Estabilidade temporal das escalas de esperança para crianças e de satisfação
com a vida para estudantes
A investigação contemporânea no campo da psicologia tem dedicado esforços no
estudo e identificação de variáveis psicológicas que facilitam um
desenvolvimento humano saudável. A Esperança e a Satisfação com a Vida têm
recentemente recebido especial atenção quanto à sua importância para a
construção de um desenvolvimento humano positivo e estão associadas com uma
variedade de resultados adaptativos e como potenciais contributos para o
desenvolvimento de outros comportamentos e atitudes positivas. São descritas
como variáveis de natureza disposicional (Gilman & Huebner, 1997; Huebner,
1991; Snyder et al., 1991; Snyder et al., 1997a), embora sejam consideradas
susceptíveis de mudança ao longo do tempo através de intervenções sustentadas e
elaboradas para o efeito (ver Marques, Pais Ribeiro, & Lopez, 2007a).
A Esperança é uma variável psicológica positiva que tem concentrado atenções no
estudo com crianças e adolescentes (Valle, Huebner, & Suldo, 2004; Valle,
Huebner, & Suldo, 2006). A teoria da Esperança assume que as acções humanas
são direccionadas para objectivos (Snyder, Rand, & Sigmon, 2002). A
Esperança inclui três componentes distintos: objectivos, caminhos e iniciativa,
num sistema dinâmico cognitivo e motivacional que pode ser conceptualizado em
termos de capacidade percebida para gerar caminhos para objectivos desejados, e
de se auto-motivar via pensamento de iniciativa para percorrer esses caminhos
(Snyder, 2002). Os objectivos são os alvos das sequências mentais de acção e
variam no grau de especificidade e num quadro temporal entre objectivos
imediatos e de longo-prazo. O pensamento de caminhos refere-se à capacidade
percebida para gerar caminhos ou percursos mentais para alcançar os objectivos
desejados. O pensamento de iniciativa é o componente motivacional da teoria
da esperança que reflecte as cognições do indivíduo acerca da sua capacidade
para começar e continuar um comportamento direccionado para objectivos (Snyder,
Lopez, Shorey, Rand, & Feldman, 2003). Um importante grupo de investigações
em crianças e adolescentes tem sido desenvolvido (ver Marques, Pais-Ribeiro
& Lopez, 2007b, para uma revisão) apontando para a existência de relações
positivas entre a Esperança e as esferas académica, atlética, saúde física,
ajustamento psicológico e psicoterapia (Snyder, 2002).
A Satisfação com a Vida pode ser definida como a avaliação global feita pelo
indivíduo sobre a sua vida. Aparece como uma variável individual, que o
indivíduo percepciona como apropriada, comparando as circunstâncias da sua vida
com esse conceito estandardizado (Pavot, Diener, Colvin, & Sandvik, 1991).
A definição desta variável pode comportar julgamentos da Satisfação com a Vida
como um todo ou em domínios específicos da vida, conforme esteja subjacente uma
avaliação livre de domínios ou multidimensional, respectivamente (Marques,
Pais-Ribeiro, & Lopez, 2007b). A Satisfação com a Vida avaliada
conjuntamente com o afecto positivo e afecto negativo constituem uma avaliação
do bem-estar subjectivo (Diener et al., 1999). Uma Satisfação com a Vida
positiva tem sido associada a uma variedade de resultados adaptativos,
nomeadamente ao nível intrapessoal, interpessoal, vocacional, da saúde e
educacional (ver Marques et al., 2007b, para uma revisão) e tem sido visto
tanto como um resultado importante como um potencial contributo para o
desenvolvimento de outros comportamentos e atitudes positivas (Huebner, 2004).
Tendo como base as características e potencialidades da Esperança e Satisfação
com a Vida, parece relevante explorar a estabilidade destas variáveis ao longo
do tempo. As respectivas escalas (Escala de Esperança para Crianças e Escala de
Satisfação com a Vida para Estudantes), às quais fazemos referência na
continuidade do artigo, estão validadas para a população portuguesa (Marques et
al., in press; Marques et al., 2007b) Estudos anteriores examinaram a
estabilidade teste-reteste das escalas originais que avaliam estes construtos
entre períodos de tempo menores (e.g., Gilman et al., 1997; Snyder et al.,
1997a; Snyder, Cheavens, & Simpson, 1997b; Terry & Huebner, 1995),
especificamente para intervalos de tempo de 1, 2, 4 semanas e 1 mês.
Recentemente, os autores Valle et al. (2006) publicaram um artigo em que
apresentaram a estabilidade das escalas em estudo, no intervalo de 1 ano. Todos
os estudos que examinaram a estabilidade destas variáveis ao longo do tempo
apontam para a existência de uma natureza disposicional subjacente à avaliação
dos construtos. Nenhum trabalho publicado avaliou a estabilidade da Esperança e
Satisfação com a Vida num intervalo de 6 meses, e por outro lado, não há
qualquer referência sobre a estabilidade destas escalas na sua versão
portuguesa, em quaisquer intervalos de tempo.
Quanto à avaliação da estabilidade das escalas entre períodos de tempo longos,
como é o caso do objectivo do presente estudo, é pertinente tomar em
consideração que avaliações teste-reteste entre períodos de tempo mais ou menos
longos podem implicar que a estrutura e correlações das medidas, neste caso da
Esperança e Satisfação com a Vida, não sejam equivalentes entre diferentes
idades. A este propósito, Valle et al. (2004) conduziram um estudo sobre a
equivalência, entre crianças e adolescentes, da estrutura e correlações da
Escala de Esperança para Crianças, concluindo que os resultados em adolescentes
eram generalizáveis para crianças. Outros estudos (Valle et al., 2006)
providenciam suporte para o uso da Escala de Satisfação com a Vida em
Estudantes como instrumento de investigação válido em crianças e adolescentes.
As conclusões destes estudos permitem prosseguir com avaliações da estabilidade
dos construtos que incluam intervalos de tempo compreendidos entre os grupos
etários referenciados.
O objectivo deste estudo é avaliar a estabilidade das respostas às escalas de
Esperança e de Satisfação com a Vida para estudantes após um período de 6 meses
numa população de crianças e adolescentes.
MÉTODO
Participantes
Os participantes no Tempo 1 (Setembro/ Outubro de 2006) constituem uma amostra
de conveniência de 367 estudantes que frequentavam os 6º e 8º anos de
escolaridade (idade média de 11,78, entre os 10-15 anos e 53, 1% do sexo
feminino). Todos os participantes frequentavam sete escolas do norte de
Portugal e preencheram os questionários no início do ano lectivo. Os 62
participantes no Tempo 2 (Março/ Abril de 2007) constituem uma amostra de
conveniência seleccionada entre os participantes do Tempo 1, idade média de
10,95, entre os 10-12 anos e 73,5% do sexo feminino.
Material
Escala de Esperança para Crianças.A Escala de Esperança para Crianças (EEC) é
uma escala disposicional desenvolvida por Snyder et al. (1997a) para aceder aos
pensamentos de esperança relacionados com objectivos, em indivíduos entre os 8
e os 16 anos. Segundo proposta dos autores, no acto de aplicação, a escala de
esperança para crianças deverá designar-se por Questões sobre os teus
objectivos. A escala contém 6 itens (apresentados como uma afirmação) que
avaliam a Esperança, três destes seis itens avaliam o componente iniciativa e
os restantes três itens avaliam o componente caminhos. Os itens que avaliam
cada um dos componentes encontram-se apresentados de uma forma alternada. É
pedido aos participantes para se imaginarem como são na maioria das situações e
que respondam de que modo consideram que cada afirmação se lhes aplica, numa
escala ordinal de seis pontos entre 1= nenhuma das vezes e 6= todas as vezes,
com um resultado total possível entre 6 e 36. Valores mais elevados
correspondem a níveis mais elevados de Esperança.
A EEC foi validada para a população portuguesa por Marques et al. (in press) e
revelou boas propriedades psicométricas para ser utilizada em investigação com
crianças e adolescentes e comparáveis com a escala original.
Escala de Satisfação com a Vida para Estudantes. A Escala de Satisfação com a
Vida para Estudantes (ESVE) desenvolvida por Huebner (1991) é uma escala de
auto-resposta que se propõe avaliar a satisfação global com a vida de
indivíduos entre os 8 e os 18 anos. No preenchimento da escala é pedido aos
participantes para se centrarem nos pensamentos que têm tido durante as últimas
semanas. Para cada um dos 7 itens que constituem a escala, apresentados como
uma afirmação, existem seis possibilidades de resposta desde 1= discordo
completamente a 6= concordo completamente. Dois dos itens são cotados de modo
invertido. A soma dos sete itens, com um resultado possível entre 7 e 42,
determina a satisfação global com a vida. Valores mais elevados correspondem a
níveis mais elevados de satisfação global com a vida.
A ESVE foi validada para a população portuguesa por Marques et al. (2007b) e
revelou boas propriedades psicométricas para ser utilizada em investigação com
crianças e adolescentes e comparáveis com a escala original.
Procedimento
A aprovação para a recolha de dados foi assegurada pelo conselho directivo de
cada escola. Procedeu-se igualmente ao envio a todos os pais dos potenciais
participantes de uma carta a pedir o consentimento informado, com a descrição
do estudo, nomeadamente da sua natureza longitudinal. Aproximadamente 31% dos
estudantes apresentaram a carta assinada. Esta percentagem é comparável com a
percentagem obtida noutros estudos semelhantes (Valle et al., 2004). Os
procedimentos de administração dos questionários foram semelhantes no Tempo 1 e
no Tempo 2. Os instrumentos foram administrados em grupos entre 15 e 30
estudantes. O tamanho do grupo esteve dependente do espaço disponível em cada
um dos estabelecimentos de ensino, assim como do número de assistência adulta
presente para assegurar a compreensão das instruções e do carácter confidencial
das respostas. Os instrumentos foram apresentados aos estudantes segundo uma
ordem contrabalançada. O tempo de preenchimento da bateria de questionários foi
entre 15 e 20 minutos.
RESULTADOS
No presente estudo, a análise descritiva mostra que as médias e os desvios
padrão da EEC no Tempo 1 e no Tempo 2 são menores do que as mencionadas em
outros estudos com estudantes (M= 25,41-28,86; DP= 3,01-6,11) (e.g., Snyder et
al., 1997a; Snyder et al., 1997b; Valle et al., 2006). Quanto à Satisfação com
a Vida, as médias e os desvios padrão da ESVE no Tempo 1 e no Tempo 2
enquadram-se dentro das médias e desvios padrão referidos em estudos com
populações semelhantes (e.g., Gilman et al., 1997; Huebner, 1991a; Huebner,
Suldo, & Valois, 2003). A consistência interna de cada uma das escalas,
representadas no quadro 1 pelo alfa de Cronbach, são adequadas e comparáveis
com a consistência interna das escalas originais (entre 0,72 e 0,86 para a
escala de Esperança para crianças no estudo de Snyder et al., em 1997, e de
0,80 para a escala de Satisfação com a Vida no estudo de Dew & Huebner em
1994).
Quadro 1
Estatística descritiva e consistência interna da Esperança e Satisfação com a
Vida no Tempo 1(N=367)e Tempo 2(N=62)
Foi usado o T-test para determinar a significância das diferenças entre a
Esperança e Satisfação com a Vida para o género. Relativamente à Esperança, não
foram encontradas diferenças significativas entre rapazes e raparigas no Tempo
1 t(367) = 0,70, e no Tempo 2 t(62) = 0,82. Quanto à Satisfação com a Vida,
também não foram encontradas diferenças entre rapazes e raparigas no Tempo 1 t
(367) = 0,84 e no Tempo 2 t(62) = 1,23. O Quadro 1 apresenta as médias, desvios
padrão e consistência interna da Esperança e Satisfação com a Vida acedidas no
Tempo 1, e 6 meses depois no Tempo 2.
O quadro 2 apresenta as intercorrelações da Esperança e Satisfação com a Vida
no Tempo 1 e Tempo 2. Todas as correlações entre a Esperança e a Satisfação com
a Vida são estatisticamente significativas.
Quadro 2
Correlações entre a Esperança e a Satisfação com a Vida no Tempo 1 e Tempo 2
A fidelidade teste-reteste é de 0,60 para a escala de Esperança e de 0,69 para
a escala de Satisfação com a Vida para estudantes. Os estudos que examinaram a
fidelidade teste-reteste na versão original, apresentam valores de 0,73 (Snyder
et al., 1997) e de 0,76 (Terry & Huebner, 1995) para 1-2 semanas, de 0,71
(Snyder et al., 1997) e de 0,64 (Gilman & Huebner, 1997) para 1 mês, de
0,47 e 0,61 (Valle et al., 2006) para 1 ano, para a escala de Esperança e
Satisfação com a Vida, respectivamente.
DISCUSSÃO
As escalas de Esperança para crianças e de Satisfação com a Vida para
estudantes foram desenhadas para reflectirem um pensamento relativamente
duradouro ao longo do tempo, de acordo com os modelos teóricos subjacentes a
cada uma das variáveis. As correlações positivas e elevadas teste re-teste, com
um intervalo de 6 meses, são consistentes com esta intenção. A estabilidade
temporal das escalas nas versões portuguesas são consistentes com os resultados
encontrados noutros estudos com as escalas originais, e portanto ambas as
versões mostram que a Esperança e a Satisfação com a Vida expressam
propriedades traço (Gilman et al., 1997; Huebner, Funk, & Gilman, 2000;
Snyder, Cheavens et al., 1997; Snyder, Hoza et al., 1997; Terry et al., 1995;
Valle et al, 2006).
Este estudo acrescenta um indicador de fidelidade aos estudos de validação das
versões portuguesas das escalas de Esperança e de Satisfação com a Vida para
estudantes (ver Marques et al., 2007b; Marques et al., i n press) e que deve
ser tido em conta. Introduz também um intervalo de tempo teste re-teste não
explorado e um acréscimo temporal significativo, comparativamente a estudos
conduzidos anteriormente com intervalos de tempo de 1, 2, 4 semanas e 1 mês.
Consideramos, deste modo, pertinente a continuação da exploração destas escalas
entre intervalos de tempo mais alargados, nomeadamente que incluam diferentes
períodos de transição no desenvolvimento humano, para melhor conhecer as
propriedades, forças e vulnerabilidades das variáveis em estudo.
O presente estudo deve ser tido em consideração aquando a elaboração e
implementação de intervenções orientadas para a promoção da Esperança e da
Satisfação com a Vida em crianças e adolescentes, ou a promoção de um
funcionamento humano óptimo quando associadas e integradas com outras variáveis
de bem-estar, como por exemplo a auto-estima e a saúde mental.