Prevalência e prognóstico da peritonite bacteriana espontânea: experiência em
pacientes internados em um hospital geral de Porto Alegre, RS, Brasil (1991-
2000)
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Estudos demonstram que 30% a 50% dos cirróticos apresentam infecções
bacterianas na admissão hospitalar ou a desenvolvem durante a mesma(5, 40).
Estas são responsáveis por até 25% das mortes nesta população de pacientes(5,
28).
Dentre as infecções que acometem os pacientes com hepatopatia crônica, a de
maior importância é a peritonite bacteriana espontânea (PBE)(5).
Entende-se por PBE a infecção do fluido de ascite sem haver um foco intra-
abdominal aparente causal da infecção(15).
A PBE tem prevalência ao redor de 15%(1, 5, 18, 44), possuindo taxa de
recurrência em 1 ano próxima de 70%(2, 42). Por outro lado, traz ao paciente
cirrótico com ascite um empobrecimento no prognóstico tanto a curto, quanto a
longo prazo, determinando mortalidade hospitalar, nos dias atuais, em torno de
20%(22, 28, 43).
Diante da escassez de estudos(5, 14) que analisam a evolução dos pacientes com
PBE em nosso País e também as diferenças regionais existentes, entende-se que
esta infecção merece ser avaliada em nosso meio, com o intuito de observar seu
comportamento nos dias atuais, permitindo assim, a busca de novas estratégias
que visem melhorar seu prognóstico. Portanto, teve-se como objetivo principal,
avaliar a prevalência da PBE e sua implicação na mortalidade hospitalar de
pacientes com ascite secundária à hepatopatia crônica internados em um hospital
geral.
PACIENTES E MÉTODOS
Foram estudados todos os pacientes com ascite secundária à hepatopatia crônica
hospitalizados no período de janeiro de 1991 a junho de 2000, na Irmandade
Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, RS (ISCMPA).
Os dados foram coletados através da pesquisa em prontuários de internação e
identificados e elaborados a partir de protocolos prospectivos empregados em
pacientes com ascite.
Foram analisadas 1030 internações decorrentes de ascite secundária à
hepatopatia crônica, em 520 pacientes. Destas, foram diagnosticados 114 casos
de PBE em 94 pacientes. Na população avaliada, a idade média foi de 49 anos
(15-95), sendo que 72 (76,6%) pertenciam ao sexo masculino, 79 (84,0%) tinham
cor branca, 11 (11,7%), cor preta e 4 (4,3%), cor parda.
A confirmação da hepatopatia foi obtida por biopsia hepática em 55 (48,2%) dos
casos e por dados clínicos, laboratoriais, ecográficos e endoscópicos nos
restantes.
Em 31 (32,9%) dos pacientes, a gênese da hepatopatia foi atribuída ao álcool
associado ao vírus da hepatite C; em 27 (28,7%) somente ao álcool; em 18
(19,1%) somente ao vírus da hepatite C; em 12 (12,8%) ao vírus da hepatite B.
Outras causas foram responsáveis pelos seis (6,4%) restantes, sendo que destes,
dois foram secundários à etiologia autoimune e um à associação de álcool, vírus
da hepatite B e vírus da hepatite C. Em três casos não foi possível o
diagnóstico etiológico.
Os pacientes foram classificados quanto ao grau de disfunção hepática de acordo
com a classificação de Child modificada por Pugh(32).
A punção do líquido de ascite foi realizada nas primeiras horas da admissão
hospitalar de todos os doentes e em qualquer momento da internação hospitalar
em que ocorressem sinais sugestivos de PBE como dor abdominal, febre,
desenvolvimento de encefalopatia hepática, perda de função renal e queda do
estado geral do paciente(1, 7, 35).
Vinte mililitros de líquido de ascite foram, então, coletados e enviados
imediatamente ao laboratório para avaliação bioquímica e citológica, segundo
rotina estabelecida(24). Para análise bacteriológica, 10 mililitros de líquido
de ascite eram inoculados à beira do leito, em frascos de hemocultura para
aerobiose e anaerobiose, utilizando o sistema Bact-Alert® (Organon Teknica). A
função hepática dos pacientes estudados foi avaliada através de determinação
dos níveis de bilirrubinas, da albumina e da atividade de protrombina.
O diagnóstico de PBE foi estabelecido quando o número de polimorfonucleares no
líquido de ascite fosse superior a 250 células por mm³, independente do
resultado da cultura(35).
Aqueles casos com cultura positiva, mas sem resposta inflamatória, ou seja,
aumento de polimorfonucleares inferior a 250 células por mm³, eram
classificados como tendo bacterioascite(37). Nesses casos, repetia-se a
paracentese em 48 horas e aqueles sem modificação significativa da celularidade
eram excluídos do estudo.
Perfuração intestinal ou outra fonte de infecção intra-abdominal foram
excluídas pela ausência de manifestações clínicas, laboratoriais ou de
alterações à radiografia e ultra-sonografia abdominais.
A infecção foi considerada comunitária quando o diagnóstico foi estabelecido
até 48 horas da internação e hospitalar se adquirida após esse período(19).
O uso de antibiótico (norfloxacina), na profilaxia da PBE, foi determinado pela
história do paciente. A profilaxia foi realizada nos doentes com episódio
prévio de PBE e/ou com proteínas do líquido de ascite abaixo de 1 g/dL; a dose
utilizada foi a de 400 mg/dia(3, 16, 30, 40) e a aderência ao tratamento foi
avaliada pela informação do paciente no momento da admissão hospitalar. Nos
casos em que não foi possível obter esta informação (devido à encefalopatia
portossistêmica, por exemplo) a pesquisa foi feita junto aos familiares.
O tratamento da infecção foi realizado com os antibióticos cefotaxima ou
ceftriaxona por via endovenosa, iniciado nas primeiras horas do diagnóstico e
mantido por 10 dias. Quando necessário, ajustava-se a dose conforme a função
renal, sendo que o mesmo poderia ser trocado na dependência do resultado do
antibiograma.
Em 48 horas do início do antibiótico, com exceção de dois casos, procedeu-se à
nova punção do líquido de ascite com o intuito de avaliar o controle da
infecção (queda na contagem dos polimorfonucleares de no mínimo 25% da contagem
inicial e posterior negativação do exame bacteriológico)(35).
O trabalho foi analisado e aprovado pela Comissão de Ética da ISCMPA.
O desfecho deste estudo foi considerado alta ou óbito do paciente no período da
internação hospitalar.
Para avaliar associação entre as variáveis categóricas, foi utilizado o teste
do qui quadrado e o cálculo do risco relativo com seus intervalos de confiança.
O nível de significância considerado para análise estatística foi 5%.
RESULTADOS
Cento e quatorze episódios de PBE (94 pacientes) foram diagnosticados em 1030
internações por ascite secundária à hepatopatia crônica (520 pacientes),
perfazendo a ocorrência de infecção do líquido de ascite de 11,1% dos casos
avaliados no período de janeiro de 1991 a junho de 2000.
Cinqüenta e oito (50,9%) episódios ocorreram em pacientes pertencentes à classe
C de Child-Pugh, 53 (46,5%) à classe B e somente 3 (2,6%) à classe A .
A mortalidade foi de 21,9% em relação aos 114 episódios de PBE. Os óbitos foram
atribuídos ao não controle da infecção em oito episódios (32,0%), à falência
renal em sete (28,0%), à hemorragia digestiva alta em seis (24,0%) e
insuficiência hepática em quatro (16,0%).
Houve controle da infecção na paracentese em 48 horas do diagnóstico, segundo
os parâmetros estabelecidos, em 102 (91,1%) dos episódios. Quando não foi
observada queda na contagem de polimorfonucleares na paracentese de controle,
em 8 de 10 episódios (80,0%) houve associação com o óbito do paciente, o que
contrasta com os 16 óbitos (16,7%) observados naqueles que obtiveram controle
da infecção (P <0,01). Em dois episódios (1,7%) não foi obtido este dado.
A PBE foi considerada comunitária em 70 episódios (61,4%) e hospitalar em 43
(37,7%). Em um episódio (0,9%) este dado não foi caracterizado. Quando se
avaliou o índice de óbito, na dependência do local em que a infecção foi
adquirida (comunidade x hospitalar), foi observado que ocorreram 13 (18,6%) e
12 óbitos (27,9%), respectivamente, havendo portanto, tendência a maior
mortalidade naqueles casos em que a infecção foi adquirida 48 horas após a
internação hospitalar; este dado, porém, não atingiu significância estatística
(P = 0,35).
O uso de antibiótico profilático foi documentado em 26 (22,3%) dos episódios e,
quando utilizado, houve associação com óbito em 7 (28,0%) contra 18 (20,7%)
naqueles que não usaram norfloxacina, sem haver significância estatística (P =
0,61). Quanto ao resultado da cultura do líquido de ascite, houve crescimento
de bactéria em apenas seis casos (23,1%), associados ao uso do norfloxacina;
destes, dois (33,3%) corresponderam a bactérias Gram-negativas (ambos os casos
sensíveis a cefalosporinas de terceira geração) e quatro (66,7%) a bactérias
Gram-positivas. Ressalve-se não ter havido diferença significativa neste
espectro bacteriano (P = 0,18).
DISCUSSÃO
A PBE é a infecção que mais freqüentemente acomete os pacientes com cirrose e
ascite e sua prevalência na literatura gira em torno de 5,7% a 23%(1, 5, 44). O
estudo que demonstrou a menor prevalência(44) justifica-a pelo fato de que em
seu grupo poucos pacientes pertenciam à classe C da classificação de Child-Pugh
e por não ser um centro de referência para pacientes hepatopatas.
Na presente casuística, a prevalência foi de 11,1%, o que vem ao encontro de
estudo de outros autores(1). Em estudo prévio(24), realizado no mesmo hospital
desta série, no período de 1976 a 1990, a prevalência geral de infecção no
líquido de ascite foi 20,0% mas, quando excluídos os casos de bacterioascite, à
semelhança do estudo atual, a prevalência da infecção foi de 13,5% sendo,
portanto, apenas discretamente maior.
Embora se acreditasse que, possivelmente nos dias de hoje, observar-se-ia
diminuição significativa na prevalência da PBE, pelo fato de pacientes com pior
função hepática e aqueles com PBE prévia serem submetidos a transplante
hepático, não se constatou este fato no estudo em foco. O uso profilático da
norfloxacina de forma mais rotineira nos pacientes com episódio prévio de PBE
(42), nos com proteínas baixa no líquido de ascite(16) e nos com hemorragia
digestiva alta, também deveria ter contribuído para a diminuição mais
significativa da incidência desta infecção(16, 17, 33). Ressalve-se que na
reunião do Clube Internacional de Ascite, onde foram definidos os critérios
para o diagnóstico, tratamento e profilaxia da PBE, não houve consenso quanto à
realização de profilaxia primária a pacientes com proteínas baixas no líquido
de ascite(35). Possivelmente, por ser a instituição onde este estudo foi
desenvolvido um hospital tanto geral, como de nível terciário e referência em
hepatologia e transplante de fígado, criou-se um viés de seleção pela gravidade
dos casos internados. A confirmar tal assertiva, observou-se que o número de
casos pertencentes à classe C de Child-Pugh (50,9%) foi semelhante aos 50%
encontrados na série descrita há 10 anos(24).
A PBE é importante causa de morte nos pacientes internados com cirrose(4).
Estudo desenvolvido em nosso meio(26), avaliando a sobrevida do paciente
cirrótico com ascite, demonstrou ser a PBE a terceira causa de morte neste
grupo. Dados semelhantes foram encontrados no estudo de LLACH et al.(21).
Durante o início dos anos 70, época em que surgiram os primeiros relatos de
séries com esta complicação, a mortalidade hospitalar dos pacientes com PBE
situava-se ao redor de 80% a 90% e a cura da infecção era registrada em somente
25% a 50%(7, 8, 38). Já na década de 80, a maioria dos estudos demonstravam
mortalidade em torno de 30% a 40% (12, 15), o que provavelmente era resultado
do acréscimo no conhecimento e na precocidade diagnóstica desta infecção. A
prática de se realizar paracentese rotineiramente, o alto índice de suspeita da
infecção e a melhor clareza dos critérios diagnósticos resultaram na melhora do
prognóstico desses pacientes. Por outro lado, acredita-se que outro fator
decisivo no incremento das taxas de cura e na sobrevida nessa infecção, deva-se
ao uso de antibióticos mais eficazes e seguros, sem a nefrotoxicidade das
terapias anteriores(13, 25, 27, 34).
Com o início do uso de cefalosporinas de terceira geração como droga de
primeira linha para o tratamento da PBE, a maioria dos estudos demonstra taxas
de resolução da infecção de 80% a 90% dos casos e de sobrevida hospitalar entre
70% e 80%(13, 35). Estudos mais recentes demonstram taxas de resolução da
infecção ainda maiores, oscilando entre 91% a 100%(1, 9, 22, 28), o que resulta
em menor mortalidade hospitalar associada à infecção(22, 41).
Na presente série, a taxa de mortalidade foi de 21,9%, o que vai ao encontro
dos resultados de séries publicadas mais recentemente(22, 27, 28, 29), embora
índices que variam de 8,33% a 46% possam ser encontrados(1, 20, 22, 27, 28, 29,
43).
Em estudo realizado entre os anos de 1976 e 1990, no mesmo serviço da presente
casuística, a mortalidade global foi 48% e, quando excluídos os casos de
bacterioascite, foi ainda maior, correspondendo a 58% dos episódios de PBE(24).
Vários fatores podem ter influenciado na acentuada melhoria da sobrevida
hospitalar desses pacientes. Dentre estes destaca-se a sistematização da
realização de paracentese diagnóstica de forma precoce, o que permitiu
diagnóstico mais ágil em pacientes com função hepática mais preservada e a
utilização rotineira de cefalosporinas de terceira geração, uma vez que os
antibióticos mais freqüentemente utilizados no estudo anterior foram a
combinação ampicilina ou cefalosporina de primeira geração associadas a um
aminoglicosídio. Ressalve-se que na década passada era exigida para o
diagnóstico de ascite neutrofílica, a contagem mínima de 500 polimorfonucleares
no líquido de ascite(39), o que pode ter selecionado uma população de pacientes
com maior gravidade. Finalmente, há que se considerar a melhoria nos cuidados
atuais do paciente cirrótico, dos quais destacam-se os avanços no tratamento da
ascite, no controle do sangramento por ruptura de varizes de esôfago e no
tratamento da insuficiência renal que, com freqüência, instalam-se nestes
pacientes.
No presente estudo, os óbitos foram secundários à hemorragia digestiva,
insuficiência hepática, falência renal e ao não controle da infecção, à
semelhança de outros estudos(1, 22, 27, 28, 29, 43).
É importante lembrar que o prognóstico dos pacientes com PBE está mais
relacionado à falência da função hepatocelular do que à infecção "per se".
Diversos autores(20, 22, 27, 29, 35, 43) têm demonstrado que naqueles pacientes
em que a infecção foi controlada inicialmente, o prognóstico é mais favorável.
A contagem de polimorfonucleares utilizada como controle de resposta é
considerada variável independente, correlacionando-se com a sobrevida(27).
Desta forma, a realização da paracentese de controle tem sido a conduta dos
autores deste trabalho desde o clássico estudo de FONG et al.(13), publicado em
1989. Estes autores chamam a atenção para o fato de que os pacientes que
obtinham redução na contagem de polimorfonucleares, em 48 horas do início do
tratamento, possuíam melhor sobrevida.
No presente estudo, analisou-se o controle ou não da infecção através da
contagem de polimorfonucleares no líquido de ascite, em material colhido por
paracentese realizada 48 horas após o início da antibioticoterapia e comparou-
se a resposta leucocitária com a mortalidade. Assim procedendo, observou-se
controle da infecção em 102 (91,1%) dos episódios, o que está de acordo com os
dados mais recentes sobre esta infecção(9, 22, 28, 35). Nos casos em que não
houve controle da infecção, a mortalidade foi 80,0%, sendo que esta foi
observada em somente 16 (16,7%) daqueles que obtiveram controle da infecção.
Postula-se que o local de aquisição da PBE (comunidade versus hospitalar),
também possa ser fator relacionado a pior prognóstico. A ocorrência hospitalar
desta infecção corresponde a aproximadamente 50% dos episódios(43).
O estudo de TOLEDO et al.(43) demostrou que, nos pacientes com PBE adquirida em
ambiente hospitalar, a taxa de resolução da infecção era menor, correspondendo
a 68%. Por outro lado, observaram 89% de resposta naqueles que adquiriram essa
infecção na comunidade. Da mesma forma, a mortalidade foi 50% e 27%,
respectivamente. Esses autores explicam tal achado pela pior condição clínica
dos hospitalizados no momento da infecção.
Na presente série, quando se compararam os pacientes quanto ao local de
aquisição da infecção, observou-se que em 70 (61,4%) casos a PBE foi adquirida
na comunidade. Porém, quando avaliado o modo de aquisição da PBE com a
mortalidade, diferentemente de TOLEDO et al.(43), não se encontrou diferença
significativa, apesar de haver maior tendência à mortalidade naqueles pacientes
em que o diagnóstico da infecção foi realizado após 48 horas da internação
hospitalar.
Quanto ao desenvolvimento de PBE nos pacientes recebendo o antibiótico
norfloxacina de maneira profilática, o presente estudo, à semelhança de outros
(23, 31), não demonstrou diferença na mortalidade quando comparado aos casos
sem profilaxia. No estudo de LLOVET et al.(23), que avaliaram 229 episódios de
PBE, foi demonstrado que em nenhum dos episódios de infecção ocorridos em
vigência da profilaxia foram detectadas bactérias Gram-negativas resistentes à
quinolona e o curso clínico e evolução destes pacientes foram semelhantes
àqueles dos pacientes virgens de tratamento.
Por outro lado, quanto à bacteriologia, embora sem haver diferença estatística,
houve predomínio de bactérias Gram-positivas, o que vai ao encontro dos
trabalhos que referem ser freqüente o surgimento destas no grupo que recebe
antibiótico profilático(6, 10, 11, 26, 36).