Rebeliões de classe média? Precariedade e movimentos sociais em Portugal e no
Brasil (2011-2013)
Introdução
O presente texto centra-se nas recentes manifestações e movimentos de protesto,
com especial atenção aos casos de Portugal e do Brasil, partindo da hipótese de
que se trata de dinâmicas e tensões sociais onde transparece uma pulsão de
classe média e na qual a juventude e a precariedade ocupam um papel decisivo. A
perspetiva adotada pretende ir além das teorias clássicas sobre os movimentos
sociais do mundo ocidental, procurando situar o fenómeno no contexto
socioeconómico mais geral ' e de crise ' a fim de discutir, por um lado, as
implicações da fragmentação do trabalho assalariado e do aumento da
precariedade na intensificação das desigualdades, e, por outro, a ineficácia
das instituições e das políticas públicas, como fatores fundamentais da
conflitualidade social que esteve na base das rebeliões sociais dos últimos
anos.
Começo por esclarecer que não se trata de uma pesquisa sociológica de raiz,
mas antes de um registo ensaístico no qual procuro fazer uso de um conjunto de
dados e elementos empíricos (alguns deles recolhidos através de fontes
indiretas e outros de observação direta), com vista a explorar uma hipótese
explicativa que sai fora dos cânones habituais do mundo académico. Assumo,
portanto, o caráter controverso do artigo e admito até que esse poderá ser a
sua maior virtude, desde que contribua para que as ciências sociais saiam do
seu gueto e comecem a dirigir-se a um público mais amplo. É com esse espírito
que procuro contribuir para uma desconstrução do conceito de classe média, na
sua tradicional conotação com passividade, individualismo e adesão acrítica à
ordem burguesa, realçando em especial as segmentações atualmente em curso no
seio da classe trabalhadora, com a emergência de novos setores precários,
instáveis e qualificados da força de trabalho. A isso junta-se também uma
preocupação com a necessidade de atualização conceptual e analítica das formas
mais recentes de ação coletiva, de que é exemplo o último ciclo de movimentos
sociais onde se inserem os casos que se discutem neste artigo.
O objetivo do ensaio é, pois, identificar algumas características de novidade
destas manifestações e mostrar até que ponto elas transportam uma dinâmica
transformadora. Procura-se, em suma, responder a uma dupla pergunta: (1) quais
os grupos sociais que mais têm alimentado esses movimentos, ou seja, quem se
mobiliza?; e (2) qual o sentido da mudança que imprimiram na sociedade mais
geral, quer nos momentos de maior intensidade, quer nas suas repercussões
subsequentes?
A resistência a um statu quo, a uma ordem económica e política que defraudou
expectativas, que ameaçou ou subtraiu direitos e bloqueou oportunidades parece
obedecer a preocupações comuns em ambos os lados do Atlântico. Ao tentar
revelar conexões com o mundo do trabalho e com o processo de empobrecimento de
amplas camadas sociais ' no caso de Portugal, estimulado pelas medidas de
austeridade de categorias profissionais que haviam almejado um estatuto próximo
dos estilos de vida da classe média urbana (assalariada) ', realça-se o
potencial transformador das situações de rebelião, argumentando que os
segmentos mobilizados nessas manifestações mantêm algum tipo de vínculo com
padrões de consumo das camadas intermédias, apesar de isso ocorrer mais na
dimensão subjetiva do que na condição socioeconómica, a qual parece ser, em
ambos o casos, marcada pela instabilidade e precariedade. Assume-se que as
camadas que integraram os protestos se debatem com processos de rápida
redefinição de statuse de padrões de consumo associados aos direitos laborais
(ameaçados ou por consolidar) e a um profundo sentimento de frustração e de
injustiça. A relação com o mercado de trabalho e suas metamorfoses, os impactos
da economia global e da mercadorização crescente da vida social, as mutações
tecnológicas e suas implicações nas atuais redes comunicacionais serão alguns
dos fatores a considerar na identificação de similitudes e diferenças entre os
dois contextos em estudo.
1. Um ciclo de contestações globais ' Revolução e ação
Algumas das já antigas abordagens sobre os novos movimentos sociais (NMSs) das
décadas de 1960-1970 vêm naturalmente perdendo acuidade. A definição clássica
de Alain Touraine (1985 e 2006), e os seus conhecidos princípios definidores de
movimento social ' a identidade (quem somos?), a oposição (contra quem
lutamos?) e a totalidade (por que sociedade lutamos?) ' dificilmente poderão
explicar as atuais mobilizações. Asidentidades são cada vez mais fragmentárias
e fluidas, ainda que se possa sustentar que a intensidade de uma ação coletiva
induza nos participantes um certo sentimento de comunhão, porém furtivo e
passageiro. Se é verdade que o adversário existe (princípio da oposição), nem
sempre é claro contra qual opositor cada uma destas mobilizações se define.
Nuns casos, opõe-se a regimes tirânicos e aos seus representantes máximos,
encontrando na figura do ditador a personificação daquilo contra o qual se
luta. Noutros casos o adversário é abstrato (o capitalismo) ou é um poder
localizado (a prefeitura, a câmara, o ministro X, o Governo), que pode alterar-
se e remeter para outros adversários mais distantes (o governo central, o FMI,
a Comissão Europeia, etc.). Finalmente, quanto ao princípio da totalidade, se o
mesmo apontava para um modelo alternativo de sociedade (por exemplo o
socialismo), é bem sabido que esse objetivo longínquo está longe de ser o
elemento unificador dos movimentos sociais do século xxi. Enquanto uma nova
utopia capaz de surgir como alternativanão se expandir, as indefinições e
ambiguidades dos movimentos tendem a persistir (Cohen e Arato, 1994; Laclau,
1996; Melucci, 2001; Santos, 2003).
A questão da alternativa mudou de sentido nas últimas décadas. Por outras
palavras, não é em nome do futuro que as pessoas se mobilizam, mas mais em nome
da recusa de um passado humilhante ou de um presente desprezível (Arcary,
2013). E pior do que o passado (seja este radioso ou miserável) é o facto de a
maioria desprezar a situação presente e começar a olhar com realismo a
possibilidade de mudar de vida e enfrentar o desconhecido: o pior do que está
é impossível! pode tornar-se uma ideia agregadora. Como realçou um conhecido
especialista na matéria, nenhum observador esclarecido e moderadamente
inteligente poderia examinar o estado do planeta e concluir que haveria como
repará-lo sem uma transformação radical (Eagleton, 2011: 244). Outro
intelectual da atualidade, Slavoj Zizek, afirmou recentemente que
a diferença entre um período reformista e um período revolucionário é
que no primeiro a revolução global continua a ser um sonho que, na
melhor das hipóteses, sustenta as nossas tentativas para aprovar
alterações locais ' e no pior dos casos impede-nos de concretizar
mudanças reais ', ao passo que uma situação revolucionária surge
quando se torna claro que apenas a mudança global radical pode
resolver os problemas particulares. (Zizek, 2013: 101)
Dificilmente poderemos confundir os levantamentos sociais aqui em análise com
revoluções no sentido atrás descrito, muito embora se saiba que, em alguns
casos, como na chamada Primavera Árabe (Tunísia, Egito, Líbia), ocorreram
mudanças radicais, quedas de governos e de regimes, devido à amplitude e
intensidade das manifestações de rua.1 Tendo em conta a forma e os contornos
que por vezes adquirem estas sublevações, e dada a pressão que colocam perante
governos e instituições, pode admitir-se um potencial revolucionário, se bem
que a sua natureza difusa e a ausência de uma alternativa ou de uma
orientação ideológica deixem em aberto o desfecho (progressista ou reacionário)
dessas rebeliões. Os meios informáticos e em especial as novas redes sociais
constituíram o ingrediente decisivo deste novo ciclo de protestos sociais.
2. Classe média, entre o individualismo e a precariedade
Não obstante toda a controvérsia e imprecisões teóricas a respeito do termo
classe média, ele contém um potencial heurístico. Para revelá-lo há que
ter presente a origem da noção e nela buscar o porquê da sua tão profunda
penetração na linguagem comum. Um texto recente, de Ezequiel Adamovski (2013),
mostra que a génese da expressão (classe média) remete para uma antiga metáfora
popular assente na premissa de que a organização do mundo físico contém sempre
um elemento superior, um médio e um baixo. Foi isso que ajudou a
disseminar um mapa mental segundo o princípio moral de que a virtude está no
meio, ou seja, é a posição intermédia que corresponde ao locus da justa medida,
da moderação e da virtude, por oposição aos extremos (que no caso significam a
situação de miséria, de um lado, e a riqueza exagerada, de outro). É nesta
linha que, à luz da velha tradição liberal europeia, a ideia de civilização e
de progresso se foi associando a um padrão de vida e de cultura, inscrita num
certo sentido de evolução histórica, onde a classe média ocupou um papel
decisivo durante o século xx, conotando-a com o motor da história (a despeito
da luta de classes ou em estreita ligação com ela), pelo menos segundo a
leitura do liberalismo e da social-democracia europeia, apesar de, nos EUA, ter
prevalecido o velho lema oitocentista do empreendedorismo individual (e a
meritocracia) como a via a seguir para colocar a classe média tocquevilliana na
senda do El Dorado.
Por outro lado, a discussão em torno do conceito de classe média implica que
a mesma seja analisada na sua perspetiva dinâmica, sem no entanto esconder que
as suas conceptualizações ao longo do século xx exprimiram visões muito
díspares entre os cientistas sociais. Mais do que uma visão essencialista (em
geral assente na ideia de homogeneidade) fundada na tradicional conceção
dicotómica da luta de classes, interessa olhar as tensões internas e os
processos de segmentação entre grupos e subgrupos em disputa por monopolizar
recursos, poder e estatuto social, embora sem esquecer que tais processos
decorrem sob a lógica do antagonismo entre capital e trabalho.2 A
conflitualidade social não obedece apenas ao critério marxiano do lugar nas
relações sociais de produção (onde a posse da propriedade privada e a
transferência de mais-valia definem as relações entre as classes fundamentais),
mas também a conflitos de statuse estilos de vida segundo as lógicas de
usurpaçãoe distinção que persistem no seio da classe média. Este é um dos
pontos em que os legados marxista e weberiano se podem enriquecer mutuamente
(Parkin, 1979; Bourdieu, 1979; Eder, 2001; Burawoy, 2009).
É conhecido o papel histórico do movimento operário e do sindicalismo ' bem
como a promessa do socialismo soviético e o clima de Guerra Fria ' para
viabilizar o compromisso histórico (entre trabalho e capital) que abriu
caminho às políticas sociais na Europa da segunda metade do século xx ' o
Estado-providência ' e, consequentemente, à expansão da classe média (Erikson e
Goldthorpe, 1992; Esping-Andersen, 1996). Na verdade, o crescimento desta
categoria nas sociedades europeias não é nem nunca foi resultado direto de uma
suposta meritocracia, mas sim das lutas e negociações persistentes
(conduzidas pelo sindicalismo) desencadeadas pelos novos segmentos qualificados
da classe trabalhadora, que aspiraram a mais direitos, poder de compra,
carreiras e proteção social. Por isso mesmo, esses estratos correspondem a
categorias intermédias da classe trabalhadora que consolidaram o seu estatuto
à custa da luta social e, por isso, não correspondem àquela classe média
instalada e com pretensões de elitismo que se limitou a beneficiar da herança
patrimonial ou do mundo dos negócios dos seus antepassados. Todavia, decorridas
cerca de seis décadas, os filhos e netos da classe trabalhadora do pós-guerra,
embora beneficiários de um processo que os elevou a outro estatuto, vivem
hoje, em boa medida, sob a ameaça de empobrecimento, encontram-se hoje numa
condição ambivalente e descompensada, isto é, com qualificações e capital
educacional elevados, mas recursos económicos baixos e em declínio. Tudo isto
conduz à degradação do seu estatuto (Estanque, 2012) e à radicalização das suas
subjetividades e posicionamento político. A velha classe de serviço (Erikson e
Goldthorpe, 1992) tende, pois, a tornar-se uma classe rebelde,em especial os
seus setores em processo de formação, como é o caso dos mais jovens. Sem
esquecer que a juventude é, ela própria, marcadamente ambivalente, dado
encontrar-se numa fase de consolidação e de vulnerabilidade na sua trajetória e
habitusde classe ainda mal definidos (Pais, 1990).3
Alguns autores têm associado as transformações recentes do mercado de trabalho
à emergência do precariado (Standing, 2013), categoria que incorpora segmentos
significativos da classe média assalariada, cujo trabalho se tornou frágil e
instável, sujeito às contingências do mercado, à informalização, às agências de
emprego, ao regime de tempo parcial, ao falso autoemprego e a esse novo
fenómeno de massas chamado crowd-sourcing (Standing, 2014: 12).4 Estas
concetualizações não são consensuais nos atuais debates. Este autor, embora
admitindo que o precariado possa constituir uma classe em construção, sustenta
que entre esta força de trabalho vulnerável e o que designa de salariado (a
velha categoria de trabalhadores protegidos do modelo industrial) há
sobretudo divergência. Além disso, Standing aceita como irreversível a
vulnerabilidade, instabilidade e fluidez de formas e de vínculos de trabalho,
que considera um imperativo do processo de trabalho global, e, inclusive,
sugere como um cenário possível de paraíso a expansão do atual modelo de
flexibilização e de mercadorização do trabalho, através, não da ação sindical,
mas de um novo tipo de corporação colegiada que assuma o desafio de uma
negociação colaborante (Standing, 2013: 252). Como é natural, essa abordagem
é contrariada por visões mais marcadamente críticas do capitalismo global.
Para autores como Ursula Huwz (2003), Ricardo Antunes (2013) ou Ruy Braga
(2012), a nova segmentação e recomposição do trabalho é a principal força
propulsora das novas lutas sociais globais, visto que daí derivam implicações
para a degradação das condições de vida e uma pauperização estrutural
crescente, que se insere na própria dinâmica do capitalismo e que lhe serve de
alimento. A situação do Brasil assume configurações específicas e a contestação
resultou de uma combinação de fatores muito variados, colocando lado a lado
ações radicais de núcleos de ativistas politizados e a presença espontânea de
setores da classe média descontente. Já a nível mais geral o que está a ocorrer
é uma enorme fragmentação e metamorfose da classe trabalhadora, fruto do
metabolismo do capitalismo global. Em suma, quer no caso de Portugal quer no do
Brasil, a recente onda de rebeliões fez confluir segmentos distintos dos
referidos grupos subalternos e precarizados com outros setores da força de
trabalho, expressão do novo figurino do trabalho e da luta de classes. Todavia,
como atrás referi, as próprias alianças entre esses dois grandes conjuntos são
igualmente precárias e pontuais (ou simplesmente não existem). Por isso mesmo,
as ações de rua, por serem despojadas de lideranças e de objetivos claros,
tendem a obedecer mais a impulsos e ansiedades ainda latentes do que a
orientações políticas definidas. As noções de latência e de pulsão5 podem,
assim, ser ajustáveis a dinâmicas coletivas que, não obstante o seu impacto
político, transportam também lógicas e comportamentos de multidão.
Olhando a forte mobilidade, a fluidez e a instabilidade dos trabalhadores que
compõem o precariado é forçoso reconhecer uma diferença abissal em comparação
com o velho proletariado da Inglaterra do século xix, estudado por F. Engels
(2008 [1842]) e E. P. Thompson (1982 [1963]), considerando as suas experiências
e formas de convivialidade, que induziram a cultura de resistência e a
consciência da classe trabalhadora nas suas lutas contra o capitalismo
emergente. Daí que, mesmo reconhecendo a natureza estrutural da condição
precária do século xxi, é necessário atender à profunda reconfiguração das
condições de trabalho para compreender a incongruência entre a composição da
atual classe trabalhadora (mais qualificada e mais precária) e a sua expressão
no terreno sociopolítico.
Mas o entendimento destas novas tendências requer que se olhe para o passado
recente. Com o fim do fordismo e dostrinta anos gloriosos, tornou-se claro que,
na Europa ocidental, a promessa de mobilidade social ascendente da classe
trabalhadora, fundada na meritocracia, foi uma falácia. Com efeito, as lutas
sociais do século xx não foram somente fruto da vanguarda operária, mas
também dos beneficiários do Estado de bem-estar, incluindo todo um conjunto
de novas categorias socioprofissionais (professores, médicos, quadros da
administração pública, etc.). Na sua obra clássica Middle Class Radicalism
(1968), Frank Parkin identificou diversos grupos dentro da classe média,
mostrando a importância em especial dos setores da classe média educada6 na
participação no movimento ambientalista de finais da década de 1960 (Parkin,
1968: 177). Se é verdade que no pós-68 o capitalismo ocidental não deixou de
revelar toda a sua capacidade regeneradora, tais movimentos abriram espaço a
novos valores, novos reportórios, dimensões e modalidades inovadoras de ação
coletiva (Eder, 2001; Boltanski e Chiapello, 2001; Estanque, 2012).
Importa, porém, atender às especificidades de cada país. Portugal, como
sabemos, sofreu com o atraso na industrialização e a abertura democrática
tardia, enquanto o Brasil foi marcado ainda por outro tipo de fatores
históricos e socioculturais, designadamente pelo legado do colonialismo. Daí
que, hoje como ontem, a discussão sobre a estrutura de classes e a controvérsia
em torno da classe média brasileira requeira outras referências. Primeiro, a
herança colonial e a presença histórica de escravatura deixaram marcas
indeléveis. Depois, a emergência tardia da classe média estabelecida,7
beneficiária direta das políticas governamentais do Estado, sobretudo no
período varguista e do chamado milagre económico brasileiro (1968-1973). Este
segmento privilegiado das classes média e média-alta (sobretudo as que se
concentram na cidade de São Paulo) é herdeiro de um estatuto social e de uma
subjetividade conservadora que tende a naturalizar a sua (real ou imaginária)
posição junto da elite. É esse legado que justifica a sua atitude
preconceituosa em relação aos novos segmentos emergentes e aos estratos sociais
mais pobres ou excluídos, que são, afinal, os principais alvos de uma
estigmatização, de um racismo de classe, que ainda hoje se torna chocante aos
olhos de qualquer visitante que circule pelo centro de uma cidade como São
Paulo (Guimarães, 2002; Santos, 2004; Souza, 2010).
Quer isto dizer que essa é apenas uma subcategoria dentro da classe média
(com elevado capital económico e capital cultural e educacional com pouca
solidez), à qual podemos opor as novas subcategorias emergentes, com elevado
capital educacional e baixos recursos económicos. Assim, aos velhos anátemas
lançados contra a classe média, tais como o seu intrínseco individualismo e
emburguesamento, pode contrapor-se um radicalismo de classe média.Um
radicalismo que no passado se exprimiu nos movimentos estudantis e
ambientalistas dos anos sessenta (Barker, 2008; Estanque e Bebiano, 2007) e
que, nos últimos anos, se traduz na crispação contra um bloqueio asfixiante das
oportunidades e na busca de um Estado social por construir e um desenvolvimento
económico eternamente adiado.
As tipologias de análise de classes continuam em reatualização e têm surgido
novas e interessantes propostas, nomeadamente sob influência do pensamento
weberiano e bourdieuano (Savage et al., 2013; Souza, 2010),8 mas o valor
heurístico da noção de classe média pressupõe situá-la no quadro de
processos políticos e discursivos mais profundos, capazes de fazer com que
determinados conjuntos de pessoas se agrupem com outros, ainda que ocupando
diferentes condições socioprofissionais (Adamovski, 2013: 48).
3. Portugal e a proletarização da classe média
Num estudo conduzido por Nuno Nunes (2013), utilizando dados do European Social
Survey (ESS) e baseado na tipologia de classe da equipa do ISCTE--IUL,9
considerou-se o tipo de vínculo laboral cruzado com a categoria de classe, a
fim de avaliar o nível de precariedade segundo a variável classe. Conclui-se
que a posição mais vulnerável quanto à situação profissional é a dos Empregados
Executantes (EE)10 (veja-se Gráfico_1, abaixo). Esta categoria, juntamente com
os Profissionais Técnicos e de Enquadramento (PTE), corresponde a segmentos
socioprofissionais qualificados, que no passado recente detinham uma posição
estável nas fileiras da classe média assalariada. Estes são, com efeito, os
setores que mais viram reforçado o seu peso estatístico entre a população
portuguesa empregada nos últimos cinquenta anos em Portugal, evoluindo de 14,6%
para 36,4% e de 2,6% para 22,5% entre 1960 e 2011 (Carmo, 2013). Como se pode
observar, os vínculos precários (contratos a termo certo, falsos recibos verdes
e trabalho a tempo parcial) atingem não apenas os operários manuais (categoria
O), mas também a pequena burguesia técnica e de enquadramento (PTE) e os
empregados executantes (EE). Note-se que Portugal é o país onde, em termos
relativos, os Empregados Executantes (EE) são a categoria mais atingida por
condições de trabalho precárias.11 Isto parece indicar que o processo de
fragmentação do trabalho e de flexibilização tem atingido não só as camadas
tradicionais da força de trabalho manual, mas também setores da classe média
assalariada e trabalhadores dos serviços, que se tornaram um alvo primordial
das medidas de redução de custos das empresas.
Parece, portanto, evidente que no caso português (assim como na Estónia,
Eslovénia e Suécia) os segmentos da classe média são aqueles onde mais
incidem os vínculos precários de trabalho, o que significa que se trata de uma
camada ' próxima do precariado ' que praticamente foi excluída da cidadania
laboral nos últimos anos, visto corresponder a um segmento sem condições para
desenvolver o lazer e intervir politicamente [ ] porque perdeu o sentido de
segurança. (Standing, 2009: 314).
Há certamente uma estreita relação entre a precariedade e a condição de classe,
ou seja, a reforma imposta de cima para baixo sobre o sistema de emprego
interfere diretamente na coesão social e atinge violentamente as condições
laborais, o mercado de trabalho e a vida das famílias e dos cidadãos. Daí que o
efeito das políticas de austeridade se esteja a fazer sentir sobre as
desigualdades sociais desde 2009,12 contrariando o ciclo anterior, que teve uma
evolução positiva desde a década de 1990 até esse ano. Considerando o critério
de Ursula Dallinger (2011), estabeleceu-se a distribuição do rendimento
monetário disponível por adulto equivalente (rendimento familiar)13 pelos cinco
quintis da população, donde ressalta que nos três quintis do meio
(correspondendo às classes médias) houve um aumento do rendimento desde a
década de 1970, que se reforçou no inicio deste século. No entanto, a partir do
ano de 2009, quando a crise se agudizou no nosso país deu--se uma inversão:
entre 2009 e 2010 a porção do rendimento total detido pelos 5% e 10% mais
ricos em Portugal aumentou 0,8 e 0,6 pontos percentuais, respetivamente
(Cantante, 2013: 137). Usando como referência o salário mediano14 ' que era em
2009 de apenas 741,00 euros (brutos) ' pode dizer-se que se, por exemplo,
considerarmos a classe média como a camada situada no intervalo económico
75%-150% do ganho mediano, teremos nesse segmento 51,4% dos assalariados
portugueses (ibidem: 141).
Porém, a reestruturação do sistema de emprego nas últimas décadas já vinha
revelando uma forte presença de trabalhadores vulneráveis, que alguns autores
classificaram de novos proletários (Antunes, 2013). Em meados da década de
1990, uma categoria que num estudo anterior designei por proletários revelava
um peso de 46,5%, número que em 2001 desceu para 31% da força de trabalho
portuguesa (Estanque e Mendes, 1997; Estanque, 2003). Tal tendência parece ir
ao encontro da ideia de que em Portugal a classe médiaera frágil e,por isso,
mais facilmente entrou em declínio (Estanque, 2012). Desde a década de 1990
que, com a globalização económica e a força crescente do neoliberalismo, o
modelo europeu e o Estado social vinham sendo postos em causa, atingindo em
primeiro lugar os direitos laborais. O aumento do desemprego, os contratos
precários, a subida de impostos, o congelamento de carreiras e salários na
função pública, a privatização de serviços e de património público, as medidas
de contenção impostas na saúde, na educação, na ciência, etc., já há muito
vinham sendo denunciadas como um retrocesso nas conquistas da democracia, e,
por isso, grande parte dos portugueses as vinham contestando, mesmo antes da
chegada da crise mais violenta. Mas foi sobretudo nos últimos anos que a
conflitualidade social mais se acentuou. Entre 2010 e 2012 ocorreram em
Portugal 384 greves envolvendo cerca de 224 500 trabalhadores (apenas no setor
privado).15 A intensidade do descontentamento disparou sobretudo durante a
vigência do programa de resgate ' assinado pelos três partidos do arco do
poder, PS, PSD e CDS ', que impôs aos portugueses este modelo de sociedade da
austeridade (Ferreira, 2012).
Muito embora os movimentos sociais inorgânicos obedeçam a uma lógica que os
afasta do campo sindical, não se deve, portanto, minimizar a importância do
sindicalismo na resistência da sociedade civil contra as políticas de
austeridade (Estanque e Costa, 2011). A tensão existente entre esses dois
mundos não invalida a conexão e contaminação recíproca entre eles. Dito de
outro modo, a influência do campo sindical na consciencialização social dos
cidadãos não implica a adesão consciente destes às propostas e formas de ação
daqueles.
Um estudo recente ' conduzido por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais
(ICS) da Universidade de Lisboa ' indicava, inclusivamente, que são poucos os
portugueses que se sentem representados nos sindicatos (10%) ou nos partidos
políticos (também 10%), embora os movimentos sociais também não obtivessem a
confiança de muitos mais (12%) (Pinto et al., 2013). Quanto às atitudes, os
últimos levantamentos mostraram a discrepância entre a importância e o
desempenho, como foi o caso dos recentes resultados do European Social Survey
de 2012-2013, divulgados pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS, Lisboa,
18.03.2014), onde Portugal revelou existir um fosso entre a importância
atribuída pelos cidadãos às instituições democráticas e a avaliação que fazem
do seu desempenho, o que fica bem claro no que respeita, por exemplo, a tópicos
como o funcionamento dos tribunais, o combate à pobreza e às desigualdades
sociais.
4. Um novo ciclo de manifestações em Portugal e na Europa do Sul
É a esta luz que importa identificar os fatores sociológicos que estão na raiz
da vaga de manifestações que ocorreram em Portugal entre 2011 e 2013. À escala
global os vários acontecimentos deste último ciclo de rebeliões exprimem como
características comuns o facto de serem, como se referiu, marcadamente
dinamizadas pelas camadas da juventude escolarizada, veiculadas através do
ciberespaço, marcadas pela organização flexível, em rede, sem lideranças
identificadas e, ainda, revelarem um caráter parcialmente espontâneo. A
exposição mediática ' nomeadamente através do ciberespaço ' faz com que as
imagens e o aparato dramático das multidões em revolta, ou a festa coletiva de
um desfecho vitorioso, possam desencadear um efeito mimético de rápida
propagação internacional.
Em 12 de março de 2011 ninguém esperava tanta afluência à primeira grande
manifestação da chamada Geração à Rasca. O descontentamento face aos partidos
e a democracia representativa era bem visível: precários nos querem, rebeldes
nos terão!; queremos as nossas vidas!; roubo do salário!; o país está à
rasca!; economia rasca, basta!; precários não são otários!; o povo unido
não precisa de partido!; rasca é a precariedade; não me obriguem a
emigrar; eu quero ser feliz; quem elegeu os mercados?, entre muitos
outros, foram alguns dos slogans mais gritados em Lisboa e no Porto. Um jornal
do dia afirmava: Cartazes com as palavras flexitanga' e cravos vermelhos
também marcam o protesto. [ ] as imagens das televisões mostram um mar de gente
na Avenida da Liberdade (jornal Expresso, 12.03.2011). Em Lisboa a organização
indicou a presença de cerca de 200 mil manifestantes e de 80 mil no Porto.
Esse foi um momento alto dos movimentos de protesto em Portugal. Marcou uma
viragem em que o campo sindical deixou de ter o exclusivo da luta social e
laboral, e talvez por isso tenha marcado momentaneamente o debate público. Dois
meses depois, os Indignados e as Acampadas da Democracya Real Já, na Puerta del
Sol em Madrid ' Espanha, transmitiram mensagens de conteúdo semelhante e não
deixaram de invocar o exemplo português (Velasco, 2011); e logo depois a onda
global de contestação em torno do movimento Occupy Wall Street, centrado em
Nova Iorque mas que teve uma influência mundial (Taylor et al., 2011; Harvey et
al., 2012). Em Portugal, pode resumir-se este ciclo, por ordem cronológica:
o 15 de outubro de 2011 (Dia de Ação Global), a greve geral de 24 de novembro
de 2011 (organizada conjuntamente pelaCGTP e pela UGT), as concentrações de 12
de maio de 2012 (Primavera Global), o 15 de setembro de2012 (Que se Lixe a
Troika), o 13 de outubro de 2012 (protestos culturais do movimento de artistas
ligados aoQue se Lixe a Troika) e a greve geral com dimensão europeia de 14 de
novembro de2012 (que ocorreu em Portugal, Grécia, Espanha, Malta e Chipre); em
2013 a manifestação do 3 de março (sob o lema da famosa canção Grândola Vila
Morena, o Povo é Quem mais Ordena),ao que se seguiu uma vaga de ações
promovidas por grupos de jovens organizados, as chamadas Grandoladas, que
incluíram iniciativas de boicote a atos oficiais com a presença de
representantes do Governo, em que o público interrompia os discursos com a
referida canção cantada em coro ou gargalhadas coletivas, destinadas a
atrapalhar o discurso desses personagens, sendo que o ex-ministro Miguel Relvas
foi o alvo privilegiado (Soeiro, 2014).
Para além desses momentos de luta mais intensos (que começaram ainda no Governo
de José Sócrates), importa recuar pelo menos uma década para situar o início da
derrocada de muitas das ilusões da classe média portuguesa. Até às sucessivas e
cíclicas mobilizações sindicais, greves e lutas laborais de cariz
corporativista ' onde pontuaram, designadamente, os professores, funcionários
públicos, médicos, enfermeiros e trabalhadores do sistema de saúde, ou seja,
aqueles segmentos socioprofissionais de classe média ' suportadas por esses
setores, que se foram tornando a principal base de apoio do campo sindical, à
medida que o velho operariado foi perdendo peso e combatividade e o
sindicalismo se foi institucionalizando e burocratizando. Porém, a mais recente
vaga de protestos não só continuou a ter como principal causa o mundo do
trabalho, como imprimiu um novo fôlego à ação coletiva nesse campo (Estanque,
Costa e Soeiro, 2013).
5. Brasil: a classe média, o mercado de trabalho e a blindagem do sistema
político
Com a entrada no novo milénio, e em especial a partir de 2003, o Brasil começou
a evidenciar uma melhoria nos indicadores do mercado de trabalho e da economia.
O ritmo de crescimento económico foi, em média, de 5,4% até 2008, e de 5,5% em
2009 e 2010. Por seu lado, o nível salarial continuou a crescer a ritmos
superiores à inflação (Krein e Baltar, 2013). Pode dizer-se que a ampliação do
programa Bolsa Família, com os aumentos reais do salário mínimo e com o
subsídio ao crédito popular, interagiram com o crescimento económico, ajudando
a fortalecer o mercado de trabalho e o aumento do consumo. Entre 2003 e 2010,
foram criados em média 2,1 milhões de empregos formais por ano, na sua
esmagadora maioria no setor dos serviços, o que permitiu o crescimento de um
discurso, eufórico e recorrente na comunicação social, em torno do crescimento
da nova classe média, aplaudido por uns e criticado por outros (Pochmann,
2012; Bartelt, 2013).
A avaliar pelos critérios oficiais,16 esta classe média brasileira ' medida
com base no rendimento familiar e no consumo ' corresponderia no ano 2000 a
31,7% das famílias, enquanto a sua capacidade de consumo era calculada em 50%
de todo o mercado consumidor do Brasil. Em 2012, segundo um estudo do
Datafolha, os seus diferentes estratos (classe média-alta, classe média
intermediária e classe média baixa)17 correspondiam a 63% da população ativa.
Todavia, embora seja evidente que o nível de poder aquisitivo dos estratos mais
baixos e intermédios da pirâmide social brasileira subiram, essa é uma
conclusão enganadora. As pesquisas elaboradas pela Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e pelo IPEA18 sob a liderança de Marcelo Neri (2012) apoiam-se num
discurso que faz abertamente a apologia do consumismo e das virtudes do
marketing e do endividamento, enquanto, por outro lado, confunde, como acabei
de referir, classes sociais com categorias de rendimento.19 As
infraestruturas materiais e condições efetivas de qualidade de vida
(salubridade, conforto, educação, assistência na saúde, etc.) das famílias não
são consideradas relevantes nestas tipologias.
Pode dizer-se que a pirâmide social brasileira se renovou, mas ela renovou-se
mantendo a instabilidade e a precariedade no emprego. Na década de 2000, a
cada vaga aberta de emprego assalariado informal, três outras eram criadas para
o trabalho com carteira assinada (Pochmann, 2012: 38). Para além disso, a taxa
de rotatividade (em cerca de 37% do emprego formal, em 2009) cresceu muito,
sobretudo para os empregos de mais baixos salários (85,3% para a faixa que
ganha até 2,5 salários mínimos), sendo mais elevada para as camadas mais
jovens. Para essas camadas, o poder de compra melhorou, os direitos foram em
parte reconhecidos e o acesso à educação também evoluiu; e tudo isto combinado
contribui para estimular a cidadania e multiplicar as aspirações pessoais e
familiares.
As variáveis sociais são inseparáveis da esfera política, pelo que importa
ainda assinalar outras especificidades da jovem democracia brasileira que
poderão ajudar a entender os protestos. Os movimentos sociais e sindicais da
década de 1980 radicalizaram a tal ponto as revoltas populares no Brasil que,
inclusive, a promessa de uma democracia representativa de tipo ocidental
deixara de ser suficiente para tranquilizar o povo. Perante a força coletiva da
classe trabalhadora, o sistema político brasileiro viu-se na necessidade de
criar mecanismos de blindagem que permitissem forjar maiorias parlamentares
suficientemente imunes à voz das ruas, o que conduziu a uma estratégia de
alianças contra natura entre um leque partidário muito diversificado. Essa
foi a resposta do sistema às manifestações que em 1990-1991 levaram ao
impeachment de Fernando Collor de Melo; mas um tão grande ímpeto pareceu, a
dado momento, pôr em perigo a legitimidade do Parlamento. E isso assustou a
elite dirigente. Assim, foi-se desenvolvendo uma prática de negociações
subterrâneas, que incluíam operações que iam desde a mera troca de favores (e
de votos entre bancadas rivais) a formas de corrupção e promiscuidade mais
graves. Essa prática levou alguns analistas, como Marcos Nobre, a designá-la de
pemedebismo, por ter sido inicialmente desencadeada pelo PMDB.20 Trata-se de
uma lógica de centrão forjada a partir de 1993 para reforçar o arco da
governabilidade. Esse processo desenvolveu-se e consolidou-se ao longo dos
governos de Fernando Henrique Cardoso21 mas o próprio PT, após uma década de
combate antipemedebismo, repetiu o mesmo figurino na sequência do início do
escândalo do mensalão, em 2005. Vendo-se acossado pelo fantasma do
impeachment, Lula aderiu à ideia pemedebista de construção de supermaiorias
parlamentares, desenvolvendo as ferramentas de blindagem, cujo uso continuou de
maneira ainda mais ostensiva sob a presidência de Dilma Rousseff, a partir de
2011 (Nobre, 2013b: 12-13).
6. As rebeliões sociais de junho de 2013
As manifestações de junho têm, como é evidente, uma raiz multicausal, remetendo
para forças e conexões situadas em diferentes níveis de análise, do contexto
local às escalas estadual, nacional e global. No início daquele mês, a situação
na cidade de São Paulo (SP) começou a deteriorar-se quando, na sequência da
decisão do município de aumentar o custo dos transportes urbanos (de R$ 3,00
para R$ 3,20), os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) convocaram
manifestações para o centro da cidade contra essa medida. O efeito imediato
começou por ser a violência policial enquadrada por declarações das autoridades
locais que acusaram os manifestantes de vândalos e ameaçaram não ceder. Esses
dois fatores ' a violência e as infelizes declarações do Prefeito (Fernando
Haddad/ PT) e do Governador (Geraldo Alckmin/ PSDB), num contexto em que os
faraónicos investimentos na construção de estádios de futebol para o Mundial de
2014 já vinham acicatando o descontentamento popular ' constituíram os
detonadores iniciais dos protestos que varreram o Brasil nos meses de junho e
julho de 2013. Das reivindicações do MPL rapidamente se evoluiu para a luta
contra a corrupção, a exigência de uma reforma política e de sistemas de
saúde e de educação públicas de qualidade, isto é, saúde e educação padrão
FIFA, como se gritou nas ruas.
No dia 13 de junho na Avenida Paulista em SP a primeira grande manifestação
(segundo o Datafolha)22 mobilizou um maior volume de pessoas com ensino
fundamental ou médio (secundário), com 76% do conjunto desses dois níveis de
ensino, enquanto quatro dias depois (17 de junho), no Largo da Batata,
estiveram sobretudo universitários (77%), contra apenas 22% do ensino
secundário. No dia 17 de junho 71% das pessoas participavam pela primeira vez
numa manifestação, um dado bem revelador da fortíssima presença da juventude
nos protestos. Porém, segundo a sondagem do Datafolha, nas manifestações do dia
20 de junho acentuou-se significativamente o peso da educação universitária: a
esmagadora maioria dos manifestantes (78%) eram jovens com ligação ao ensino
superior (sobretudo o setor privado) e 20% com o ensino secundário; e quanto às
camadas etárias, 81% tinham idades abaixo dos 36 anos. Estes dois indicadores
são a meu ver bem ilustrativos da presença de segmentos de uma emergente classe
média educada e juvenil, se bem que o vínculo ao mundo laboral e a proveniência
de bairros habitacionais periféricos deixem antever a forte ligação a uma
classe trabalhadora mais qualificada, mas também mais precarizada e, hoje, em
rápida em recomposição.
As zonas residenciais dos participantes variaram também ao longo do tempo:
enquanto na primeira manifestação em SP (13 de junho) prevaleceu uma maioria de
residentes da zona Leste (a mais pobre), com 38%, contra 32% da zona Sul e 10%
da zona Oeste (ambas zonas ricas e de classe média-alta), dias depois, a 17 de
junho, a maioria dos participantes era oriunda da zona Oeste, com 30%, seguida
da zona Sul, com 26% e apenas 12% da zona Leste. Ou seja, claramente, a
tendência de massificação dos protestos foi acompanhada de uma maior presença
de jovens dos estratos sociais mais próximos dos estilos de vida e valores da
classe média menos politizada e mais individualista (curiosamente nos dias em
que se detetaram sinais de violência contra grupos e símbolos de esquerda entre
os manifestantes), isto é, à medida que a vaga de protestos foi ganhando
amplitude e intensidade, cresceu a influência de forças conservadoras (e
essencialmente antipolíticas sociais) da classe média estabelecida e da
comunicação social.
Isso mesmo é confirmado pelas sondagens desse período (Datafolha, 27-28 de
junho e 11 de setembro de 2013), onde os moradores da cidade de SP estiveram em
larga maioria solidários com os manifestantes, e mesmo ao longo dos meses
seguintes, até setembro, manteve-se uma atitude favorável da população de São
Paulo (61% em junho e 52% em setembro), subscrevendo a opinião de que as
manifestações trouxeram mais benefícios do que prejuízos, a ilustrar a
tentativa de instrumentalização dos protestos, atrás referida, por setores da
direita (Datafolha, sondagens nos dias 18 e 21 de junho e 11 de setembro).
Refira-se, por fim, que as formas de mobilização passaram essencialmente pelo
Facebook (62%) e outros meios da Internet (29%).
No que se refere às orientações, aos meios mobilizados e às motivações, pode
dizer-se que na era das comunicações virtuais existe uma materialidade das
relações imateriais e isso refletiu-se nestes aglomerados. As comunidades de
convívio e de proximidade física tendem a misturar-se cada vez mais com as
redes do mundo eletrónico em que o uso do ipod, dos tablets, dos computadores
ou dos telemóveis funciona como uma teia de significados múltiplos e grupos de
identificação ' em parte reais e em parte fictícios ' e de pertença,
substituindo-se ou complementando os laços de sociabilidade primária. As
ligações às redes virtuais são simultaneamente fatores de integração na
coletividade e veículos de afirmação e performance pessoal, onde o eu
construído e projetado no outro virtual se confunde e readapta conforme a
máscara que melhor se ajuste a cada esquina da ampla comunidade virtual-real. O
sentido da participação na manifexprime-se na infinidade de imagens, fotos e
vídeos captados e difundidos em tempo real através da rede social do Facebook e
de outros meios de comunicação (incluindo a televisão). E aqui, a estética dos
adornos, as cores do cartaz improvisado ou o perfil da máscara revertem-se no
simulacro de um ato de bravura e de radicalismo, no qual se inscreve, no mesmo
gesto, o eu e o nós (qual deles o mais fugaz). As ruas e praças de São
Paulo e do Rio de Janeiro (RJ) foram palcos privilegiados dessas ações,
simultaneamente sociopolíticas, coletivas, anónimas ou estéticas, mas em que a
luta social pode equacionar-se com a pulsão desesperada do indivíduo em busca
de si próprio.
Em todas as manifestações deste período na cidade de SP, a esmagadora maioria
dos participantes indicaram ser trabalhadores. Como se pode observar no Gráfico
3, a composição dos manifestantes do Rio de Janeiro e a do conjunto das oito
capitais (cf. supra nota de rodapé 22), revela uma forte presença de jovens
trabalhadores ou com algum contacto com o mercado trabalho (70,4% na primeira
amostra e 76% na segunda), sendo que aqueles inseridos em famílias que auferem
até 2 salários mínimos (SM) correspondem a 34,3% no RJ e a 15% no conjunto das
oito capitais estaduais. Já nos estratos de rendimento familiar acima disso, as
famílias que se situam entre 2 e 5 SM têm um peso de 30% na amostra do IBOPE
(oito capitais) e de 54,1% nos manifestantes do RJ do dia 20 de junho. Em suma,
cerca de metade dos manifestantes inseriam-se em famílias cujo rendimento médio
é inferior a 5 SM (cerca de 3800,00 R$, ou seja, 1225,00 euros), mas uma parte
significativa destes (35% na manifestação do RJ no dia 20 de junho) pertenciam
a famílias de rendimento até 2 SM..
Porém, no conjunto dos manifestantes das referidas oito cidades, cerca de 23%
da amostra das oito capitais era oriunda de famílias com níveis salariais acima
dos 10 SM (6800,00 R$, ou seja, 2193,00 euros), embora na manifestação do RJ
esse valor fosse apenas de 10,2% (segundo a sondagem da Clave de Fá). Não sendo
evidente uma condição social sustentada de classe média, parece, todavia, claro
que se trata de franjas sociais que se demarcam dos grupos de referência que
deixaram para trás, ou seja, as gerações proletarizadas de onde a maior parte é
oriunda. E ao mesmo tempo, a maioria esmagadora dos manifestantes não era
filiada em partidos políticos (96%) nem em sindicatos (86%) (a comprovar que
também não pertenciam ao operariado industrial).23
Como se sabe, o impacto das manifestações foi enorme no Brasil e fora dele. A
Presidente Dilma Rousseff reconheceu, em declaração solene transmitida nas
televisões, que as manifestações mostraram a força da nossa democracia e o
desejo da juventude fazer o Brasil avançar. Se aproveitarmos bem o impulso
dessa nova energia política poderemos fazer melhor e mais rápido muita coisa
que o Brasil ainda não conseguiu realizar [ ] (Pronunciamento da Presidente
Dilma Rousseff no dia 21.06.2013 ' TV Globo). Mas isso não evitou (pelo menos
no imediato) a quebra abrupta de confiança por parte do eleitorado nas
instituições e atores sociais do Brasil, o que pode ser conferido comparando os
resultados de 2012 com os de julho de 2013, após o fecho deste ciclo de
rebeliões. De acordo com estudos de opinião do IBOPE, a queda dos níveis de
aprovação incidiu sobretudo nos seguintes itens: Presidência da República ' de
63% para 42% de aprovação; sistema público de saúde ' de 42% para 32%; Governo
Federal ' 53% para 41%; Congresso Nacional ' 36% para 29%; sindicatos ' 44%
para 37% (IBOPE, 31.07.2013).
Conclusão
O ciclo de manifestações que atingiu o mundo nos últimos três anos evidenciou
uma variedade de fatores, de contextos políticos e socioculturais, de níveis de
consciência social e de experiências de ativismo, de tal modo vasta que se
torna difícil encontrar elementos de comparação entre fenómenos tão dispersos.
No entanto, o mundo interconectado em que vivemos estabelece ligações
improváveis que transcendem a geografia, circulando e metamorfoseando-se
através de novos canais de ligação entre o real e o virtual, cujo efeito
prático pode ser a alteração das estruturas simbólicas de significado e as
lógicas de ação de grupos particulares.
A juventude e a precariedade foram elementos centrais nesta reflexão, tanto nas
lutas dos precários em Portugal e no Sul da Europa, como nas sublevações de
junho de 2013 no Brasil, embora neste caso houvesse poucas referências
expressas à questão laboral. Uma juventude escolarizada, muito familiarizada
com as novas redes sociais de comunicação e cujas trajetórias se dirigem à
classe média ou sofrem a influência dos seus padrões de vida e de consumo. Se,
por um lado, os recursos educacionais, a estabilidade no emprego e o acesso ao
crédito permitiram uma aproximação aos degraus intermédios da escada social,
por outro, os recursos económicos e as condições de vida sofreram os efeitos
das medidas de austeridade (sobretudo no caso português) ou os custos de uma
degradação das condições sociais, das políticas públicas e das infraestruturas
que inviabilizaram a consolidação de direitos e oportunidades fundamentais
(sobretudo no caso brasileiro).
Os momentos de maior radicalismo destas mobilizações evidenciaram a força
política e simbólica das lutas coletivas e dos momentos de indignação, mas ao
mesmo tempo expuseram uma lógica individual cujos sinais se tornaram visíveis
no próprio seio da multidão durante os protestos. Essa ambivalência entre o
indivíduo e o grupo foi detetada nas maiores manifestações em Portugal (e por
exemplo nos Indignados em Espanha), visto que o discurso e as atitudes
coletivistas e solidaristas surgiram lado a lado com os slogans mais
individualistas (eu quero ser feliz) e as exigências de mais democracia
surgiram lado a lado com a linguagem antipolítica e de repúdio aos valores e
aos agentes institucionais da democracia (o povo unido não precisa de
partido!).
Dir-se-á que os sentidos contraditórios destes processos se exprimem ao mesmo
tempo numa dinâmica de rebeldia, fazendo jus à indignação de uma classe
trabalhadora precarizada, mas paradoxalmente também na performance individual e
nos sinais latentes de consumismo, que veiculam um ethosde classe média. Tais
tendências ambivalentes são reveladores da complexidade, mas também, em
especial no Brasil, da crescente consciência social com que se debatem os que
exigem ver reconhecidos os direitos, as oportunidades e a dignidade que nunca
tiveram, enquanto outros, em especial em Portugal, exprimem a frustração e o
desespero de quem já teve direitos consagrados e se confronta hoje com a sua
revogação brusca, por imposição do poder económico e de um poder político
desacreditado.
Ao assinalar a pulsão de classe média, que, aparentemente, marcou este ciclo de
protestos, não pretendi diminuir o potencial político e mesmo emancipatório
destas lutas, até porque as intensas convulsões sociais e o radicalismo que
algumas delas evidenciaram não deixam de constituir ingredientes constitutivos
de novas identidades, onde se forjam muitas vivências emocionais e de elevado
risco, que podem reforçar as culturas de resistência, experiências de
solidariedade e a capacidade de rutura perante instituições e poderes até então
considerados insuperáveis. Quer na Europa do Sul quer no Brasil, a classe
trabalhadora tem sofrido uma rápida recomposição e segmentação. Por isso mesmo,
quando aqui enfatizei a noção de classe média, pretendi, mais do que invocar
um ator substantivo, sugerir um modo diferente de pensar as transformações em
curso no mundo do trabalho e da ação coletiva.
A classe trabalhadora brasileira ' em especial os seus segmentos jovens e
escolarizados ' é herdeira de uma condição miserável que até recentemente a
amarrou a dependências e preconceitos cuja génese remete para os tempos da
escravatura e do colonialismo. Só na última década ocorreu um vislumbre de
emancipação com progressos assinaláveis no plano do reconhecimento de direitos
e no acesso a benefícios sociais, mas isso foi acompanhado da emergência de
novos segmentos inseguros e precários, apesar de mais instruídos. Estas novas
camadas sociolaborais, não sendo parte de uma classe média de facto,inserem-se
numa trajetória em redefinição sob o efeito de um status truncado (dada a
flagrante assimetria entre recursos educacionais e condição económica) e
marcados pela insegurança. Trata-se, portanto, de um segmento que se destaca da
camada mais acomodada da classe média tradicional e é mais propenso à
radicalização, mas ao mesmo tempo ' essa é a minha convicção ' não constitui
nem uma vanguarda nem uma nova voz do operariado ou das classes subalternas no
seu conjunto.
No contexto europeu e em Portugal o efeito classe média ocorreu sob uma dupla
lógica: primeiro, porque a indignação foi em larga medida consequência da
contração do Estado social que tinha sido o principal ascensor da classe
média assalariada; segundo, porque também na Europa do Sul as dinâmicas de
juventude presentes nas manifestações inorgânicas e nas acampadas
exprimiram a indignação e rebeldia dos segmentos mais instruídos, qualificados
e familiarizados com as novas redes e plataformas de ativismo informático.
Ficou claro o desejo generalizado de defesa da coesão e da justiça social, mas,
ao mesmo tempo, um sentimento latente de insatisfação individual e de
realização do sonho consumista por cumprir, ou que foi inesperadamente
defraudado.
Se a estabilidade e a previsibilidade do quotidiano são traços marcantes do
habitus de classe média, a condição precária é exatamente a negação disso.
Pode dizer-se que no caso brasileiro a classe média24 é um constructo(talvez
mesmo uma miragem), enquanto no caso português é uma descida ao purgatório de
quem julgava estar às portas do paraíso. Ora, dependerá do grau de rigidez dos
atuais bloqueios do Estado social, das instituições democráticas e do
capitalismo global, da sua força e capacidade de reinvenção, se estes fenómenos
virão a intensificar-se ou a esbater-se no futuro. Não se espera, naturalmente,
que destes movimentos renasça um novo hipersujeito que protagonize a revolução
redentora do século xxi. Mas a recomposição em curso da classe trabalhadora e
do precariado, associada à reconfiguração dos antagonismos estruturais da
economia e ao papel dos novos meios e redes de comunicação, deixam em aberto um
imenso potencial para os novos palcos e modalidades de ativismo. As rebeliões
de massas adquirem nos dias de hoje novos contornos, mas a velha tensão entre o
consentimento alienante e a politização da sociedade está longe de chegar ao
fim.