Tradução e adaptação cultural para o português do instrumento "The Bowel
Disease Questionnaire", utilizado para a avaliação de doenças gastrointestinais
funcionais
EPIDEMOLOGIAEPIDEMOLOGYINTRODUÇÃO
As doenças gastrointestinais funcionais (DGF) configuram um grupo de condições
caracterizado por sintomas gastrointestinais crônicos que não podem ser
explicados por alterações estruturais ou bioquímicas passíveis de identificação
pelos testes atualmente disponíveis(6, 8). Tradicionalmente, essas doenças eram
consideradas como diagnóstico de exclusão, entretanto, as duas últimas décadas
foram marcadas pela realização de diversos estudos voltados para a
caracterização dessas doenças, com vistas a contribuir para a elaboração de um
diagnóstico positivo das doenças funcionais(15, 27).
Atualmente, as DGF são classificadas de acordo com os critérios de Roma(12),
que permitiram a caracterização de um perfil para as mesmas e asseguraram aos
pacientes que eles apresentam uma doença real e não apenas sintomas que
resultam em investigações de resultados negativos(11). Sob a luz da
epidemiologia, a classificação tornou mais comparáveis os estudos que adotam
essas definições(36).
Essas doenças apresentam-se como importante problema de saúde pública por sua
alta prevalência na população, sendo também responsáveis pela maior parte das
queixas dos pacientes avaliados em clínicas e ambulatórios de
gastroenterologia, além de interferir na qualidade de vida(1, 4, 10, 13, 16,
18, 22, 26, 34, 36, 44, 47) e resultar em aumento de custos para o sistema de
saúde(43, 45).
Grande problema para a abordagem epidemiológica das doenças funcionais reside
no fato de que essas não são caracterizadas por anormalidades objetivas
mensuráveis, fazendo com que sua classificação seja baseada na sintomatologia
(12).
TALLEY et al.(38), em 1989, desenvolveram um instrumento capaz de diferenciar
três grandes grupos de indivíduos: a) pacientes com doenças funcionais, em
particular a dispepsia funcional e a síndrome do intestino irritável, b)
pacientes com doenças orgânicas e c) indivíduos saudáveis. O instrumento
desenvolvido foi um questionário auto-aplicável que contempla uma série de
sintomas gastrointestinais relevantes para a identificação de doenças
funcionais, denominado "The Bowel Disease Questionnaire" (BDQ), previamente
validado e que passou a ser amplamente utilizado em estudos de base
populacional entre idosos, adultos e adolescentes(2, 3, 14, 23, 24, 25, 33, 38,
39, 40, 41, 42, 46).
LITERATURA
Em epidemiologia, é crescente o interesse por questionários previamente
validados para mensurar fatores de risco para doenças e agravos à saúde,
exposições de interesse e desfechos multidimensionais, como a qualidade de vida
(5, 32). Entretanto, nem sempre estão disponíveis em determinado contexto
sociocultural instrumentos válidos para a aferição dos diversos aspectos
ligados à saúde e à qualidade de vida. De acordo com GUILLEMIN et al.(17), para
enfrentar este problema há duas opções: desenvolver novo instrumento de
aferição para ser aplicado na cultura alvo ou utilizar instrumento previamente
desenvolvido em outra cultura. Entretanto, para a utilização de questionários
validados em outras culturas, torna-se necessária uma abordagem sistemática do
processo de tradução e adaptação transcultural destes instrumentos(17).
HERDMAN et al.(19) propõem um roteiro de investigação que envolve seis subtipos
de equivalência, que devem ser sistematicamente considerados no processo de
tradução e adaptação de um questionário: a) equivalência conceitual, b)
equivalência de itens, c) equivalência semântica, d) equivalência operacional,
e) equivalência de mensuração e f) equivalência funcional. Com base nesta
proposição, o presente trabalho descreve os resultados da tradução e adaptação
transcultural do BDQ, de forma a avaliar a pertinência de sua utilização no
contexto sociocultural em nosso meio.
MATERIAIS E MÉTODOS
Este estudo foi realizado em uma escola pública da rede federal de ensino do
Rio de Janeiro. A população da série abrangeu escolares de 15 a 18 anos de
idade regularmente matriculados nas turmas de ensino médio dessa escola.
O instrumento utilizado foi o BDQ(38), aplicado a 234 alunos do ensino médio da
escola citada, no horário de aulas, sob supervisão da pesquisadora principal
(M.T.A), em grupos de 20 a 30 adolescentes. Os alunos preenchiam separadamente
o questionário e as possíveis dúvidas eram esclarecidas pela pesquisadora.
O BDQ(38) compreende opções de respostas dicotômicas e ordinais. O questionário
começa com uma pergunta chave com resposta dicotômica (sim/não) sobre se o
indivíduo apresentou "alguma dor na barriga". Se a resposta for positiva, serão
feitas 19 perguntas adicionais para caracterizar esta dor. Posteriormente,
seguem 21 questões sobre outros sintomas e hábitos intestinais. No final há
perguntas derivadas do "Psychosomatic Symptom Checklist", instrumento que
fornece medida de somatização em que o entrevistado estima, através de uma
escala de 0 a 4 pontos, com que freqüência 17 sintomas comuns ocorrem e o
quanto eles o incomodam.
A avaliação da equivalência conceitual e de itens envolveu a discussão com um
grupo de profissionais afeitos aos temas de saúde pública, gastroenterologia
pediátrica e educação em saúde, formado por um médico epidemiologista, uma
médica com especialização em História da Medicina, um médico com especialização
em Educação em Saúde e uma especialista em Gastroenterologia Pediátrica. Nesta
etapa discutiu-se a pertinência dos construtos abordados no questionário(38):
a) dor abdominal e suas características, b) hábitos de evacuação, c) uso de
medicamentos, d) procura por atendimento médico, e) uso de álcool e tabaco, f)
interrupção das atividades diárias, g) história patológica pregressa e h)
freqüência e grau de incômodo de determinados sintomas extra-intestinais.
A avaliação da equivalência semântica foi realizada em quatro etapas: a
primeira consistiu na tradução do instrumento original em inglês para o
português por um tradutor juramentado; na segunda etapa, a edição em português
foi retrotraduzida por outro tradutor. A tradução e a retrotradução ocorreram
de forma independente e mascaradas em relação aos profissionais envolvidos.
Ambos conheciam os objetivos do trabalho. A terceira etapa consistiu na
avaliação da equivalência, com ênfase no significado referencial e geral. A
equivalência apreciada sob a ótica do significado referencial de termos e
palavras diz respeito a correspondência literal entre eles. Já a equivalência
do ponto de vista do significado geral de cada item transcende a interpretação
literal e almeja captar uma correspondência do impacto emocional ou afetivo que
estes termos provocam no respondente. O significado referencial foi apreciado
entre o instrumento original e a edição retrotraduzida através de escalas
analógicas visuais. Para a avaliação do significado geral confrontou-se as
questões originais e as traduzidas, cuja equivalência foi avaliada em quatro
níveis: inalterado, pouco alterado, muito alterado, e completamente alterado.
Estas apreciações foram feitas de forma independente por dois médicos
especialistas em Gastroenterologia Pediátrica e fluentes em inglês e português,
cuja língua materna é o português. Na quarta etapa o grupo de especialistas que
participou da avaliação da equivalência conceitual e de itens, discutiu os
resultados obtidos nas etapas anteriores e propôs uma edição em língua
portuguesa mais adequada, utilizando os itens traduzidos ou modificando-os.
Para a apreciação da equivalência de mensuraçãoavaliou-se a confiabilidade,
através da concordância e consistência interna dos itens do BDQ. A
reprodutibilidade intra-observador foi apreciada repetindo-se a aplicação do
questionário a 63 alunos, com intervalo de 10 a 17 dias entre a primeira e a
segunda aplicação. O estado de saúde dos adolescentes que participaram do
reteste foi apreciado pelas possíveis faltas à escola por motivos médicos no
período que compreendeu o intervalo de tempo entre a primeira e a segunda
aplicação do questionário. Vale ressaltar que neste período, de acordo com o
relato da direção da escola, nenhum dos alunos faltou às aulas por motivos
médicos.
Para as variáveis dicotômicas, a reprodutibilidade foi estimada pela
estatística simples do kappa e os intervalos de confiança calculados
utilizando-se um programa desenvolvido no aplicativo Stata 7.0(31). Para a
avaliação das variáveis ordinais, utilizou-se o índice de kappa ponderado com
pesos quadráticos e o intervalo de confiança foi calculado via "bootstrap", com
1 000 replicações(37, 43). O índice de kappa foi interpretado utilizando-se a
classificação proposta por Landis e Koch(28, 29) em que são colocadas cinco
categorias para as estimativas de confiabilidade, a partir dos valores
encontrados para a estatística kappa: quase perfeita (>0,80), substancial (0,61
a 0,80), moderada (0,41 a 0,60), regular (0,21 a 0,40), fraca (0,11 a 0,20) e
pobre (<0,1).
A confiabilidade foi também avaliada através da medida do montante de
consistência interna, utilizando-se os dados da primeira aplicação do
questionário e calculando-se o coeficiente alfa de Cronbach e respectivos
intervalos de confiança de 95% para os itens que compõem grupos de doenças
funcionais (dor abdominal crônica, constipação, síndrome do intestino
irritável, dispepsia/refluxo) e os sintomas abordados no "Psychosomatic Symptom
Checklist".
Os dados foram armazenados num programa criado para este fim no aplicativo EPI-
INFO e analisados nos aplicativos STATA 6 e 7. Este estudo foi avaliado e
aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde
Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RESULTADOS
Características demográficas da população estudada
Dentre os 321 alunos do ensino médio convidados a participar, 234 aceitaram,
representando 73% da população abordada; 129 pertenciam ao sexo feminino e 105
ao sexo masculino (55,13% vs. 44,87%), com idades variando de 15 a 18 anos.
Equivalência conceitual e de itens
O painel de especialistas concluiu que os conceitos abarcados pelo instrumento
original são relevantes no nosso meio.
Equivalência semântica
A Tabela_1 mostra os resultados da avaliação da equivalência semântica sob a
perspectiva do significado geral de cada pergunta. Na Tabela_2 estão os
resultados da avaliação da equivalência semântica sob a perspectiva do
significado referencial.
Na avaliação do significado referencial, oito questões e o item "stomach pain"
na lista de sintomas apresentam percentual de concordância inferior a 70%,
mostrando que no processo de retrotradução houve perda do significado. Destaca-
se a retrotradução do termo "barriga" para "stomach", que apesar de ter
resultado em perda do significado referencial não afetou o significado geral,
que se manteve inalterado ou pouco alterado.
Equivalência de mensuração - confiabilidade
Para o reteste foram abordados 89 alunos, dos quais 63 concordaram em responder
(70,8%), o que representa 27% do total de alunos que responderam inicialmente.
Esses alunos foram selecionados por ainda estarem freqüentando a escola, já que
os demais haviam entrado de férias. Dentre os alunos que participaram do
reteste, 55,6% pertenciam ao sexo feminino e 44,4% ao masculino, com idades de
15 a 18 anos, sendo que 90,5% dos alunos tinham entre 16 e 17 anos. As
populações das duas aplicações não diferiam em relação ao gênero, porém houve
predomínio de alunos com idades entre 16 e 17 anos na segunda aplicação.
A Tabela_3 resume os resultados da confiabilidade das questões do BDQ. Em
quatro questões não foi possível determinar a confiabilidade pelos métodos
estatísticos empregados, provavelmente porque o número de replicações foi muito
pequeno. Por outro lado, em três questões não foi possível o cálculo do
intervalo de confiança do kappa, possivelmente pelo mesmo motivo. Mais da
metade das questões apresentaram concordância substancial a quase perfeita; a
primeira pergunta do questionário apresentou estimativa de kappa 0,9.
Neste estudo indivíduos foram classificados segundo as seguintes síndromes, de
acordo com os critérios de Roma aplicados ao BDQ: dor abdominal não
especificada, dispepsia, apenas dor epigástrica, síndrome do intestino
irritável e ausência de dor. A Tabela_4 mostra as estimativas de ponto do kappa
para as diversas doenças abordadas, indicando concordância para as síndromes
apenas de regular a moderada.
Equivalência de mensuração - consistência interna
As doenças avaliadas foram aquelas mais comumente observadas na população: dor
abdominal crônica não especificada, constipação, dispepsia/refluxo e síndrome
do intestino irritável, além dos 17 sintomas abordados no check-list. Na Tabela
5 estão listados os valores dos coeficientes alfa de Cronbach e o limite
inferior de seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Exceto para o
check-list, que apresentou consistência muito boa, para as diferentes síndromes
a consistência interna ficou em torno de 0,6.
DISCUSSÃO
As DGF são um problema de Saúde Pública e vêm ganhando crescente importância
clínica, social e econômica. No entanto, o diagnóstico preciso é uma das
principais dificuldades na abordagem de pacientes com suspeita de doenças
funcionais. Métodos diagnósticos válidos, baseados num mínimo de exames
complementares, teriam implicações óbvias para os pacientes e serviços de saúde
em geral. Pesquisadores que estudam as DGF no mundo inteiro vêm, desde 1978
(27), buscando estabelecer critérios diagnósticos baseados em sintomatologia
com o objetivo de discriminar entre pacientes com DGF e orgânicas. Esses
especialistas se reúnem periodicamente e, atualmente, estão desenvolvendo os
critérios de Roma III(11, 12), que serão uma revisão e atualização dos
critérios diagnósticos previamente elaborados. Nesta perspectiva, o objetivo
maior é estabelecer critérios universalmente aceitos, que possam ser aplicados
em diferentes países, culturas, etnias, religiões, idiomas e faixas etárias.
Paralelamente, vários questionários para a aferição de sintomas
gastrointestinais baseados nestes critérios vêm sendo elaborados. Observa-se,
no entanto, que diversos autores, em várias instituições de pesquisa, cada qual
com suas peculiaridades e inseridas em distintos contextos sociais e culturais,
elaboram diferentes instrumentos com a finalidade de identificar pacientes com
DGF. É notável o esforço para o estabelecimento de critérios diagnósticos para
as mesmas, mas a aferição baseada em instrumentos nem sempre validados pode
comprometer a qualidade das informações obtidas e, por conseqüência, gerar
diagnósticos incorretos.
No final da década de 80 observou-se também crescente preocupação no que
concerne à validade de instrumentos de aferição da qualidade de vida
relacionada à saúde, assim como a sua ampla utilização em diversos contextos
socioculturais. A aferição dos vários aspectos relacionados à qualidade de
vida, assim como dos sintomas gastrointestinais que compõem as DGF, não se
baseia em marcadores físicos, químicos ou biológicos com os quais possam ser
comparados. Assim como na avaliação da qualidade de vida, a percepção, a
valorização e a caracterização dos sintomas gastrointestinais podem sofrer
grandes variações étnicas, culturais e sociais. Nessas circunstâncias, torna-se
necessário realizar algum tipo de adaptação cultural dos instrumentos de
aferição, de forma a viabilizar a sua aplicação a uma população num contexto
sociocultural diferente daquele em que foi elaborado.
Considerando as relativas similaridades da problemática da aferição das
dimensões da qualidade de vida e das DGF, este trabalho utilizou metodologias
extensivamente investigadas e utilizadas para a tradução e adaptação
transcultural de instrumentos que avaliam a qualidade de vida relacionada à
saúde, para adaptar o BDQ ao nosso contexto sociocultural.
Não há na literatura consenso sobre a tradução e adaptação cultural de
instrumentos para a aferição de sintomas gastrointestinais. Nas situações em
que o BDQ foi aplicado em outras culturas, que não aquela em que foi elaborado,
não há relato de apreciação da sua adaptação transcultural(20, 21, 33). Quando
o BDQ foi aplicado nos EUA numa população de adolescentes, não foi realizada
uma adaptação formal, mas sim um teste em campo em que o instrumento pareceu
ser facilmente compreendido por essa população(23). Para aplicação na
Singapura, o BDQ foi traduzido para o chinês e malaio e testada sua
aceitabilidade e replicabilidade nesse novo contexto, porém não foi realizada
adaptação transcultural formal(20).
Neste estudo seguiu-se o modelo universalista proposto por HERDMAN et al.(19)
para a tradução e adaptação de instrumentos, com o objetivo de avaliar a
qualidade de vida relacionada à saúde.
No presente processo de tradução e adaptação cultural deste instrumento, o
grupo de discussão formado para avaliar as equivalências conceitual e de itens,
entendeu que os conceitos abordados pelo BDQ foram interpretados de forma
semelhante no presente contexto sociocultural e os itens abarcavam
adequadamente os domínios estudados. Os itens abordados no questionário são
pertinentes na nossa cultura, tanto os que se referem a sintomas
gastrointestinais, quanto aqueles relacionados a hábitos como consumo de
álcool, tabagismo, dados sociodemográficos, procura por atendimento médico,
história patológica pregressa, uso de medicamentos e sintomas gerais. O grupo
concordou que todos os itens captam adequadamente os domínios avaliados no
questionário original
Admite-se que os conceitos de dor abdominal ou outros sintomas
gastrointestinais, hábitos intestinais, procura por atendimento médico, uso de
medicamentos, história de doenças prévias e interferência desses sintomas nas
atividades sejam universais. Uma limitação desta etapa da avaliação reside no
fato de que os conceitos abarcados pelo BDQ não foram previamente discutidos
com a população de adolescentes. Autores(30, 32) alertam para o fato de que, no
processo de adaptação de um questionário a uma nova cultura, é importante
realizar grupos focais com a população a que se dirige para conhecer os
significados que são dados aos conceitos abordados no questionário.
A tradução do questionário resultou na primeira edição em língua portuguesa do
BDQ, que foi revista pelo grupo de discussão, obtendo-se a edição que foi
aplicada aos adolescentes. Poucas palavras ou expressões foram modificadas. O
item que aborda a profissão e tipo de trabalho gerou muitas dúvidas, uma vez
que a maioria dos entrevistados não sabia como distinguir estes dois aspectos.
Muitos também não conseguiam recordar o início da dor. Provavelmente as
perguntas que geraram dúvidas poderiam ser substituídas ou melhor esclarecidas
se a avaliação da equivalência conceitual e de itens tivesse considerado a
participação de adolescentes. Apesar desses problemas pontuais, não houve
dificuldade no que tange a aceitabilidade do questionário, os adolescentes se
sentiram à vontade para respondê-lo e relataram experiências próprias de
sintomas gastrointestinais abordados por ele.
Autores(30, 35) enfatizam a importância de se utilizar e se confrontar mais de
uma tradução, o que permite a escolha e a composição de itens oriundos de
diferentes versões. No presente trabalho, por problemas operacionais, não foi
possível obter outra tradução do questionário. No caso específico da adaptação
do BDQ, apesar do reconhecimento dos potenciais ganhos que poderiam ter sido
obtidos pela inclusão de adolescentes nos grupos de discussão e pelo uso de
mais de um par de tradução-retradução, julga-se que uma única tradução foi
suficiente para a elaboração da edição em português do BDQ semanticamente
equivalente ao instrumento original.
No que tange a avaliação da equivalência operacional, a forma como o
questionário foi aplicado (anônimo e voluntário), não diferiu do original. Nos
EUA e na Sibéria, a aplicação aos adolescentes foi feita durante o período de
aulas em escolas aleatoriamente selecionadas(23, 33). Quando da elaboração do
BDQ, os respondentes eram pacientes que procuraram atendimento na clínica
gastroenterológica, clínica da dor ou na divisão de medicina preventiva(39). Em
trabalhos subseqüentes, o questionário foi enviado pelo correio a uma população
aleatoriamente selecionada(3, 40, 41, 42, 45). Não há estudos comparando o modo
de aplicação do BDQ, entretanto parece razoável comparar os resultados obtidos
no presente estudo com aqueles de RESHETNIKOV et al.(33) e HYAMS et al.(23),
uma vez que todos foram respondidos em ambiente escolar e durante o horário de
aulas.
De acordo com a classificação de Landis e Koch, 11 questões do BDQ apresentaram
confiabilidade ruim, mínima ou razoável. Embora a primeira pergunta do
questionário apresente uma classificação quase perfeita, vale ressaltar que as
duas respostas discordantes ocorreram no sentido da afirmação na primeira e
negação na segunda aplicação, o que pode indicar interesse pelo participante de
preencher mais rapidamente o questionário, já que as 19 questões subseqüentes
são respondidas apenas por aqueles que apresentaram dor nos últimos 12 meses.
O item que aborda a localização da dor abdominal apresentou baixa concordância,
provavelmente porque na prática clínica, muitas vezes esta característica é de
difícil definição. Outros itens com baixa confiabilidade referem-se à relação
da dor com as refeições, informação também de difícil caracterização, uma vez
que a percepção da dor limitada ao tempo é imprecisa. Duas questões referindo-
se ao número de evacuações por semana também apresentaram concordância
insatisfatória. As discordâncias ocorreram em ambos os sentidos, porém ninguém
afirmou menos de três evacuações por semana na primeira aplicação e mais de
três por dia na segunda ou vice-versa. Dados da literatura mostram que de 94% a
97% das pessoas apresentam freqüência de evacuação entre três por dia e três
por semana(7, 9). No presente estudo, 80% dos adolescentes apresentavam esse
padrão de evacuação.
Outro item com baixa confiabilidade no presente estudo é um dos três
respondidos apenas por aqueles que já encontraram algum sangue no vaso
sanitário ou nas fezes no último ano, representado por 13% dos entrevistados. O
pequeno número de pessoas avaliadas pode explicar os resultados insatisfatórios
da confiabilidade dessa questão.
A baixa concordância também observada no item que se refere a algum episódio de
dor abdominal na infância pode dever-se ao fato do assunto por ele abordado
referir-se a um episódio ocorrido há muito tempo, podendo introduzir neste caso
um viés de memória. Outra possível explicação seria o fato da primeira
aplicação do questionário ter sensibilizado os informantes no sentido de
recordar com maior interesse os episódios dolorosos ocorridos na infância.
Neste estudo foram calculados os valores de kappa também para os seguintes
grupos: indivíduos com dor abdominal crônica não especificada, com dispepsia,
apenas dor epigástrica, indivíduos com síndrome do intestino irritável e
normais. Observou-se que a confiabilidade do diagnóstico de síndrome do
intestino irritável foi muito baixa (k = 0,31). Há duas possíveis explicações
para este resultado: o instrumento não se presta ao diagnóstico desse distúrbio
na população estudada, ou o número de replicações foi muito pequeno, fazendo
com que o número de indivíduos com esta condição no reteste fosse também baixo.
Na classificação de dispepsia, que envolve três itens do questionário: presença
de dor, mais de seis episódios nos últimos 12 meses e sua localização, número
considerável de adolescentes classificados sem dispepsia na primeira aplicação
apresentava esta condição no reteste. A concordância do item que abordava a
localização da dor foi muito baixa, o valor do kappa na abordagem de pessoas
que apresentavam dor não localizada apenas abaixo da cicatriz umbilical foi de
0,46, o que provavelmente contribuiu para a baixa confiabilidade observada
também na abordagem desse distúrbio.
Os indivíduos classificados como apresentando apenas dor epigástrica preenchiam
dois critérios: dor abdominal mais que seis vezes e localização acima da
cicatriz umbilical. Nesse distúrbio, a confiabilidade pode ser baixa em função
do erro de classificação da localização da dor, aspecto já comentado
anteriormente.
Por último, as pessoas saudáveis são aquelas que não apresentaram dor abdominal
nos últimos 12 meses e a estimativa de ponto do kappa foi 0,90.
De maneira geral, observou-se que a concordância foi satisfatória para a
maioria dos itens do questionário, mas baixa para a avaliação sindrômica. É
possível que a baixa prevalência de certas doenças necessárias para o
diagnóstico destas síndromes, aliado ao pequeno tamanho amostral deste estudo
de confiabilidade, tenham contribuído para isto. Admite-se que, em geral, há
boa confiabilidade das informações individuais fornecidas pelo questionário
adaptado, mas é possível que os critérios para o diagnóstico sindrômico
necessitem ser revistos e/ou flexibilizados para sua utilização no nosso
contexto sociocultural.
Não há, na literatura, estudos que abordem a consistência interna utilizando o
BDQ. No entanto, em geral, os resultados encontrados demonstram boa
consistência interna das questões relacionadas às principais doenças funcionais
e particularmente daquelas referentes aos sintomas extra-intestinais, abordados
no check-list.
Os resultados apresentados nas diversas etapas da adaptação transcultural foram
satisfatórios, portanto a edição em língua portuguesa do BDQ mostrou ser
funcionalmente equivalente à edição original.
Este estudo veio mostrar a importância de se adaptar culturalmente instrumentos
para a aferição de DGF, cujo diagnóstico é eminentemente baseado em sintomas.
Assim como as dimensões subjetivamente avaliadas no que tange à qualidade de
vida, a percepção, valorização e caracterização dos sintomas gastrointestinais
podem sofrer grandes variações culturais e sociais.
CONCLUSÕES
Verificou-se que, utilizando a metodologia proposta por HERDMAN et al.(19), foi
possível obter uma edição do BDQ adequadamente adaptada ao nosso contexto
sociocultural.
Esta constitui a primeira fase para a obtenção de instrumento de medida de DGF
na população de adolescentes, porém pretende-se aprimorar esta edição para sua
subseqüente utilização em amplas populações de adolescentes. Este trabalho
também pretende alertar para a necessidade do uso de instrumentos validados e
culturalmente adaptados para garantir a qualidade das informações
epidemiológicas em estudos que avaliam DGF. Aos instrumentos de aferição de DGF
deve ser dado o mesmo valor que aos critérios diagnósticos, sob pena de se
comprometer em muito a qualidade das informações obtidas e por conseqüência o
diagnóstico, o tratamento, o prognóstico e a qualidade de vida dos indivíduos
acometidos.