O modelo do sol nascente e razão sensível na enfermagem
O modelo do sol nascente e razão sensível na enfermagem
The sun rising model and sensitive reason in nursing
Modelo del sol naciente y la razón sensible en la enfermeira
Bernardette Kreutz ErdtmannI; Alacoque Lorenzini ErdmannII
IEnfermeira, Especialista em Biossegurança, Mestre em Enfermagem, Bolsista do
CNPq, autora do estudo. E-mail:bekreutz@pop.com.br
IIDoutora em Filosofia de Enfermagem. Professora do departamento de Enfermagem
da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora deste estudo. E-mail:
alacoque@newsite.com.br
1 Introdução
Ao se pensar em um cuidado de enfermagem culturalmente congruente, apoiado na
razão sensível, teve-se como motivação a própria experiência profissional em
oito anos de prestação de serviço de enfermagem domiciliar. Nesta caminhada,
tem-se observado que os padrões culturais, embora existam, apresentam-se menos
rígidos e mais suaves. Diante de tal constatação, percebeu-se que a teoria
transcultural, conquanto significativa para o estudo, apresentava lacunas em um
tempo já não tão abstrato e absoluto. Ao se fazer parte do Núcleo de Pesquisa e
Estudo sobre o Quotidiano, Imaginário e Saúde de Santa Catarina (NUPEQUES/SC),
vinculado ao programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa
Catarina, o gosto pelas falas dos tempos pós-modernos passou a constar do
pensamento e da lista de leituras. Seria possível vincular a teoria
transcultural de Leininger com a razão sensível de Maffesoli? Essa foi a
interrogação, iniciando-se, então, uma peregrinação na busca de livros com
esses temas. Mas foi com a ajuda de experts,que vêm desenvolvendo estudos na
área da antropologia abordando a teoria transcultural, o cuidado transcultural
e a razão sensível, que me aproximei da temática.
Como toda pesquisa em seu estágio final, o pesquisador se depara com uma
imensidão de dados. Não obstante, tudo estivesse metodologicamente planejado, a
duvida persistiu, como trabalhar essas informações? Sempre se teve certa
curiosidade de utilizar os dados de pesquisa com o Modelo do Sol Nascente de
Leininger. Surgiu, então, a idéia de projetar as informações obtidas no próprio
desenho, e pôde-se vislumbrar um Sol Nascente para os tempos pós-modernos.
Portanto, com este estudo, deseja-se contribuir para uma melhor compreensão da
análise da teoria transcultural, trazendo à luz do reconhecimento e a
valorização de elementos que incorporam o dia-a-dia do cliente e do
profissional de enfermagem.
Trata-se de uma prática assistencial e investigativa de enfermagem,
desenvolvida no domicílio de dois clientes, tendo o questionamento de como
oferecer um cuidado de enfermagem, apoiado na razão sensível, congruente com a
cultura do cliente e pessoas de seu convívio familiar. Para responder tal
problemática, trabalhou-se com o objetivo de compreender o sígnificado que o
cliente e as pessoas de seu contexto familiar atribuem à enfermeira, ao
processo saúdedoença e à enfermagem domiciliar nos tempos pós-modernos. A
expressão domiciliar vaí além do cuidado de enfermagem domiciliário, ou
domiciliar, termos utilizados para designar o feito no domicílio. A dimensão
da enfermagem domiciliar abrange a compreensão do conjunto ao valorizar os
diversos e diferentes elementos do contexto, contemplando toda a carga de
emoções que emergem no cotidiano destes tempos pósmodernos(1).
Alguns autores caracterizam tempo pós-moderno como sendo aquele que vem depois
do tempo moderno, definindo tempos pós-modernos como a (re)ligação entre certos
elementos da Pré-Modernidade com alguns da Modernidade(2).
Então, pensamento sobre a Pós-Modernidade pode ser entendido como sendo
[...] a mostra de um contexto da diversidade considerando elementos
da pré-modernidade, tais como: os sistemas de parentescos; religião;
sistemas comunitários; a tradição e o contato com a natureza, por
outro lado, a modernidade empresta outras dimensões, como a razão,
vigilância, a lógica do dever ser e uma visão mais para o futuro
(3,4).
Assim, a Pós-Modernidade é entendida como sendo "uma leitura do que está
acontecendo quando se traz as nuanças de que está acontecendo, é uma leitura do
que é"(3). E essa sutileza apresenta um contexto de diversidade e coexistência
de distintas culturas que formam de fato um "espectro de características muito
diferentes, ainda que ínterdependentes"(3:34).
A justificativa para a escolha do referencial teórico, norteador deste estudo,
que aborda a cultura numa perspectiva transcultural e a razão sensível na
perspectiva da sociologia compreensiva, é fruto dos ensinamentos dos muitos
cotidianos apreciados no dia-a-dia dos clientes. É preciso relembrar que é no
domicílio que as práticas e os hábitos estão presentes e representam a maneira
de viver das familias e de seus membros, é onde se tem a apresentação da
cultura em um contexto de microcosmo, em um tempo que é plural, com a
diversidade como fator significativo para a compreensão das relações.
A teoria Transcultural do Cuidado apresenta para a enfermagem a premissa de que
o ser humano tem seus significados e entendimentos sobre como deseja ser
cuidado(4). Esta teoria tem como propósito o conhecimento da natureza,
essência, propósitos sociais, assim como o desenvolvimento e melhoria do
cuidado de enfermagem, que tem funções culturais específicas e universais.
Algumas das suposições dessa teoria podem ser aqui citadas: desde o surgimento
da espécie humana, o cuidado tem sido essencial para o crescimento,
desenvolvimento e sobrevivência dos seres humanos; o cuidado próprio e outros
padrões de cuidado existem entre as culturas; o cuidado humanizado é universal,
existindo diversos padrões que podem ser identificados, explicados e conhecidos
entre as culturas; não pode haver cura sem cuidado, mas pode haver cuidado não
sendo para cura; a razão da existência da enfermagem é que ela é uma profissão
de cuidado com conhecimento disciplinado sobre ele; o cuidado na perspectiva
transcultural é essencial para desenvolver e estabelecer a enfermagem como uma
profissão universal; as práticas profissionais e populares de cuidado da saúde
são derivadas da cultura e influenciam as práticas e os sistemas de enfermagem;
o cuidado, valores, crenças e práticas culturais influenciam na forma pela qual
os clientes esperam que a prática do cuidado de enfermagem seja administrada.
A prática de enfermagem domiciliar, sendo integrante de um contexto no qual o
ritmo do dia-a-dia está configurado como um singular e único espaço-tempo e
tendo na diversidade cultural o reconhecimento das manifestações dos clientes,
necessita que a enfermeira mergulhe no entendimento do cotidiano. As nuanças
que emergem no aquie agorase constituem em pontos interessantes para o cuidado
com a saúde. Nesse sentido, é possível encontrar na microssocioantropologia os
constitutivos para uma enfermagem domiciliar apoiada na razão sensível.
Maffesoli(2) aborda a questão do cotidiano na perspectiva da sociologia
compreensiva, trazendo uma leitura contemporânea da sociedade. A enfermagem, na
perspectiva da sociologia compreensiva, abarca uma dimensão teóricocientífica
ao trazer o cuidado sensível para si.
Diante das exigências e da complexidade da sociedade, certos dogmas são
revistos e questionáveis. Convém lembrar que "talvez seja quando o sentimento
de urgência se faz mais premente que convém pôr em jógo uma estratégia da
lentidão"(5:11). Assim, valores culturais e religiosos, bem como a certeza
absoluta das ideologias, que caracterizaram a modernidade, apresentam-se um
tanto recluso, dando espaço para a convivência prazerosa.
"A socialidade reside num misto de sentimentos, paixões, imagens, diferenças
que incitam a relativizar as certezas estabelecidas e a uma multiplicidade de
experiências coletivas direciona um olhar para a sabedoria relativista"(4:38),
mantendo a ciência e a busca pelo intelecto em um desafio de considerar as
diversas situações, num aquie agora,que o ser humano está presente. Convém à
enfermagem elaborar, sob a tríade do saber/fazer/sentir, na perspectiva de "um
espírito de simpatia, de finura e discernimento", sendo que a atenção da
enfermeira também se voltaria "à paixão, à emoção, numa palavra, aos afetos de
que estão impregnados os fenômenos humanos"(5:12).
Trata-se conseqüentemente de um desafio, a elaboração de um marco referencial,
cuja disciplina presenteia um querer viver-deixar viver,o mais próximo possível
da realidade do cliente, seus familiares e pessoas de seu convívio. Tal cuidado
precisa ser harmonioso, num respeito às crenças, valores, práticas e hábitos de
todos os envolvidos, como Leininger tem teorizado, agora, também, para a
enfermagem domiciliar.
A teoria de Leininger é apresentada em forma esquemática, através do Modelo de
801 Nascente, desenvolvido para mostrar a dimensão da Teoria Transcultural(5).
8ua concretude, ou seja, a demonstração de como acontece na prática, com dados
reais, despertou na imaginação, para este estudo, o traçado de um 801 Nascente.
O ensaio que ora é desenhado, mantendo o modelo original de Leininger, pretende
aguçar os ânimos numa tentativa de mostrar a interligação do cuidado
transcultural através da união dos pontilhadoscom a razão sensível.
Leininger utilizou o sol para mostrar simbolicamente uma teoria que estava
nascendo com todos os seus elementos estruturais. Não se pretende ser tão
ousada, porém, ao contemplar o desenho de Leininger, observa-se que o mesmo
apresenta traços pontilhados, permitindo a transposição dos diferentes
elementos de uma determinada realidadel6'. Convém lembrar das brechas que são
criadas pelos fatos sociais, ou seja, a socialidade presente(5'.
Destarte, buscar-se compreender o significado filosófico da representação do
sol, como figura, é uma tarefa difícil, podendo-se, então, começar-se a pensar
em uma linguagem poética para a luz. O sol é a expressão máxima da claridade,
da luminosidade, do colorido e também da energia, como combustão vital, que o
verde vegetal capta da energia solar, tendo-se, portanto, a condição da própria
vida(7). Rousseau desenha o sol como "motor dos rios, das ondas, e distribuidor
da chuva ( ... ) sobre a terra, nos ares, sobre o mar, tudo se move - máquinas
ou seres humanos - só utilizam a energia do Sol(7:35). Isso lembra a vitalidade
pela aceitação da vida
Esta aceitação só é possível porque o tempo da vida cotidiana, vivido
individual e socialmente é cíclico ou tempo circular da repetição que nega a
linearidade que nela se dá, não existindo um fim absoluto a ser perseguido, mas
a busca de formas de enfrentar a precariedade e a permanência de um mundo de
ambivalência(8:34).
E, por isso, é lícito dizer que é nas ambivalências dos elementos constitutivos
do cotidiano que os animadores deste estudo seguem a lógica do querer viver e
deixar viver.Porque também a luz apresenta uma dicotomia: noite e dia; dia
nublado e ensolarado; preto e branco. Em um sentido simbólico, a luz representa
a vida, e no entendimento espiritual é a Luz DivinaDeus Paique, nas religiões
e nos mitos, tem sempre um duplo significado, o físico e o intelectua(7).
Este ensaio de buscar correspondência entre o sol, luze palavral
(7),representados no Modelo do Sol Nascente, mostra não somente a
sensibilidade, mas também todo o movimento em torno de uma ciência para a
enfermagem, já não tão absoluta. É preciso, pois, que o cientista pegue
emprestado os óculos dos animadores do processo, ou seja, é o enxergar pelo
olhar do outro sem perder seu próprio oIhar(3). Assim, o vínculo mágico da
dimensão de um cuidado transcultural pela razão sensível desperta para o
luminoso que existe em qualquer lugar e pessoa, nas pequenas insurreições do
dia-a-dia, que de fato vão constituir um todo maior.
Enfim, a manifestação do cliente e das pessoas de seu convívio familial
apresenta informação através do dito e do não dito. Segue-se, então, a
apresentação dos participantes deste estudo, suas percepções sobre o que é o
processo saúdel doença e como desejam ser cuidados pelos profissionais afins.
2 Metodologia
A primeira etapa consistiu em eleger uma estratégia para a implementação da
metodologia que contemplasse simultaneamente a prática assistencial e a
investigativa, para tanto se optou pela modalidade de pesquisa de campo
convergente-assistencial(9)."A pesquisa de campo convergente
assistencial inclui atividade de cuidado/assistência dos clientes",
conseqüentemente, esse tipo de pesquisa "articula a prática profissional com o
conhecimento teórico, e os pesquisadores formulam temas de pesquisa a partir
das necessidades emergidas dos contextos da prática"(9:26).
Assim sendo, essa forma de investigação:
[...] é conduzida para descobrir realidades, resolver problemas
específicos ou introduzir inovações em situações específicas, em
determinado contexto da prática assistencial, portanto se caracteriza
como trabalho investigativo, porque se propõe refletir a prática
assistencial a partir de fenômenos vivenciados no contexto, o que
pode incluir construções conceituais inovadoras. O ato de assistir/
cuidar cabe como parte de processo da pesquisa(9:27).
Se a(o) profissional não estiver muito preparado, poderá sentir-se inseguro
diante dos diferentes elementos que vão surgindo durante a prática. A
enfermeira domiciliar desenvolve de maneira especial as forças sensoriais como
o tato, visão, audição e as usa na identificação dos fatores que estarão
influenciando no processo de viver saudável: a observação é um ato contínuo e
uma aprendizagem permanente. A observação participante é parte essencial para
uma investigação na pesquisa qualitativa e pode ser considerado um método em si
mesmo para a compreensão da realidade. O pesquisador está face a face com a
população em estudo, compartilhando da sua vida, em seu ambiente cultural,
assim, ao mesmo tempo, em que está sendo modificado, modifica o contexto(10).
Nessa perspectiva, o contexto da enfermagem domiciliar se volta para
compreender as estruturas de relevância para o cliente e a família, respeitando
suas formas alternativas de compreensão de ser saudável. Assim, na pesquisa
convergente-assistencial, a enfermeira pesquisadora intervém através do cuidado
e realiza concomitantemente a coleta dos dados investigativos.
2.1 A prática assistencial e investigativa e o ser humano e família
participante deste estudo
A prática assistencial e investigativa foi desenvolvida na cidade de
Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil. Fizeram parte deste estudo
dois clientes, suas respectivas famílias e pessoas próximas. Tal escolha
respeitou a Resolução nO 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sobre pesquisa
envolvendo seres humanos. De comum acordo com os participantes foram empregados
nomes fictícios.
Os participantes foram divididos em Tribo Familiar 1 e 2.
A tribo familiar 1 era constituída pelos seguintes anímadores: seu Francisco/
dona Hortência e as empregadas domésticas e cuidadoras Ana e Maria. Foram
realizados quatorze atendimentos durante o período do estudo - dezembro de 2001
a janeiro de 2002. A Tribo familiar 2 era formada por dona Agnes, seu filho
Mário e a empregada doméstica e cuidadora Fátima. Foram realizados dez
atendimentos durante o período do estudo - dezembro de 2001 a janeiro de 2002.
3 Apresentação dos dados
Ao se apresentar os diferentes elementos colhidos dos diversos encontros,
através dos registros e da observação, tais elementos foram sendo identificados
e correlacionados com as práticas diárias das Tribos Familiar 1 e 2, sendo que
alguns pontos foram considerados significativos no processo saúde/ doença por
essas famílias e pela enfermeira.
Visão de mundo do cuidado cultural:
Definida como aquela com a qual o indivíduo ou o grupo vêem o mundo,
atribuindo-lhe valor, imagem ou perspectiva sobre sua vida e o próprio mundo
(4). Portanto, é um ensaio para ver e sentir os elementos que compõem o
contexto de cada tribo, por eles, manifestados, nas diversas dimensões.
Dimensões das estruturas culturais e sociais:
Tribo Familiar 1, descendente de origem portuguesa, sendo as empregadas
domésticas e cuidadoras açorianas. Tribo Familiar 2, descendente de origem
americana e alemã, sendo a empregada e cuidadora descendente de origem
italiana. Os clientes principais pertenciam à classe social A e B, e as
empregadas domésticas e cuidadoras à classe social D.
Fatores tecnológicos:
Aparelho de telefone e relógio despertador especial para cego (dona Agnes); CD-
playercomprogramação auto-regulável (dona Agnes); acesso à televisão a cabo;
forno microondas; alimentos já prontos para o consumo; lavadora de roupa para
Maria, empregada de seu Francisco, que a salvava de tanta roupa para ser
lavada;materiais e produtos para prevenção de lesões; medicamentos de última
geração e processo de enfermagem para acompanhar toda a evolução do cuidado.
Tanto a tribo Familial 1 como a 2 tinham acesso à medicina de ponta.
Fatores religiosos e filosóficos:
Dona Agnes e Mário, adeptos da Era Ciência Cristã, acreditando no poder da
mente para a cura; Fátima, católica; seu Francisco e dona Hortência, católicos,
todos os sábados recebendo a visita da Ministra da Igreja que trazia a Comunhão
para dona Hortência; Ana, católica e Maria, evangélica, acreditando que dona
Hortência necessitava de rezas para tirar o encosto,ao relacionar com os
quadros de confusão mental que a mesma apresentava, seqüelas de um acidente
vascular cerebral (AVC).
Fatores familiares e sociais:
Dona Agnes, mesmo cega, cuidava e se preocupava com o filho Mário (sofredor
psíquico), referindo sentimento de tristeza pela ausência das netas e dos
bisnetos que não a visitavam, não aceitando a condição de saúde do filho e
estando de relações rompidas com seu único irmão que mora no Brasil. Foi
possível observar a exclusão social: dona Agnes somente se ausentava de casa
para ir ao médico, recebia a visita da filha Inês às quartas-feiras, embora
essa mantivesse contato e cuidado com a mãe e o irmão sempre que necessário.
Esporadicamente, aos domingos, a amiga C. de dona Agnes a visitava. Sua relação
social, então, estava restrita ao Mário, à filha Inês, à Fátima e Flávia, suas
empregadas domésticas e cuidadoras e à enfermeira, tendo dona Agnes observado:
vocês são os meus anjos.De outra parte, dona Hortência, acamada, dependente
total para os cuidados, eventualmente recebia a visita de sua irmã de 91 anos,
da sobrinha T., e aos sábados a Ministra da Igreja católica levava a Comunhão e
fazia orações. Dona Hortência dizia que sua doença era estarsó e quando era
atendida pela enfermeira sempre solicitava a mesma para ficar mais um pouco.Seu
Francisco, ao receber a visita de sua irmã, procedente de São Paulo,
principalmente em datas especiais como o Natal, expressava felicidade. Quando
estava muito estressado, a enfermeira e as empregadas domésticas e cuidadoras
organizavam um esquema para que ele viajasse até São Paulo para visitar a irmã.
Queixava-se da impossibilidade de freqüentar a Associação dos Veterinários e
rever os colegas. Não recebia visita específica só para ele, mas telefonava
muito para os amigose antigos colegas de serviço.
Valores culturais e estilo de vida:
Em ambos as tribos foi possível observar a dignidade e a honestidade como
valores norteadores dos atos dos seres humanos, sendo que o estilo de vida se
limitava no diário, cada dia era um dia a ser vivido. A exceção era para as
empregadas domésticas e cuidadoras que faziam planos para o futuro, como Maria
que planejava comprar um carrinho de cachorro-quente e Ana que projetava um
futuro promissor para seu filho adolescente na Escola da Marinha.
Fatores políticos e legais:
Exclusão social, podendo estar vinculada à falta de uma política mais ativa,
voltada para o idoso. Seu Francisco e dona Agnes teciam criticas às políticas
governamentais, federal, estadual e municipal. Dona Agnes certo dia disse:
ogoverno do FHC tem obrigação de cuidar dos idosos,das crianças edos
adolescentes para que tenham educação, masele prefere dar odinheiro
para quem está junto aele; assim,não tem dinheiro para asegurança,
saúde epara aeducação.
E seguia falando sobre a carga tributária e a criação de novos impostos como a
CPMFe o seguro apagão.
Fatores econômicos:
Foram observadas queixas, nas duas tribos, referentes à queda de padrão de vida
nos últimos anos. O salário da aposentadoria cobria os custos e zerava as
contas cada final de mês, assim, quando surgia uma despesa extra, a dificuldade
financeira era eminente. Dona Agnes estava providenciando, junto ao INSS, a
inscrição de Mário como seu dependente, para ele poder receber uma pensão após
a morte dela. As empregadas domésticas e cuidadoras, embora recebessem
salários, além da média paga para a categoria em Florianópolis, apresentavam
dificuldades também: Ana estava separada e não recebia a pensão dois filhos, e
os maridos de Maria e Fátima estavam desempregados.
Fatores educacionais:
Seu Francisco com o 3o Grau completo e dona Hortência com o 1o Grau; dona Agnes
estudou em vários colégios, mas se denominava autodidata, falando e lendo
inglês, alemão e francês. Dona de uma memória fantástica relatava suas leituras
com uma precisão de menestrel. Mário, com o 3o grau incompleto, mesmo com
dificuldade para se expressar, demonstrava grande conhecimento. As empregadas
domésticas e cuidadoras, todas com o 1o grau incompleto.
Influências sobre o processo saúde-doença manifestadas pelos clientes:
Apareceram elementos do cuidado como o respeito, dignidade, carinho, ter
sentido, sentimento, entendimento, responsabilidade, conhecimento técnico-
científico e confiança no profissional de saúde.
Indivíduos, amigos, grupos, comums e instituições em sistemas de saúde
diversos:
Indivíduos e amigos - em ambos os contextos, centravamse em uma ou duas
pessoa, assim consideradas, inclusive a enfermeira; família - restrito aos
filhos, como no caso de dona Agnes, porém seu Francisco e dona Hortência, sem
filhos, consideravam a irmã dele como pertencente à família; Igreja somente
seu Francisco e dona Hortência manifestavam a importância de uma vivência mais
próxima da Igreja, a empregada doméstica e cuidadora Maria era evangélica e
considerava significativa a oração; bairro - Centro/Florianópolis, bairro nobre
com infra-estrutura adequada para um viver saudável; sistema de saúde - com
atendimento personalizado e os serviços de enfermagem domiciliar - Enf'
Bernadette Kreutz Erdtmann, que acompanhou os clientes por longa data. Nesta
dimensão, é possível resgatar o domusque, são os elementos próximos, tais como,
o bairrismo, Igreja, rua, vizinhança, condomínio predial, enfim, a social idade
presente(5).
Sistema genérico: são os recursos que os clientes lançam mão para a manutenção
de um viver saudável e o enfrentamento do processo de doença que estão
vivenciando. Os de maior incidência foram: dieta rica em fibras; conforto;
segurança; higiene; uso do sal para elevar a pressão; uso de rodelas de batatas
sobre a fronte para aliviar dor de cabeça; exposição ao sol; música; uso de chá
de maracujá como calmante; melissa para desconforto intestinal; uso de loção
hidratante para pele, massagem relaxante, entre outros.
Cuidado profissional de enfermagem domiciliar:
A enfermeira durante a prática assistencial e investigativa, ao mesmo tempo,
analisava, planejava e implementava o cuidado de enfermagem considerando a
correspondência entre todos os elementos e dimensões apreciadas pelos clientes
e pessoas próximas. Inclusive, destacando a ponte realizada com outros
profissionais do sistema de saúde: ao acompanhar dona Agnes ao médico
cardiologista, eram passados à enfermeira os aspectos relevantes sobre o
processo saúde-doença dessa cliente, quando retomavam ao lar, a profissional
repassava aos familiares e à empregada doméstica e cuidadora os encaminhamentos
e as orientações médicas.
Sistema profissional:
Acompanhamento de profissional médico, entre eles, geriatra, cardiologista,
neurologista, psiquiatra, oftalmologista e dermatologista, assim como
laboratórios de exames médicos.
Decisões e ações do cuidado de enfermagem domicilial:
Processo de Enfermagem Domicilial em Correspon-dência - a concretização do
cuidado culturalmente congruente apoiado na razão sensível(1). Para a sua
efetivação foram consideradas três etapas: a)levantando_os_dados,
correspondente ao levantamento de informação, através de relato do cliente, da
família, das pessoas envolvidas no contexto, e também da observação da
enfermeira que era realizada por meio de um exame físico, anamriese e
observação direta do contexto; b)compreendendo_e_concretizando_o_cuidado,
caracterizou-se como sendo o instante em que a enfermeira e o cliente
estabeleceram as necessidades de cuidado e em que o mesmo se concretizou;
c)avaliando_o_cuidado. visou verificar a evolução do cuidado e se o mesmo era
suficiente para manter, acomodar ou restabelecer, acontecendo através da
avaliação do cliente, de seu familiar e/ou da pessoa próxima e da própria
enfermeira. Nesse processo, configuraram-se elementos do cuidado sob a ótica do
cliente, principalmente, no momento, em que acontece a compreensão e a
concretização do cuidado, cuja dinâmica das decisões e ações tinham como fio
condutor a negociação, visando um cuidado de enfermagem equivalente às
expectativas e necessidades dos clientes.
4 Considerações Finais
A partir desta apresentação é possível meditar sobre a abrangência da Teoria
Transcultural, agora, apoiada na Razão Sensível e sua vinculação com a
enfermagem domicilial. Podese afirmar que, ao se utilizar o modelo do sol
nascente e nele inserir os dados da pesquisa, apresentou-se uma panorâmica
nítida da importância deste modelo e sua relação com o cotidiano de quem
realiza um estudo investigativo.
Esta visualização teórica dentro do desenho de Leininger aguça a enfermeira
pesquisadora a buscar a compreensão do conjunto em sua prática assistencial, ao
mostrar a ligação teoriaprática. Assim como, amplia a visão, num horizonte
aberto, sobre o cotidiano, proporcionando um cuidado mais harmônico em relação
à perspectiva do cliente e família. Ainda, oportuniza ao profissional,
reflexões constantes, induzindo-o a mudanças quando elas se fazem necessárias.
I
Observam-se os níveis de abstração e de análi~ do referencial teórico em seu
conjunto, e suas interligações na macro, médio e microabrangência em um tempo e
espaço que contempla a realidade do cotidiano dós clientes e familiares, bem
como a da própria enfermeira e pesquisadora. Portanto, neste estudo, as
estruturas apresentadas por Leininger estão desenhadas de forma compreensiva e
real ao trazerem os elementos culturais, sociais, ambientais e principalmente
sentimentais.
A reflexão aqui posta remete a um pensar, fazer e sentir a enfermagem
domicilial. Assim, precisa-se permear o cuidado de enfermagem, ao se observar
outros elementos, além da cultura, com a intensidade dos movimentos cotidianos,
trazendo as nuanças desse querer viver do cliente e pessoas do seu convívio.