Sociologia da saúde em Portugal: Contextos, temas e protagonistas
Introdução
Neste artigo apresenta-se uma análise sociológica sobre a prática de
investigação em sociologia da saúde em Portugal. Confere-se a esta proposta de
reflexão uma necessidade acrescida, na medida em que o reduzido volume de
produção científica neste domínio coexiste com a ausência de análises sobre as
instituições onde é desenvolvida, os seus protagonistas e os objectos teórico-
empíricos privilegiados.
O domínio da sociologia da saúde em Portugal não passou ainda de uma fase
emergente. A primeira investigação aprofundada dista menos de 20 anos, com a
tese de doutoramento de Graça Carapinheiro, pelo ISCTE, em 1989: Saberes e
Poderes no Hospital. Uma Sociologia dos Serviços Hospitalares. Este trabalho de
investigação é apresentado pela autora como um primeiro contributo num relativo
vazio que era a investigação sociológica sobre estes objectos reais e
conceptuais. Situamos nessa data o seu nascimento, considerando como condição
elementar para a disseminação do saber científico a existência de docentes
doutorados, aptos a orientar teses de doutoramento e a coordenar cadeiras no
ensino universitário e pós-graduado, portanto, a garantir a disseminação do
saber científico.1
Apesar da sua relativa juventude, a sociologia da saúde tem apresentado um
consistente desenvolvimento na última década. O presente trabalho pretende dar
conta deste processo de diferenciação e autonomização da sociologia da saúde em
Portugal.
No plano teórico, recorre-se a contributos já clássicos da sociologia da
ciência seguindo, contudo, um posicionamento mais próximo de Merton (1996) e de
Bourdieu (2004). A nível nacional, é de destacar a já vasta acumulação de
produção teórica e de resultados empíricos sobre a ciência e sobre o campo de
investigação sociológica em Portugal.
No plano metodológico, recorre-se à análise da produção sociológica, enquadrada
por instituições portuguesas, das teses de investigação, ao nível do ensino
pós-graduado mestrado e doutoramento , bem como da publicação de artigos e
livros de natureza sociológica que resultem de pesquisas empíricas.
Delimitação do domínio da sociologia da saúde
Embora a definição do domínio sociologia da saúde e a sua consequente
delimitação tenha sido atravessada por algumas controvérsias teóricas, desde a
clássica e inicial distinção efectuada por Strauss (1957) entre sociologia na
medicina e sociologia da medicina, passando recentemente, como analisa
Carapinheiro (2006), por propostas de inclusão e/ou exclusão dos termos saúde,
doença, medicina ou medicinas,neste artigo adopta-se a designação de sociologia
da saúde, pois esta constitui a forma institucional académica mais
correntemente usada em Portugal.
Com o objectivo de clarificar a circunscrição deste domínio, o presente
trabalho adoptou uma dupla delimitação tendo por base um conjunto de critérios
ligados, por um lado, à orientação disciplinar em sociologia e, por outro,
ligados ao objecto.
Em relação aos critérios de delimitação ligados ao objecto, entendeu-se que o
domínio da sociologia da saúde englobaria uma pluralidade de objectos, mas
circunscritos às seguintes dimensões: saúde, doença e morte; instituições,
organizações e profissionais de saúde; sistemas terapêuticos e políticas de
saúde. Dimensões analíticas que imprimem uma matriz identitária ao domínio da
sociologia da saúde e que foram seleccionadas tendo por base critérios ligados
à cumulatividade teórica. Critérios que resultam da análise das tradições e
perspectivas dos precursores, a nível internacional e nacional, reconhecidos no
interior do campo da sociologia, como definidores da sociologia da saúde.2
Ficaram de fora, por exemplo, trabalhos que centram a sua análise em objectos
como a toxicodependência, a sexualidade, o corpo ou a ciência.
Por outro lado, e porque não são as relações reais entre os objectos reais que
constituem o principio da delimitação dos diferentes campos científicos, mas as
relações conceptuais entre problemas (Bourdieu e outros, 1999), a construção
dos objectos de estudo teve como condição prévia a subordinação à orientação
disciplinar em sociologia. Deste modo, ficaram excluídos os trabalhos que,
apesar de se centrarem nas dimensões analíticas atrás referidas, pertencem a
outros campos disciplinares como a antropologia, a gestão em saúde, a economia,
a demografia ou a geografia humana.
No plano operatório, a selecção das teses de investigação, foi realizada em
duas fases. Numa primeira fase, que decorreu até Dezembro de 2007, procedeu-se
a uma consulta dos catálogos bibliográficos, disponíveis na internet, das
universidades e institutos do ensino superior público nacionais. Para este
objectivo de selecção, o trabalho socorreu-se das auto-definições
institucionais sobre a delimitação da disciplina de sociologia no ensino pós
graduado. Por outro lado, e fora do quadro das auto-definições institucionais,
a selecção dos trabalhos, ainda nesta primeira fase, operou-se através dos
próprios títulos das teses em articulação com a filiação institucional e
disciplinar em sociologia dos respectivos orientadores científicos. Importa
referir que em algumas instituições académicas não existe a designação de
sociologia em programas do ensino pós graduado.
3
Numa segunda fase procedeu-se a uma análise de conteúdo, circunscrita aos
objectos de estudo, modelos de análise, enquadramentos teóricos e bibliografias
das respectivas teses, com o objectivo de apenas se considerar os trabalhos
cuja sede disciplinar se situaria na sociologia.
4
Quanto à análise dos artigos científicos considerados mais relevantes em termos
epistemológicos e/ou teóricos, esta reporta-se até Janeiro de 2008, sob alguns
critérios. Em primeiro lugar, as investigações em causa tiveram que se reportar
à realidade portuguesa e ser enquadradas por instituições nacionais. Note-se,
contudo, que não foram analisados projectos desenvolvidos por equipas de
investigação. Esta análise tendo sido centrada na publicação de artigos e
livros, poderá contemplar alguns projectos, mas apenas se tiverem resultado na
sua publicação.
5
No caso da publicação de artigos, contemplaram-se as revistas orientadas para
o domínio da sociologia, mas também das ciências sociais em geral. Em segundo
lugar, apenas foram considerados os estudos ou reflexões que resultem de
pesquisas empíricas, ficando de fora todo o tipo de exercício que tenham por
base considerações puramente teóricas.
Elementos de caracterização da investigação em sociologia da saúde
Em 1987 é editado um número da Revista Crítica de Ciências Sociais (23.ª
publicação) com a primeira colectânea de estudos interdisciplinares tendo a
saúde como denominador comum.6 Sendo a saúde uma matéria eminentemente política
(Carapinheiro, 2006), como veremos, não surpreende que Boaventura Sousa Santos
e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra tenham conduzido as
primeiras investigações neste domínio.
A revista é introduzida por Santos (1987a) com o título A saúde da doença e
vice-versa, dando conta dos porquês de análises sobre a saúde que não pelo
prisma do conhecimento bio-médico, ou seja, entendendo a saúde nas suas
múltiplas dimensões sociais e políticas, daí a pertinência de um olhar
direccionado pelas ciências sociais. Englobando um conjunto de contributos
sobre o Estado e as Políticas, outro sobre a Ciência e a Profissão Médica e um
último sobre Saberes, Práticas e Representações, pretendeu-se desta panorâmica
inicial a abertura de um campo ainda inexistente.
Deste número destacam-se três artigos, um por cada dimensão. Em primeiro lugar,
e sob a vertente do Estado e Políticas,Santos apresenta um artigo onde, a
partir da análise de dados estatísticos, fundamenta que a saúde e a política
seguem de mãos dadas. Propõe que interpretando o estado é possível conhecer a
realidade e os significados da saúde, nomeadamente nos seus modos de produção e
na relação público-privada (Santos, 1987b).
Sobre a Ciência e a Profissão Médica, Carapinheiro (1987) apresenta dimensões
de análise que irão constituir a sua tese de doutoramento. Centra-se
especificamente nos contextos hospitalares para problematizar as relações
profissionais, bem como a relação doente/médico.
Por último, ao nível dos Saberes, Práticas e Representações, Hespanha (1987)
articula técnicas de recolha de informação de natureza intensiva com análises
estatísticas, pretendendo descortinar as determinantes sociais e culturais que
estão na base da procura de cuidados de saúde num contexto rural. A sua
hipótese de investigação é que, enquadrada nos modos de produção de cuidados, a
realidade social, cultural e económica influencia a relação, ou, melhor
dizendo, a representação que os indivíduos desenvolvem da medicina, dos
médicos, das doenças e do seu próprio corpo.
Abordando agora a tese de doutoramento de Carapinheiro, em 1989, Saberes e
Poderes no Hospital,a autora apresenta um modelo analítico que, não fugindo às
linhas de orientação das investigações desenvolvidas nos países com maior
tradição no campo, resume diferentes perspectivas de análise. Esta obra
constitui uma base teórica e um primeiro modelo de análise aplicável ao
contexto hospitalar português. Indo beber a autores como Turner e Freidson as
questões do poder e das racionalidades médicas, ou a Strauss, Steudler e
Chauvenet os contextos hospitalares enquanto palcos privilegiados de produção e
reprodução desse poder, a autora centra-se nos agentes, nos seus saberes e
poderes, definindo um objecto de investigação alargado. Fez convergir para a
sociologia dos serviços hospitalares perspectivas da sociologia das
organizações, das profissões e da saúde, como também outras formulações de
natureza mais alargada, como a questão do poder e da vigilância de Michel
Foucault.
Carapinheiro parte, assim, do nível organizacional para analisar o confronto
entre as autoridades burocrática e profissional, bem como as relações
profissionais formais, mas, sobretudo, as informais estabelecidas entre todos
os intervenientes envolvidos na prestação de cuidados de saúde (médicos,
enfermeiros e outros profissionais). Confere ainda espaço de análise às
delimitações físicas e simbólicas impostas aos doentes desde a sua entrada nas
organizações hospitalares.
Sendo possível delimitar, por um lado, geográfica e institucionalmente em
Coimbra as primeiras reflexões sociológicas que têm a saúde por objecto de
estudo e, por outro lado, a tese de doutoramento de Carapinheiro, doravante a
análise da prática da investigação sociológica no domínio da saúde não deverá
ignorar a referência a estes protagonistas, na compreensão do sentido em que as
discussões neste domínio foram sendo perspectivadas. É, por isso, importante
ter presente o papel que as perspectivas teórico-epistemológicas representam
para a justificação da ausência e presença da saúde na prática da investigação,
tal como este artigo propõe descortinar.
Relativamente ao total das teses de investigação em sociologia da saúde (quadro
1), sete trabalhos correspondem a teses de doutoramento e os restantes 38 a
teses de mestrado. O conjunto das 45 teses encontra-se organizado numa
bibliografia complementar em anexo.
Quadro 1 - Teses de mestrado e doutoramento em sociologia da saúde, organizadas
por anos e por instituições de ensino
A leitura do quadro 1 permite reconhecer que a sociologia da saúde constitui um
domínio de produção de conhecimento sociológico bastante recente em Portugal,
mas que tem apresentado um consistente desenvolvimento desde 1996. Por outro
lado, verifica-se uma produção científica de distribuição geográfica alargada,
presente nas diversas instituições académicas nacionais. Destaca-se, contudo, a
ausência de produção oriunda da Universidade do Porto e a maior concentração na
FEUC (8 teses), no ISCTE (8 teses) e na FCSH (7 teses).
Os trabalhos de investigação analisados assentam correntemente num modelo de
análise multidimensional, em que duas ou mais dimensões se encontram presentes
e relacionadas. As dimensões de análise, identificadas no quadro 2, foram
construídas tendo por base os objectos de estudo, os modelos de análise e as
hipóteses que orientaram as investigações.
Quadro 2 - Dimensões de análise constituintes dos objectos de estudo
A construção dos objectos de estudo reflecte a convocação teórica de outros
domínios disciplinares da sociologia, de onde se destacam o da sociologia das
organizações e o da sociologia das profissões. Nesta análise, destaca-se
igualmente a ausência dos contributos da sociologia das classes sociais para a
sociologia da saúde.
A propensão para a interdisciplinaridade verifica-se na articulação entre as
dimensões de análise, com a contribuição teórica complementar de outros campos
disciplinares, nomeadamente da antropologia e da psicologia social mais
presente na dimensão Representações Sociais, e da economia, administração e
ciências jurídicas na dimensão Estado/Políticas de Saúde.
É ainda de realçar o peso da dimensão Doença que se apresenta de forma
dominante, por oposição à dimensão Saúde.Desdobrando a dimensão Doença, esta
incide principalmente sobre dois grandes grupos: a doença mental presente em
oito dos trabalhos, e a doença oncológica presente em quatro. As restantes
doenças distribuem-se do seguinte modo (por grau de representatividade): HIV/
sida; tuberculose; malária; doença de Machado-Joseph, doenças hereditárias,
doenças crónicas.
Esta observação quanto à dimensão analítica presente nas teses acaba por se
reflectir nos artigos científicos. Além das políticas, as profissões,
subsidiária da linha da sociologia das organizações, tem sido das dimensões
mais presentes nas opções das investigações nacionais (e.g. Carapinheiro, 1991,
1993; Lopes, 2001; Areosa, 2004; Serra, 2004).
Mais recentemente, o espaço de discussão teórica e de produção conceptual tem
sido mais alargado. Temas como as representações e construções sociais, tanto
da doença como da medicina (e.g., Mendes, 2003; Lopes, 2003; Augusto, 2004;
Delicado, 2001; Raposo, 2004), apresentam condições para vir a adquirir a
importância que as políticas e profissões apresentam na investigação
sociológica portuguesa.
Além desses domínios, existe todo um outro conjunto de análises, que, por
estarem ainda em fases embrionárias de conceptualização ou por não terem ainda
grande visibilidade na produção sociológica em saúde, não podem ser entendidas
como problemáticas consolidadas. Como exemplo, destacamos as análises de Silva
e Alves (2002) que, através de factores culturais (concepção de género),
sociais (classes sociais) e trajectórias individuais (idade), procuram
compreender possíveis desigualdades nos padrões de saúde e nas representações,
perante o sistema de saúde. Silva (2006) volta a abordar o tema das práticas e
representações, mas agora para descortinar os saberes leigos com respeito à
alimentação. Giraldes (2005) propõe uma análise sobre a despesa das famílias
portuguesas, com base nas diferenças geográficas e socioeconómicas para
justificar acessos diferenciados à saúde.
Os objectos empíricos presentes nas teses revelam uma clara tendência de
atracção para um pólo que se poderia definir como hospitalocentrismo (Campos,
1984), o que acaba por reflectir o peso e a centralidade que estas instituições
assumem na configuração do sistema de saúde português. Hospitais e serviços
hospitalares, com ou sem internamento, profissionais de saúde que exerçam
funções nas instituições hospitalares, pessoas com doença em contexto
hospitalar e utentes dos serviços hospitalares, constituem temas analisados e
presentes em 29 dos 45 trabalhos de investigação analisados.
Relativamente às metodologias de investigação, verifica-se um posicionamento
dominante cerca de 85% no recurso a estratégias de tipo intensivo/
qualitativo. Em relação às técnicas de recolha de informação regista-se
igualmente de forma generalizada a utilização complementar de duas ou mais
técnicas onde, contudo, predomina o recurso à entrevista como técnica central
de recolha de informação.
Algumas especificidades que o domínio da sociologia da saúde apresenta decorrem
da dificuldade de acesso aos objectos empíricos. O acesso aos objectos
empíricos constitui, em si mesmo, um processo que é sistematicamente alvo, por
parte dos investigadores, de reflexão teórica e metodológica. É, por isso,
recorrente a inclusão e o reconhecimento da importância das teorias auxiliares
no domínio das relações sociais de observação (e.g., Carapinheiro, 1993;
Augusto, 2004), na esteira do que defende Pinto (1984a e 2004) à luz dos
contributos de Bourdieu.
De entre os vários objectos em análise, verifica-se que certos domínios
empíricos envolvem redobradas dificuldades no acesso. Domínios empíricos e
opções metodológicas que incluem i) a entrada em serviços de internamento
hospitalar e ii) a interacção com pessoas com doenças socialmente
estigmatizantes ou de evolução prolongada.
Olhando agora para os protagonistas e para as relações internas a este domínio
sociológico, baseamo-nos nos conceitos de comunidade científica proposto por
Merton (1996)
7
e de campo científico proposto por Bourdieu (2004). Apesar das diferenças
conceptuais, ambos os autores convergem no sentido de, por um lado,
considerarem a ciência como um espaço social estratificado, relativamente
autónomo, dotado de regras e valores específicos e, por outro, de considerarem
que a ciência deve ser interrogada na sua relação quer com o próprio universo
científico, quer com o universo social onde se encontra inserido.
A análise seguinte tem como objectivo procurar factores de diferenciação e de
estratificação interna no domínio da sociologia da saúde. Este enquadramento de
análise será equacionado segundo duas perspectivas, como as distingue Patrícia
Ávila (1997). Uma perspectiva que direccione o olhar para o exterior e outra
que direccione o olhar para dentro do próprio campo.Perspectivas que se
pretendem articuladas e que permitem explorar um caminho na compreensão do tipo
de relações que se estabelecem entre o universo social e a diferenciação
interna nos campos científicos (Ávila, 1997; Machado e outros,1995)
Neste sentido, serão mobilizadas as seguintes dimensões: i) origens e relações
profissionais; ii) género e iii) reconhecimento interpares.
No decorrer do presente estudo, verificou-se que alguns investigadores
apresentavam origens e relações profissionais, anteriores aos desenvolvimentos
dos seus projectos de investigação, que os tinham motivado nas escolhas dos
temas relacionados com a saúde, bem como na selecção das estratégias
individuais de investigação. Neste sentido, procurou-se relacionar, de forma
sincrónica, os investigadores nos contextos temporais em que desenvolviam as
suas investigações com as suas origens e relações profissionais. Esta
distribuição revelou que grande parte dos investigadores tinha já uma anterior
proximidade ou pertença profissional aos objectos e contextos empíricos
seleccionados. De um total de 22 teses em que os autores explicitaram a sua
origem profissional, nove eram profissionais de enfermagem e cinco tinham
actividade docente nas áreas das ciências sociais, em cursos de enfermagem.
Os profissionais de enfermagem constituem o grupo que mais se aproxima do que
Merton (1996) definiu como insiders. Insidersrelativamente às temáticas em
análise mas, outsiders relativamente ao campo sociológico. Estas pertenças
profissionais em enfermagem são valorizadas principalmente pelo seu
posicionamento privilegiado no interior dos quadros de interacção hospitalar.
Posicionamento que, segundo estes investigadores, possibilitou uma melhor
compreensão dos problemas quotidianos e mais camuflados dos serviços de saúde,
uma maior facilidade na interacção face-a-face com a pessoa doente e,
finalmente, uma melhor capacidade para descodificar e interpretar os discursos
mais herméticos dos profissionais de medicina.
Por outro lado, e como já referido, específicos contextos de análise envolvem
redobradas dificuldades no seu acesso. Os agentes outsiders em relação a estes
campos empíricos, mas insiders relativamente ao campo sociológico, conseguiram
na relação profissional, sobretudo ligada à docência no ensino em escolas de
enfermagem, a acumulação e a mobilização de um importante capital social que
permitiu uma maior facilidade no acesso a estes contextos empíricos mais
inacessíveis, em especial quando estes implicavam a entrada em serviços de
internamento hospitalar.
No cruzamento entre a autoria dos trabalhos e a variável sexo, verifica-se o
claro predomínio do sexo feminino. A abordagem da problemática do género na
ciência (Amâncio e Ávila, 1995), permite levantar aqui a hipótese de se
considerarem efeitos de género ligados à escolha dos temas de investigação
relacionados com à área da saúde. Paralelamente, podemos ainda considerar
efeitos de género articulados com as pertenças profissionais dos investigadores
reveladores de uma forte associação com o ensino e a profissão de enfermagem.
Como analisam Amâncio e Simões (2004), o domínio do cuidar encontra-se
fortemente associado à feminilidade, que decorre da história da prestação de
cuidados e da enfermagem como profissão.
Se o predomínio feminino é claro na autoria dos trabalhos, em contraste, o sexo
masculino é maioritário no que diz respeito às orientações científicas. Esta
assimetria corresponde a um maior condicionamento das mulheres no acesso ao
topo das carreiras e vai de encontro à investigação de Amâncio e Ávila (1995:
145) na análise da progressão na carreira académica, que demonstra como a
percentagem de mulheres na categoria de professor catedrático é quatro vezes
inferior à dos homens.
As análises de Merton (1996) sobre os processos de estratificação social nas
comunidades científicas apresentam uma ideia central, como analisa Ávila
(1997), assente no pressuposto de que os cientistas, no interesse do progresso
do conhecimento em geral, procuram simultaneamente, a um nível mais individual,
a obtenção institucional do seu reconhecimento científico. Bourdieu (2004)
utiliza o conceito de capital científico, que traduz igualmente este
reconhecimento científico acumulado. Trata-se de um reconhecimento operado
pelos pares que, como analisa Merton (1996), é entendido como um reconhecimento
simbólico, ancorado num sistema de recompensas simbólicas, ao qual está também
associado um sistema de avaliação, diferenciação e estratificação das
comunidades científicas.
Uma das características específicas do campo científico, ou das comunidades
científicas, reside no facto de a concorrência e o reconhecimento pelos pares
constituirem condições da própria autonomia da ciência. Esta especificidade
resulta de um conjunto de normas culturalmente incorporadas através de uma rede
de práticas sociais, sistematicamente observadas, caracterizadas por um
cepticismo organizado (Merton, 1996) em que cada um dos investigadores
inseridos no campo está sujeito ao controlo de todos os outros e, em
particular, dos seus concorrentes mais competentes e críticos, portanto, os
mais inclinados e os mais aptos a compreendê-lo, mas também a criticá-lo ou a
refutá-lo (Bourdieu, 2004).
A identificação dos agentes com funções de orientação, articulado com as suas
pertenças institucionais, e a análise e a contagem dos autores e obras
referenciadas nas bibliografias das respectivas teses constituem dois
importantes indicadores que, para além de permitirem uma análise de âmbito mais
descritivo, pretendem também reflectir sistemas de recompensas simbólicas e de
reconhecimento científico acumulado dos agentes e dos trabalhos produzidos.
Na grande maioria, os agentes responsáveis pelas orientações científicas
apresentam pertenças institucionais que coincidem com as instituições onde se
desenvolvem os trabalhos de investigação e que conferem os respectivos graus
académicos. Este panorama reflecte algum fechamento das instituições
académicas, na relação orientador-investigador, ao que não será alheio a
juventude deste domínio e a pouca produção científica nacional anterior a 1996.
Graça Carapinheiro, docente no ISCTE, destaca-se não só pelo número de teses
que orientou nessa instituição, mas também pelo facto de ter sido responsável
por orientações na FEUC, no ISEG, no ICS e na UBI (num total de oito teses de
mestrado e quatro de doutoramento). Reconhecimento científico acumulado que
permitiu a esta autora contrariar a posição masculina dominante no mapa das
orientações. Nesta contagem, Boaventura de Sousa Santos, docente da FEUC, e com
orientações mais circunscritas à FEUC, surge após Carapinheiro, com um total de
quatro orientações de mestrado e uma de doutoramento.
8
A análise e a contagem das obras e autores presentes nas bibliografias das
teses de investigação (figura 1) permitem, por um lado, avaliar os efeitos de
cumulatividade científica e, por outro, permitem articular o domínio da
sociologia da saúde portuguesa num posicionamento teórico internacional.
Figura 1 - Número total de referências, por autor, presentes nas bibliografias
das teses de investigação
Nota: Apenas estão mencionados os autores que contabilizaram 20 ou mais
referências.
No plano nacional, Carapinheiro e Santos surgem como as referências de autor
mais frequentes, enquanto Bourdieu, Foucault e Giddens constituem o grupo de
autores estrangeiros mais frequentemente mobilizados.
Na contagem das referências por autor, a proporção dos homens é cerca de cinco
vezes superior à das mulheres. Tendência esbatida no plano nacional, passando
para cerca de duas vezes mais nos homens do que nas mulheres. Na contagem por
obras mais referenciadas, e apenas no plano nacional, esta relação aproxima-se
da paridade entre os sexos. Facto que se deve sobretudo à publicação em livro,
em 1993, da tese de doutoramento de Carapinheiro, Saberes e Poderes no
Hospital, que constitui, desde então, uma obra de referência central, com
presença transversal nas diversas teses de investigação. Importa ainda
assinalar duas obras mais recentes, que surgem como importantes referências a
nível nacional. A publicação em livro da tese de mestrado de Noémia Lopes, em
2001, Recomposição Profissional da Enfermagem,presente em sete teses de
investigação e a obra colectiva, sob a coordenação de Manuel Villaverde Cabral,
de 2002, Saúde e Doença em Portugal, presente em seis teses.
No sentido de se perceber os modos diferenciados como os autores e as obras são
mobilizados na elaboração das diferentes fases das teses de investigação,
procedeu-se a um cruzamento entre os autores e o seu posicionamento nas teses.
Deste modo, no plano teórico e no âmbito da orientação disciplinar em
sociologia, verifica-se uma tendência que se aproxima da análise de Pinto
(2004: 19) para recorrer quer a abordagens de síntese teórica propostas por
Bourdieu e Giddens, quer a abordagens teóricas, próximas dos quadros, em
reactualização permanente da teoria critica, aqui protagonizada por Boaventura
de Sousa Santos.
No enquadramento teórico, que sustenta a construção dos objectos de estudo, no
domínio agora específico da sociologia da saúde, os autores de referência
portugueses são Carapinheiro e, com menor peso, Nunes; os autores estrangeiros
de referência são: Foucault, Herzilch, Goffman, Freidson e Parsons.
No plano metodológico, a obra colectiva Metodologias das Ciências Sociais, de
1986, organizada por Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto, surge como
outra obra nacional de referência transversal, a que se associa a mesma linha
de pensamento dos artigos de Pinto (1984a; 1984b). Reflecte-se assim o peso da
perspectiva epistemológica do racionalismo crítico. Os capítulos mais
referenciados desta obra são: A pesquisa de terreno em sociologia de Costa;
Da teoria à investigação empírica de Almeida e Pinto e Análise de conteúdo
de Vala. Ainda no plano metodológico, Santos surge como uma importante
referência, presente de forma mais distribuída em vários artigos e livros de
sua autoria. O livro Saberes e Poderes no Hospital,de Carapinheiro, é
igualmente uma importante referência metodológica, em especial quando os
objectos de estudo implicam contextos hospitalares.
Relações sociais organizacionais/institucionais: efeitos de escola
Segundo Bourdieu (2004), as estratégias dos cientistas e as suas hipóteses de
sucesso dependem da posição que ocupam na estrutura do campo científico. A
introdução da ideia de habitus remete o princípio gerador das práticas
científicas, não para um princípio de consciência cognitiva, mas para um
sistema de disposições de base, em grande parte inconscientes, transponíveis e
que tendem a generalizar-se (2004: 63). Assim, as escolhas dos temas, os
posicionamentos epistemológicos, os enquadramentos teóricos e as metodologias
são igualmente condicionadas pela posição que cada investigador ocupa no campo
científico. Campo científico também estruturado por diferentes e diferenciadas
posições relacionais, universidades, institutos e centros de investigação.
Pretende-se agora procurar explorar algum efeito de escola, gerador de
diferenciados habitus científicos,a partir dos quais se operam modos
diferenciados na produção dos trabalhos de investigação. Note-se que o efeito
de escola pode não coincidir linearmente com o espaço institucional. Por efeito
de escola, referimo-nos a influências de inclusão e de exclusão de referenciais
epistemológicos, teóricos, analíticos e metodológicos definidos a partir de
instituições, mas que podem transpô-las.
Para este objectivo, recorreu-se a uma análise comparativa entre duas escolas
a FEUC e o ISCTE. Instituições seleccionadas por apresentarem a maior
concentração de produção de teses de investigação neste domínio e
simultaneamente pelas posições de destaque aqui assinaladas e protagonizadas
por Carapinheiro (ISCTE) e Santos (FEUC).
Um dos traços mais marcantes de diferenciação entre as duas escolas radica-se
na escolha dos temas e na articulação entre as várias dimensões de análise
constituintes dos objectos de estudo (quadro 3).
Quadro 3 - Dimensões de análise e técnicas de recolha de informação FEUC/ISCTE
Evidenciando as maiores diferenças, a FEUC apresenta uma menor incidência ou
até ausência das dimensões organizações, profissões e representações
sociais. Quase de forma oposta, o ISCTE centra praticamente todo o domínio da
sociologia da saúde, na articulação entre estas dimensões. Aqui, são mais
estudados os médicos, enfermeiros e os contextos hospitalares, numa articulação
que privilegia as práticas sociais e culturais em redor das identidades,
ideologias, normas ou valores. O título da tese de mestrado de Noémia Lopes é
paradigmático deste posicionamento: A Recomposição dos Saberes, Ideologias e
Identidades de Enfermagem. Estudo Sociológico em Contexto Hospitalar.O ISCTE
destaca-se ainda pelas ausências na articulação com as dimensões Estado-
Políticas de Saúde e Globalização. Duas dimensões que, em contraste,
constituem praticamente a matriz identitária da escola FEUC, ilustrando os
distanciamentos epistemológicos entre as duas escolas. Um trabalho ilustrativo
deste posicionamento, oriundo da FEUC, apresenta-se na tese de mestrado de
Alexandra Lopes (2000), O Terceiro Sector nos Sistemas de Bem-Estar. Uma
Perspectiva Comparativa das Ong's Ligadas ao Complexo VIH/SIDA.A
internacionalização é outra das características específicas da produção da
FEUC, facto que não é alheio aos posicionamentos teóricos de Boaventura de
Sousa Santos. Assim, duas teses são desenvolvidas fora do contexto nacional:
Maria Viegas (2005) desenvolve a sua investigação em Angola, e Isabel Craveiro
(2001) em Moçambique. O título da tese de Isabel Craveiro é igualmente
elucidativo da escola FEUC: Entre o Local e o Global, Um Mundo de Relações
Desiguais. Definição das Políticas de Saúde em Moçambique.
As estratégias de investigação de ambas as escolas privilegiam claramente as
abordagens qualitativas/intensivas. Relativamente às técnicas de recolha de
informação verifica-se igualmente a articulação complementar de várias
técnicas.
As maiores diferenças registam-se no recurso à análise documental, mais
frequente nas teses originárias da FEUC. Documentos que maioritariamente têm
por base textos legislativos, documentos de organismos internacionais como a
Organização Mundial de Saúde, ou produzidos por organizações não governamentais
e revistas de especialidade em saúde. O ISCTE, pelo contrário, recorre mais à
entrevista e à observação directa e/ou participante. Trabalhos de
investigação que privilegiam o método da pesquisa de terreno, com a permanência
prolongada do investigador nos contextos empíricos.
A análise e a contagem das referências autorais por escolas, permite esclarecer
alguns dos motores teóricos que geram as diferenças e as aproximações até aqui
assinaladas.
A figura 2 revela uma aproximação tendencial entre as referências dos autores
presentes nos trabalhos e as pertenças institucionais dos autores dessas
investigações. Assim, verifica-se um maior recurso a autores com pertenças
institucionais ao ISCTE, como Costa, Almeida, Carapinheiro e Lopes, nos
trabalhos oriundos do ISCTE, e, no lado da FEUC uma maior concentração de
autores como Santos e Nunes.
Figura 2 - Número total de referências, por autor, presentes nas bibliografias
das teses de investigação
Contudo, se por um lado as escolas dividem, por outro, alguns autores
apresentam uma maior transversalidade institucional, como Carapinheiro (ISCTE),
mais referenciada do que Nunes (FEUC), e Santos (FEUC), mais referenciado do
que, por exemplo, Costa (ISCTE). Por outro lado, Pinto (Universidade do Porto)
apresenta-se mais associado aos trabalhos do ISCTE, ilustrando uma proximidade
sociológica entre estas duas instituições.
No plano internacional, verifica-se uma distribuição que também reflecte
padrões de ligação mais exclusiva a uma escola e a autores mais transversais. O
ISCTE apresenta um maior grau de diversificação e complementaridade entre os
autores, destacando-se, contudo, a maior concentração e o contraste, em torno
de Bourdieu. Autor central no desenvolvimento dos trabalhos do ICSTE, mas
praticamente ausente nos da FEUC.
Num nível analítico que cruze os autores e as dimensões constituintes dos
objectos de estudo por escola, verifica-se o peso dos objectos de estudo na
selecção das escolhas teóricas por autor. Deste modo, autores como Goffman,
Chauvenet, Strauss e Carapinheiro, com trabalhos de investigação empírica mais
ligados às dimensões dos serviços e contextos hospitalares, Freidsnon à
profissão médica, e Herzlich às representações sociais dos fenómenos da saúde e
da doença, encontram-se mais representados do lado ISCTE. Por outro lado, a
FEUC apresenta uma maior concentração em torno de Boaventura de Sousa Santos,
autor com uma extensa e importante produção de trabalhos de investigação
sociológica de natureza teórica e empírica, nos domínios da epistemologia e
metodologia, bem como em domínios mais específicos, das áreas das ciências
jurídicas e políticas e nas dimensões da globalização e internacionalização.
Neste sentido, surge com mais frequência Wallerstein, pela sua proximidade e
posicionamentos nestes domínios teóricos. Dimensões e autores mais frequentes
na construção dos objectos de estudo da FEUC.
A perspectiva da sociologia da saúde que Carapinheiro concretiza acaba por
revelar a intersecção de autores que habitualmente dão visibilidade ao
antagonismo epistemológico que tem vindo a ser referido. A particularidade do
modo como desenvolve o seu pensamento sociológico reside precisamente na
compatibilização de autores que são demarcados e evidenciados sobretudo nas
suas posições epistemológicas. Exemplo disso é a coexistência do pensamento de
Bourdieu na dimensão epistemológica e a centralidade de Foucault no modelo
analítico.9 Dada a presença do pensamento francófono e a escolha do objecto
empírico de Saberes e Poderes no Hospital, a referência à obra de Foucault
tornou-se incontornável, revelando-se posteriormente como o principal ponto de
convergência na investigação sociológica portuguesa em saúde.
Ao contrário do pensamento proposto por Santos (1999: 201), que atribui a
Foucault a última grande tentativa de produzir uma teoria crítica moderna ( )
tomando precisamente como alvo o conhecimento totalizante da modernidade, a
ciência moderna, Carapinheiro aplica a sua reflexão especificamente ao nível
do seu modelo analítico. A respeito da epistemologia, a autora assume
claramente uma posição defensora do paradigma do racionalismo crítico
decorrente de Bourdieu. Existe, portanto, esta necessidade de pormenorização
para perceber a que nível as influências dos autores se estendem. Ora, dado que
se atribui a Carapinheiro uma posição de centralidade na sociologia da saúde
portuguesa, esta sua opção teórico-epistemológica acaba por se reproduzir, umas
vezes de forma mais explicita do que outras, na produção sociológica deste
domínio.
Sistematizando os argumentos referidos, pretendeu-se perceber até que ponto é
possível falar em efeitos de escola, no domínio da sociologia da saúde,
decorrentes das instituições académicas da FEUC e do ISCTE.
Um primeiro olhar conclusivo revela diferenças inequívocas entre as escolas no
que respeita às dimensões de análise dos objectos de estudo, às técnicas de
recolha de informação, aos referenciais teóricos privilegiados e, como pano de
fundo gerador, duas correntes epistemológicas que diferenciam internamente este
domínio sociológico.
Por outro lado, os efeitos de escola surgem de forma mais explícita num pólo
institucional coincidente com o que se poderá designar por escola de Coimbra.
Nesta, coexiste uma menor diferenciação interna e uma maior homogeneidade no
recurso aos autores, nos planos epistemológico, teórico e metodológico.
Boaventura de Sousa Santos é uma referência central na produção científica da
FEUC de um modo geral, bem como na produção cientifica no domínio mais
específico da sociologia da saúde da FEUC. Quanto ao ISCTE, não é identificável
de forma tão demarcada um efeito de escola. A sociologia da saúde em Portugal,
e no ISCTE em particular, socorre-se fundamentalmente de Graça Carapinheiro.
Ora, dado que o seu posicionamento teórico não contempla cânones
característicos das linhas de produção sociológica desta instituição, em que a
não referência a Bourdieu no plano analítico e a ausência da temática das
classes sociais são indicadores claros a esse respeito, a sociologia da saúde
acaba por revelar especificidades em relação à sociologia portuguesa em geral.
Portanto, na medida em que a abordagem sociológica de Carapinheiro apresenta
contornos bastante específicos, a sociologia da saúde do ISCTE acaba por
reproduzir, directa ou indirectamente, esses seus posicionamentos. A obra
sociológica de Carapinheiro apresenta uma intersecção de correntes e de
posicionamentos relativamente alargados, operando uma diferenciação clara
quanto às influências teóricas e epistemológicas. A produção científica no
domínio da sociologia da saúde oriunda do ISCTE encontra-se mais centralizada
em Carapinheiro e menos na escola do ISCTE. É neste sentido que se argumenta
a dificuldade de se falar num efeito de escola no ISCTE semelhante ao
verificado na FEUC, onde é mais visível uma relação sobreposta entre a pertença
institucional e os posicionamentos na produção científica.
Contextos para um surgimento tardio
O surgimento tardio da sociologia da saúde no contexto da produção sociológica
portuguesa constitui um aparente paradoxo que merece aqui um outro momento de
análise.
Como analisa Pinto (2004), a consolidação recente da sociologia no espaço
científico nacional, tal como, em traços gerais das ciências sociais, foi
marcada por uma forte permeabilidade às dinâmicas políticas e ideológicas. De
modo semelhante, Fernandes (1996: 9) refere que a aceitação e a visibilidade da
sociologia dependeu fundamentalmente de factores conjunturais, referindo-se,
sobretudo à democratização do regime político. A indiferenciação disciplinar
associada a uma institucionalização precária da sociologia, para não dizer
mesmo inexistente, é apontada por ambos os autores como dos principais motivos
para esta permeabilidade do domínio científico.
Considerando-se que a análise sobre as dinâmicas sociais tenderão a privilegiar
aquilo que é socialmente mais marcante num determinado momento,
10
parece paradoxal que este campo potencial de análise, ligado à saúde, tenha
ficado à margem da principal agenda sociológica. A saúde, à semelhança de
outros domínios sociais como por exemplo a educação, com o fim do Estado Novo,
foi alvo de intensas discussões políticas e reestruturações legais, tornando-se
pouco perceptível a não transposição dessa centralidade da esfera social para a
esfera científica.11
À partida, não pode ser encontrada uma resposta única para este surgimento
tardio, confluindo, sim, todo um conjunto de circunstâncias e de influências.
Em primeiro lugar, importa analisar as perspectivas e posicionamentos teóricos,
bem como as influências estrangeiras no domínio da sociologia portuguesa em
geral e da sociologia da saúde em particular.
Como exposto e analisado neste trabalho, a influência estrangeira na sociologia
da saúde portuguesa fez-se sentir principalmente através da escola francófona,
nomeadamente por via de autores como Bourdieu e Foucault. Autores convocados de
forma simultânea mas de forma diferenciada na elaboração das obras: o primeiro
sobretudo em termos epistemológicos, e o segundo na problematização teórica e
analítica.
A centralidade da sociologia portuguesa em Bourdieu tende a confluir numa
divisão de pensamento científico e de escolas. Por um lado, destaca-se a
vertente do racionalismo crítico,pela mão dos primeiros sociólogos portugueses
pertencentes ao núcleo de Adérito de Sedas Nunes e que acaba por fundar aquilo
que hoje se poderá identificar como uma escola de pensamento privilegiada, quer
no ISCTE, quer na Universidade do Porto. Por outro lado, a vertente da teoria
crítica defendida por Santos, que através de contributos de autores como
Foucault, coincide com a fundação da escola de pensamento privilegiada na
FEUC.12
A questão é que os autores que privilegiam o posicionamento epistemológico do
racionalismo crítico, central na sociologia portuguesa tal como Mendes (2002)
refere, acabam por analisar dimensões como a educação ou as classes sociais,
deixando a saúde para uma posição menos visível.13
Finalmente, sendo a saúde tradicionalmente objecto de estudo de esferas
científicas bem enraizadas e amplamente legitimadas no campo social e
científico em Portugal, como a medicina e as ciências biomédicas, a proposta de
uma qualquer análise proveniente das ciências sociais tende a depara-se à
partida com fortes questionamentos e resistências quanto à sua pertinência e
aceitação.
Ora, é desta articulação de pressões teórico-epistemológicas e de
legitimidades científicas e sociais que resulta a justificação do carácter
tardio e circunscrito da investigação em sociologia da saúde.
Conclusão
O domínio da sociologia da saúde encontra-se num processo claro de
diferenciação na sua relação com o campo sociológico em Portugal. Exemplos
desta relativa consolidação podem ser confirmados através da crescente
publicação de artigos em revistas científicas de sociologia e de ciências
sociais e na também crescente produção de teses de mestrado e de doutoramento,
evidenciando uma implantação consistente no território institucional académico
nacional.
Algumas das características diferenciadoras deste domínio, que lhe conferem uma
matriz identitária específica, foram analisadas na sua relação externa com o
universo social envolvente e com o universo científico em que se insere.
Destaca-se o claro predomínio feminino na autoria dos trabalhos e uma
aproximação à esfera profissional da enfermagem, na articulação das relações
insiders/outsiders, quer através das pertenças profissionais de origem, quer
através da relação com o ensino em escolas de enfermagem. Para além das
especificidades que decorrem dos objectos em análise, destaca-se no plano
metodológico, como característico, o predomínio de estratégias de investigação
de tipo intensivo-qualitativo.
Apesar deste crescente processo de diferenciação e autonomização, parece ser
ainda cedo para se poder considerar enquanto campo disciplinar autónomo,
estando ainda numa fase de uma espécie de acumulação primitiva de
conhecimentos, apresentando uma estrutura de relações de produção de
conhecimento muito centrada em torno de Graça Carapinheiro. A autora constitui
claramente um marco fundador da sociologia da saúde em Portugal. Os seus
contributos teóricos e empíricos continuam centrais na sociologia da saúde, o
que, por si só, fundamenta o estado ainda emergente deste domínio científico.