Aspetos sociocognitivos da variação e da mudança semântica: haver e ter em
estruturas de posse
In Memoriam Rosa Virgínia Mattos Silva
1. Introdução
Como é sabido, em português europeu contemporâneo, a noção de posse é expressa
com o verbo ter, confinando-se o verbo haver a estruturas tipicamente
existenciais (ex: "Há muita pobreza no mundo"). Contudo, no
português medieval, teer e auer como verbos providos de conteúdo lexical eram
usados frequentemente no mesmo contexto, sem que houvesse diferenças
significativas relevantes entre eles. Os estudos sobre estes verbos (tener e
haber, em castelhano) em estruturas de posse, nessa fase da língua portuguesa,
são abundantes, mas as motivações e condicionamentos da gradual substituição de
auer (< HABERE) por ter (TENERE) não foram ainda esclarecidos.
Relativamente à língua castelhana, e sobre os fatores sociais que estiveram na
origem da distribuição destes dois verbos, pronunciou-se já Eva Seifert num
trabalho, que se tornou clássico, onde propõe para “tener” a aquisição de um
sentido de posse ligado aos favores jurídicos associados ao regime feudal da
propriedade, que terá levado os notários a progressivamente adotar o verbo
teer. Considerando que "las innovaciones de orden administrativo y las
relaciones feudales exigieron un vocabulario nuevo" (Seifert, 1930: 245),
a Autora prova que já no século XI um documento jurídico se revela precioso por
"emplear habere designando la propiedad por herencia y tenere la posesión
en feudo" (ídem, ibidem: 247).[1]
Quanto aos fatores linguísticos que converteram teer de “ajudante em
usurpador”, e após ter traçado a evolução semântica destes verbos na língua
espanhola, desde a língua latina até ao século XX, a mesma autora afirma que a
substituição de “aver” por “teer” foi motivada pelo facto de "ser ambos
verbos desprovistos de sentido propio, funcionando como cópula expresiva de una
idea vaga de acción o posesión" (ibidem: 384).
No que diz respeito à língua portuguesa propriamente dita, a tentativa pioneira
de contribuir para o esclarecimento de "um dos mais escuros problemas de
evolução semântica" (Ali, 19575: 118) foi a monografia de Maria Lúcia
Pinheiro Sampaio (Sampaio, 1978). Não obstante o caráter restrito do corpus
analisado, constituído essencialmente por exemplos dispersos extraídos dos
textos literários desde o latim clássico até ao século XX, a Autora prova que
em textos do século XIV estava associada ao verbo aver uma “posse atenuada, uma
espécie de posse espiritual” (idem, ibidem: 20), concluindo que no português
arcaico "haver e ter, como verbos independentes, tinham empregos diversos
e não eram usados indiferentemente, um pelo outro, como acontecia quando
expressavam a posse" (idem, ibidem: 36-37).
Uma pesquisa que viria a revelar-se um marco importante para toda a reflexão
subsequente em volta de teer e aver, é o de Rosa Virgínia de Mattos Silva
(Silva, 1995: 306-307). A nossa análise baseia-se na tipologia efetuada por
esta autora quanto à natureza semântica do complemento do predicado[2]:
(i) Estruturas do tipo AM [o complemento expressa objetos materiais
adquiríveis, externos ao possuidor]: "hua uinha que de nos t?
Pero Perez" (1289 MA 1), "que téém ca?aria enteira"
(1342 Alf30), "dhua herdade que teue" (132 MA 47), etc.
Trata-se de um tipo de posse que pode ser designada por “posse
prototípica”[3].
(ii) Estruturas de tipo AI [o complemento expressa qualidades morais,
espirituais, intelectuais, afetivas, sociais]: "mal e rrancor
que delle auja" (1402 MA 67), "graças, mercees que dello
poderiades auer" (1405 MA 70), "todo o derreito que agora
entendya (…) d’ auer" (1436 Alf 93), "nõ averedes
poder" (1452 MA 106), etc. Trata-se de um tipo de posse
normalmente considerada “não-prototípica”.
Uma análise sistemática dos dados permitiu-lhe concluir, com fundamentação
empírica mais segura, que:
a) Haver, na primeira fase do português arcaico, era o verbo
generalizado na expressão das estruturas de posse; b) A expansão de
ter sobre haver se origina nas estruturas do tipo AM e se difunde
para as do tipo AI (…); c) Na 2ª metade do século XV, haver e ter se
apresentam como variantes nas estruturas de posse, mas já se
evidencia o recesso de haver. (Silva, 1995: 306-307).
As duas questões lançadas pela Autora no final desse estudo revelam-se, na
nossa opinião, cruciais na fundamentação da substituição gradual de aver por
teer: "1) Por que o verbo ter começa por substituir haver nas estruturas
de posse do tipo AM? 2) Por que ter avança para expressões do tipo AI (...) ao
longo do século XV?" (idem, ibidem: 308). Recorrendo aos valores
semânticos de tenere e habere, uma das constatações é que "as mais
antigas documentações de ter em estruturas de posse, quando o complemento tem
um referente concreto, podem ser explicadas pela história semântica do tenere
latino em direção ao ter português" (ibidem: 309).
Seduzido, igualmente, pelas motivações internas e/ou externas que levam à
difusão do uso de teer sobre aver, e na pista de Eva Seifert,[4] Amadeu Torres
procura também na etimologia os valores semânticos dos dois lexemas:
Dois campos semémicos nada estanques (…) em cujo futuro de maior ou
menor implantação irão influenciar os condicionamentos sociais por um
lado, os de objectividade temática e de intersubjectividade emotivo-
cultural por outro (Torres, 1997: 305).
Assim, coloca, também, a sedutora questão que, a nosso ver, poderá fornecer a
chave para o entendimento linguístico, cognitivo e sociocultural desta mudança:
Será por causa das duas últimas razões aqui aventadas que na Eneida,
poema heróico de esforço e luta, de tragédia e drama, prevalece tanto
o verbo teneo e, por exemplo, na Peregrinatio Aetheriæ (séc. IV d.
C.), de tessitura descritivamente calma e marginando o grau zero da
escrita como diria Roland Barthes, o habeo vence folgadamente por 47
a 3? (idem, ibidem: 305)
Num corpus de natureza jurídica, constituído por um conjunto de documentos
oriundos dos fundos do mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (sécs. XIII-XVI), e
por nós transcritos, analisámos a evolução desta substituição gradual de auer
por ter, tentando responder a duas questões cruciais: por que motivo o verbo
ter começa por substituir auer nas estruturas de posse do tipo AM (objetos
materiais adquiríveis, externos ao possuidor), tal como já referiu R. V. Mattos
Silva)? Por que condicionalismos externos (sociais, culturais e cognitivos) ter
avança para expressões do tipo AI ao longo do século XV?
Para esse fim, parece-nos útil recolher os contextos em que surge
invariavelmente teer, desde o período arcaico, pois esse uso atesta a
existência de traços sémicos defi tórios de teer que poderão ter invadido
paulatinamente outras esferas de sentido (cf. secção 2.1). Ora, se teer e aver
são dois itens lexicais com uma margem de distinção sémica tão ténue, é natural
que a sua oposição semântica tendesse a ser progressivamente neutralizada.
2. Análise do corpus
2.1. A semântica de teer
2.1.1.Teer/auer como verbos predicativos de opinião/atitude/ perceção[5]
Os dados do nosso corpus apontam contextos em que o verbo teer aparece quase
invariavelmente em algumas construções, que são transversais ao tempo. Nestes
usos, que não consideramos como ocorrendo em “estruturas de posse” (tal como
estas têm sido estudadas na literatura), o verbo ter surge integrado em
expressões formulares estereotipadas (provavelmente traduzidas do latim) e, por
isso, sedimentadas pela tradição. Em documentos compreendidos entre 1337 e 1532
contam-se 36 ocorrências da expressão "ter por bem": "o que
por b? teuermos", "o que por bem teuer", "e por bem
teuer", "o que por bem teue??", "teemos por bem",
"e por bem teverr?", "per b? tever", "por b?
tever?", etc. Apresentamos a seguir cerca de metade dessas ocorrências,
distribuídas ao longo do eixo temporal:
Tabela 1. Algumas ocorrências, no corpus, da expressão "ter por
bem"
________________________________________________________________
|Documentos__|Teer,_‘considerar’_(na_ordem_de_valores_do_suje|to)
|1337 Alc 27 |"por b? teu[er]mos" |
|1345 MA 33 |"o que por b? teu[er]mos" |
|1359 MA 42 |"o que por bem teu[er]mos" |
|1362 MA 44 |"o que por bem teu[er]mos" |
|1375 MA 48 |"o que por b? teu[er]mos" |
|1385 MA 54 |"o que por bem teu[er]" |
|1397 MA 64 |"o que por bem teu[er]mos" |
|1405 MA 70 |" por bem teu[er]mos" |
|1413 MA 75 |"o que por bem teu[er]mos" |
|1423 MA 83 |"o que por bem teu[er]mos", 2 v. |
|1436 Alf 93 |"e por bem teuer" |
|1455 MA 108 |"o que por b? teue??" |
|1471 MA 119 |"e por bem teue??e"; "e por bem |
|1472 TC 120 |teue??em" |
|1477 MA 121 |"teemos por bem" |
|1484 MA 127 |"e por bem teue??e " |
|1489 MA 130 |"e por bem teuer" |
|1505 MA 138 |"e por bem teverr?" |
|1532 Tur 149|"per b? tever" |
|____________|"por_b?_tever?"________________________|
Nesta expressão, o verbo “ter” expressa a subjetividade extrema do sujeito, na
medida em que no seu semantismo está projetada uma avaliação ou apreciação que
tem como fonte um sujeito e por base um sistema de valores morais. Estamos,
assim, perante um caso extremo de aproximação do sujeito ao “objeto possuído”.
Tendo em conta que esse objeto está inscrito no seu sistema de valores morais e
éticos, diríamos que existe uma coincidência total.
O que se pode inferir destes usos (que, como foi dito, já deveriam existir nas
expressões formulares dos textos latinos)[6] é que ao verbo TENERE deveria
estar associada uma dimensão axiológica não reconhecível em HABERE, porventura
mais neutro.
Importa salientar que nesta aceção há apenas quatro exemplos no corpus (10%)
que permitem diagnosticar “fugas” ao que a língua fixou por standard. Os dois
primeiros exemplos situam-se na década de 80 do século XIV e provêm de zonas
rurais e periféricas; os dois últimos são já tardios (quinhentistas). No seu
conjunto, falam em uníssono: revelam um afã de erudição que, se no primeiro
caso marginam a ultracorreção (sintoma da confusão que já corria na língua
oral), no segundo deveriam ter correspondido à tendência tardia para reabilitar
o verbo auer, já completamente esvaziado de sentido, criando com ele
construções cultas:
Tabela 2. Ocorrências da expressão "auer por bem", "auer por
bom", ao longo do corpus
_____________________________________________________________________
|Documentos__|"auer_por_bem,_bom"_________________________|
|1380_Alv_52_|"o_que_por_bem_ouu[er]"_____________________|
|1383_Alj_53_|"a_quem_por_bem_ouu[er]"____________________|
|1529_MA_148_|"asy_ho_aviã_por_bem"______________________|
|1565_Alc_153|"aviã_por_boa";_"o_aviã_por_bom&raqu| ;
Também Rosa Virgínia Mattos Silva, ao analisar as cartas de D. João III,
situadas entre 1540 e 1553, refere 21 ocorrências em que haver surge em
contextos formulares, 14 delas na expressão "aver por bem" (Silva,
2002b: 150-151). Aludindo a estas expressões, e apresentando alguns exemplos
das Décadas de João de Barros e Diogo Couto, Said Ali afirma que constituem uma
"homenagem tardia a um verbo em época na qual, dada a escolha, se
preferia de ordinário o verbo ter" (Ali, 1957: 121). Na verdade, se
repararmos em alguns exemplos citados por este Autor, talvez seja possível
propor uma variação condicionada semanticamente, neste tipo de expressões.
Assim, o verbo ter está associado a contextos em que está projetada a
subjetividade máxima do sujeito, decorrente da assunção de um juízo associado a
um sistema de valores. Senão, vejamos:
"E segundo a gente da terra t?, foi desta maneira…TÊM que ha
paraiso…e TÊM que ha inferno" (idem, ibidem: 121).
No mesmo contexto sintático, mas remetendo o conteúdo do verbo para uma
realidade alheia aos valores do sujeito (com o sentido de ‘acreditar em’),
surge aver em outro exemplo:
p>"Haviam que na India se não fazia conta daquelas ilhas"
(idem, ibidem: 121)
Já nos Lusíadas, segundo o mesmo Autor, excetuando em uma passagem ("Fala
verdade, havida por verdade") predomina igualmente o verbo ter, com um
semantismo associado ao sistema de valores do sujeito: "ter por
grande", "ter por santo", "ter por certo" (idem,
ibidem: 121-122)
Contudo, como verbo predicativo de atitude ou perceção intelectual, teer
existe, todavia, em variação complementar com aver, variação essa que está
condicionada por restrições de natureza socio-pragmática. Quando, ao
complemento direto do verbo se consigna uma qualificação descritiva ou
descritiva-identificadora, preferiu-se, ao longo do período medieval, o verbo
auer. Ao contrário da expressão “ter por bem”, nestas expressões desenha-se um
espaço de veridição que é decorrente do contexto jurídico-formular em que
surgem. Assim, o termo predicativo está vinculado a forças sociais externas ao
sujeito (como as leis e instituições), que conferem a essa veridição um certo
grau de mobilidade e, portanto, de relatividade espácio-temporal. Expressões
como “aver [uma carta] por firme e estável”, “aver uma apelação por direita/
deserta”, “aver por ratas e gratas”, “aver [alguém] por revel”, “aver [alguém]
por desobrigado e desatado”, “aver [alguém] por prioll”, ou, ainda, as
estruturas jurídicas tautológicas (tipicamente medievais) “partir e aver por
partida”, “meter e aver por metido”, “outorgar e aver por outorgado”, etc., não
decorrem da interiorização da pauta de valores morais do sujeito, mas sim dos
valores jurídicos (e, por isso, sociais) estabelecidos, que são temporalmente
móveis e, como se sabe, alheios ao contexto espácio-temporal em que são
produzidos. Apresentam-se os exemplos encontrados:
Tabela 3. Ocorrências de auer ‘considerar’, ‘ter por’, ao longo do corpus
_________________________________________________________________________________________
|Documentos__|Auer_‘considerar’,_‘ter_por’________________________________________|
|1298 Alc 6 |"prometemos á áuer [por] firme e e?tauel" |
|1304 Alc 9 |"auemos [por] firme" |
|1328 Alj 21 |"auemos por firme" |
|1379 Alc 51 |"e nos auem[os] e liuremos firme" |
|1388 MA 57 |"e prometo a au[er] por firme" |
|1399 MA 65 |"e prometo a au[er] por firme" |
|1402 MA 67 |"que o dicto dom Abbade ouue?? por ??eu (…) a??y como o ?enpre |
|1405 MA 70 |foy" |
|1415 MA 77 |"aujad[e]s e prometiades a au[er] por firme e ?taujl" |
|1425 MA 84 |"que a partyo e auya por partida"; "avya a dicta partilha |
|1430 Cós 89|por fecta" |
|1438 Ped 95 |"e ?e auja dellas por entregue" |
|1450 Alv 104|"foy auudo por ?o?peito"; "auja a dicta apellaçam por |
|1451 MA 105 |dereita" |
|1455 MA 108 |"ouuerõ por firme e e?tauel" |
|1460 MA 113 |"quall ante mays por uo??a proll ouu[er]d[e]s" |
|1462 Mai 114|"e foy aujdo por rreuel"; "ouueo por rreuel" |
|1467 Mai 117|"au?do o ??obre dito (…) por de?obrjgado e de?atado"; "e|
|1471 MA 119 |os auja por ?cãpados" |
|1489 MA 130 |"ouue a dicta apelaçom por de?erta" |
|1490 MA 131 |"metyãm he avjãm por metidos" |
|1491 Alj 133|"e avya por mjtydos" |
|1505 MA 138 |"e que o aujam por metido"; "e que os auja por |
|1509 Ped 140|metidos" |
|1526 Ped 145|"tudo ha por arenuçiado" |
|1529 MA 148 |"e de as aveer por ratas e gratas" |
|1532 Tur 149|"como jujz apo?tollyco ho ha por pryoll" |
|1536 SC 150 |"e o avya por outorgado" |
|1536 SC 151 |"e os ouuerã por mjtidos" |
| |"ouverã (…) por metido"; "?e ouve por metido" |
| |"e o trespasarã e ouverã por trespasado" |
| |"os metjã e avjãm por metjdos" |
| |"e ouveram por po?to"; "ouveram por metydos" |
|____________|"?e_ouve_por_emtrege"___________________________________________|
2.1.2.Teer com signi?cado de ‘obrigar moralmente’ (= ‘prender, reter por
obrigação moral’)
Trata-se do único caso em que o sentido de teer é exclusivo deste verbo, não
existindo no seu homólogo aver. Segundo José María García Martín:
La dependencia con respecto a lo solicitado, en la cual se encontraba
el sujeto del pasivo teneri, es la misma que la del catalán ésser
tengut y, expresada en forma activa, que la de la persona que
‘tiene’, ‘administra’ (té) un bien del poseedor verdadero, importante
para la lengua del feudalismo (Garcia Martín: 2001: 60)
Em documentos dos séculos XIV e XV são frequentes as expressões: "erã
teudos
correger", "erã a nos teudos e obligados", "teudo
obriguado de dar", "teudo e obriguado a serujr", "e sam
teudos he obriguados a paguar", etc.:
Apresentam-se a seguir os exemplos que foi possível extrair:
Tabela 4. Ocorrências de teer ‘obrigar moralmente a’
_____________________________________________________________________________
|Documentos |Teer‘obrigar moralmente a’; (= ‘sujeitar por uma obrigaç?o
|____________|moral’)_______________________________________________________|
|1304 Alc 10 |"erã teudos correger" |
|1304 Alc 10 |"erã a nos teudos e obligados" |
|1304 Alc 10 |"teudos a nos correger" |
|1321 Alc 17 |"a u?da nõ ualha n? tenha" |
|1324 Alc 18 |"nõ ?eia ualyo?a n? tenha" |
|1402 MA 67 |"teudo obriguado de dar" |
|1402 MA 67 |"teudo e obliguado a ?erujr" |
|1467 Mai 117|"e ?am teudos de lhe dar" |
|1467 Mai 117|"eram teudos he obriguados a paguar" |
|1482_MA_125_|"lhe_nõ_po??a_valler_?omente_teer"_________________|
2.1.3.Teer com sentido de ‘guardar’: ‘guardar apreço’, ‘ter propósito de’
("ter em vontade"); ‘observar’, (= ‘cumprir’), por vezes em
fórmulas tautológicas
Em sentido literal, encontra-se apenas a expressão "que os teue?? ?
segredo" (1414). Por extensão semântica, ter poderá funcionar como
operador de ligação numa estrutura predicativa, significando ‘ter intenção de’
(constituindo "ter em vontade" uma lexia complexa), ‘guardar
apreço’, ‘prezar’, ou ainda ‘observar’, ‘cumprir’:
Tabela 5. Ocorrências de teer com sentido de ‘guardar’ (‘guardar apreço’, ‘ter
propósito de’, ‘observar’)
____________________________________________________________________________________________________________________________________
|Documentos|"Teermeerçe»|Documentos|"Teerem vontade" ‘ter propósi|Documentos|Teer‘observar’, ‘cumpri|’ [7]
|__________|‘guardar_gratidão’_|__________|de’_______________________________________|__________|_____________________________|
|1402 MA 67|"e lho tjnha |1366 MA 46|"? que |1321 Alc |"nõ teu[er]des n? |
|__________|________________________| |____________________________________________|17________|_____________________________|
|__________|em_grande_______________| |tenho_?_____________________________________|__________|guardardes"____________|
|__________|mercee"___________| |minha_______________________________________|__________|_____________________________|
|1436 Alf |"lho | |võntade" |1495 MA |"(…), tendo elle e |
|93________|________________________| | |134_______|_____________________________|
|__________|teuerom_em______________| | |__________|per?oas_como_dicto___________|
|__________|meerçe"__________| | |__________|he_(…)"______________|
|1456 MA |"que lho | | |1500 MA |"t?do elles e con- |
|109 |________________________| | |136_______|_____________________________|
| |tjnham__________________|__________| | pryndo"________________|
| |em_muyta________________|__________| | _____________________________|
| |merçee" |1502 MA |"t?do elles e con- |
| | |137_______|____________________________________________|
| | |__________|pryndo"_______________________________|
| | |1505 MA |"tendo elles e con- |
| | |138_______|____________________________________________|
| | |__________|prindo"_______________________________|
| | |1507 MA |"a todo teer e con- |
| | |139_______|____________________________________________|
| | |__________|prir";_"tendo_elle_e____________|
| | |__________|pe?oas_todo_ho_que__________________________|
| | |__________|dito_he"______________________________|
| | |1529 MA |"a_todo_teer_e________________________|
|__________|________________________|148_______|comprir"______________________________|
2.1.4.Teer, numa expressão cristalizada, a par de manter (“ter e manter”=
‘observar’, ‘cumprir’)
Esta expressão cristalizada, de natureza tautológica, desenvolveu-se na segunda
metade do século XV, acentuando-se o seu emprego a partir dessa altura na
linguagem jurídica, por afã de rigor conceptual:
Tabela 6. Ocorrências de teer em expressões formulares
__________________________________________________________________________
|Documentos |Teer, em expressões formulares(‘observar’, ‘cumprir’|
|____________|[cláusulas])________________________________________________|
|1459_MA_111_|"terem_e_manterem"_______________________________|
|1462_Mai_114|"teer_e_mãteer"_________________________________|
|1467_Mai_117|"teer_e_mãteer"_________________________________|
|1479_MA_124_|"teer_e_mãteer"_________________________________|
|1482_MA_125_|"mãteer_e_teer"_________________________________|
|1484_MA_126_|"teer_e_mãteer"_________________________________|
|1485_MA_128_|"a_teer?_e_mãteerem";_"teer_e_mãteer&raqu| ;
|1505_MA_138_|"teer_e_mãteer"_________________________________|
|1519_MA_142_|"ter_e_mãter",_3_v._____________________________|
|1522_MA_144_|"ther_e_manter",_2_v.____________________________|
|1527_MA_146_|"ther_manter";_"ter?_manter?"________|
|1528_MA_147_|"ter?_manter?";_"_ter?_manter?"______|
|1529_MA_148_|"a_todo_ter_he_mãter"___________________________|
|1536_SC_150_|"_ter_e_manter"__________________________________|
Ora, em todos os sentidos de teer referidos até este momento está presente uma
dimensão importante que é a dimensão axiológica. Assim, se a expressão “o que
por bem tever” se situa na esfera dos valores morais, “ter”, quer com o sentido
primitivo de ‘não tornar público’, quer nos mais abrangentes de ‘obrigar
moralmente’ ou ainda de ‘cumprir’ (cujo semantismo decorre da existência prévia
de uma obrigação moral), situa-se na esfera dos valores ético-sociais. Em todos
estes sentidos permanece uma noção importante que caracteriza o predicado ter:
não existe uma relação de controlo entre um sujeito e um objeto, tal como numa
relação de posse, uma vez que “os objetos” são, neste caso, intrínsecos ao
sujeito, fazem parte da sua mundividência moral e social, constituindo o
próprio sujeito.
É possível que a transferência desse sentido de ter, aliado à perceção e
obrigação de natureza moral, para o domínio da posse (eventualmente já
verificada na língua latina) traduza uma nova mentalidade humana, que anseia
por controlar o mundo, pela conquista do que é material. Trata-se, em suma, da
necessidade de organizar um conceito sociocultural (a posse) que, consistindo
num controlo sobre as entidades possuídas, confere direitos sobre elas (o
sujeito outrora submetido transforma-se agora em agente que submete).
2.2. Análise quantitativa dos dados
Perscrutemos, pois, os dados que o nosso corpus, substancialmente diferente do
que serviu de fonte a Rosa Virgínia de Mattos Silva, permite evidenciar,
aliando o critério quantitativo ao critério qualitativo[8]. Com expurgo das
ocorrências já mencionadas, analisando os dados relativos a ter e auer em
estruturas de posse, podemos ver que um gráfico de linhas que englobe as
ocorrências de auer e teer, ao longo das várias etapas epocais,[9] tem a
seguinte configuração:
Não obstante a distinção semântica que permite diagnosticar uma tendência
precoce para o uso de teer em AM (bens materiais adquiríveis), essa tendência
fica refreada em determinada época da história da língua, que parece ter
elegido o verbo aver para qualquer tipo de posse. Entre aproximadamente o
último quartel do século XIV e 1425/1430 deverá ter existido uma pressão
“normativa” no sentido da standardização que obrigou a selecionar o verbo aver
na documentação notarial. Parece que teer, ao aproximar demasiado o sujeito ao
“objeto possuído” deixava transparecer a ancoragem do eu da enunciação às suas
coordenadas espácio-temporais, o que não condizia com a formalidade estilística
requerida nos textos notariais.[10]
Uma comparação com o estudo levado a cabo por Mar Garachana Camarero
relativamente ao mesmo fenómeno na língua castelhana conduz-nos, curiosamente,
a resultados muito idênticos. A propósito das duzentas cartas que analisou da
Chancelaria da Coroa de Aragão, refere a Autora:
Durante los primeros sesenta y nueve años del siglo XV tener se
empleó fundamentalmente en el terreno de la posesión prototípica (…),
donde su predominio sobre aver fue absoluto desde el primer momento
(…). En este mismo espacio de tiempo tener no tuvo una representación
signifi tiva en la posesión no prototípica (…) En cambio, de 1470 a
1498 el desfase entre los valores prototípicos y no prototípicos de
tener se redujo considerablemente (idem, ibidem: 222).
Quanto à cronologia da substituição de um verbo por outro, a mudança observada
por volta da década de 80 do século XV parece ter coincidido, historicamente,
com os novos horizontes socioculturais soprados pelos ventos dos Descobrimentos
e do Humanismo italiano, mas a exiguidade do corpus agora em estudo não permite
avançar muito mais relativamente a esta constatação.
Cabe apresentar aqui um outro exemplo, não incluído na quantificação dos dados,
que configura um tipo especial de posse, a meio caminho entre o “possuir” e o
“guardar”. Trata-se da expressão eufemística “Que Deus aja”, que veio
substituir o aposto nominal "já fi "?ua tja ja fjnada"
(1422); "uo??o padre e madre ja fynados (1450). O facto de surgir apenas
a partir de 1460 contraria a ideia de “arcaísmo”, defendida por Mar Garachana
Camarero.[11]
Tabela 7. Ocorrências, no corpus, da expressão cristalizada "que Deus
haja"
_________________________________________________________________
|Documentos__|Expressões_________________________________________|
|1460 MA 113 |"el Rej Duarte que Deus aja" |
|1491 Alj 133|"do prynçjpee no?o Senhor que Deus aja"|
|1500 MA 136 |"?eu pay que Deus aja" |
|1541_Sal_152|"da_ca?a_do_cardeall_que_Deus_tem"______|
Estamos, inequivocamente, em presença do que representa o grau extremo de
abstração a nível de entidade possuída (e, por isso, da posse não-prototípica),
uma vez que se trata da alma humana, e, assim, do que existe de mais
espiritual. É curioso verificar que só em pleno século XVI o verbo aver cede
lugar a ter, revelando-se interessante a passagem de uma construção optativa
(com o presente do conjuntivo) a uma outra de natureza declarativa (com o
presente do indicativo).[12]
Note-se que auer foi exclusivo na expressão formular "[bens] auidos e por
auer", ao longo de todo o período medieval, contando-se 45 ocorrências de
expressões desse tipo. Para essa cristalização com aver deverá ter contribuído
a indefinição espácio-temporal do objeto relativamente à perspetiva do eu da
enunciação. Semanticamente conectada com esta fórmula, existe o atual
substantivo haver, com o sentido jurídico de coisa por adquirir mas também de
coisa adquirida, e na linguagem da Contabilidade é bem conhecido o
"deve" e o "haver". O português atual conserva ainda
algumas expressões cristalizadas, consagradas pelo uso, como "bem
haja!", "mal haja!", ou ainda a expressão proverbial
"Por bem fazer mal haver", onde o valor incoativo foi preservado
até ao limite.
2.3. Análise contextual dos dados
Uma análise mais finamente contextualizada revela ainda que aos deíticos
temporais, locativos e anafóricos áácima, hy, (h)ora, agora, enquanto, ou ainda
às expressões temporais "do tempo que", "ao tempo que"
anda associado, nos contextos de posse de bens materiais adquiríveis (AM), o
verbo teer e não aver. Estes deíticos ou embrayeurs discursivos emprestam ao
semantismo de ter a noção de posse temporária de um bem, cujo ponto de
referência é a perspetiva do eu da enunciação.
Tabela 8. Ter associado a deíticos e a expressões temporais[13]
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
|Doc.|Auer______________________________________________________________________|Teer____________________________________________________________________|%__|
|1289|"que eles aiã a dita herdade"; "aiã as ditas almu?a e |"hua uinha que de nos t? Pero Perez"; "[carta] que de |56 |
| |via e o junçal"; |nos téén ááçima"; "que teu[er] a no??a grangya"; | |
| |"a todo dereyto e a toda demãda que auíam[os] ou at?diamos ou |"téém[os] hua [carta]"; | |
|____|poderíamos_auer"___________________________________________________|"téém[os]_[a_outra]"______________________________________|___|
|1321|"que os [herdam?tos] aiamos"; |"que hymorar? e teuer? fogo" |33 |
|____|"?éélo_(…)_nõ_auemos"____________________________________|________________________________________________________________________|___|
|1343|"vinhas que ela auya"; "cou?as que eu ey"; |"enquantoela e?to teu[er]"; "vinhos que oratéémos en|33 |
| |"polo affan que au[er]a"; |cubadas" | |
|____|"herdades_que_nos_auem[os]"___________________________________|________________________________________________________________________|___|
|1352|"e?ta_?_po??e_d’auer_(…)_baleas"__________________________|"[barca]_que_hjtijnhã_pre?tes"_____________________________|50_|
|1362|"[ca?a/herdade] que nos auemos", 2 v.; "nõ aiades |"[ca?a] a qual horade nos tinha" |25 |
|____|poder"______________________________________________________________|________________________________________________________________________|___|
|1412|"o? beés que elle? auyam"; "que o que fica??e por pagar|"do t?poque teuerõ rr?dado? o? seu? moinhos"; "ao |40 |
| |pode??e |t?poque teu[er]om rr?dado? o? dicto? moinhos" | |
|____|au[er]";_"outros_béé?_que_auyam"______________________|________________________________________________________________________|___|
|1444|"?eus b?es de rraiz que elles ham"; "quaaes quer b?es |"que ell nom tijnha agora(…) dinheirros" |33 |
|____|que_elles_ouue??_m"_________________________________________________|________________________________________________________________________|___|
|1448|"lhe de?e a dita ca?a (…) pola guj?a que a ouuera" |"tjnham hua ca?a"; "e hu thoujo que a dicta ca?a |75 |
|____|__________________________________________________________________________|tem";_"que_ha_[a_dita_ca?a]_a?yteuerom"_______________|___|
|1460| |"hua terra (…) que oratijnham |100|
|____|__________________________________________________________________________|em_pomar"_________________________________________________________|___|
|1485|"que elle e per??oas ajam o dicto mortoreo" |"que oratem cargo"; "[dicto mortoreo] que a dicta |67 |
|____|__________________________________________________________________________|jgreia_tem"_______________________________________________________|___|
|1536|"ho dito ca??all era e elles (…) ho |"tenha cuydado de rreger"; |67 |
| |ouueram do dito mo?teyro" |"po??e rreall e autoall domjnjo que no dito ca??all e ??ua | |
|____|__________________________________________________________________________|ffazenda_ate’guorateueram"______________________________________|___|
Cumpre recordar, a propósito dos deíticos locativos, a interessante passagem do
Cantar de Mío Cid, a que não foi indiferente a sensibilidade intuitiva de Eva
Seifert:
Grado al Criador e a santa Maria madre
Mis fijas e mi mugier que las tengo acá(Seifert, ibídem, 249)
Diz-nos a Autora:
Este discurso da personagem no pone el énfasis en el verbo tengo,
sino en el complemento local acá, ‘que las tengo ahora cerca de mí’,
‘que están ahora aquí’. (…) Tenemos, en cambio, el verbo haber para
la expresión de posesión genérica, de simple posesión: commo sirva a
doña Ximena e a las fijas que ha (idem, ibidem, p. 249-250).
Associada a esta noção de ancoragem ou não ao momento da enunciação, afigura-se
igualmente importante, em outros contextos, a noção de modalidade enquanto
expressão da atitude do eu da enunciação em relação ao valor factual do seu
enunciado. Revela-se pertinente a variação entre teer e aver num documento 1453
que, ao lado de "hu quer que os [b?es] ouuerdes" apresenta
"do tenpo que os dictos b?es teuerdes". Assim, o verbo teer está,
neste enunciado, associado ao real/factual e o verbo aver ao hipotético, sendo
que apenas teer permite ancorar/localizar a ação expressa pelo verbo num
determinado segmento temporal, ainda que projetado no futuro.
Não obstante ambos os verbos surgirem em condicionais não factuais ou
hipotéticas (características das cláusulas em que se prescrevem as sanções),
aver surge inserido numa sequência em que o conteúdo proposicional do
consequente se refere a um mundo não real ou eventual[14]:
(i) "E ??e uos (…) qui?ermos demãdar a jujzo, (…) per ??ua
sentença ou sentenças ??eer fecta exucacõ, venda e rremataçõ em
vo??os b?es e da dicta per??oa hu quer que os ouuerdes(…)"
(1453 MA 107)
Diferente é a perspetiva adotada quanto ao valor de verdade do enunciado em que
surge o verbo teer, uma vez que, apesar de surgir igualmente numa construção
condicional hipotética, o conteúdo proposicional do consequente a que o verbo
se associa (“ter os bens”) é assumido como tendo existência no mundo real
(futuro):
(ii) "Jtem ?? uos(…) nõ conprirdes (…) que nos (…), po?amos filhar os
dictos no??os b?es e herdam?tos (…) ficando uos ?obre dictos e per??oa ??enpre
obrigados a nos pagardes a dicta pen??õ e foro do tenpo que os dictos b?es
teuerdes(…)" (1453 MA 107).
A ideia de teer associada aos bens efetivos (ou assumidos como tal, ainda que
no futuro) e aver aos hipotéticos encontra eco no nosso corpus se nos
lembrarmos que foi corrente o emprego de teer associado às cópias dos
documentos que se entregavam às partes interessadas: "tenhades hua de??as
cartas", por exemplo. Mas, curiosamente, as “cartas de graça” ou de
“merçe”, usadas em construções de sentido hipotético, surgem sempre associadas
ao verbo aver. Como se trata de uma posse futura que implica a ideia de
“alcançar”, “obter” (direitos, privilégios e não objetos concretos, como uma
carta manuscrita), compreende-se que se tenha preferido o verbo aver, que
melhor exprime o sentido incoativo.
Detenhamo-nos agora sobre os complementos de predicado do tipo AI, e sua
distribuição cronológica:
Tabela 9. Cronologia dos verbos teer e aver com complementos de predicado do
tipo AI (Síntese)
Até 1484[15]
_______________________________________________________________________________________________
|Aver___________________________________________________________________________________|teer___|
|demanda, preço ‘valor’, m?te, pena ‘castigo’, poder, afã, direito(s), acção|encargo|l],
|prol, conhecimento, possessão [16], mandado, mal, rancor, cumprimento, compaixão, |e |
|preito, perda, autoridade, confirmação, cumprimento, engano, mantimento, jurisdição|direito|
|custas,_foros,_honras,_liberdades,_graças,_mercês[17]________________________________|_______|
A partir de 1484
______________________________________________________________________________
|Aver____|ter__________________________________________________________________|
|recurso,|"posse, propriedade e liberdade"; cargo, paz, jurisdiçã|,
|temor e |autoridade, poder, cuidado, embargos, benefício, irmãos |
|poder___|_____________________________________________________________________|
O comportamento dos itens lexicais direito, poder, autoridade e (en) cargo
merecem algumas considerações. O item direito selecionado por teer surge, pela
primeira vez, no segundo quartel do século XV, mas alterna nesta fase com auer.
Ambos os verbos aparecem em dois contextos associados a dois tipos de
modalidade discursiva:
(i) "??em os herdeiros (…) e ??ua molher teer? (…) alguu d[e]rr
[ei]to" (1438)
(ii) e "outros direit[os] (…) que ouue?e" (1442),
Este facto, aliado à inexistência de outras abonações posteriores, não
autorizam resultados conclusivos. Quanto a autoridade, o comportamento do
predicado que o seleciona poderá contribuir para a delimitação cronológica
operada, mas é igualmente possível que esta variação entre auer e teer não seja
apenas de tipo diacrónico mas sim uma variação ativada por restrições
sintático-semânticas específicas. Senão vejamos:
(iii) "e quandoa?y ouuer? a dita autorjdade" (1482)
(iv) "nem que autorydade tendes"; "o trellado (…)
da autorydade que tend[e]s"
(1491).
No exemplo (iii), o advérbio temporal quando, ao situar o conteúdo expresso
pelo verbo num momento posterior ao da enunciação mas não definido, hipotético,
eventual (expresso através do conjuntivo), contrasta com a embrayage no momento
de enunciação verificada nos exemplos do documento de 1491, e expressa através
do modo indicativo. Relativamente a poder, abundantemente representado ao longo
do corpus, surge invariavelmente com aver até 1519. A partir de 1522, aver
cede, unidirecionalmente, lugar a ter: "e nã tera poder" (1522) e
"nã terão poder" (1528).
A questão que se poderá colocar é a seguinte: por que motivo "ter
poder" é uma construção tão tardia se "ter (en)cargo" surge
já em 1399? A resposta a esta questão reside, na nossa opinião, nas restrições
semântico-cognitivas ativadas pelo teste da anteposição do artigo defi a este
item lexical, ou seja, na forma como são captadas cognitivamente estas
predicações defi Assim, se em "o encargo", a unicidade do referente
só poderá ser apreendida num contexto específi de enunciação, em "o
poder", a identidade do objeto é passível de ser descodifi pelo
alocutário sem que haja um contexto específi de enunciação. Por outro lado, o
item poder, ao contrário de encargo, não poderá ser núcleo de uma predicação
indefi (* ter um poder).[18]
Ao comparar, na língua espanhola medieval, os diferentes verbos usados com
cargo e nuevas (o primeiro selecionado por tener, o segundo por aver), Jean-
Claude Chevalier intuíra já uma explicação semelhante (que se aproxima da noção
de lexia complexa), recorrendo à fenomenologia do conhecimento:
Les premières – et cargo est de celles-là affirment leur
compatibilité foncière avec tener, les secondes – et nuevas en est
avec aver (…). Si j’essaye de réduire tout cela en formule: parmi
d’autres éléments cargo, avant même que je songe à le faire entrer
dans une phrase, me montre un être y à qui, à un certain moment de sa
durée, est affectée une tâche, ou un ensemble de tâches, que
j’appellerai o. L’appréhension conjointe de y et de o ainsi définis
et ainsi reliés est ce qui a reçu pour traduction physique cargo
(Chevalier, 1977: 38).
Uma captação cognitiva diferente é a que é activada por nuevas: "Nuevas,
lui, porte en soi l’irruption dans la durée d’un être y d’une information i
qu’il ignorait" (idem, ibidem: 40).
2.4. Das orações existenciais com aver às estruturas equivalentes com teer:
sobre a origem desta particularidade no Português do Brasil
Como é sabido, a estrutura existencial era expressa, no latim, com o verbo
ESSE. A transferência de ESSE para HABERE consistiu, segundo cremos, numa
redução do estatuto ontológico dos objetos e numa maior projeção do mundo
exterior em que eles se situam, tendo constituído um mecanismo cognitivo
bastante interessante, mas que fi fora do escopo do nosso estudo. Do antigo
verbo funcional, semanticamente existencial, subsistem alguns resíduos no
português medieval, apesar de se poderem recortar duas etapas distintas: a mais
arcaica, em que o verbo ser faz parte de uma “construção locativa”, e uma
outra, mais tardia, em que o verbo ser substitui auer com nomes caracterizados
pelo traço [+ abstrato]. São estas as ocorrências do corpus:
Tabela 10. Ocorrências do verbo seer/ser por auer
___________________________________________________________________________________
|Documentos|Formas__________________________________________________________________|
|1291_Alc_3|"outro?_fruyto?_que_hj_for?"________________________________|
|1353 Vid |"b?es a?y mouíis come rrajz que erã no dicto logo" |
|39________|________________________________________________________________________|
|1460 MA |"preito e demãda fora", "sobre e?ta mee?ma cau?a fora|
|113_______|letigyo_________________________________________________________________|
|__________|e_dada_determjnaçõ_per_el_Rej"__________________________________|
|1527 MA |"e que a?y hera mayor honra" |
|146_______|________________________________________________________________________|
Como os dados revelam, o verbo seer, que acompanhou em finais do século XIII
nomes caracterizados pelo traço [+ concreto] ressurgiu no terceiro quartel do
século XV, acompanhando agora nomes com o traço [+ abstrato], eventualmente
para ocupar o lugar de auer. Assim, ser apresentou-se igualmente como
concorrente para o lugar de auer, que começava a ficar vazio, a partir do
terceiro quartel do século XV.
No século XVI o aumento das estruturas de posse com o verbo teer deve-se
igualmente à mudança de estrutura das orações existenciais com aver, que
selecionam um sintagma nominal interpretado como objeto direto e um elemento
locativo expresso por um sintagma preposicional ou um adverbial. Essa mudança
deveu-se, muito provavelmente, ao esvaziamento semântico do verbo auer,
verificado em finais do século anterior. Apresentam-se a seguir os dados
exemplificativos das estruturas existenciais com auer ao longo do corpus:
Tabela 11. Estruturas existenciais com auer, ao longo do corpus
_______________________________________________________________________________________
|Documentos|Ocorrências________________________________________________________________|
|1306 Cós |"tabaliõ nõ auia" |
|12________|____________________________________________________________________________|
|1329 Evo |"e auudo cõcelho"; "que nõ leyxauã (…) a au[er] |
|22________|derecto"______________________________________________________________|
|1336 Alj |"ca t?po auya hypera todo"; "hyauya ?ete dias" |
|26________|____________________________________________________________________________|
|1352 Ped |"e ouue ? elladez quintaes e meyo" |
|38________|____________________________________________________________________________|
|1391_MA_59|"que_nos_carualhaaes(…)_aia_tam_poucas_landes"________________|
|1402 MA 67|"que auja anos e tenpos"; "demãdas e de?uairo ouue?? n |
|__________|antre_elles"__________________________________________________________|
|1430 Cós |"que auja dez e (…) annos"; "e que auja quatorze |
|89________|annos";_"ataa___________________________________________________|
|__________|podja_ora_au[er]_tres_ou_quatro_annos"________________________________|
|1433 Ped |"e aja ao deante" |
|90________|____________________________________________________________________________|
|1452 MA |"e ha em ellauma geyra"; "ao tenpo que hytall demãda |
|106_______|ouuer"________________________________________________________________|
|1453 MA |"que hytall demãda ouue[r]" |
|107_______|____________________________________________________________________________|
|1459 MA |"em guj?a que ajom qujnze noujdades" |
|111_______|____________________________________________________________________________|
|1465 MA |"ao tenpo que hytal demanda ouuer" |
|116_______|____________________________________________________________________________|
|1467 Mai |"que lhe ouve?? a ellorremedeo"[19]; "ambos quaaees avya |
|117_______|grãde______________________________________________________________________|
| |cõt?da na rrepartyçãm da jente"; "que havya antre os ?obre |
|__________|ditos"________________________________________________________________|
|1472 TC |"nom auja hynhuua das dictas cou?as" |
|120_______|____________________________________________________________________________|
|1495 MA |"quando hytall demãda ouue[r]" |
|134_______|____________________________________________________________________________|
|1502 MA |"e que aujriã e~ elle de terra proveytada sete ou oyto eyrras";|
|137 |"e nõ avendo hy filho ou filha"; " |
| |em o qual |
|__________|_avyria_quinze_ou_dezasejs_pees_d’oliveyrras"_______________________|
|1519 MA |"e aja hy algu~a denjfycac¸a~o" |
|142_______|____________________________________________________________________________|
|1527 MA |"aver ahi´ e~ elle mais casas"; "averia em elle mais |
|146_______|moradores",_2_v.______________________________________________________|
|1529 MA |"se ho ouuer" |
|148_______|____________________________________________________________________________|
|1565 Alc |"na~ avia comtradic¸am"; "ne~ devia aver dema~da" |
|153_______|[20]________________________________________________________________________|
As novas estruturas de posse resultantes da mudança de estrutura das orações
existenciais diferem das habituais estruturas de posse (ter/haver), não a nível
sintático mas semântico, na medida em que o “possuidor” deixa de ser um ser
humano dotado de capacidade agentiva e volitiva, capaz de controlar a entidade
possuída. Assim, este tipo de posse pode incluir-se num tipo de posse
inalienável, mas agora estabelecida em termos de uma relação entre objetos. A
tabela seguinte apresenta este tipo de posse, já com o verbo teer:
Tabela 12. Novas “estruturas de posse”, resultantes da mudança de estrutura das
orações existenciais
_____________________________________________________________________________
|Documentos__|Ocorrências____________________________________________________|
|1505 MA 138 |"hum pedaço de chãoo (…) e tynha hua holiveyrra"|
|1528 MA 147 |"os quaees pardieiros tem de conprido sete varas e mea de |
|1532 Tur 149|craueira" |
|1541 Sal 152|"e t?m de cõprjdo dezanove covados" |
| |"os quaes [marcos] todos tem tres telhas"; "e |
|____________|a_dyta_souereyra_tem_hua_cruz"____________________________|
Finalmente, foi ainda possível encontrar alguns indícios de que, mesmo em
estruturas que não sofreram as mudanças sintático-semânticas aludidas, o verbo
teer começara a substituir aver em orações existenciais (com advérbio locativo
explícito), já na década de 60 do século XV. Esta constatação permite, assim,
corrigir a cronologia apresentada por Maria Lúcia Sampaio que afirma ser no
século XVI que "ter invade a esfera da oração existencial"
(Sampaio, 1978: 59).[21] Mais tardiamente (1536), regista-se o verbo teer por
seer, fenómeno que caracteriza o português popular do Brasil e que revela que a
invasão de teer não só se verificou nas orações existenciais mas também nas
estruturas “situativas”. Apresentam-se a seguir os dois exemplos aludidos:
Tabela 13. Ocorrências de teer por auer em orações existenciais e em estruturas
“situativas”
_________________________________________________________________________
|Documentos_|Ocorrências_________________________________________________|
|1460 MA 113|"nom em e?ta vila da Pedarnejra por ?eer do senhoryo do|
|1536 SC 150|moe?teiro ondenom tijnha oficyaes" |
|___________|"como_na_çedolla_tem_declarado"_________________|
Esta difusão de teer a estruturas “situativas”, verificada num documento
redigido após a descoberta do Brasil, deverá ter surgido na sequência da
propagação de teer à esfera do existencial, fenómeno que deverá ter tido
igualmente um cunho popular, segundo Maria Lúcia Sampaio:
Entretanto, a parcimônia com que o verbo “ter” era empregado na
oração existencial nos faz supor que se tratava mais de um fenómeno
da língua falada que da escrita. A língua falada que evoluiu mais
depressa que a escrita sentiu a necessidade de substituir totalmente
“haver” por “ter”, pois o verbo “haver” por ter-se esvaziado
semanticamente dificultava a comunicação (idem, ibidem: 60).
Refira-se que, ainda na esfera do existencial, a linguagem jurídica conserva,
ainda, a expressão cristalizada "haver lugar" ("Haver lugar a
recurso", por ex.) e ter e haver são hoje permutáveis em alguns
enunciados, pragmaticamente ancorados. A título de exemplo, relembrem-se os
enunciados, igualmente possíveis no Português contemporâneo:
Já não tem remédio! ~ Já não há remédio!
Resta referir, por último, um outro uso cristalizado que se verifica
tardiamente no corpus por nós selecionado e que consistiu na substituição de
ser por aver. Referimo-nos à expressão "aver mester" que veio
substituir "ser mester"/"ser necessário".[22]
Tabela 14. Expressões cristalizadas "seer mester" e "auer
mester"
__________________________________________________________________________
|Documentos |"ser mester" |Documentos |"auer |
|___________|___________________________|____________|mester"________|
|1291 Alc 3 |"for me?ter" |1478 MA 123 |"cada uez que o|
|___________|___________________________|____________|ouuerem_me?ter"|
|1328 Alj 21|"?e me?ter for"|1479 MA 124 |"que me?ter |
|___________|___________________________|____________|ouuerem"_______|
|1372 MA 47 |"?e uos neçe?ario |1496 Sal 135|"n? auja |
|___________|for"_________________| |me?ter" |
|1379_Alc_51|"?e_me?ter_for"| | |
|1405_MA_70_|"?e_me?ter_for"| | |
|1422 MA 82 |"for cõpridoiro e | | |
|___________|neçe?ario"__________| | |
|1465 MA 116|"que lhe me?ter | | |
|___________|for"_________________| | |
|1478 MA 122|"que lhe naçe??arío| | |
|___________|for"_________________| | |
|1482 MA 125|"for | | |
|___________|neçe??areo"_________| | |
|1522 MA 144|"que lhe for | | |
|___________|ne?eçario"__________| | |
|1529 MA 148|"se neçesario ff | | |
|___________|"____________________|____________|_____________________|
Uma análise detalhada da tabela permite concluir que, no corpus agora em
estudo, a partir da década de 70 do século XV o predicado ser passa a
selecionar "necessário" em vez de "me?ter". A
recuperação de mester foi feita a partir daí mas este nome ressurge agora com
aver, que entretanto já tinha sofrido um desgaste semântico considerável. Eva
Seifert testemunha que "el neologismo tener menester no alcanzó gran
popularidad, ni pudo mantenerse" (Seifert, ibidem: 352). Apresenta,
contudo dois exemplos que se fazem acompanhar dos deíticos locativo e
demonstrativo: "mas defensa no tobo hi menester" e "tomá esta
navaja…, ya veo que vos no la tenéis menester".
2.5. Teer
com sentido de ‘desembocar’
A lexia complexa “ir ter” (‘desembocar em’, ‘intersetar’) documenta-se
igualmente no nosso corpus, em documentos das últimas décadas do século XV e
primeiro quartel do século XVI, substituindo a estrutura trecentista “ir
ferir”. Recordamos, a esse propósito, a perífrase que se documenta no século
XIV para transmitir essa noção:
(i) "como uay ferir ?u?o" (1321 Alc 17)
(ii) "uã ferir ao rrio de Selir" (1321 Alc 17)
(iii) "uã ferir aa varz(ea) (1321 Alc 17)
(iv) "uã ferir aa ponte" (1321 Alc 17)
As abonações quatrocentistas e quinhentistas exibem o verbo ter neste contexto,
refletindo uma extensão tardia à noção de ‘intersetar’:
(v) "(…), e e?to do camjnho que uay da ponte noua pera o porto
de Muja atee o Tejo e do camjnho pera çima a ter o camjnho de
Meos" (1478 MA 122)
(vi) "(…) o quall a?entamento parte do abrigo com as
cabaceeyrras, e de hy ?e vay a rrebeyrra (…) e da paarte do agujã vay
teer ao outeyrro do careyrro e per hy affondo per o Vall de Froles e
vay teer a ffonte " (1500 MA 136)
(vii) "e por quanto o dito mo?teiro e?taua ? po??e de tanto
tenpo que memoria dos hom?s nõ he ? contrairo, rreçeber e aver
todalas cou??as que ?aem e vem ter aos portos e co?ta do maar"
(1515 SM 141)
(viii) "(…) a?y dos taes pexes rreaes como de todalas outras
cou?as que ?a? e v? ter haa co?ta do dito maar" (1515 SM 141)
Como se pode inferir, o sujeito da oração não é a entidade que “tem”, já que
este é captado cognitivamente como a entidade que interseta, identificando-se o
“objeto” intersetado com uma espécie de locativo. Eventualmente devido a essa
ambiguidade, surge a perífrase “ir dar”, cujo núcleo verbal se associa agora à
noção de ‘possuir’, tratando-se de um exemplo único e tardio no corpus agora em
estudo. Nesta construção, o sujeito da oração é, efetivamente, o sujeito de
“dar”, continuando a entidade que “recebe” a assumir a função de locativo:
(9) "ate hir dar nas teras llauradyças" (1541 Sal 152)
Atualmente, como é sabido, coexistem em variação livre os dois tipos de
construção: "ir ter a" e "ir dar a". Curiosamente,
constituem, quando extraídos destas expressões gramaticalizadas, dois
predicados cujos conteúdos semânticos são funcionalmente opostos. Esta
constatação constitui um argumento a favor da natureza cognitiva de alguns
processos de gramaticalização, quando operados em expressões fraseológicas
constituídas diacronicamente.
3. Conclusões
É possível que a transferência do sentido inicial de ter, aliado à perceção e
obrigação de natureza moral (cf. “ter por bem”), para o domínio da posse
concreta (eventualmente já verificada na língua latina) traduza uma mentalidade
que anseia por controlar o mundo, pela conquista do que é material. O que
parece depreender-se é que, com o avanço do Feudalismo, a dimensão axiológica
de ter difundiu-se à noção de posse de bens materiais, concretos, como se a
noção de ‘ter, possuir bens’ integrasse paulatinamente essa dimensão humana de
âmbito moralístico. Os dados analisados permitem concluir que só a partir das
décadas de 80/90 do século XV as percentagens de teer relativamente a aver
começam a sobrepor-se, deixando de existir os documentos que continham aver em
exclusividade. Tal sobreposição traduziu-se na transferência de teer para a
esfera da posse “não-prototípica”, invadindo decididamente a esfera dos
complementos de predicado que traduzem AI (o complemento expressa qualidades
morais, espirituais, intelectuais, afetivas, sociais). Entre aproximadamente o
último quartel do século XIV e 1425/1430 deverá ter existido uma “pressão”
normativa no sentido da standardização (caracterizada pelo grau zero da
escrita) que obrigou a selecionar o verbo auer na documentação notarial.
Uma análise mais contextualizada permite concluir que aos deíticos temporais,
locativos e anafóricos áácima, hy, (h)ora, agora, enquanto, ou ainda às
expressões temporais "do tempo que", "ao tempo que"
anda associado, nos contextos de posse de bens materiais adquiríveis (AM), o
verbo teer e não aver. Por outro lado, ao longo do nosso corpus, foi comum a
ideia de teer associada aos bens efetivos (ou que se assumem como efetivos no
futuro) e de aver aos hipotéticos ou eventuais. Uma outra conclusão que este
estudo permite extrair é a de que, no discurso notarial medieval, entre
direito, autoridade e poder, houve uma gradação na escolha, cronologicamente
faseada, do verbo teer, no sentido [+ controlável/alcançável] > [controlável/
alcançável]. Assim, se direito usufruiria desse predicado, já no segundo
quartel do século XV, autoridade só viria a angariá-lo na década de 90 e poder
só no século XVI abandonaria a noção de posse mitigada, “espiritual”. As
restrições semântico-cognitivas ativadas pelo teste da anteposição do artigo a
este último item lexical, ou seja, a forma como é captado cognitivamente este
complemento de predicado (ter o poder mas *ter um poder) atuaram na resistência
ao verbo ter.
Enfim, pensamos não estar longe da verdade ao afirmar que os novos horizontes
socioculturais soprados pelos ventos do Humanismo italiano, trazendo consigo
uma nova crença no Homem e nas suas potencialidades, e acelerando o
florescimento das línguas vernáculas em detrimento do latim, trouxeram,
igualmente, com maior ou menor resistência, o triunfo de ter sobre auer. O grau
extremo de abstração a nível de entidade possuída (e, por isso, da posse não-
prototípica) a alma humana, o que existe de mais espiritual – só em pleno
século XVI admitiu o verbo ter. Como se sabe, a expressão “que Deus haja!”
conserva-se ainda em algumas zonas rurais portuguesas, em variação com “que
Deus tenha”. Conserva-se, igualmente, o verbo haver em outras expressões
cristalizadas: "bem haja!", "mal haja", ou ainda na
expressão proverbial "Por bem fazer mal haver". Por outro lado, ao
contrário do que acontece no Português europeu, na variedade brasileira do
Português é o verbo ter que está presente nas expressões existenciais (ex:
"Tem muita pobreza no mundo"), perpetuando assim, como ficou
documentado, uma herança linguística dos tempos medievais.