método de introspecção global (IG).14-17 O método da IG é um
processo pelo qual um conjunto de peritos avalia a relação causal entre a
exposição a um medicamento e a ocorrência de um evento adverso, considerando
todos os dados disponíveis relevantes para o caso (dados clínicos do doente,
por exemplo).16-18 O grau de probabilidade estabelecido entre a exposição a um
medicamento e a ocorrência de determinado evento adverso pode ser definitivo,
provável, possível, improvável, condicional/não classificado ou não acessível/
não classificável.14-16,19 Para se estabe-lecer uma relação causal deve-se ter
em conta os critérios de Bradford Hill: força, consistência, especificidade,
temporalidade, gradiente biológico, plausibilidade, coerência, evidência
experimental e analogia.16,20 O método da IG é um método simples, de fácil
aplicação, que se assemelha ao processo de diagnóstico clínico e que depende
dos conhe-cimentos e da experiência dos peritos.18 O grupo de peritos da UFC é
composto por 9 elementos, entre os quais médicos e farmacêuticos com
especializações em farmacologia, farmacologia clínica, farmacovigilância,
farmacoepidemiologia, medicina clínica, farmácia clínica e regulamentação
farmacêutica e do medicamento.16
A gravidade foi atribuída segundo os critérios da OMS.19 Foram consideradas
graves as RAM que «provocaram morte», «colocaram a vida em risco», «motivaram
ou prolongaram a hospitalização», «motivaram incapacidade temporária e/ou
definitiva», e que «originaram anomalias médicas».
Foram consideradas conhecidas as RAM descritas nos Resumos das Características
dos Medicamentos (RCM) suspeitos.
Os notificadores foram agrupados de acordo com a profissão e local de
exercício.
Para o tratamento dos dados foi utilizado o software estatístico SPSS®
(Statistical Package for Social Sciences), versão 17.0.
Resultados
Foram recebidas na UFC 1846 NE de RAM entre 2001 e Agosto de 2011, 999 das
quais verificaram os critérios de inclusão.
O fluxograma do estudo é apresentado na Figura_1. No Quadro_I apresenta-se a
frequência das RAM distribuída por nível de causalidade imputada, gravidade e
conhecimento prévio. Identificaram-se 149 (14,9%) RAM desconhecidas e 428
(42,8%) graves. Destas, 70 (7,0%) RAM eram simultaneamente graves e
desconhecidas e 41 (4,1%) simultaneamente graves, desconhecidas, definitivas ou
prováveis.
A distribuição do número de notificadores e do número de RAM de acordo com o
local de notificação apresenta-se no Quadro_II. A consulta em ambulatório foi
origem da maior frequência de notificação de RAM (427; 42,7%). Identificaram-se
423 profissionais de saúde notificadores.
Entre os profissionais de saúde, os médicos (224; 53,0%) notificaram o maior
número de RAM (577; 57,8%). Os médicos especialistas em medicina geral e
familiar (MGF) notificadores (98; 23,2%) notificaram 340 (34,0%) RAM.
Os farmacêuticos notificadores (143; 33,8%) notificaram 354 RAM (35,4%). A
partir de farmácias comunitárias foram notificadas 237 (23,7%) RAM por 118
(27,8%) farmacêuticos comunitários. Os farmacêuticos hospitalares (20; 4,7%)
notificaram 112 (11,2%) RAM.
Os enfermeiros (54; 12,8%) notificaram 66 (6,6%) RAM. Os enfermeiros
notificaram mais frequentemente a partir da consulta em ambulatório (43 RAM;
4,3%).
A distribuição por grupos terapêuticos dos medicamentos suspeitos descreve-se
no Quadro_III. Os medicamentos que actuam no «aparelho locomotor» (157; 15,7%),
no «aparelho cardiovascular» (146; 14,6%), os «anti-infecciosos» (143; 14,3%) e
os que actuam no «sistema nervoso central» (141; 14,1%) foram os mais
frequentemente notificados. O medicamento que isoladamente foi objecto de maior
número de notificações (49; 4,9%) inclui-se no grupo terapêutico «vacinas e
imunoglobulinas».
No Quadro_IV apresentam-se as 41 RAM graves, desconhecidas, definitivas ou
prováveis distribuídas por grupos terapêuticos. Identificaram-se 14 no grupo
terapêutico «vacinas e imunoglobulinas».
Discussão
Os profissionais de saúde devem ter em conta os benefícios e os riscos dos
medicamentos, bem como a natureza e a severidade das RAM.21-23 É reconhecido
que o processo da NE contribui para um aumento do conhecimento da relação
benefício/risco dos medicamentos.24
A UFC encontra-se em actividade há aproximadamente 10 anos. Ao longo desta
década recebeu 1846 NE de RAM. Todas estas notificações foram validadas,
tratadas e avaliadas na UFC. Desde que iniciou a actividade até à actualidade,
a UFC mantém uma base de dados que inclui informações relativas a todas as
notificações recebidas. No entanto, verificaram-se 847 notificações que não
contêm informação suficiente, nem reparável, para cumprir os requisitos de
validação secundária estabelecidos para este trabalho, e foram por isso
excluídas. Este achado será objecto de estudo detalhado para identificar
possíveis razões para a sua existência, já que tem significativa ponderação
relativa no total das notificações recebidas (45,9%).
Entre vários objectivos, este estudo investigou qual a importância da UFC na
produção de novo conhecimento sobre a segurança dos medicamentos devido à
identificação de RAM desconhecidas.
Para identificar o novo conhecimento produzido pela UFC foi necessário
caracterizar as RAM quanto a conhecimento prévio, gravidade e causalidade
imputada.
Em primeiro lugar, classificaram-se as RAM quanto ao conhecimento prévio. Foram
identificadas 149 RAM desconhecidas, o que revela a importância da
farmacovigilância e da NE como fonte de conhecimento de eventos adversos
previamente não identificados. Das RAM desconhecidas foram classificadas como
graves 70, cuja documentação é de importância acrescida por representarem
eventos adversos que tiveram efeitos clínicos graves. Das RAM desconhecidas
graves identificaram-se aquelas cuja causalidade foi imputada como definitiva
ou provável. Seleccionaram-se estes dois níveis de causalidade por traduzirem
uma maior força de associação entre a exposição ao medicamento e a ocorrência
dos eventos adversos. Encontraram-se 41 RAM simultaneamente desconhecidas,
graves, definitivas ou prováveis que devem merecer especial atenção por parte
do Sistema Nacional de Farmacovigilância.
Neste estudo verificou-se que o grupo profissional que mais frequentemente
notificou à UFC foi o dos médicos, seguido de farmacêuticos e enfermeiros. A
consulta em ambulatório foi o local mais frequente de origem de notificação,
seguido por hospital e farmácia comunitária.
No Anuário Estatístico da Região Centro de 2009 contam-se 5861 médicos, dos
quais 1361 médicos especialistas em MGF, e 9875 enfermeiros.25 De acordo com os
dados fornecidos pela secção regional de Coimbra da Ordem dos Farmacêuticos
(OF), até final do ano de 2009 existiam 2049 farmacêuticos (1379 comunitários e
170 hospitalares) registados nesta secção regional. À UFC notificaram, desde
2001 até Agosto de 2011, 224 médicos, dos quais 98 médicos especialistas em
MGF, 54 enfermeiros e 143 farmacêuticos (118 comunitários e 20 hospitalares).
Com base nestes dados, é possível constatar que os profissionais de saúde
notificadores de RAM constituem uma percentagem muito reduzida. Além disso, de
acordo com a OMS, um centro de farmacovigilância deverá receber mais de 200 NE
de RAM por milhão de habitantes por ano.26 Considerando que a UFC recebeu entre
Janeiro de 2001 e Agosto de 2011 um total de 1846 NE de RAM e que a zona centro
contava com 2.381.068 habitantes em 2009,25 concluímos que o número de NE de
RAM enviadas à UFC é baixo, ilustrando que a sub-notificação continua a ser uma
limitação da farmacovigilância. Apesar das limitações descritas, foi possível
identificar 41 RAM simultaneamente desconhecidas, graves, definitivas ou
prováveis. Se o número de NE aumentar, nomeadamente através de uma maior adesão
dos profissionais de saúde a este método de monitorização da segurança dos
medicamentos na prática clínica, será possível produzir mais e melhor
conhecimento cuja consequência será a melhor avaliação das relações benefício/
risco dos medicamentos e a maior segurança dos doentes.
A NE constitui um processo simples e não dispendioso que permite aos
profissionais de saúde contribuírem para melhorar o conhecimento do perfil de
segurança dos medicamentos. No entanto, a falta de informação sobre o SNF, em
particular sobre o processo de NE de RAM, bem como a dificuldade em reconhecer
um evento adverso como consequência da exposição a um medicamento, são factores
que podem ajudar a explicar a muito reduzida percentagem de notificadores
encontrada. A promoção de acções formativas e de divulgação sobre o SNF junto
dos profissionais de saúde e a integração deste tema na formação académica
poderá contribuir para a melhoria do sistema de farmacovigilância. Por outro
lado, os profissionais de saúde, enquanto notificadores, devem estar
conscientes de que notificar suspeitas de RAM é um dever profissional.
Este estudo permitiu também identificar os grupos terapêuticos com maior
prevalência de notificação. Os medicamentos que actuam no «aparelho locomotor»,
no «aparelho cardiovascular», os «anti-infecciosos» e os que actuam no «sistema
nervoso central» representaram 60% dos medicamentos notificados como suspeitos.
No entanto, a ausência de dados de exposição populacional a estes medicamentos
não permite tirar conclusões definitivas nem generalizar os resultados obtidos.
Em conclusão, apesar das limitações referidas, é demonstrado que a NE é um
método valioso na detecção de RAM raras e graves.5,6
Nota: a UFC exerceu a sua actividade entre 2001 e 2004 e de 2009 até ao
presente.