Desafios históricos da enfermagem à luz do pensamento bioético
INTRODUÇÃO
A evolução histórica do ofício de enfermagem tem percorrido uma trajetória que
acompanha a evolução do conhecimento humano no campo das ações de saúde e das
ciências humanas, com os agravantes de vencer os desafios impostos pelos
antagonismos de classe e pelos preconceitos associados às relações de gênero(1-
2).
Historicamente, a enfermagem pode ser dividida em duas fases conhecidas por
antiga e moderna. A primeira diz respeito às enfermeiras que eram treinadas à
prática da enfermagem através de outras que dominavam essa prática no cuidar
dos doentes, desenvolvendo, nesse sentido, um comportamento baseado em normas,
sendo adestradas para cuidar, apenas com o mínimo preparo teórico que
fundamentasse seu trabalho profissional. A segunda, caracterizada pela busca de
conhecimento sistematizado, tecnicista e cientificista, pelo modelo de saúde
pautado no capitalismo. Exigindo daí à formação universitária, por parte
daqueles que a desejam praticar(2).
O contexto contemporâneo caracterizado pelo reordenamento econômico e por
mudanças no mundo do trabalho e das novas tecnologias aponta a necessidade cada
vez maior, de profissionais versáteis, críticos e comprometidos com o ambiente
de trabalho; movidos pela autonomia de atitudes e pela presteza de cuidados ao
cliente(3).
O objetivo deste estudo é promover uma discussão sobre os atuais desafios que a
enfermagem enfrenta à luz do pensamento bioético do cuidar. Portanto, partindo
de buscas de referenciais teóricos e filosóficos de diversos pensadores e
autores de livros e artigos científicos, inclusive na área de Enfermagem,
construiu-se esta reflexão, na perspectiva de formatar um marco conceitual
capaz de iluminar as discussões a cerca do posicionamento ético humanístico que
deve nortear as ações de cuidar da Enfermagem.
A BIOÉTICA DO CUIDAR E A ENFERMAGEM
Em tempos modernos, a complexidade da assistência à saúde exige dos
profissionais da área, inúmeras competências para lidar com os problemas
cotidianos, como também com os avanços tecnológicos que imergiram da ciência.
Nessa perspectiva, o cuidar da saúde transcende o saber empírico, considerando
as descobertas científicas e os mais sofisticados recursos tecnológicos(3).
Mesmo que os profissionais estejam tecnicamente preparados para utilização de
métodos e procedimentos inovadores, muitas vezes não conseguirão minimizar o
sofrimento e a dor do ser que recebe cuidados, pois nesta prática assistencial
tecnológica faltou o cuidado ético, humano e respeitoso.
Diante destes dilemas éticos próprios dos seres humanos, tanto os
profissionais, quanto os clientes/pacientes partilham de uma condição comum e
inevitável que situa a bioética do cuidar no âmbito das relações humanas,
circunscritas no domínio da enfermagem(4). Porém, nem sempre os profissionais
se colocam na posição de pacientes, quando isto ocorre evidencia-se uma tomada
de consciência, que se mostra desgastante, por exigir uma inversão de valores
éticos e morais nos espaços sociais individualizados e moralmente heterogêneos
(5-8).
Então como consequência desse ponto de vista, a valorização profissional se
encaminha de forma urgente, equivocada e às vezes desesperadora. Gerando uma
condição de sobrevivência, biologicamente, ampla, pelas inúmeras possibilidades
de adiamento da morte e, baixa qualidade de vida que nos reduz mais a
sobreviventes que a viventes(3).
No cenário atual de profunda pluralidade social, ao enfermeiro compete mais que
um adestramento técnico de recursos de ponta e um obediente agente da equipe de
saúde, mas um competente profissional-cidadão responsável por suas ações, capaz
de perceber no ser cuidado, um sujeito do autocuidado e da preservação do seu
meio ambiente.
A construção de um modelo mais humanizado na área de saúde pressupõe o
exercício de uma ética profissional mais autônoma, comprometida com a
clientela, com a comunidade e com o trabalho e muito menos com a técnica e com
a doença. Isto é, a bioética do cuidar concentra sua base na promoção de saúde
e muito menos no tratamento das doenças(9).
CONSCIÊNCIA MORAL, BIOÉTICA DO CUIDAR E ENFERMAGEM
O cuidar, na perspectivada bioética, traz consigo a concepção de que o cuidador
precisa ter mais do que conhecimento técnico-científico, ter, sobretudo empatia
pelo ato de cuidar com a responsabilização de sua prática em colocar-se no
lugar do outro e de sentir-se cuidado, isto é, transcende a existência do dever
de cuidar, prática ensinada em toda a história da enfermagem(8-9).
É relevante considerar que, a globalização da economia, a revolução
tecnológica, a inserção ainda que tímida, mas frequente nos últimos anos, por
parte de homens no exercício da enfermagem, inseriu este profissional em
condições de trabalho cada vez mais adestradas, tecnicistas e, portanto,
centrados no modelo biomédico(2).
No entanto, e paradoxalmente, se por um lado a inserção do homem no campo da
enfermagem e a centralização das ações no modelo biomédico refletiu-se em
desumanização, por outro lado ensejou a ampliação das fronteiras profissionais
e necessidade de se estabelecer novas relações mútuas e múltiplas com outros
profissionais, o que contribuiu para enriquecimento das ciências da saúde. Isto
enfatiza o desafio da enfermagem na perspectiva da bioética do cuidar.
Contudo, considera-se pertinente que a subjetividade dos sujeitos sob seus
cuidados, seja o foco principal de sua existência profissional e a utilização
dos recursos tecnológicos seja um meio para fazê-lo, de forma racional e apenas
complementar, não exclusivamente(3).
As Teorias de Enfermagem apontam princípios que possibilitam uma atuação
profissional verdadeiramente autônoma, no entanto, ao longo de sua história, o
oficio da enfermagem não galgou concretude em suas ações para torná-la
profissão liberal, além de ter minimizado suas possibilidades de autonomia(10-
11).
No entanto, a visão bioética do cuidar está voltada para a formação de uma
consciência coletiva de responsabilização uns sobre os outros; na compreensão
de que a moralidade de nossas ações deve partir desta relação de
responsabilidade e da certeza de que a comunicação entre as pessoas seja de
tolerância sobre as diversidades culturais que caracterizam o mundo humano a
fim de solucionar os conflitos morais(7-9).
Não se pode negar a evidente influência das questões de gênero na
desvalorização das profissões eminentemente femininas, tais como a enfermagem,
que é frequentemente colocada numa posição hierárquica de inferioridade, porém,
tanto a luta de feministas, como os princípios humanistas de igualdade e
respeito aos seres humanos independente do sexo, têm atuado de forma combativa
nestas desigualdades sociais e culturais, na perspectiva do alcance do respeito
e da igualdade entre homens e mulheres(1,5-6).
A consolidação da enfermagem como ciência deveu-se, também, aos aportes da
corrente principialista da bioética, ao propor os princípios de autonomia,
justiça, beneficência e não-maleficência. Isto, permitiu avanços importantes
para superação de determinados conflitos produzidos pelo efeito indesejado das
desigualdades no âmbito das relações sociais e profissionais, através da
sistematização dos saberes pertinentes ao ofício, para constituir um campo
profissional digno do ser humano e para o ser humano(3,10).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desafio que se apresenta ao campo da enfermagem, no início do século XXI,
consiste na reconstrução de uma nova postura ética, aqui chamada de bioética do
cuidar, que deve estar difuso em todo o modus vivendi e modus operandi, nas
diversas áreas da atuação profissional no campo da saúde. Essa nova postura vem
se identificando como urgente na sua capacidade de reinventar as relações no
universo multiprofissional e destes, com os pacientes.
Portanto, a essência da ação do cuidar não está, necessariamente, situada na
utilização da alta tecnologia, mas na natureza das relações humanas que
caracterizam a prática da enfermagem no seu cotidiano. Nesse entendimento, os
serviços de saúde e as ações que os caracterizam nos diversos fazeres
profissionais, voltar-se-ão para a "pessoa com doença e não à doença da
pessoa", superando o reducionismo cartesiano que ignora a dimensão emocional,
social, histórica e espiritual do ser humano.
A construção do conhecimento na profissão, já não se preocupa com a reprodução
de antigos modelos, mas com a construção do seu próprio saber como ciência
moderna, socialmente reconhecida e legitimada com epistemologia própria,
metodologias, autonomia e amplo campo de atuação, portanto, livre das relações
históricas de subalternidade.
Esta realidade, emergiu de uma contínua, permanente e necessária interlocução
entre os diversos saberes profissionais, que evoluíram historicamente
distanciados e culturalmente indiferentes entre si, se reconhecem como
elementos integrantes de um corpo profissional heterogêneo e harmônico cuja
ações devem convergir para o bem estar do paciente.