A abordagem cognitivo-comportamental no tratamento das perturbações do
comportamento alimentar
Embora este mecanismo pareça explicar um grande número dos episódios de
ingestão alimentar compulsiva observados em pacientes com Bulimia Nervosa,
existem outros factores potencialmente associados a estes. Por exemplo, nas
formulações iniciais da TCC-BN, os autores verificaram que os episódios de
ingestão compulsiva não ocorriam de um modo aleatório, mas estavam
frequentemente associados a respostas a alterações no estado de humor. Estas
alterações pareciam interferir com a capacidade de manter o controlo sobre a
dieta restritiva, levando à ingestão compulsiva. Por outro lado, comer
compulsivamente parece distrair as pessoas de sentimentos e estados emocionais
adversos, o que actuaria como reforço da ingestão alimentar compulsiva
(Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986).
Uma outra característica distintiva destes pacientes é o facto de serem
altamente críticos em relação a si próprios, e de estabelecerem para si padrões
demasiado elevados de realização e de desempenho em relação à sua vida no geral
e ao controle da alimentação, peso e forma corporal em particular (Fairburn,
Cooper, & Shafran, 2003; Fairburn, Marcus, & Wilson, 1993). No contexto
destes padrões altamente exigentes e elevados em relação a si próprios, uma
falha no cumprimento do plano rígido alimentar é visto como uma falha pessoal e
não como um reflexo de padrões demasiado exigentes, o que reforça uma auto-
avaliação extremamente negativa de si e tem como consequência um maior empenho
(maior restrição, mais tentativas de controle do peso), nesta área que é por si
considerada como central na sua auto-avaliação. Mantem-se deste modo, a
preocupação elevada com a alimentação, o peso e com a forma corporal, central
para a manutenção das PCA.
TRATAMENTO COGNITIVO-COMPORTAMENTAL
A Teoria Cognitivo-Comportamental tem implicações claras para o tratamento
destas perturbações. Nomeadamente, alerta para o facto de o foco do tratamento
não dever ser apenas os sintomas de ingestão alimentar compulsiva (apesar deste
ser um dos principais sintomas e muitas vezes o que motiva a procura de ajuda),
mas que também é necessário dirigir a intervenção para a restrição alimentar, a
resposta a estados de humor adversos e a sua sobre-avaliação do peso, da forma
corporal e da alimentação (Fairburn, 1985; Fairburn, Marcus, & Wilson,
1993).
O Tratamento Cognitivo-Comportamental aqui descrito deriva dos pressupostos
teóricos apresentados e foi desenhado para dirigir a intervenção em relação aos
processos de manutenção associados aos sintomas bulímicos. O tratamento
proposto desenvolve-se ao longo de 15 a 20 sessões, aproximadamente e durante
cinco meses, onde é construída uma formulação clínica individualizada acerca do
sistema de manutenção dos sintomas Bulímicos e ensaiadas várias estratégias e
procedimentos (Fairburn, Marcus, & Wilson, 1993).
O tratamento consiste num conjunto de estratégias cognitivo-comportamentais, de
modo a: (1) desenvolver um plano alimentar regular e flexível que inclua os
alimentos até então evitados; (2) lidar com as situações de risco para a
ingestão alimentar compulsiva e vómito; (3) aprender a reduzir a preocupação
com o corpo e o peso; e, (4) prevenir a recaída após a fase de tratamento. A
eficácia do tratamento cognitivo comportamental clássico da Bulimia Nervosa tem
sido alvo de intenso estudo e investigação ao longo dos últimos 20 anos. Vários
estudos controlados que têm mostrado que a terapia cognitivo-comportamental é
um tratamento de 1ª linha para a Bulimia Nervosa (NICE, 2004).
Por outro lado, alguns autores têm sugerido que a terapia cognitivo-
comportamental para a Bulimia Nervosa se concentra demasiado na psicopatologia
específica das Perturbações Alimentares (e.g., Meyer, Waller, & Waters,
1998). Além disso, Fairburn e colaboradores (2003) consideraram a necessidade
de rever as conceptualizações inicias dos processos que mantém a Bulimia
Nervosa, como forma aumentar a resposta ao tratamento uma vez que apenas 40% a
50% dos sujeitos recuperam completamente da perturbação e se mantêm livre de
sintomas. Esta necessidade motivou o desenvolvimento da TCC já existente
expandindo as formulações iniciais e propondo um tratamento mais compreensivo.
TEORIA TRANSDIAGNÓSTICA PARA ASPERTURBAÇÕES ALIMENTARES
Uma extensão da TCC para a manutenção da Bulimia Nervosa
Fairburn e colaboradores (2003) propuseram uma extensão à teoria original para
a Bulimia Nervosa. De acordo com esta formulação, são propostos 4 mecanismos
adicionais de manutenção dos sintomas bulímicos que se manifestam em alguns
pacientes e que interagem com os aspectos psicopatológicos de base descritos
anteriormente. Para os autores, a presença de algum destes mecanismos é, muitas
vezes, uma dificuldade adicional, aquando do tratamento, e um obstáculo à
mudança.
Os quatro mecanismos propostos são:
Perfeccionismo Clínico:O perfeccionismo clínico, consiste no perfeccionismo com
significância clínica (Shafran, Cooper, & Fairburn, 2002), e foi definido
pelos autores como a busca por e a realização de expectativas de realização
extremamente exigentes, sem olhar para as consequências adversas que daí podem
vir. Consiste num sistema de avaliação do valor pessoal com base na realização
de objectivos e sucessos altamente exigentes. O perfeccionismo é visto como uma
forma de psicopatologia que é semelhante à psicopatologia de base das
Perturbações Alimentares, sendo que em ambas os sistemas de avaliação
disfuncional operam.
O perfeccionismo é uma característica que normalmente se encontra associada às
Perturbações Alimentares (Shafran, Cooper, & Fairburn, 2002). Na
conceptualização de Fairburn e colaboradores (2003) é defendido que, por vezes,
estas duas formas de psicopatologia interagem, sendo que o funcionamento
perfeccionista do paciente é posto a operar em relação às tentativas de
controlo sobre a alimentação, o peso e a forma corporal, bem como em relação a
outros aspectos da sua vida. Como consequência, o medo de fracassar é assim
vivido, também, na forma de medo de engordar. As pacientes dirigem,
normalmente, a atenção de um modo selectivo em relação seu desempenho no que
diz respeito à alimentação e incorrem em comportamentos, tais como, a contagem
de calorias, repetida verificação corporal, e a emergência de grande auto-
crítica com origem nas consequentes avaliações negativas do seu desempenho e
das suas tentativas de controlo do peso, forma corporal e da alimentação.
Novamente, esta auto-avaliação negativa é mantida, sendo exacerbadas as
tentativas de controlo. Este mecanismo acaba por ser responsável pela
manutenção dos sintomas, e, como tal, deve ser alvo de intervenção no
tratamento.
Baixa Auto-Estima de Base:As Perturbações Alimentares estão, frequentemente,
relacionadas com problemas de auto-estima, em que o sujeito apresenta de si uma
imagem negativa em termos do seu valor, em variadas aspectos da sua vida. Nos
pacientes bulímicos, a baixa auto-estima, surge, também, muitas vezes, como
consequência da falha em atingir os seus objectivos de dieta e de restrição,
quando interrompidos por episódios de ingestão alimentar compulsiva. Neste
doentes, este sentimento, normalmente deixa de existir quando existe uma
melhoria dos sintomas alimentares. No entanto, segundo Fairburn e colaboradores
(2003), existe um grupo de pacientes que mostram um sentimento geral mais
negativo e generalizado em relação a si próprios. Nestes pacientes, os
sentimentos negativos não resultam apenas da sua incapacidade para controlar a
sua alimentação e o seu peso, mas antes aparecem como uma forma de se verem a
si próprios extremamente negativa e como parte permanente da sua identidade.
Esta baixa auto-estima parece resistir apesar de uma melhoria na sintomatologia
alimentar e tende a ser um obstáculo à mudança. Se, por um lado, influencia a
sua capacidade de acreditar na possibilidade de mudar, o que mina a sua adesão
ao tratamento, por outro, estes pacientes fazem depender o seu valor
completamente da área que valorizam, neste caso, a alimentação, o que, à
partida, dificulta a mudança. O fracasso é visto como uma confirmação da sua
incapacidade para mudar, o que reafirma a visão negativa que têm de si próprios
(Fairburn et al., 2003).
Intolerância Afectiva:Já nas formulações iniciais da Teoria Cognitivo
Comportamental (Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986) havia sido reconhecido
que as alterações de humor podem, muitas vezes, funcionar como antecedentes dos
episódios de ingestão alimentar compulsiva, que acontecem em muitas situações,
como uma forma de resposta a estas alterações do estado de humor. No entanto,
vários autores têm vindo a referir que a relação entre estas alterações
emocionais e a ingestão compulsiva são mais complexas (Steinberg, Tobin, &
Johnson, 1989; Stice, 2001; Waller, 2002).
Verifica-se que, um grupo de pacientes com Perturbações Alimentares parece
mostrar-se incapaz de lidar com os estados emocionais intensos, sendo que não
conseguem lidar com as mudanças de humor e incorrem, naquilo que Fairburn e
colaboradores (2003) caracterizam por comportamentos disfuncionais modulatórios
do humor. Estes comportamentos reduzem a capacidade para discernir quais os
antecedentes das ingestões alimentares compulsivas e cognições associadas,
embora, por outro lado, as neutralizem. Estes comportamentos podem ter a forma,
por exemplo, de comportamentos de mutilação ou consumo de substâncias, muitas
vezes utilizados como forma de dissipar o estado de humor inicial (e.g.,
tristeza, raiva, aborrecimento). Estes comportamentos são, muitas vezes,
encontrados em pacientes com Perturbações Alimentares (Claes, Vandereycken,
& Vertommen, 2002). Nos pacientes com Bulimia, a ingestão compulsiva, o
vómito ou o exercício excessivo, podem, eles próprios, ser utilizados como
forma de modular o humor (Fairburn et al., 2003). Se por um lado estes
pacientes parecem experienciar os estados emocionais de um modo mais intenso,
por outro, parecem ser mais sensíveis a pequenas alterações do estado
emocional, sendo que, muitas vezes, se julgam incapazes de lidar com os
sentimentos e pensamentos que daí advém, reacção esta que, por sua vez, pode
amplificar o estado emocional inicial (Fairburn et al., 2003). Os pacientes com
Bulimia Nervosa parecem ser aqueles para quem a intolerância afectiva é mais
comum, funcionando, frequentemente, a ingestão alimentar compulsiva e o vómito
como forma de lidar estados de humor intensos, sendo utilizados pelos pacientes
como forma de lidar com os sentimentos, pensamentos e emoções adversos (ou não)
e que não conseguem fazer dissipar de um outro modo. O vómito e a ingestão
alimentar compulsiva funcionam para estes pacientes como forma de modular o
humor e deste modo, como forma de lidar com diferentes estados emocionais
intensos.
Dificuldades Interpessoais:Os antecedentes dos episódios de ingestão compulsiva
estão frequentemente associados a circunstâncias de vida dos pacientes. Este
facto poderá explicar os bons resultados terapêuticos demonstrados pela terapia
interpessoal no tratamento da Bulimia (Agras, Walsh, Fairburn, Wilson, &
Kraemer, 2000). Esta abordagem chama à atenção para a importância destes
factores na manutenção da perturbação. Estes factores podem ser dificuldades
familiares, contextos que enfatizam o valor da magreza, acontecimentos
interpessoais negativos e são, com frequência, os antecedentes dos episódios de
ingestão compulsiva. Também as dificuldades interpessoais mantidas e
prolongadas ao longo do desenvolvimento são, elas próprias, fundamentais para a
construção de uma imagem negativa de si e do seu valor, o que têm óbvias
implicações na construção de uma auto-estima positiva.
Deste modo, é reconhecido que as dificuldades interpessoais têm um papel
extremamente importante no perpetuar das dificuldades alimentares, sendo que
intervir sobre estes aspectos pode, igualmente, ter um papel na facilitação da
mudança em termos do comportamento alimentar (Fairburn et al., 2003).
Mecanismos comuns de manutenção do problema alimentar
A par da inclusão dos quatro novos mecanismos que actuam para a manutenção dos
problemas, os mesmos autores (Fairburn et al., 2003) sugerem ainda que apesar
das diferentes perturbações apresentarem algumas características distintivas,
elas partilham a mesma base psicopatológica, sendo comuns os mecanismos
envolvidos na manutenção das diferentes perturbações. Esta evidência é
suportada também pelo facto de os pacientes se movimentarem, ao longo do tempo,
entre os diferentes diagnósticos, tal com foi exposto anteriormente neste
comentário. Fairburn e colaboradores (2003) propõem assim esta perspectiva
transdiagnóstica de manutenção do problema, transversal às diferentes
perturbações alimentares (Bulimia Nervosa, Anorexia Nervosa, Perturbações
Alimentares Atípicas).
O TRATAMENTO REFORMULADO
A conceptualização clínica das Perturbações Alimentares segundo este modelo
cognitivo-comportamental revisto (Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003) tem
algumas implicações para o tratamento.
Assim, foi proposto um novo tratamento Terapia Cognitivo-Comportamental para as
Perturbações Alimentares. O tratamento deriva da perspectiva transdiagnóstica,
na medida em que é desenhado para ser realizado junto de pacientes com Anorexia
Nervosa, Bulimia Nervosa ou PCA SOE, e na medida em que é defendido que são
partilhadas por estes pacientes características psicopatológicas comuns.
Assim, deixa de ser relevante a perturbação alimentar específica, sendo que
cada caso é formulado com base nos aspectos psicopatológicos presentes e nas
particularidades de manutenção do problema (Fairburn et al., 2003). Por outro
lado, o tratamento desenha-se inicialmente do modo tradicional, para depois,
num segundo passo serem abordados os mecanismos adicionais de manutenção da
perturbação eventualmente presentes.
A ABORDAGEM COGNITVO-COMPORTAMENTAL POR PASSOS
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) está bem estabelecida como um
tratamento eficaz para as PCA (Fairburn, 1997a; Wilson et al., 2002). No
entanto, o facto de ser um tratamento com elevado nível de intensidade e de
requerer profissionais especializados para a implementação do programa, torna-
o uma alternativa que comporta custos elevados e que não se encontra ainda
disponível de um modo generalizado, sendo fundamental maximizar a relação
custo-eficácia da terapêutica (Carter & Fairburn, 1998).
A evidência de que diferentes pacientes respondem com sucesso a diferentes
tipos e intensidades de tratamento (Haaga, 2000), nomeadamente manuais de auto-
ajuda, tem levado a que novas variantes do tratamento CC tenham sido
desenvolvidas, permitindo, por um lado, uma melhor disseminação de serviços
especializados, e por outro, que cada paciente obtenha a intensidade
terapêutica de que necessita.
Num ambiente de recursos limitados, uma abordagem de tratamento por passos de
acordo com as necessidades pessoais, parece ser a alternativa mais sensata de
modo a assegurar que todos recebam a quantidade de tratamento que necessitam.
Esta necessidade tem levado ao desenvolvimento de programas/manuais de Auto-
ajuda e a Auto-ajuda Guiada, que se tem vindo a provar eficazes, para
determinados indivíduos (Carter & Fairburn, 1998), menos dispendiosas e que
possam ser mais facilmente difundidas e acessíveis aos pacientes com estas
perturbações. Tendo em consideração o corpo empírico produzido nos últimos anos
em relação à eficácia dos programas de auto-ajuda, é possível afirmar que estes
apresentam resultados positivos, sendo que o National Institute for Clinical
Excelence(2004) reconhece a auto-ajuda como um "possível primeiro passo
no tratamento da Bulimia Nervosa, pelo que estes pacientes devem ser
encorajados a seguir programas de auto-ajuda empiricamente validados" e
que os "profissionais de saúde devem considerar fornecer encorajamento
directo e apoio" a pacientes a realizarem este programa, como forma de
melhorar os resultados terapêuticos (NICE, 2004, p. 14).
Assim, numa lógica de tratamento por fases, só os indivíduos que não
respondessem a este tipo de tratamento é que integrariam uma fase terapêutica
de maior intensidade (Birchall & Palmer, 2002), restringindo, deste modo, o
uso da TCC aos pacientes que tem realmente necessidade (Carter & Fairburn,
1998).
Como nos foi possível verificar, o tratamento das Perturbações de Comportamento
Alimentar, especialmente para a Bulimia Nervosa, tem sido amplamente
investigado. A terapia cognitivo-comportamental aparece como o tratamento de
primeira escolha para a Bulimia Nervosa (NICE, 2004; Wilson & Fairburn,
2000; Wilson, Vitousek, & Loeb, 2000), que tem vindo a ser melhorado de
modo a responder ao crecente interesse de encontrar formas de tratamento
alternativas, menos dispendiosas e que possam ser facilmente difundidas e
acessíveis aos pacientes com estas perturbações, como sejam os manuais de auto-
ajuda.