Diferentes configurações da violência nas relações pedagógicas entre docentes e
discentes do ensino superior
INTRODUÇÃO
Apresentaremos alguns aspectos das relações pedagógicas que ainda são pouco
visíveis e que ocorrem entre docentes e discentes no contexto do ensino
superior. Estas relações podem ser marcantes para ambos os sujeitos, docentes e
discentes, mas há alguns contextos em que elas se produzem de forma muito
hierarquizada e assimétrica, o que contribui para a emergência de determinados
fenômenos indesejados no espaço pedagógico, dentre eles a violência simbólica,
tema que abordaremos ao longo do artigo.
Nas instituições universitárias mais tradicionais ainda compete aos docentes
pensar o processo pedagógico desde o planejamento de todas as atividades
teóricas e práticas, até diferentes formas de implementar o ensino planejado,
os locais onde ocorrerão as práticas, como estas devem acontecer, por quanto
tempo e com que finalidades e eles também precisam avaliar se os discentes
alcançaram as competências desejadas ao final do processo de ensino-
aprendizagem. Este modelo pedagógico, que traz várias marcas do que chamaremos
no texto como ensino tradicional, repõe o docente como centro do processo, como
o sujeito que pensa a quase totalidade do ensino e o discente é aquele que
dependerá, em grande parte, das decisões e formas de atuar dos primeiros para
progredir na sua vida acadêmica e conseguir, ao final dela, o diploma
universitário.
Mas nossa compreensão do lugar e da importância do docente no processo
pedagógico foge em muito deste perfil ainda comum no ensino tradicional. Na
trajetória do ensino mais inovador e reflexivo, que nos interessa e de onde
partimos, se caminha privilegiando a relação entre o aluno e o saber e ao
professor compete o papel de 'apoio ao aluno na construção e na configuração
desse saber'. Neste contexto mais reflexivo e mesmo político, se reafirma a
importância do docente como elo entre o aluno e os saberes e conhecimentos
necessários ao discente para atuar com competência formal e política no seu
futuro como profissional em qualquer área do conhecimento. Do docente se exige
muito mais, ele precisa pensar e agir como um formador de profissionais
cidadãos e dominar tanto os aspectos formais como os aspectos políticos da
difícil tarefa de educar(1).
Consideramos que a educação é a base primeira da construção do sujeito
político, aquele que se mostra capaz de superar imposições, arbitrariedades,
medos e/ou constrangimentos tanto para mudar o presente para si e para outros,
como também sabe criar oportunidades de futuro, exercitando constantemente a
politicidade. Esta é uma habilidade humana, onde se aprende saber pensar e,
mais que isto, intervir na realidade e ser capaz de reconstruí-la
permanentemente de modo reconstrutivo e político. Nesse sentido, o bom
professor é aquele que sabe fazer a difícil mediação entre o conhecimento e a
educação, pois sabe que é esta última que imprime a qualidade política e ética
que o conhecimento necessita(1).
Frente a estas concepções sobre educação e suas importantes diferenças com o
conhecimento, o lugar e as competências que são exigidas do bom professor, nos
voltamos para definir o objetivo deste estudo, que foi melhor compreender como
se configuram a violência e o poder simbólicos nas relações pedagógicas entre
docentes e discentes no ensino superior desde a perspectiva e vivências destes
últimos. Adotamos como referência teórica para interpretar os dados de campo os
estudos de Pierre Bourdieu sobre a violência simbólica e o poder simbólico nas
relações escolares(2).
PERCURSO METODOLÓGICO
Trata-se de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, tipo descritiva e
exploratória. O estudo foi realizado no campus de Cuiabá da Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Escolhemos os cursos de graduação de Economia e
Direito, da área de conhecimento das Ciências Humanas e Sociais; os cursos de
Engenharia Civil e Arquitetura e Urbanismo da área das Ciências Exatas; e os
cursos de Enfermagem e Medicina, da área das Ciências da Saúde, todos da UFMT,
campus de Cuiabá.
Essa pesquisa contou com a autorização prévia da Pró-Reitoria de Ensino de
Graduação da UFMT, bem como a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do HUJM/
UFMT, protocolo nº 777/2010, atendendo as exigências da Resolução 196/96.
Fizemos a procura pelos sujeitos da pesquisa nestes seis cursos da UFMT e
definimos como critério de escolha dos mesmos, o fato de serem acadêmicos
matriculados no último ano ou último semestre do curso escolhido. Este critério
foi estabelecido por acreditarmos que estes discentes teriam maiores vivências
sobre os processos pedagógicos de seus cursos, pois ja teriam passado por
praticamente todos os semestres. Iniciamos a coleta no mês de novembro, quando
todos estavam finalizando o curso. Fizemos um convite eletrônico e também
telefônico. Confirmado o interesse dos acadêmicos, agendamos as entrevistas em
local e hora indicados pelos mesmos. Trabalhamos com 12 sujeitos e um foi
entrevistado duas vezes, pois tivemos problemas na transcrição do material.
Para manter o anonimato dos entrevistados, cada sujeito desta pesquisa recebeu
uma codificação ao realizarmos as entrevistas, código este que foi utilizado na
apresentação dos resultados. Também alteramos os nomes dos professores citados
nas entrevistas substituindo-os por códigos, bem como dos nomes das disciplinas
citadas. Utilizamos a entrevista não estruturada como principal técnica para
coleta de dados desta pesquisa. As entrevistas ocorreram entre novembro a
dezembro de 2010, já no final de semestre letivo.
Como técnica para análise dos dados foi escolhida a análise de conteúdo na
modalidade de análise temática. Ao organizar os dados, encontramos três grandes
eixos que se configuraram como nossos grandes temas de análise: no primeiro
aprofunda-se na dinâmica do processo pedagógico, no segundo eixo procura-se
entender as causas da violência no contexto estudado e no terceiro são
apresentadas algumas das configurações mais explícitas do fenômeno que ocorre
no ensino superior nos cursos estudados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Processo pedagógico: o fenômeno da reprodução, da violência e do poder
simbólico
A sociedade e suas instituições mais consagradas são espaços privilegiados de
reprodução da ordem social(3). Dentre estas citamos a igreja, a família, o
Estado e também a universidade, nosso lócus privilegiado de pesquisa. Esta
sobrevive e se reforça pelo reconhecimento que emana de outras instituições da
sociedade, que a legitimam como o lugar onde além de se produzir conhecimentos
diversos, vitais para a vida humana, também se formam os profissionais dos
diversos campos que a sociedade precisa.
Também há um forte senso comum que perpassa a sociedade e que compreende a
universidade como um "poderoso mecanismo de ascensão social, cabendo destacada
valorização para o ensino oferecido pelas universidades públicas"(4). Além
disso, é no meio universitário que circulam diversos saberes e conhecimentos,
bem como as formas de legitimação destes, pela via da avaliação e outros
processos, mediados pelos docentes e também pelos diversos colegiados, que são
constituídos, em sua maioria, por docentes.
Partimos do pressuposto que o processo educativo, quando adequadamente
conduzido, diga-se com competência formal e política por parte dos docentes,
pode produzir importantes mudanças nas formas de funcionamento social,
ampliando a democracia e influenciando na qualidade de vida das pessoas. Mas
quando este é inadequadamente manejado pode fazer justamente o inverso, como
diz este discente:
... a lei da sala era ele [o professor], era ele que decidia tudo...
Então, assim, a gente achava o cúmulo do absurdo não poder dar
[qualquer] opinião na aula dele. (EARQ01).
Esta sala de aula tornou-se um espaço de tal forma hierarquizado que ficou
marcado para este aluno como de imposição e arbitrariedade e mesmo achando um
absurdo não poder dar opinião na aula deste docente, o discente coloca sua
indignação no que a teoria bourdieusiana define como um ritual, onde não se
discute a ordem dada naquele campo, mas apenas se cumpre o que o habitus
permite, pois é ele que 'assegura a interiorização da exterioridade e adequa a
ação do agente à sua posição social'(5).
A importância do estudo do conceito de habitus no contexto pedagógico, reporta-
nos a pensar como este se estrutura através dos processos de socialização dos
agentes, que comandam a estruturação de novos habitus que serão produzidos por
diferentes agências pedagógicas, a família e a escola sendo dois bons exemplos
neste sentido. Na noção de habitus repousa a base do fenômeno da violência
simbólica, sempre mediada pelo poder simbólico, pois "o habitus tende,
portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que é produto das
relações sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações
objetivas que o engendraram"(5).
É o poder simbólico que permite que haja a concordância entre os agentes do
processo pedagógico, docente e discente e é ele também que define o lugar de
cada agente nos processos sociais. Ele se define como um tipo de dominação
suave, que encobre as relações de poder que regem os agentes e a ordem da
sociedade como um todo, assim se reconhece a legitimidade dos valores
produzidos e administrados pelos que estão no topo da hierarquia social, espaço
que no ensino superior é ocupado pelos docentes. É o poder simbólico que
permite atitudes como esta:
...simplesmente ela [a professora] senta numa mesa, passa um
exercício no quadro, te dá a resposta depois de cinco minutos, dá a
aula como dada, aplica a prova, mas não corrige, e te aprova na
disciplina. No primeiro momento isso é ótimo pra você, principalmente
com o aluno de segundo e terceiro ano, que o intuito dele é ir pra
frente, é um diploma, mas a gente sabe que não é bem assim. (EENG01).
No momento em que os discentes estão imersos nessa zona que denominamos como
'nebulosa' do processo pedagógico, o poder simbólico é mantido e alimenta-se
através de estratégias que aparentemente ofuscam a capacidade crítica do
sujeito que aprende, de forma que este não consegue se organizar para
confrontar-se com o que está dado naquela ordem simbólica, uma vez que ela se
apresenta como vantajosa para ele, que sucumbe e não resiste à arbitrariedade e
as formas equivocadas com que alguns docentes pensam e realizam o ato de
ensinar. Como diz este acadêmico.
...a gente tentou reclamar, só que viu que não resolvia, decidimos
largar de mão e aí acabou que todo mundo foi sendo aprovado...
(EARQ02).
O conteúdo da fala acima expressa que o recuo tácito que mantém a inércia dos
discentes perante à situação de não aprendizado ao qual foram submetidos. Se o
poder simbólico permite ao docente aprovar todo mundo, ele também torna
possível a "concordância entre as inteligências", pois os alunos se informam e
sabem de antemão quais são as estratégias dos professores com os quais virão a
ter contato, sabem quais são rigorosos apenas no nível ritual, mas que depois
facilitam o processo de progressão dos alunos para não ter que fazer maiores
esforços ou enfrentamentos com um ou outro aluno mais exaltado. É este mesmo
poder que permite a construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
que define o mundo social conforme os interesses dos dominantes, neste estudo
identificados pelos docentes universitários(2).
Apesar de o sistema de ensino universitário, em alguma medida, assegurar ao
docente a imunidade sobre possíveis atitudes não pedagógicas, que não promovem
o aprendizado do aluno, esse é o mesmo sistema que também cuida de não
inviabilizar a reação dos discentes, mesmo que esta se situe no nível do
ritual, do 'tenho que protestar', para que estes últimos possam sentir-se
minimamente sujeitos do processo. Para tal é permitida a presença, ainda que
numericamente mínima, dos alunos em praticamente todos os colegiados da
universidade, que são as estruturas que avaliam e deliberam sobre os processos
burocráticos e institucionais eventualmente movidos pelo alunado.
Considerando a diversidade de percepções e vivencias que estão postas no
ambiente universitário, os mesmos discentes que tem contato com docentes
autoritários e de pouco diálogo, também reconhecem vários bons docentes, que
são, no entendimento deles, os que permitem a reflexão sobre suas experiências
pedagógicas, como verificamos nas entrevistas dos acadêmicos., dentre as quais
destacamos a desta acadêmica de Arquitetura e Urbanismo:
Tem os professores que você busca e sempre ele está ali disponível
pra falar com você, pra tirar sua dúvida (...) que realmente são
comprometidos, que não faltam na hora de dar aula (...) que sempre
estão com conteúdo planejado pra fazer a aula acontecer (...) repete
tudo de novo pra você entender né, passa exercícios, se tiver dúvida,
faz aulas de revisão (...) são professores assim que a gente vê que
realmente vale a pena, né. (EARQ01).
O ensino é o cenário onde se encontram docentes e discentes, É o encontro de
múltiplas possibilidades onde professores e alunos têm a possibilidade de fazer
trocas, descobertas e experimentações. Além disso, salientamos aqui que o
ensino não é sinônimo de educação, e que ensinar não é da mesma natureza que
educar. Ensinar pode ser uma prática social emancipatória, como pode ser aquela
que coloca pessoas com diferentes necessidades em relação e realizada por
pessoas que possuem interesses, privilégios e detêm poderes sobre aquelas que
aprendem. Portanto, ensina-se tanto para a produção de sujeitos autônomos e
éticos, como também reproduzindo maneiras de perpetuar submissões e
hierarquias, por meio de um exercício e uma aplicação inadequada do
conhecimento pelos docentes(6-8).
Ao pensar as cargas horárias e planejar o ensino, os docentes algumas vezes,
sobrecarregam os discentes de tal forma que estes não têm espaços para
exercitar sua politicidade e autonomia pela absoluta falta de tempo para si,
como expôs a acadêmica de Economia lembrando em breve estar "livre" da
universidade:
...porque isso [estar ligada à universidade] impede minha vida em
tudo, em várias coisas, por exemplo, eu gosto muito de aula de dança,
fazia academia, mas se eu for fazer isso à noite, quando eu estava
estudando, que horas que eu vou estudar? A faculdade me impediu de
várias coisas, claro que é uma coisa boa faculdade, eu gostava de
estudar, mas eu não via a hora de formar pra ficar livre pra depois
fazer minhas outras coisas que eu gosto também. (EECO02).
Alguns depoentes ainda relatam que tentam 'não pensar muito' nas
arbitrariedades a que estão expostos no contexto pedagógico (EDIR02).
Os privilégios concedidos pelo conhecimento aos sujeitos que o manejam
diretamente, no caso os docentes, podem fazer com que estes não alcancem seus
propósitos - ...ele tem um conhecimento vasto, imenso, porém, ele dando aula
ele deixa um pouco a desejar... (EARQ02) - ou extrapolem seus limites e
utilizem seus 'poderes' de maneira arbitrária, como constatamos na fala do
acadêmico de Direito:
... teve uma aluna que foi debater na aula de Filosofia e ele
questionou isso 'você por ser uma estudante de Direito, você está
tentando equiparar o seu raciocínio, a sua inteligência comigo? Não
você não vai conseguir porque eu sou doutor em Filosofia e você é uma
mera estudante de Direito (EDIR01).
O conteúdo da fala acima revela o manejo inadequado do processo pedagógico pelo
docente, que verticaliza as relações e não se aproxima dos sujeitos
interessados no aprendizado. Seu efeito é inverso, pois afasta os discentes do
processo pedagógico, fazendo-os se desinteressar por ele. De fato, essa relação
pedagógica deveria deixar de ser vertical e de imposição cultural para ser uma
relação de construção conjunta do conhecimento, no entanto, a intensa
verticalização da relação de poder entre docentes e discentes, neste caso
descrito, provoca assimetrias e desinteresse por parte dos alunos e acaba por
produzir mais exclusão(9).
Através dos relatos dos sujeitos de estudo percebemos que a avaliação no
processo pedagógico se mostrou em vários momentos como uma das ações
pedagógicas que mais define a autoridade docente. As diferentes práticas
realizadas pelos docentes relatadas nesse estudo também demonstraram a
utilização do poder simbólico para outros fins que não as necessárias para
atender os ideais da educação que busca a qualidade formal e política. Assim
citamos vários depoimentos como o de EECO02 que fala sobre o propósito de
reprodução da avaliação por prova através da memorização(10) em detrimento da
capacidade de raciocínio e interpretação dos discentes:
Pessoas que sabiam interpretar e colocar da cabeça, mas estando
certo, ele não considerava. Se tivesse igualzinho o livro, sabe, aí
ele considerava certo. (EECO02).
Percebemos então que é nessa zona confusa que emerge a ideia errônea, que pode
ser traduzida pelo dizer comum na universidade 'eu finjo que ensino e você
finge que aprende', na qual ambos, docentes e discentes entram em acordo
tácito. Como diz a depoente:
...simplesmente, ele não dava aula pra gente, assim, ele fingia que
dava aula, porque toda aula ele dava a mesma matéria e explicava as
mesmas coisas né... (EARQ01).
Sabemos que a avaliação efetivamente faz parte da estruturação das práticas de
ensino na universidade, não há como não avaliar. Mas vale lembrar que se pode
avaliar de muitas maneiras, tanto de forma mais ortodoxa, como de formas mais
compartilhadas, em que o processo de avaliação é pensado, planejado e realizado
de forma integrada à aprendizagem, tendo por orientação os objetivos
educacionais que se quer alcançar e por meio de uma relação que desenvolva
entre professores e alunos corresponsabilidade pelo aprendizado(9).
Porém, os docentes que comumente definem como será o processo de avaliação e
neste ato, definem muito do que acreditam ser o processo de ensinar e aprender
na universidade, como podemos evidenciar na fala do acadêmico de Direito,
quando este exemplificou o que seria uma boa avaliação:
...era uma prova de cinco páginas ali escrevendo e eram duas horas
seguidas, você saia com a mão doendo, você tinha que estudar muito
pra ir fazer a prova. A professora era rigorosa, ela dava uma
excelente aula, mas cobrava, mas você aprendia, isso é fato, ninguém
ia pra prova sem estudar. (EDIR02).
No relato acima apreendemos a forma como este acadêmico considera 'correto', ou
seja, legítimo, uma avaliação em que se exige muito o conteúdo. Este revela na
sua fala palavras relativas à docente que exprimem a arbitrariedade, como
'rígida' e 'cobrava'; porém, a concordância, ou no caso a compensação, viria ou
se justificaria por esta dar uma aula considerada 'excelente', na qual o
produto maior que redimiria a ação pedagógica é a máxima 'você aprendia'.
Seria esta a melhor forma de aprender? O sentido da avaliação teria compromisso
com o desempenho da qualidade formal e política discente? Ou seria mais um
momento de teste estereotipado desvinculado do processo de aprendizagem?
Dentre outras formas de avaliação da aprendizagem, a 'prova', repetidamente
citada pelos entrevistados, foi concebida como um ato de imposição de força do
docente, que define o que vai cobrar de conteúdo ou atitudes, bem como ainda
define como vai fazer isto e quanto vale qualquer ação do discente. Esta se
revelou a barreira mais difícil de ser superada pelos discentes e nela muitos
potenciais de autonomia que estão se construindo se perdem pelo caminho da
formação universitária(10).
No caminho contrário o compromisso essencial da avaliação com o qual
concordamos é que a sua razão de ser seja 'garantir a aprendizagem qualitativa
do aluno'(10). Porém, outra prática relatada pelo acadêmico de Medicina que
ainda parece ser comum no cotidiano acadêmico: prova elaborada para
'prejudicar' o discente, como diz:
...é uma prova que você sente que não foi feita pra avaliar o seu
conhecimento, mas são pegadinhas pra pegar o aluno... (EMED02).
A avaliação com vistas a atingir a qualidade formal e política que o processo
formador exige, inclui, entre outras coisas, 'não dividir o processo educativo
em atos fragmentados, mas concebê-lo e praticá-lo como progressão evolutiva
permanente'(10). Dessa forma interessaria menos o erro, o fracasso eventual e o
mau desempenho localizado e muito mais o esforço, o envolvimento do discente em
superar suas limitações e dificuldades, sempre com a ajuda do docente. Mas
estas são marcas da violência simbólica já muito naturalizadas na ação
pedagógica, pois o docente pode e deve definir formas de avaliar, se possível,
dentro de regras bem claras e definidas em conjunto com os discentes, mesmo que
elas sejam as mais ortodoxas possíveis, se forem produtos de acordo mútuos
poderão ser considerados 'normais'. Como disse este acadêmico:
...[o professor] mandou que fosse feito um trabalho, deu uma data,
chegou e o pessoal entregou, nem todos, só uma menina que não e ele
deu a mesma nota mínima pra todo mundo passar... (EMED02).
Assim, demarcadas as posições dos agentes no jogo de poder pedagógico, o
discente ocupa neste espaço um lugar diferenciado hierarquicamente, porque é
ele que vem em busca do saber e do conhecimento que os docentes aparentemente
detêm. A teoria bourdieusiana sobre o fenômeno da reprodução que permite
assimetrias no processo pedagógico é controversa e seus autores foram alvo de
fortes críticas, principalmente por parte dos idealizadores da escola
libertadora e democrática brasileira, dentre eles Paulo Freire, por estes
apresentarem grande ênfase na argumentação a respeito do sistema escolar e de
seus agentes como colaboradores da reprodução social. Mas ao atribuir a
cumplicidade dos agentes dessa instituição para legitimar e promover a
reprodução da ordem social, a teoria abre caminho para ser questionada, como
toda teoria pode ser. Por isso consideramos importante pensar o sistema de
ensino superior a partir dela, pois nos parece que a universidade tem muito
mais contribuído para conservar as estruturas sociais do que para mudá-las.
As causas da violência nas relações pedagógicas entre docentes e discentes
Devido às diferentes lógicas de compreensão da violência nas relações
pedagógicas entre docentes e discentes, nos propusemos a compreender um pouco
mais sobre as causas da violência nessas relações, a partir da concepção de que
a violência simbólica consiste na base das outras configurações do fenômeno que
se valem da aparente brandura e naturalidade desta para tomar formas mais
atrozes e explícitas no contexto acadêmico. Desse modo, acreditamos que se este
tipo de violência permite a emergência das demais tipologias bem mais
explicitas do fenômeno, precisa ser compreendida em todos os espaços onde possa
ocorrer.
Para Bourdieu, a violência simbólica permite a concordância entre os agentes(2)
e, por isso, consideramos este estudo como um terreno fértil para o surgimento
de outras configurações da violência. As fronteiras entre o que é e o que não é
uma ação violenta acabam por ficar muito borradas e necessitamos de um suporte
teórico denso para poder identificar estas configurações mais suaves e
invisíveis. Todavia, para compreendermos melhor como os discentes percebem a
violência nessas relações, reportamo-nos a outras noções e conceitos para
apreender as demais configurações do fenômeno expandindo nosso olhar para as
formas mais perceptíveis e captáveis deste nas relações pedagógicas entre
docentes e discentes.
Assim, tomamos a perspectiva do discente, que, nos parece, muitas vezes ocupar
um lugar de passividade e submissão aos atos dos docentes, mas que, nem por
isto, deixa de perceber que, no contexto acadêmico, acontecem certos atos de
violência por parte dos docentes. Como pode ser compreendido na fala da
acadêmica de Enfermagem acerca da atitude em sala de aula do mesmo docente
Alfa, na forma como ele se referia, com ironia e fazendo chacota, aos nomes e
sobrenomes dos seus colegas de turma:
...teve uns momentos... de algumas colegas... tipo, a chegar falar
que o pai e mãe quando decidiram escolher o nome estavam fumando
maconha! Acho que isso é uma falta de respeito não é? Então... assim,
eu acho que é uma forma de violência.. (EENF02).
Todavia, comportamentos violentos podem, também, em alguma medida não serem
percebidas pelos agentes que as perpetram, os docentes, pois estes ao
transfigurar, dar outro significado às suas ações acabam por fazer com que
pareçam naturais, como se fossem parte constitutiva da relação que se
estabelece entre ambos os agentes naquele espaço. É uma forma a legitimar
aquela ação como 'aceita' socialmente, do mesmo modo como ocorre no mecanismo
da produção simbólica da violência simbólica de Bourdieu(2).
É o uso do poder de forma equivocada pelos docentes, donde termos incluído a
negligência e os atos de omissão para com o aprendizado dos alunos como
situações de violência, além dos atos violentos mais óbvios e perceptíveis
dessa relação(11). A forma como os docentes utilizam estes poderes de definição
para o que vai ocorrer na sala de aula resulta na extrema hierarquização, onde
as posições de cada sujeito são bem demarcadas e podem ser percebidas
conscientemente pelos acadêmicos, como relata o acadêmico de Engenharia Civil:
... Tem todos os perfis (de professores) aqui dentro: o perfil que
cria essa barreira, que se coloca lá no altar, lá em cimão...
(EENG01).
Essa hierarquização é proveniente do modelo burocrático que se instalou de
forma geral nas universidades brasileiras que embora não atenda ao novo momento
da sociedade brasileira ainda é gerador da estrutura centralizada, autoritária
e dominante. É exatamente essa cascata de efeitos gerados pelo 'poder' e pelo
'uso de poder' que compõe a base rudimentar sob a qual a violência ganha força
e toma forma cada vez mais explícita e configurada, e por meio dessa lógica que
foi concebida sua causa, como referência que nos possibilitou uma melhor
apreensão e compreensão do nosso objeto de estudo.
O fato é que, para cada vez mais compreendermos a causa da violência, devemos
expandir ainda mais nosso olhar, deslocando-o do contexto universitário e
direcionando-o para a sociedade brasileira, entendendo que a violência possui
uma raiz essencialmente exógena em relação à pratica institucional acadêmica e
esta reflete as coordenadas ditadas pelos tempos históricos, pois se trata de
uma sociedade autoritária que conserva as marcas da sociedade colonial. Ou
seja, a causa da violência nas relações pedagógicas entre docentes e discentes
está voltada para os aspectos sociais ou, melhor dizendo, a prática pedagógica
se estabelece num contexto cultural, político e econômico sendo afetada pelas
políticas públicas nacionais e institucionais que balizam as trajetórias
educacionais de modo que há um efeito multidimensional entre o macro e micro
espaço educativo e que um interfere fortemente no outro(6).
Assim, concebemos que as causas do fenômeno estão localizadas muito além dos
muros acadêmicos, constituídas por uma "reprodução socialmente difusa"
decorrente dos efeitos dos outros contextos institucionais (família, mídia,
economia, política, religião, entre outros) que se fazem refletir no interior
das relações pedagógicas(12-13) e através da seguinte lógica compreendemos que
a violência possui uma raiz essencialmente exógena oriunda de outros contextos
institucionais da estrutura autoritária da nossa sociedade - causa social -
esta se propaga refletindo-se no interior das relações pedagógicas entre
docentes e discentes, facilitada por sua vez pelas relações desiguais do
contexto universitário fortemente assimétrico, balizadas pelo 'poder' e 'uso do
poder' que estão embutidos na ação pedagógica, os quais foram delegados pelo
conhecimento/saber e chancelados pela estrutura institucional oligárquica, a
partir desse momento configura-se em diversas formas possíveis, desde a mais
sutil e velada, naturalizada e banalizada pela cultura acadêmica, até as formas
mais perceptíveis e captáveis, todas consideradas indesejáveis no contexto
educacional.
Configurações mais explícitas de violência nas relações pedagógicas entre
docentes e discentes
Na configuração da violência se cruzam diversos problemas apontados por Minayo
(14) e esta autora apresentou uma classificação ampla do fenômeno a fim de não
reduzi-lo ao mundo da delinquência e que utilizamos na construção teórico-
analítica deste estudo: violência estrutural, violência de resistência e
violência da delinquência. Anos mais tarde Minayo(15) apresentou outra
classificação: violência física, violência econômica, e violência moral e
simbólica. Igualmente apoiados em Chauí(16) exploramos nesse estudo a violência
moral e psicológica.
Os traços da violência estrutural nesse contexto acadêmico estudado puderam ser
apreendidos nas falas de alguns sujeitos desse estudo que ressaltam a
reincidência de uma mesma situação com as turmas anteriores, reforçando a ideia
de reprodução e invisibilidade do fenômeno - naturalização, bem como a inércia
do setor responsável que acaba por reforçar a estrutura de dominação - local
privilegiado do agente dominante, aquele que 'manda':
...a gente chegou até reclamar com a Coordenação, fizemos um ofício
pedindo a troca desse professor, que a gente sabe que não é a
primeira turma que reclama dele, mas no final ficou aquilo, elas por
elas... (EARQ02).
...a gente mandava, assim, oficio na Coordenação, na Secretaria,
falando que a gente estava se sentindo lesado por causa disso, mas
assim, sinceramente, nunca obtivemos resposta... (EARQ01)
O contexto universitário fortemente marcado pela autoridade docente pode ser
considerado violento porque sempre quando há um posicionamento assimétrico de
um perante o outro na qualidade de representante hierárquico, seja com o
intuito que for, estabelece-se uma relação, a rigor, violenta(12-13). Porém
este 'poder de violência' que pode ser ou não visível, também pode ou não ser
percebido pelos sujeitos a ele submetidos, isto vai depender em grande parte,
dos muitos interesses que circulam e definem o espaço pedagógico.
Em decorrência do robusto poder da violência simbólica, tais docentes são
percebidos muito negativamente pelos acadêmicos, conforme evidenciado nos
depoimentos:
... o curso é difícil, mas o que o torna impossível são eles.
(EENG01);
... tem alguns professores assim (...) bateu ponto, recebeu o
dinheirinho e agora é só esperar a aposentadoria. (EDIR02).
Desse modo, o docente pode facilitar, favorecer, ou mesmo dificultar e até
interditar as aprendizagens à medida que subsidia, fomenta, desvia ou até
obstrui a ação do aluno na direção de seu aprendizado(17).
Na tentativa de resistir às negligências, arbitrariedades e imposições dos
docentes nas relações pedagógicas evidenciada pela violência estrutural surge
outra configuração da violência, a violência de resistência, que é "aquela
constituída das diferentes formas de resposta dos grupos, classes, nações e
indivíduos oprimidos à violência estrutural"(14), identificada e localizada
nesse estudo mediante as falas dos acadêmicos, evidenciada por boicotes às
aulas como forma de protestar e conseguir o afastamento dos docentes:
... Conseguiram, né, no caso fizeram um boicote né, sempre que era
aula dele ninguém assistia aula. (EECO01);
... O aluno assim que entrava na aula esperavam um pouquinho, saia
pra beber água, só voltava a uns dez minutinhos faltando pra acabar a
aula (...) eu sei que no final já começou um descaso tão grande tanto
da parte dele que passou pros alunos, da parte dos alunos também
(...) ninguém queria mais, ninguém assistia mais as aulas dele.
(EDIR01).
Além dos boicotes realizados pelos discentes outras estratégias, que apontam a
violência da resistência nas relações entre docentes e discentes, foram
localizadas nesse estudo como a ameaça e resposta de mesma natureza violenta
dirigida ao docente, relatadas pelo acadêmico de Medicina:
... Eu pus o professor na parede 'e aí? Como é que você quer me
cobrar isso e isso? Sendo que aqui ó, cadê a sua parte? Você não
cumpre com a sua parte' né, ele se sente ameaçado, entendeu...
(EMED01);
... Eu também estressava, entendeu, ela vinha com uma dessas e eu
dava duas ou três patadas nela também, entendeu. (EMED01).
Nos depoimentos acima percebemos que ao resistir à violência os discentes
responderam com mais violência, o que reforça a ideia de propagação desse
fenômeno em rede, pois este vai passando por várias configurações, tornando-se
cada vez mais permeável e assim adquirindo características mais visíveis e
perceptíveis. Porém a resposta violenta, mesmo em forma de protesto, é
indesejável no processo educativo, pois a resistência que se espera é a
conquista política, uma vez que esta utiliza a democracia para exercer seus
direitos de cidadania com liberdade para expor suas críticas e assim resistir a
opressão que suprime o questionamento e a reflexão do discente perante qualquer
estrutura autoritária(1,13).
As diversas configurações da violência vão adquirindo feições cada vez mais
captáveis, mesmo onde ela se deixa menos ver. Essas configurações não amenizam
a natureza das outras formas que são consideradas socialmente mais brandas que
possui elevado potencial de reprodução e ocultação, porém apesar de serem
reprovadas socialmente estas continuam ainda a permear o contexto universitário
mesmo sendo alvo de grandes críticas. Dentre essas configurações localizamos a
violência da delinquência, que se revela nas ações fora da lei socialmente
reconhecida, tendo como fatores contribuintes para sua expansão "a
desigualdade, a alienação do trabalho e nas relações, o menosprezo de valores e
normas em função do lucro, o consumismo, o culto à força e o machismo"(14). Não
há relatos de casos vivenciados diretamente, porém essa configuração de
violência pôde ser observada pelos acadêmicos:
... Além disso, tinha alguns comentários, alguns termos que
demonstravam racismo, demostravam assédio sexual, e foi dessa forma
durante um semestre... (EMED02);
... Então reclamação lá também ele teve, uma aluna ia abrir processo
contra ele por assédio sexual, mas resolveu melhor não... (EDIR01).
Também foi encontrada na entrevista outra configuração de violência que se
aproxima da violência da delinquência, a violência física, esta bem fácil de
ser captada por ser bastante difundida e repercutida na mídia. Esse tipo de
violência atinge diretamente a integridade corporal e que pode ser traduzida
nos homicídios, agressões, violações, torturas, roubos a mão armada'(15),
também foi encontrada na entrevista uma experiência observada pelo acadêmico de
Medicina com uma colega de grupo de estágio no contexto hospitalar, em que a
docente Ômega a agride publicamente:
Ômega já empurrou uma das minhas colegas, entendeu, e tipo assim, 'o
que você tá querendo ouvir aqui?' o que que é isso? (EMED01).
Esse mesmo acadêmico de Medicina relata haver situações de ameaça física aos
discentes por parte dos docentes de seu curso:
... Ao longo dos seis anos desde o inicio até o internato tem
situações de que existe essa ameaça, mas assim, já chegou até ameaça
física. (EMED01)
Percebemos por meio das entrevistas que existem situações de violência que se
repetiram nas falas apresentando uma natureza distinta das demais
configurações, por ser perceptível pelos discentes, mas também ser bastante
comum em determinados espaços acadêmicos, onde facilmente é apreendida nas
situações de intenso conflito das relações pedagógicas entre docentes e
discentes, configurando, assim, outra face da violência, a violência moral e
psicológica, definida como aquela que trata da dominação cultural, ofendendo a
dignidade e desrespeitando os direitos do outro, evidenciada por comportamentos
e atitudes dos docentes que expõem os discentes às ameaças, medos,
constrangimentos, humilhações e pressão psicológica(15).
Ao provocar situações de medo e opressão, seja de maneira reiterada e
intencional, ou não, alguns docentes degradam o ambiente do ensino, tornando-
o um espaço de assimetrias, permeado pela ansiedade, peso e estresse, além de
desconfortável e desestimulante ao aprendizado dos acadêmicos.
Situações de humilhação e constrangimento vivenciadas pelos discentes também
acontecem quando o docente é requisitado a responder alguma pergunta ou dúvida
em sala de aula, principalmente por serem infelizes na elaboração de seus
questionamentos em espaços estruturalmente violentos de ensino, e nesse caso
parecem ser bastante comuns na cultura acadêmica dos cursos de Ciências Exatas,
como no curso de Engenharia Civil do contexto estudado, revelada pelo
comportamento de certos docentes, como disse o acadêmico:
... Pra você fazer uma pergunta ela tem que ser muito pertinente ao
conteúdo, muito pertinente, porque se ela for mal formulada ou não
for pertinente, você corre o risco de ser humilhado no meio da sala
de aula (...) quando eu perguntava alguma coisa é que eu já estava
sabendo e era só um mero detalhe, porque se fosse deixar pra aprender
na sala eu ia ser humilhado (...) eu tenho vários colegas que não se
manifestam. Tem medo de espirrar na sala pra não ser humilhado pelo
professor. (EENG01).
Geralmente aos relatos associa-se o sentimento de não merecimento e não
reconhecimento da competência formal do discente, acompanhados pela utilização
da prática pedagógica, como as notas e a reprovação, como instrumento real de
violência do docente, cuja intencionalidade está aparentemente ligada à sua
própria vontade, como no relato a seguir:
... Acho que esse era meu medo né, por não merecer, se eu deixasse de
fazer trabalho, tudo bem, tinha motivo né, pra ele dar nota baixa,
mas isso não era o caso, a gente sentia que era por implicância mesmo
(...) a gente sentiu durante o semestre inteiro uma certa perseguição
com relação a isso né, sempre as notas mais baixas que as dos outros
colegas, nos esforçando, reunindo, às vezes, no feriado, final de
semana inteiro pra fazer um trabalho (...) Quanto mais a gente
conversava com eles [os professores], a gente via que não mudava nada
né? (EARQ01).
Entre os depoimentos dos acadêmicos encontramos esse relato do acadêmico de
Engenharia Civil que desabafa:
... Eu não gosto de falar que eu fui perseguido, acho que isso não é
legal, eu preferia assumir. (EENG01).
Esse comportamento de EENG01 evidencia o comprometimento da liberdade do
discente na estrutura violenta de contestar os atos violentos que são gerados
em meio de relações intersubjetivas e sociais definidas, como são as relações
pedagógicas entre docentes e discentes, pela opressão, intimidação, pelo medo e
pelo terror, aniquilam no outro a subjetividade e a vontade, exercida também
através do poder das palavras que negam, oprimem e destroem psicologicamente o
outro(15-16).
Essas situações degradam o ambiente educativo, reduzindo e transformando as
salas de aulas em locais de terror, tortura e de intensa pressão psicológica,
como é evidenciado no relato dos acadêmicos:
... Um semestre inteiro passando por isso, é muito ruim, vou falar
pra você, muito ruim mesmo. A gente até falava: 'ah, não vejo a hora
de acabar, eu não aguento mais, não aguento mais'. Toda segunda era
uma tortura, ninguém gostava, a sala inteira! Toda segunda-feira um
martírio (...) sabe, muito ruim, ainda bem que acabou! Ainda bem!
Ainda bem! (EARQ01);
... Então os alunos tem que aguentar aqueles professores que não são
bons pra eles, então no caso da F [disciplina] nossa, nós tivemos que
suportar o professor, tivemos que aguentar ele o ano inteiro.
(EDIR01).
Há também casos em que professores subestimam a capacidade de aprender dos
discentes, desestimulando o aprendizado e disparando neles uma profunda
insegurança quanto ao seu potencial formal e criativo, como relata a acadêmica
de Enfermagem:
... Antes mesmo de a gente começar o trabalho ela [a professora]
falou que não ia esperar muito da gente, porque a gente não tinha
capacidade pra fazer aquilo, que ela não esperava muito porque a
gente não teria muita capacidade (...) então foi realmente... Já
desmotiva né? Como você vai fazer um trabalho que o professor não
espera nada de você porque você não tem tanta capacidade pra fazer
aquele trabalho? (EENF01).
Outra situação de violência praticada pelos docentes que interfere na
capacidade de aprender dos discentes é a excessiva cobrança e a pressão
psicológica exercida pelos docentes na execução de atividades pedagógicas que
exigiriam suporte para superar a insegurança ao invés de coação, como relata a
acadêmica de Enfermagem:
... Teve professores que já exigiam como se a gente tivesse toda a
destreza, toda... então te cobravam muito, às vezes até gritavam em
cima de você, às vezes fazendo procedimento e professor ali em cima,
então você não tem uma tranquilidade, ali você está aprendendo, você
está ali pra aprender, então é a primeira vez que você está vendo
isso e o professor fica ali em cima, tipo, você já está nervosa pela
presença dele e ficar ali te... de certa forma coage né, então aí
você fica... (...) totalmente nervosa porque não tinha toda a
destreza de fazer o procedimento. (EENF01).
Todas as situações de violência, seja em qualquer configuração desse fenômeno,
certamente refletem no processo educativo, atingindo os princípios ideais de
educação e indo exatamente no sentido inverso do que se entende como 'saudável'
no ambiente educativo, como espaço que deveria propiciar, favorecer e reforçar
o desejo de aprender do sujeito de ensino, fomentando o exercício de sua
politicidade (1). Porém tais situações reforçam as assimetrias e as submissões
de uns para com outros, cujo cenário é marcado pelas relações de força e poder
de dominação das estruturas autoritárias, reconhecidas como legítimas pela
ordem social.
Contudo acreditamos que para reverter essa realidade é preciso que todos os
envolvidos nesse processo lancem mão da educação e de seus propósitos para
avançar na emancipação do sujeito de aprendizado e na sua politicidade, para
que este seja capaz de conduzir as rédeas de seu próprio destino e resistir às
imposições e arbitrariedades, e assim, conjugar de forma ética a cidadania e a
democracia(1,4,7,18).
É por meio dessa lógica que a prática social de ensinar envolve o
desenvolvimento de competências diversas, ligadas não só cognição, mas outras
que possibilitem ao sujeito que aprende, saber questionar intenções, valores e
atitudes. Esta capacidade de discernimento impõe ao docente a necessidade de
desenvolver a habilidade de reconstruir o conhecimento, para poder lidar de
modo adequado com o discente na garantia o direito de aprender bem, o que exige
também da estrutura de ensino uma reconfiguração dos históricos dos papéis
atribuídos aos professores e alunos, recolocando-os numa relação mais
horizontal, de igualdade, que inclua mais responsabilidades e autorias
partilhadas. Por fim, é extremamente importante no processo pedagógico emergir
junto com o saber pensar o saber intervir de forma ética na realidade social
(1,6,19).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que a violência nas relações pedagógicas entre docentes e discentes,
sob qualquer configuração, produz determinados efeitos, alterações e
consequências imediatas e também tardias que podem ser minimizadas e por isso é
importante ressaltar que agir preventivamente na direção de coibir quaisquer
atos de violência nas instituições de ensino é também agir no sentido de
garantir uma sociedade saudável na qual as hierarquias e assimetrias sejam
minimizadas e as pessoas possam se expressar sem medo de retaliações de
qualquer natureza.
Realizar este estudo nos possibilitou refletir sobre a forma como temos
ensinado e como podemos, a partir das relações pedagógicas nas quais estamos
inseridos, causar tanto impacto no processo de formação do discente. Também
percebemos que esse sujeito do aprendizado, o discente, necessita saber pensar
para intervir na realidade, de forma inclusiva e democrática, e exercitar o
respeito mútuo e o diálogo, para que não haja espaço para imposições ou
limitações na sua constituição como cidadão autônomo, crítico e ético, possível
pelo manejo adequado da educação nos seus aspectos formais e políticos.
Há uma compreensão de que a prática docente necessita ser regularmente avaliada
para poder ser melhorada, processo que pode contribuir para fazer das salas de
aulas espaços mais democráticos e para promover a inclusão do discente nos
processos educativos, tornando-se também corresponsável pela busca do
conhecimento com qualidade formal e política. Além disso, mais estudos nesses
contextos são importantes para apreender a subjetividade de ambos os sujeitos
da aprendizagem, docentes e discentes, para avançar cada vez mais na
compreensão do fenômeno, pois a violência não se reduz a um dado momento ou um
determinado dano, mas trata-se de um processo orientado para determinados fins
multicausais que permitem a emergência das outras violências.