O luto no transplantado cardíaco
O Transplante Cardíaco evoluiu nos últimos 30 anos, tornando-se uma verdadeira
opção terapêutica, nos casos de insuficiência cardíaca severa devido às
afecções das artérias coronárias ou do músculo cardíaco (miocardiopatias);
i.e., está indicado para pacientes cujos sintomas não respondem a terapêuticas
medicamentosas ou cirúrgicas de outra natureza. Considerada radical e como
única alternativa à morte a curto prazo, constitui para o paciente cardíaco uma
série de desafios e de tarefas adaptativas, com impacto físico e psicossocial
considerável (Vieira da Costa & Lume, 1996).
A Transplantação Cardíaca trata-se de um processo e não de um acontecimento
(Bunzel, Wolleneck, & Grundbock, 1992); constituindo uma nova doença e não
uma cura da doença cardíaca actual. Após o T.C., o paciente passa a ser
confrontado com intermináveis procedimentos médicos relacionados com o
Transplante (acompanhamento médico contínuo e rigoroso exames, biopsias,
internamentos manutenção da medicação imunossupressora e seus efeitos
secundários1, modificação do estilo de vida ' dieta e exercício físico
adequados) que podem concorrer para a manutenção do papel da incapacidade,
sentido pelo indivíduo.
Desta forma, do estado de moribundo na fase pré-transplante, passando pelo
estádio terminal de insuficiência cardíaca, até às várias ameaças da fase pós
operatória, o indivíduo tem que levar a cabo ajustamentos a várias perdas nos
domínios físico, psicológico, profissional e social (Olbrisch, Benedict, Ashe,
& Levenson, 2002).
Em termos sociais, o Transplante Cardíaco é ainda encarado como um evento
extraordinário que desperta fantasias quase sobrenaturais na imaginação
colectiva. Alguns pacientes transplantados referem que são vistos pelos outros
como únicos, quase como criaturas místicas, o que não facilita a recuperação de
um bem-estar pleno.
A Transplantação Cardíaca representa assim, claramente, num plano real e
simbólico, a morte e a vida. As ideias de morte provocadas pela doença cardíaca
terminal, pelo coração doente e disfuncional começam a caminhar lado a lado com
a perspectiva de uma nova oportunidade que adquire características de
ressurreição. Por outro lado, a constante ameaça da rejeição, a incerteza do
prognóstico a longo prazo, a aceitação psicológica ambivalente do coração de
outro indivíduo, são potenciais fontes de perturbação emocional, fazendo do
pós-transplante um período de grande exigência psicológica (Tavares, 2004).
REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO CORAÇÃO
A natureza simbólica do coração complica, na maioria das vezes, a sua
substituição. Este órgão, com as suas associações à vitalidade, às emoções, à
alma, à vida afectiva; contentor da vida emocional e da personalidade
(Inspector et al., 2004) foi imbuído ao longo da História de qualidades
espirituais e mitológicas. Esta extrema carga simbólica dificulta o seu
reinvestimento emocional pelo paciente e gera, potencialmente, dificuldades na
sua incorporação (Shapiro, 1990), fazendo do Transplante Cardíaco o mais
exigente em termos emocionais, cognitivos e existenciais.
A representação cognitiva e fantasmática dos órgãos internos adquire na
transplantação uma dinâmica de aceitação-rejeição biopsicológica (Tavares,
2004); a ameaça percebida à integridade do selfinterfere com a integração
fisiológica do novo coração, existindo alguns dados clínicos que apontam que
uma reacção intrapsíquica negativa e rejeitante vai interferir no sucesso
médico do Transplante. Daí, ser uma variável a ter em conta, nos estudos
psicossociais no Transplante Cardíaco, ilustrada na citação seguinte: Comecei
a sentir falta do meu coração. Estava preocupado com o que tinha acontecido ao
meu velho coração. Tinha sido muito importante para mim, durante 40 anos;
nasci, cresci, fiz tudo com ele e, de repente, zás: deitavam-no fora. (Kaba,
Thompson, Burnard, Edwards, & Theodosopoulou, 2005, p.619).
DESAFIOS DO LUTO NA PESSOA TRANSPLANTADA CARDÍACA: PERDA VERSUSINCORPORAÇÃO
Ter o coração de outra pessoa é uma experiência emocionalmente desafiante; uma
vez que envolve lidar com sentimentos ambivalentes face ao luto, em várias
vertentes. O paciente terá de fazer o luto da parte de si que se tornou doente
e que foi substituída por uma outra igual e estranha ao mesmo tempo ' o novo
órgão (Pericchi, 1992, in Tavares, 2004). Torna-se ainda necessário lidar com a
situação de alguém que morre para lhe dar a vida o dador (Alguém tem que
morrer para eu viver).
Investigações recentes sugerem que a necessidade de lidar com a perda física do
coração e a aceitação do coração do dador está na origem de stress psicológico
(Kaba, Thompson, & Burnard, 2000).
Segundo Moos (1984), o processo psicológico de uma perda implica uma
progressão: de uma reacção inicial de dormência ou descrença, o paciente vai
experienciando uma crescente consciencialização de dor, tristeza, raiva e
preocupação para com o objecto perdido até à reorganização em que a perda é
aceite e o equilíbrio emocional é restaurado. Quando se está perante uma
situação de perda de uma parte do corpo vivencias e uma restrição da imagem
corporal2à qual se associam sentimentos de depressão e luto. Na transplantação
cardíaca a essa perda associa-se ainda e, paradoxalmente, a adição de uma parte
do corpo. Neste caso, a imagem corporal expande-se e um novo lugar
psicológico tem que ser encontrado para essa nova entidade que o corpo antigo
agora contém (Tavares, 2004).
Um paciente transplantado há quatro anos refere: Tenho sempre isto na
cabeça que não vivo com o meu coração e nunca mais será a mesma coisa (Stolf
& Sadala, 2006, p. 320).
Assim, no período pós transplante, um dos maiores desafios do paciente, para
além da adesão à nova terapêutica imunossupressora, a todos os procedimentos
médicos e a um novo estilo de vida, o paciente terá que aceitar o novo coração
como seu. Este processo é geralmente mais facilitado se o paciente pensar o
coração como uma mera bomba, destronando toda a carga simbólica que lhe é
usualmente atribuída e adquirindo apenas atributos de músculo bomba eficaz
(Gomes & Nunes, 1992). Estudos prévios (Mai, 1986) revelam que este
processo de Negação em relação ao órgão do dador, ao dador (é usual este ser
despersonalizado) ou a ambos, não é necessariamente disfuncional, pelo
contrário tem um papel adaptativo e protector no ajustamento psicológico ao
T.C. quando não existe nenhuma alternativa de uma gestão de crise mais eficaz
(Bunzel et al., 1992). Os seguintes excertos de discursos de pacientes
transplantados cardíacos ilustram estas formas adaptativas: Um transplante
cardíaco não é um transplante de cérebro não acho que me vá modificar. É como
uma bomba de água num carro; se se avaria, substituímo-la e o carro não deixa
de ser o mesmo é o que o nosso coração faz, bombeia sangue. (Kaba et al.,
2005, p. 621)
Não vejo razão para falar da pessoa que me deu o coração não sei quem é nem me
interessa saber; claro que me sinto agradecida e tenho pena dos familiares mas
nunca falo sobre isso. Não faço perguntas sobre isso.) (Kaba et al., 2005, p.
621)
De facto, o mecanismo de Negação revela-se o primeiro patamar de um processo de
luto e confrontar o paciente com a realidade, demasiado cedo, pode não ter
qualquer impacto terapêutico, sendo inclusivamente, prejudicial ao sucesso da
elaboração do luto (Robinson, 1993). O transplantado cardíaco precisa de tempo
para realizar o processo de luto, elaborar a perda, lidar com o exigente
protocolo pós-operatório e reorganizar o self. É necessário disponibilizar
espaço imagético para reintegrar o novo esquema corporal; este movimento é
lento e gradual e muitas vezes nunca finalizado.
A ELABORAÇÃO RACIONAL VERSUS MÁGICOSIMBÓLICA NO TRANSPLANTE CARDÍACO:
REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO DADOR E DO SEU CORAÇÃO
O facto de se tratar de um transplante de dador cadáver, mantendo-se o
anonimato origina, frequentemente, processos de idealização, identificação,
culpabilização e gratidão a ter em conta, que emergem sobretudo no período pós-
operatório. Assim, a pessoa transplantada obriga-se, por necessidade absoluta,
à construção de uma imagem daquele que foi o seu dador; fantasia sobre as
características físicas e psicológicas de quem lhe deu vida (a sua idade, sexo,
raça, gostos musicais, crenças religiosas, talento artístico, profissão,
hobbies). Neste processo de elaboração psíquica é frequente surgiram fenómenos
de idealização do dador, não só a nível físico, mas sobretudo a nível moral
(honestidade, generosidade, sabedoria) de acordo com Inspector e col. (2004).
Torna-se imperativo valorizar a doação e o dador e mensurar a dádiva
(Tavares, 2004). Quando estas imagens e pensamentos sobre o dador e o órgão são
positivos, tendem a diminuir os transtornos psicológicos que se seguem ao
transplante e o processo de Luto tende a ser apaziguador (Gregorio, Rodriguez,
& Rodriguez, 2005). Há, inclusivamente, estudos que vão mais longe,
referindo que o órgão implantado apresenta menores índices de rejeição
fisiológica (Duitsman & Cychosz, 1993), assistindo-se, portanto, a uma
diminuição da morbilidade e mortalidade destes pacientes (Rosa et al., 2001).
Por outro lado, há pacientes que tentam desvalorizar o processo de doação,
ignorando a origem do novo coração, através de um processo cognitivo.
Embora, em Portugal, seja mantido o anonimato em relação ao dador e à sua
família, sendo de carácter obrigatório, um estudo americano revelou que o facto
de os pacientes comunicarem com a família do dador, via carta e de forma
anónima, através do coordenador do Centro de Transplantação, os ajudava a
atribuir um significado a todo o processo de perda e de integração do novo
coração, favorecendo o copingexigido no processo de luto (Kaba, 2001). Trata-se
de um ritual que permite estabelecer um contacto mínimo do paciente com a sua
nova fonte de vida (neste caso, os familiares próximos), emitir gratidão e
reconhecimento, permitindo-lhe um reinvestimento afectivo no seu novo coração,
uma reorganização do significado psicológico e de sentido da vida. De facto,
também na situação de Transplante Cardíaco se assiste à necessidade de levar a
cabo certos rituais fundamentais ao processo de luto, tal como acontece na
perda pela morte de alguém próximo. Acordo, muitas vezes, a meio da noite e o
meu pensamento vai para a pessoa que morreu e me doou o seu coração e é muito
estranho não poder agradecer a ninguém pela vida que me deu. Tenho que admitir
que ainda sofro por essa pessoa; penso muito nela. (Kaba et al., 2005, p.
618). Os mesmos autores referem, no entanto, que a identificação do
transplantado com o dador pode, em parte, ser minimizada se for mantido o
completo anonimato (inclusive face ao sexo e à idade). Em suma, a gestão da
informação sobre o dador do órgão, a ser fornecida ao paciente continua a ser
um problema na medicina de transplantação (Kaba, 2001).
Os sentimentos de culpa pela morte do dador emergem uma vez que alguém tem que
morrer para que o T.C. possa ser realizado. Tal como no luto pela perda de
alguém querido, a culpabilidade também se encontra presente.
Segundo alguns autores, a sensação que alguns pacientes experimentam por terem
roubado uma parte vital do dador pode activar para além de sentimentos de
culpa, sentimentos de regressão, medo e fantasias de castigo ou retaliação
(Castelnuovo-Tedesco, 1978). Mais uma vez, aparece-nos o pensamento mágico que
faz com que o paciente se sinta responsável pela morte do dador; como se o
desejo pré-transplante de encontrar um dador compatível se concretizasse e a
culpa da morte do dador fosse da pessoa transplantada. Estes pacientes que
exibem sentimentos de culpabilização apresentam sintomas mais elevados de
ansiedade, paranóia, stress pós traumático, hostilidade e psicose (Inspector et
al., 2004). Exibem, desta forma um equilíbrio emocional muito precário que
indicia um processo de luto de prognóstico mais reservado.
Kuhn, Davis, e Lippman (1988), referem num estudo sobre aspectos
psicopatológicos dos pacientes transplantados cardíacos, que um terço dos
mesmos expressa fantasias de alteração de personalidade relacionadas com o
dador. Existem fantasias sobre a influência das características físicas (idade
e sexo) e psicológicas do dador sobre possíveis transformações no receptor;
como por exemplo, o sentimento de rejuvenescimento quando se recebe um órgão de
um dador jovem, a convicção de que se vai adquirir características do outro
sexo quando se recebe um coração do sexo oposto: Tenho 51 anos e recebi o
coração de um jovem de 18 claro que fiquei novo (Stolf et al., 2006, p. 317).
É curioso realçar que em processos de luto comum pela morte de alguém, a
incorporação de características da pessoa falecida é também comum no
sobrevivente.
Segundo Inspector e col. (2004), existe um dualismo, ao nível do processamento
mental, que norteia a experiência de receber o coração de outra pessoa: uma
perspectiva mágico simbólica em paralelo com uma perspectiva factual e
fundamentada. Há pacientes que consideram a possibilidade da transferência de
características da personalidade do dador, via coração (expressando desejos e/
ou medos mágicos nesse processo) para o paciente receptor. Estes aspectos
fantasiosos e metafóricos encontram-se presentes lado a lado com o
reconhecimento racional do coração enquanto bomba. Mais ainda, a existência
destas fantasias não se encontra relacionada com o nível educacional, a etnia
ou a evidência de psicopatologia no paciente receptor. A concomitância entre o
pensamento lógico e o pensamento mágico é uma característica humana comum e
enriquecedora da vida psíquica (Jung, 1956).
No entanto, e apesar de toda a conturbação psicológica e interna, neste período
de pós-transplante cardíaco, surge no paciente uma sensação de alívio; festeja-
se o estar vivo, o privilégio de ter aparecido um dador.
Numa perspectiva fenomenológica, podemos dizer que é tempo de renascer e
recuperar a autonomia física, apesar do fantasma da dependência de um
tratamento eterno e da incerteza quanto a riscos futuros estar sempre presente.
Porém, há futuro. Um futuro em que o transplantado cardíaco tem a oportunidade
não só de corrigir (no sentido de alterar) o seu estilo de vida mas de
reconstruir o seu sentido de vida, a sua história, a sua nova existência. E
isto é no fundo, o que se espera num processo de Luto bem resolvido. Conseguir
nascer de novo.