Efeitos de classe na desigualdade racial no Brasil
As divisões de classe social manifestam-se sociologicamente como estruturas e
mecanismos que tanto geram conseqüências sociais sistemáticas na vida das
pessoas e na dinâmica das instituições quanto condicionam, ainda que
parcialmente, os efeitos produzidos por outras formas de divisão social. Este
artigo analisa o impacto que a esfera da desigualdade de classe exerce sobre a
desigualdade de raça no Brasil ao abordar as variações da distância (gap)
racial de renda resultantes das diferenças de contextos de classe. Baseia-se,
para tanto, nos resultados de uma investigação empírica que procurou validar
uma nova classificação socioeconômica para o Brasil, classificação esta
construída de uma perspectiva teórica neomarxista de análise de classe,
inspirada nas contribuições de Erik Olin Wright, mas que aparece aqui,
basicamente, como um "instrumento de trabalho" (Wright, 1997; no
prelo). Este novo instrumento traduz um esforço de aperfeiçoamento da tipologia
utilizada no meu livro Estrutura de Posições de Classe no Brasil, ao qual
caberia reportar-se para um entendimento da sua gênese (Figueiredo Santos,
2002). A classificação socioeconômica mostra-se aqui principalmente como um
conjunto de categorias empíricas, mas uma apresentação plena dessa tipologia,
em que são desenvolvidos os seus fundamentos teóricos, analíticos e
metodológicos, foi realizada em outro artigo (Figueiredo Santos, 2004).
Logo de saída define-se o objetivo da investigação, voltada para a validação de
constructo (construct validation) da classificação, e a hipótese central
explorada. O trabalho situa, de modo breve, uma noção sociológica de raça e
suas relações com classe social, assim como a relevância e a especificidade da
raça no contexto brasileiro. O corpo principal do estudo envolve uma análise
dos resultados da aplicação da técnica de regressão linear visando delinear a
conformação da desigualdade racial e descortinar as manifestações mais
relevantes do papel "moderador" das categorias de classe na atenuação
ou exacerbação dos efeitos da raça na renda pessoal.
Validação de constructo (conceito) e objetivo da investigação empírica.A
demonstração da validade de constructo da classificação foi teoricamente
orientada e considerou a contribuição acrescentada ao entendimento dos
condicionamentos sociais. No processo de validação coube especificar a relação
teórica entre as variáveis de interesse, aferir a relação empírica entre elas e
interpretar os resultados (Rose et alii, 2001:81-83 e 147-148). A investigação
testou uma proposição, baseada em uma teoria, acerca da relação do conceito de
classe social com o conceito de raça, na explicação de padrões de desigualdade
econômica.
Na interpretação neomarxista de Erik Olin Wright, que inspira o presente
estudo, classe social representa uma forma especial de divisão social gerada
pela distribuição desigual de poderes e direitos sobre os recursos produtivos
relevantes de uma sociedade. O que a pessoa tem (ativos produtivos) determina o
que ela obtém (bem-estar material) e o que deve fazer para conseguir o que
obtém (oportunidades, dilemas e opções). As diferentes formas de relações de
classe são definidas pelos tipos de direitos e poderes incorporados nas
relações de produção e as correspondentes relações de poder envolvidas no modo
como as atividades das pessoas são reguladas e controladas em um sistema de
produção. A noção de relações de classe destaca os padrões estruturados de
interação associados à propriedade dos recursos produtivos básicos da
sociedade. A noção de localização ou posição de classe, por sua vez, pretende
definir a posição ocupada pelo indivíduo dentro das relações de classe (Wright,
no prelo).
Em uma perspectiva sociológica, que valoriza o papel das relações e divisões
sociais de classe, raça e gênero, a construção de "narrativas
causais" deve incorporar o entendimento das interseções e interações
causais, entre classe social e essas outras relações. As diversas dimensões da
desigualdade social não podem ser reduzidas à desigualdade de classe, porém as
relações de classe, ainda assim, jogam um papel decisivo na moldagem das demais
formas de desigualdade (Wright, 1978). Erik Olin Wright propõe duas teses
básicas para o estudo dos efeitos conjuntos de classe e raça na explicação de
padrões sociais. A primeira tese, chamada de mecanismos distintos, considera
que classe e raça representam diferentes formas de divisão social e identificam
tipos distintos de mecanismos causais, de modo que uma categoria não pode ser
dissolvida na outra, como se não existissem efeitos independentes de ambas. A
segunda tese, denominada de interação estrutural, considera que esses distintos
mecanismos interagem no mundo social, pois a realidade não possui uma
conformação meramente aditiva, de modo que o efeito da raça pode depender, em
parte, da classe (Wright, 2002).
Utilizou-se a variável dependente renda no processo de validação de constructo
devido à importância da questão da desigualdade de renda no Brasil. A
modelização explícita das diferenças de classe social nas estruturas de renda
pode servir para corrigir as deficiências do modelo econométrico de capital
humano, que especifica os preditores de renda de uma forma linear simples, ao
desconhecer a presença de "fraturas estruturais" na população
analisada. As categorizações de classe social, ao comporem agregados de pessoas
em circunstâncias homogêneas de determinação de renda, podem ser consideradas
como um sumário eficiente tanto da constelação de todos os efeitos
significativos de seleção endógenos quanto dos principais fatores moderadores
entre as características sociais e a renda dos indivíduos (Lambert e Penn,
2000). A análise de Grodsky e Pager (2001) sobre o gap racial de rendimentos
nos Estados Unidos, ao destacar o papel da variação sistemática na estrutura
ocupacional, que atenua ou exacerba os efeitos da raça, serve como exemplo
recente da exploração de efeitos interativos em um modelo estrutural de
determinação de renda.
A validação de constructo da classificação investigou a hipótese da relevância
do papel moderador da esfera da desigualdade de classe em relação aos efeitos
da raça na renda, considerando o impacto das posições de classe constituídas,
com os seus mecanismos geradores de renda característicos, nas variações da
distância (gap) de renda associadas aos atributos de raça.
RAÇA, CLASSE E CONTEXTO BRASILEIRO
Acerca da noção de raça e sua relação com classe social.Sabe-se que não existem
raças no sentido biológico do termo, visto que existe mais variação genotípica
entre os indivíduos do que entre as "raças". Raça é uma construção
social, mutável através do tempo e entre os contextos sociais, e sustentada por
uma ideologia racial (Telles, 2002:421). As relações raciais devem ser vistas
antes como um "complexo em evolução", em vez de uma série de eventos
perfeitamente definidos (Cashmore, 1997:303-305). As relações sociais que dão
origem às distinções raciais estão associadas a crenças biologicamente
determinísticas em diferenças de capacidades e direitos entre grupos com
determinadas características fenotípicas ou genotípicas reais ou imputadas. A
existência da raça como um constructo social está constitutivamente vinculada
ao racismo (Mason, 1994:847-848). No sentido analítico, raça representa uma
categoria usada para compreender o significado de classificações sociais e
orientações de ação informadas pela idéia de raça (Guimarães, 2002: 53).
A formação dos grupos raciais, ao envolverem características comuns de
comportamento imputadas, pode vincular-se fortemente aos contextos e às
motivações de classe e de grupos de status. Raça representa, por si mesma, uma
fonte potencialmente importante de unidade dentro do grupo e de divisão
intragrupo, mas esse potencial pode requerer um conteúdo estrutural para ser
ativado. Da mesma maneira, a conexão da raça com os fatores políticos e
econômicos projeta o seu papel em relação às classes e seus conflitos, aos
sistemas de Estado e à formação dos grupos de status (Rex, 1986:16-17 e 35-36).
Os sistemas de crenças raciais influenciam os padrões de relações sociais, que
vêm a constituir as relações raciais, mas esses sistemas de crenças, por sua
vez, dependem de estruturas subjacentes, de amplitude limitada, que devem ser
investigadas (Rex, 1983:9-10). As desigualdades de raça são não apenas
distintas, mas também diferentes em seus modos de operação social das
desigualdades de classe, porém tenderiam a assumir uma expressão maior como
desigualdades de classe. Nesse sentido, elas operariam, em grande parte, ainda
que não apenas, por intermédio da colocação dos não-brancos em posições
inferiores aos brancos na ordem da produção e da distribuição. As desigualdades
de classe constituem estruturas fundamentais por meio das quais as
desigualdades distintas de raça são articuladas (Westergaard, 1995:144-147).
Meu estudo beneficia-se das reflexões de Erik Olin Wright a respeito da análise
de classe da opressão racial. Uma noção de opressão racial foi formulada pelo
autor nestes termos: "A opressão racial é (1) uma divisão social vinculada
à ascendência biológica, tipicamente, mas não invariavelmente, associada a
marcas físicas, (2) em que alguma forma de exclusão socialmente significativa é
vinculada a esta origem e (3) o grupo excluído é estigmatizado de uma forma ou
de outra como inferior" (Wright, 2002). As divisões raciais implicam
relações sociais pautadas por práticas de opressão, exclusão e estigmatização.
A construção social da raça envolveria a transformação social de alguma
dimensão de ascendência biológica, tipicamente vinculada a uma marca física, em
uma hierarquia de status social. Nos Estados Unidos a regra de "uma gota
de sangue" eleva o papel da herança biológica a um ponto extremo, pois a
regra funcionaria mesmo na ausência de qualquer marca física (Wright, 2004). Na
experiência brasileira, ao contrário, a transformação de uma marca física, como
a cor, em um marca de status envolve processos mais sutis e carregados de
ambigüidades. Já a saliência das divisões raciais, na visão de Erik Olin
Wright, decorreria da fusão do componente racial com as dimensões sociais de
parentesco e comunidade, dois modos fundamentais pelos quais as solidariedades
são forjadas. Parentesco e família geram vínculos intergeracionais e estruturas
de obrigação, solidariedade e reciprocidade. Comunidade tanto exclui quanto
inclui, ao afetar a natureza das condições sociais imediatas para reciprocidade
e solidariedade na vida mundana das pessoas (Wright, 2002). Essa acentuação dos
papéis de família e comunidade na geração da "saliência" das divisões
raciais parece refletir, em certa medida, a manifestação das divisões raciais
no contexto norte-americano. A experiência brasileira mostra, como alerta
Edward Telles (2003), que a desigualdade racial pode reproduzir-se mesmo
vigorando certas formas de sociabilidade inter-raciais nas relações familiares
e de comunidade.
Erik Olin Wright considera que a análise de classe da opressão racial deve
destacar o papel do princípio de exclusão como o principal nexo de interseção
entre raça e classe. A análise de classe das opressões de raça considera a
idéia da geração de um ciclo de auto-reforço quando as conseqüências dessas
divisões se manifestam por intermédio dos seus elos com as formas de exclusão
econômica ou quando essas divisões se cristalizam em estruturas que se ajustam
à reprodução do sistema social de produção. Entretanto, não existe uma forma
simples de vinculação das divisões raciais aos interesses de classe. A
interconexão entre classe e raça deve contemplar a especificidade real da
racialização como uma dimensão de clivagem social (Wright, 2002).
Noção de raça no Brasil.Raça é uma variável explicativa fundamental na
reprodução da desigualdade social no Brasil. Entretanto, no Brasil, assim como
no conjunto da América Latina, o conceito de raça tende a envolver as
características fenotípicas e socioeconômicas dos indivíduos. Surge daí a
denominação "raça social", cunhada por Charles Wagley. O cálculo
racial brasileiro é influenciado pelo contexto social e apresenta uma certa
ambigüidade referencial (Hasenbalg et alii, 1999). As discrepâncias encontradas
entre a ascendência biológica e a classificação racial mostram que no Brasil
"a classificação racial se baseia principalmente na aparência"
(Telles, 2003:120). As classificações raciais seriam especialmente ambíguas e
fluidas no contexto brasileiro, com uma preferência pela noção de cor, mas que
equivale ao conceito de raça, pois hierarquiza as pessoas de cores diferentes
de acordo com uma ideologia racial. "A aparência, segundo a norma geral
societal brasileira, e até um certo ponto o statussocial, o gênero e uma
situação social particular, freqüentemente, determinam quem é preto, mulato ou
branco no Brasil" (idem:304).
A experiência brasileira, além disso, mostra uma certa dissociação entre as
relações raciais horizontais, expressas nas formas de sociabilidade inter-
raciais, e as relações verticais, que se materializam nos padrões de
desigualdade racial. Essa discrepância entre os planos horizontal da segregação
e vertical da desigualdade, além do papel da ascendência biológica versus
aparência e características sociais, estariam no centro da diferença entre os
Estados Unidos e o Brasil em matéria de relações raciais. A desigualdade racial
é maior no Brasil, apesar de ocorrer uma menor segregação racial, enquanto nos
Estados Unidos a desigualdade é menor, apesar de existir uma maior segregação
racial. A experiência brasileira demonstra, na conclusão de Telles, que
"negros e brancos podem viver lado a lado e até se casar, mas as
ideologias raciais continuarão a ser uma característica muito forte, imersas em
práticas sociais, que agem para manter a desigualdade racial" (idem:319).
O conteúdo das classificações raciais no Brasil, apesar de ambíguo e fluido,
nem por isso deixa de ser bastante eficaz na produção e reprodução da
desigualdade racial.
Desigualdades de raça no Brasil.Considerando os três principais grupos de cor
ou raça apenas, a população brasileira compõe-se, de acordo como o Censo
Demográfico de 2000, de 54% de brancos, 40% de pardos e 6% de pretos. O grupo
pardo equivale a uma enorme categoria "residual" formada por aqueles
que não seriam nem brancos nem pretos. Na maioria das regiões representaria um
tipo mulato. O Brasil branco é cerca de 2,5 vezes mais rico, em termos de renda
média, que o Brasil negro (pardos e pretos), sendo que esta razão entre as
rendas médias dos grupos raciais cresce a partir do sétimo decil das suas
respectivas distribuições. Por outro lado, os brancos são mais desiguais entre
si que os negros. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios ' PNAD/
IBGE de 1999 mostram que enquanto o índice de Gini geral do Brasil está em
0,59, para o branco fica em 0,58 e para o do negro em 0,54. Já o cálculo da
razão entre a renda apropriada pelos 10% mais ricos e pelos 40% mais pobres
mostra que os brancos ricos (10% mas ricos) são 21 vezes mais ricos que os
brancos pobres (40% mais pobres) e os negros ricos são 16 vezes mais ricos que
os negros pobres (Henriques, 2001:21-22).
Existe uma distribuição geográfica desigual dos grupos raciais, em parte como
fruto da geografia pregressa da escravidão, da migração européia e da história
reprodutiva da população. A desvantagem da localização geográfica dos não-
brancos, que se concentram nas regiões menos desenvolvidas, especialmente
acentuada entre os pardos, contribui significativamente para as desigualdades
raciais no Brasil (Hasenbalg et alii, 1999).
Considera-se que no Brasil a discriminação racial gera um "ciclo
cumulativo de desvantagens" dos pardos e pretos, de modo que os não-
brancos sofrem não apenas de uma desvantagem de origem, pois a esta desvantagem
vêm se somar novas discriminações na educação e no mercado de trabalho (Valle
Silva e Hasenbalg, 1992; Hasenbalg et alii, 1999). Dados da PNAD de 1988,
analisados por Valle Silva, mostram que a discriminação no mercado de trabalho
rebaixa em 36% a renda dos pretos e em 21% a renda dos pardos. Os não-brancos
são menos eficientes na conversão de investimentos escolares em posições
ocupacionais melhor remuneradas e possuem menores chances de carreira e
mobilidade no mercado de trabalho. A desvantagem, em relação à população
branca, na associação entre educação do pai e do descendente é de 30% para os
pretos e de 37% para os pardos (Valle Silva, 1993). Os diversos estudos de
Valle Silva destacam a importância crucial da linha de cor branco/não-branco,
na medida em que os contrastes entre pardos e pretos, na maioria dos casos,
tendem a ser fracos e não significativos (Hasenbalg et alii, 1999). Edward
Telles considera, no entanto, que os pretos sofrem mais discriminação que os
pardos, ainda que a principal segmentação racial se dê entre brancos e não-
brancos. As diferenças de renda entre pardos e pretos seriam reduzidas
particularmente devido a uma maior concentração de pardos no Nordeste e nas
regiões rurais (2003:228-232).
DADOS, VARIÁVEIS E MÉTODOS
Base de dados.A pesquisa usa a base de microdados do levantamento de 2002 da
PNAD/IBGE. A amostra do levantamento daquele ano compõe-se de 129.705 unidades
domiciliares e 385.431 pessoas, entre adultos e crianças. O levantamento abarca
o conjunto do território brasileiro, com exceção da área rural da região Norte
(IBGE, 2003). A amostra aqui utilizada, que possui informações para todas as
variáveis, é composta de 150.221 casos. Na análise são aplicados os pesos das
pessoas, mas sem fazer a expansão da amostra, de modo a evitar o decréscimo
artificial dos erros padrões dos coeficientes de regressão. Optou-se por essa
solução devido à importância para a desigualdade racial no Brasil da
distribuição das categorias raciais entre as regiões geográficas.
A partir de 2002, a PNAD passou a adotar uma classificação ocupacional
inspirada na International Standard Classification of Occupations (ISCO-88) em
termos da sua lógica de construção, baseada na similaridade de qualificação,
considerando o nível e a área de especialização, necessária para o desempenho
das tarefas e obrigações dos empregos (Hoffmann, 1999:6-7). A versão brasileira
possui um detalhamento de 519 grupos ocupacionais desagregados, o que
representa uma vantagem para o pesquisador que utiliza os microdados, mas
estranhamente não delimita o grande agrupamento de "ocupações
elementares", como faz o original internacional. O tratamento do grande
grupo das Forças Armadas (0,4%), ao seguir a solução ISCO-88, resultou em um
empobrecimento em relação as PNADs anteriores, pois não distingue mais os
subgrupos, o que implicou a sua exclusão da presente classificação. A PNAD não
foi concebida com o propósito específico da análise de classe, mas ao levantar
informações sobre o status do emprego, os empreendimentos e as ocupações,
permite a construção de "aproximações" das categorias de classe, como
foi demonstrado em meu estudo anterior e pode ser constatado na
operacionalização da presente tipologia.
Variável classe social. O presente trabalho beneficia-se das contribuições
teóricas realizadas por Erik Olin Wright dentro da tradição marxista de análise
de classe e da sua aplicação na investigação comparativa dos "efeitos de
classe" no capitalismo contemporâneo. A tipologia de classe na sociedade
capitalista contemporânea elaborada e aplicada por ele conjuga os critérios
teóricos de propriedade de ativos de capital, de controle diferenciado de
ativos de qualificação e de relação com o exercício de autoridade dentro da
produção (Wright, 1997). O entendimento da estrutura social brasileira, no
entanto, coloca os seus próprios desafios. Uma classificação socioeconômica
para o Brasil deve refletir a solução criativa desses desafios no desenho das
suas categorias. A especificidade da estrutura de classes no Brasil parece
materializar-se, de modo particular, na geração de uma grande heterogeneidade
socioeconômica, em um hipertrofiado segmento de auto-emprego e na constituição
de formas exacerbadas de destituição, dentro e fora do universo do trabalho
assalariado, quando não de exclusão do sistema social de produção. O Quadro_1
mostra o resultado final dessa "solução criativa" em termos de
categorias empíricas e critérios operacionais usados na construção da variável
classe social.
Relação do conjunto das variáveis.O Quadro_2 lista todas as variáveis
utilizadas no estudo e fornece as suas respectivas definições operacionais.
Merecem uma justificativa especial a opção pela categoria racial de "não-
brancos" e o uso da transformação logarítmica da variável dependente
"rendimento mensal do trabalho principal". Em uma abordagem
preparatória, visando conformar o plano final de análise, os dados da PNAD de
2002 mostraram uma ínfima vantagem salarial dos pretos, em relação aos pardos,
de 1,5%, significativa ao nível de 5%, com o controle estatístico da condição
de classe, educação, anos de trabalho, anos no trabalho principal, região
geográfica, setor privado/público, raça, gênero e condição na família. Além
disso, na análise das interações entre classe e raça, com o uso das três
categorias raciais, os coeficientes dos termos interativos para os pretos
tornam-se não significativos em quase todas as categorias de classe, exceto
uma, assinalando a não existência de diferenças em relação aos pardos
(categoria de referência)1. Optou-se por trabalhar a dicotomia brancos/não-
brancos, levando em consideração a finalidade principal de validação da
classificação socioeconômica, as evidências dominantes na literatura acerca da
preponderância da divisão branco/não-branco e a não significância estatística
de quase todos os coeficientes para os pretos. Foram excluídos da presente
análise 0,2% de casos de "indígenas" e 0,5% de casos de
"amarelos" (asiáticos).
Como a classificação socioeconômica foi composta a partir de dados sobre o
trabalho principal, utiliza-se como variável dependente o rendimento mensal do
trabalho principal, em vez da renda de todos os trabalhos ou da renda de todas
as fontes. Recorre-se à transformação logarítmica da renda, considerando o
perfil log-normal da distribuição da renda no Brasil e o objetivo de corrigir a
forte assimetria positiva dos dados originais, que compromete a superioridade
da média amostral como um estimador da média da população (Mukherjee et alii,
1998:75). Um gráfico de probabilidade normal dos resíduos Studentized mostrou
que a renda em valores monetários (reais) não se ajusta à distribuição normal2.
A escolha justifica-se igualmente ao ser considerado o critério da forma
funcional que "explica a maior proporção da variança da variável
dependente" (Dougherty, 1992:132). No modelo com todas as variáveis, a
utilização da renda em valores monetários originais (reais) gera um R² de
0,343, enquanto o uso da renda em log eleva o R² para 0,591, o que representa
uma grande melhora no ajuste do modelo aos dados (ver Modelo 7 no Anexo
Estatístico). Uma desvantagem de se trabalhar com o log da renda, no entanto,
está na exclusão da análise de todos os casos com renda zero. Isto implica a
desconsideração das categorias de trabalhadores não remunerados (7,4%),
trabalhadores de autoconsumo (4%), trabalhadores na construção para o próprio
uso (0,2%) e de todos os demais declarantes com renda zero no mês. A utilização
da forma funcional semilogarítmica, com variáveis binárias, coloca a questão da
correta expressão do impacto percentual de cada variável binária sobre a
variável dependente. Seguiu-se aqui a recomendação de Halvorsen e Palmquist
(1980) e Kennedy (1998:228), de modo que o impacto percentual foi calculado
conforme 100 [exp (B) ' 1].
Métodos.A importância de um fator sociológico não deve ser vista apenas através
da ótica do seu "efeito principal". O papel moderador de uma
variável, em relação aos efeitos na vida social de outras variáveis, testemunha
igualmente a sua relevância sociológica. O uso de termos interativos, em um
contexto de análise de regressão, serve a esse objetivo. A análise foi
conduzida com o uso de termos interativos ou multiplicativos entre as variáveis
binárias classe e raça (Friedrich, 1982; Hardy, 1993). Os coeficientes de
regressão dos termos interativos entre variáveis qualitativas binárias, como
classe e raça, estimam o efeito diferenciado de pertencer a um grupo X por
categoria do grupo Z. Os termos interativos são passíveis de ser interpretados,
neste caso, seja como o efeito diferenciado de raça conforme a classe, seja
como o efeito diferenciado de classe conforme a raça (Hardy, 1993:36-37). O
presente estudo utiliza a técnica de regressão múltipla OLS para testar os
efeitos moderadores das categorias de classe na relação entre raça e renda.
Relações moderadoras colocam a questão de "quando" e "para
quem" uma variável prediz mais fortemente um determinado efeito, ao afetar
a força ou direção da relação entre um preditor e um resultado. O efeito
condicional de uma variável, ou seja, a dependência desse efeito da existência
de outra variável, equivale a considerar os efeitos interativos entre as
variáveis (Frazier et alii, 2004:116). Na perspectiva da presente investigação,
raça representa a variável independente focal qualitativa e classe a variável
moderadora qualitativa. Na análise das variações do gap racial, conforme as
categorias de classe, utilizou-se a estratégia de "recodificação das
variáveis binárias", em que são realizados sucessivos recálculos da
equação de regressão, de modo a isolar as diferentes combinações de raça e
classe e produzir as estatísticas relevantes (Jaccard e Turrisi, 2003:55-59). A
análise explorou, igualmente, de forma complementar, a interação entre setor
(dicotomia privado/público) e raça, aplicando a mesma técnica para os dois
casos. Note-se que foram incorporados na análise dois termos multiplicativos
separados e não uma interação de três níveis, ou seja, um termo multiplicativo
entre classe, raça e setor.
Pretendia-se, inicialmente, realizar a análise aplicando um modelo de regressão
multinível aos dados. Entretanto, este modelo demanda a comparação de um número
suficiente de contextos de modo a tratá-los como observações e usar as
variações das variáveis neste nível para explicar as variações dos coeficientes
ao nível micro. O poder estatístico suficiente para encontrar efeitos
interníveis depende do número de grupos ou contextos, que deve ser maior que
vinte, segundo alguns, ou mesmo trinta, conforme outros. Os resultados podem
variar de situação para situação, mas naturalmente dependem muito da força do
efeito a ser investigado, assim como da correlação intraclasse, particularmente
para as estimativas relativas aos grupos e às interações entre o plano micro e
a esfera dos contextos (Kreft e De Leeuw, 1998:123-126; Snijders e Bosker,
1999:140-54; Treiman, 2001:311-312; Hox, 2002:173-184)3. A investigação das
diferenças de classe valoriza a construção de uma classificação com um número
relativamente reduzido de categorias, o que se choca com a lógica estatística
dos modelos multiníveis, que demandam mais contextos para obter poder
estatístico. Visto que o objetivo central do estudo está na validação da
classificação de treze categorias, não tinha sentido escolher um caminho que
pudesse ser questionado nos seus fundamentos estatísticos. Além disso, a
utilização das categorias de classe como grupos em um modelo multinível supõe
que estas constituem uma amostra oriunda de uma população de grupos e não
propriamente categorias que almejam definir o conjunto da população
(comunicação pessoal de Joop Hox). Na medida em que essas categorias possuem um
significado especial, de modo que o pesquisador "deseja falar sobre o
modelo dentro de cada um desses grupos especiais, então a abordagem de efeitos
fixos [OLS] é mais apropriada" (Cohen et alii, 2003:566). Por fim, cabe
registrar que diferentes estudos que usam modelos multiníveis ao abordarem as
interações entre ocupação e fatores atribuídos, como raça ou gênero, não
encontram diferenças substantivas maiores na comparação com a análise de
regressão OLS (Loeb, 2003; Grodsky e Pager, 2001; Haberfeld et alii, 1998).
ANÁLISE DOS EFEITOS DE CLASSE NA DESIGUALDADE RACIAL
Uma primeira aproximação de uma análise de classe das diferenças raciais pode
ser feita, de maneira simples, confrontando as diferenças de renda média entre
os grupos raciais, conforme as posições de classe. Utiliza-se para essa
finalidade a renda expressa em moeda nacional (real), visando compor um quadro
mais vivo, pois baseado na realidade original dos dados. Esse contraste
representa uma abordagem interessante, ainda que preliminar e simplificada,
pois permite fazer um paralelo com os resultados da análise de regressão. Sabe-
se que a técnica de regressão linear OLS estima médias condicionais da variável
dependente a determinados valores das variáveis independentes (Mukherjee et
alii, 1998:282). Nessa incursão inicial serão apenas situadas algumas
evidências empíricas de maior destaque, pois uma interpretação mais conclusiva
será feita com os resultados da análise de regressão, que incorporam o controle
estatístico de outras variáveis relevantes, assim como apresentam os erros
padrões das respectivas estimativas.
A Tabela_1 revela que o menor contraste racial ocorre dentro da classe
capitalista. Esta representa, por sinal, a única situação de menor gap racial
de renda em um grupo de elevada renda média. Na medida em que diminui a
dimensão do capital controlado, como ocorre com os pequenos empregadores, a
diferenciação racial aparece com força. Um padrão similar existe entre os conta
própria não agrícolas, que mobilizam algum capital ou dispõem de uma capacidade
de trabalho qualificada para poderem se auto-empregar. Já a diferença entre os
conta própria agrícolas merece destaque não apenas por ser a maior na
classificação, mas também por se tratar de uma categoria com alta concentração
de pardos no Brasil.
As diferenças são expressivas no núcleo dos empregos assalariados de classe
média e, de modo particular, entre os gerentes, onde ocorre a segunda maior
diferença registrada. Os empregados especialistas, que possuem maior renda
média, revelam uma diferença racial menor, em comparação com os gerentes, que
possuem renda média menor. No outro par de comparação qualificação/autoridade,
a situação se altera, pois os supervisores, que detêm renda média superior aos
empregados qualificados, mostram uma diferença racial também maior. Entre a
grande massa dos trabalhadores as diferenças raciais situam-se em um patamar
intermediário entre os assalariados mais destituídos e os empregados
qualificados e supervisores, com renda média maior. As menores diferenças estão
justamente entre as categorias mais destituídas de trabalhadores domésticos e
trabalhadores elementares. Os conta própria precários, por fim, mostram uma
diferença racial superior àquela encontrada entre os trabalhadores assalariados
proletarizados. Resta saber, no entanto, como ficarão esses padrões com os
controles introduzidos pela análise de regressão.
Uma outra forma de abordar as interseções entre classe e raça, complementar e
igualmente relevante, considera a distribuição dos grupos raciais dentro e
entre as categorias de classe que são desigualmente recompensadas. Os dados
apresentados na Tabela_2 revelam que os não-brancos estão em posição de
significativa desvantagem, em relação aos brancos, em todas as posições que
controlam ativos economicamente relevantes4. A maior distância está justamente
na condição de capitalista. Esta defasagem se reduz entre os empregados
qualificados e, particularmente, entre os supervisores (categoria relativamente
pequena no Brasil). Os dois grupos raciais estão próximos de equipararem-se, em
termos de distribuição interna, na grande categoria dos trabalhadores. Por fim,
os não-brancos suplantam amplamente os brancos nas categorias mais destituídas
de trabalhadores elementares (que inclui os trabalhadores manuais agrícolas),
conta própria precários e empregados domésticos. A distribuição das categorias
raciais segue um ordenamento de classe claramente configurado.
A consideração dos efeitos de classe na renda das pessoas, dentro do conjunto
da população e entre os grupos raciais, requer a introdução da análise de
regressão, o que é feito na Tabela_3. Em sua última coluna mostra a vantagem
média de renda, de brancos e não-brancos, de pertencer à categoria designada,
em vez da categoria de referência de trabalhador elementar. Vale não esquecer
que são diferenças líquidas, que incorporam o controle estatístico de educação,
anos de trabalho, anos no trabalho principal, região geográfica, residência
urbana/rural, status de migração, setor privado/público, setores econômicos,
raça, gênero e condição na família. Um modelo de regressão (não mostrado aqui)
apenas com a classificação socioeconômica e o controle de horas de trabalho
mostra que a tipologia construída explica 41,5% da variança da renda em log,
conforme o R² ajustado.
Como seria de se esperar, destaque-se a posição dos capitalistas, que obtêm a
maior vantagem de renda em relação à categoria de referência (omitida) de
trabalhador elementar, mas, além disso, pode-se observar um claro ordenamento
entre os detentores de ativos de capital, com a vantagem decrescendo dos
pequenos empregadores até os conta própria não agrícolas.
Os auto-empregados especialistas ostentam a segunda posição privilegiada, um
tanto abaixo dos capitalistas, sendo que a sua condição combina a posse de
ativos de capital, pois são formados de conta própria e empregadores com até
cinco empregados, com o controle de perícia profissional. São acompanhados em
seus privilégios, a uma certa distância, pelos empregados especialistas e
gerentes.
No universo da classe trabalhadora ampliada nota-se que a qualificação e a
autoridade, ainda que em menor grau, fazem diferença, como transparece na
situação dos empregados qualificados e supervisores. A grande massa dos
trabalhadores, por sua vez, distingue-se dos segmentos mais destituídos de
trabalhadores elementares, empregados domésticos e conta própria precários.
Estes últimos, por sinal, parecem formar um aglomerado semelhante em termos de
renda média, ainda que diferenciado em termos de inserção de trabalho.
Ao se observar as duas primeiras colunas da Tabela_3, que mostram as diferenças
de classe no interior dos grupos raciais, percebe-se a força do componente de
classe, pois essas discrepâncias são marcantes em ambos os grupos de cor,
exceto entre os trabalhadores mais destituídos. Além disso, as desigualdades de
raça não se sobrepõem às diferenças de classe, pois este último ordenamento
praticamente não é alterado pela separação de cor.
Por outro lado, a consideração das divisões socioeconômicas, de acordo com os
grupos de cor, mostra a existência de uma desigualdade de renda menor entre os
não-brancos, em comparação com os brancos. Constata-se, então, que raça gera um
efeito em classe. A contribuição da raça para diminuir as desigualdades de
classe está bem demonstrada quando se verifica que estas últimas são maiores
entre os brancos do que no conjunto da população de brancos e não-brancos
(última coluna da Tabela_3). As discrepâncias de vantagens entre brancos e não-
brancos, por sua vez, variam conforme as categorias socioeconômicas, como pode
ser observado na terceira coluna da mesma tabela. Esta constatação coloca em
evidência a questão das interações entre essas duas formas de divisão social,
que está no centro da presente investigação, mas que será desenvolvida mais
adiante, lançando mão de uma outra forma de abordagem dos dados.
A força e a composição da desigualdade racial de renda no Brasil. Apresento
agora as características da desigualdade racial de renda no Brasil, ou seja,
sua força e composição, antes de abordar diretamente as interações entre classe
e raça. Isto será realizado estimando-se a porcentagem não explicada da
desigualdade racial em sucessivos modelos que incluem outros fatores com
impacto importante na renda e que podem estar associados às divisões raciais.
Essa estratégia permite conhecer os principais fatores mediadores da
desigualdade racial e estabelecer os efeitos diretos, não mediados, das
divisões raciais. Dessa maneira, é possível distinguir entre a desigualdade
racial de renda, que emerge devido ao acesso ou alocação desigual dos grupos
raciais a posições, recursos ou contextos que afetam a renda, e aquela que
resulta das recompensas desiguais atribuídas aos grupos raciais inseridos nas
mesmas circunstâncias sociais.
Os resultados apresentados na Tabela_4 são aqueles em que os coeficientes de
regressão já foram transformados em efeitos percentuais medidos na unidade
original da renda. A Tabela_1-A do Anexo_Estatístico apresenta os coeficientes
de regressão originais e seus respectivos erros padrões. Devo lembrar que na
avaliação da importância estatística de um efeito, não basta considerar a sua
magnitude, mas a magnitude em relação ao erro padrão dessa estimativa (Hardy,
1993:50).
O Modelo 1 serve de base de comparação para avaliar a magnitude e a composição
das diferenças raciais de renda no Brasil. A diferença em favor dos brancos, da
ordem de 75%, mostra o peso bruto da desigualdade associada à raça (ver Tabela
4)5. Resta saber, no entanto, a composição e conformação dessa diferença e como
ela se comporta quando são incluídas na regressão outras variáveis relevantes
no processo de determinação da renda das pessoas.
Levando em conta o foco da investigação nas interseções e interações entre
classe e raça, no Modelo 2 são acrescentadas as categorias de classe. O efeito
original fica reduzido à metade, mostrando a relevância da interseção entre os
dois fatores no Brasil. O desaparecimento de metade do efeito original deve-se
ao peso da composição racial das categorias de classe e expressa a distribuição
desvantajosa dos não-brancos entre as posições de classe desigualmente
recompensadas. Além dos demais fatores independentes que serão explorados a
seguir, com as suas respectivas contribuições para a explicação do gap racial,
a diferença de renda restante, não explicada, entre os grupos raciais, passa a
ser aquela existente dentro das posições de classe, associada a fatores de
diferenciação interna das categorias de classe, para ficar apenas nos limites
de um modelo aditivo.
O Modelo 3 introduz o controle estatístico das diferenças em educação, em anos
de trabalho e em anos no emprego atual. Na ótica da teoria neoclássica de
capital humano, esses elementos são considerados manifestações de atributos
produtivos individuais. Entretanto, os anos de trabalho podem expressar um
efeito geral de acúmulo de ativos no ciclo de vida; os anos no emprego, um
indicador do tipo de relação de emprego, entre os assalariados, e de posição
competitiva mais "duradoura" no mercado, entre os auto-empregados e
os empregadores; a educação pode ser dissociada da produtividade individual e
ser vista mais como um fator seletor ou classificador que dá acesso aos
empregos. A estrutura ocupacional, as hierarquias organizacionais e a condição
de classe, por sua vez, podem ter um importante papel mediador e moderador nos
efeitos da educação sobre a renda. O efeito da educação pode depender de
fatores endógenos à relação de emprego, vinculados ao processo de extração do
esforço de trabalho, devido à natureza "incompleta" do contrato de
trabalho. Entretanto, esse debate vai ser deixado de lado, pois já foi travado,
no contexto brasileiro, em outro lugar (Figueiredo Santos, 2002). O fato é que
no Brasil existe uma associação especialmente forte entre educação e renda,
devido, em particular, à grande desigualdade em educação, em que entram as
divisões de classe e raça. Uma outra regressão, não mostrada aqui, sem o
controle de anos de trabalho e anos no trabalho atual, mostra que apenas o
acréscimo do controle da educação reduz o gap racial para 27,51%. Isto
representa uma redução importante do efeito estimado, indicando o peso da
desigualdade particularmente em educação na reprodução do gap racial.
Entretanto, os coeficientes de anos de trabalho e anos no trabalho atual,
somados, atingem 6,3% de incremento esperado de renda por ano, o que representa
um patamar relativamente próximo do índice de 7,68% de educação (ver
coeficientes do Modelo 3 no Anexo_Estatístico; o Modelo 6, com mais controles,
revela um padrão similar). Dados da PNAD de 1996, analisados por Valle Silva,
revelam que as pessoas brancas obtêm maiores ganhos por experiência (anos de
trabalho) que as pessoas não-brancas, durante toda as suas vidas produtivas
(Valle Silva, 2000:23). A distribuição desequilibrada dos anos de trabalho e da
capacidade de "retenção" dos empregos pode ser interpretada como mais
uma faceta da divisão racial em termos de desvantagens de oportunidades de
emprego para os não-brancos.
O Modelo 4 explora o papel da distribuição geográfica dos grupos raciais, com
importantes implicações na renda, no contexto brasileiro, assim como o papel da
residência urbana/rural e o status de migração. Estes fatores diminuem, para o
seu ponto mais baixo, a variança não explicada do gap racial. A variável região
geográfica sozinha responde por quase toda essa expressiva redução, pois
diminui o gap racial para 12,30%, como constata uma outra regressão (não
mostrada aqui) sem os dois outros controles. A concentração, particularmente,
dos pardos nos estados menos desenvolvidos e nas regiões rurais deprime a renda
média geral dos não-brancos, de modo que uma parte do gap existe devido a essa
distribuição geográfica desequilibrada. No que toca ao fator regional, pode-se
observar nos Modelos 4, 5 e 6 que todas as regiões suplantam expressivamente o
Nordeste em matéria de renda, sendo que esta região apresenta elevada
concentração de pardos.
O Modelo 5 mostra que, após controlar por região, ambas as divisões setoriais
não contribuem para um decréscimo adicional do gap racial geral. Contudo, este
modelo assume o pressuposto simplificador de que o gap racial seria o mesmo
entre os setores e que as diferenças setoriais de renda são iguais para brancos
e não-brancos. Essa equivalência de efeitos representa uma função da
especificação do modelo (Hardy, 1993:25-26). O caso da divisão público/privado
merece atenção especial. O setor público representa apenas 12,2% do conjunto
das posições de classe, porém a sua renda média ultrapassa em 16,18% a do setor
privado (0,15 em logs), conforme atesta o coeficiente de "público" no
Modelo 6, mostrado no Anexo_Estatístico. Esta diferença se deve, possivelmente,
ao peso no setor privado de categorias como conta própria precários, empregados
domésticos e conta própria agrícolas, com renda média bem mais baixa em relação
às demais categorias. Além disso, no setor público existe um gap racial menor,
como será visto mais adiante.
O Modelo 6 mostra que os controles de gênero e condição na família aumentam o
gap racial. Uma análise de regressão em que foi estimado o controle de gênero
sem a condição na família mostrou que este fator, por si só, responde pela
maior parte do fenômeno, ainda que a variável condição de pessoa de referência
na família apresente, também, uma contribuição. A conjunção de dois fatores
parece explicar tal manifestação, pois o efeito de raça aumenta quando a
regressão controla essas dimensões. Os homens são maioria entre os detentores
de posições de classe, além de possuírem renda média maior, mas a desigualdade
racial é um tanto maior entre as mulheres. Regressões em separado com o
acréscimo do termo interativo entre raça e gênero mostraram que a desigualdade
racial de renda a favor dos brancos fica em 12,52% no universo masculino, porém
sobe para 13,31% no universo feminino. As mulheres ampliaram sua inserção no
mundo do trabalho nos últimos tempos, inclusive em posições privilegiadas, como
gerentes e especialistas, mas essa expansão beneficiou particularmente as
mulheres brancas. As posições de classe mais vantajosas, quando são ocupadas
por mulheres, são controladas em sua enorme maioria por mulheres brancas
(Figueiredo Santos, 2002:113-114). Os dados da PNAD de 2002 mostram que no
universo feminino existe um maior desequilíbrio na composição racial em quase
todas as categorias de classe mais privilegiadas ou de maior renda, em
comparação com o universo masculino6. Como será visto adiante, essas posições
privilegiadas revelam um maior gap racial.
O papel moderador da posição de classe na desigualdade racial de renda. Os
sucessivos modelos indicam que grande parte do gap bruto se mostra mediado pela
condição de classe, educação e região geográfica, mas que persiste uma
significativa desvantagem direta, não mediada por esses fatores. Estabelecida a
existência e o montante do gap racial não explicado, o foco da análise, a
partir daqui, passa a ser como o gap racial varia conforme as categorias de
classe, o que representa uma fonte interativa ou multiplicativa específica da
desigualdade racial.
As estimativas das variações do gap racial, conforme as categorias de classe,
distinguem os setores privado e público (Tabela_5). A escolha dessa forma de
apresentação dos dados visa destacar uma faceta pouco explorada na literatura
sobre o tema no Brasil, mas relevante para eventuais intervenções em termos de
políticas públicas. O gap racial varia conforme a classe, pois está aí o foco
principal da investigação, assim como varia segundo o setor, mas não de acordo
com a complexa interação raça/classe/setor, pois não foi feita essa estimativa,
que está além do escopo da presente investigação. Nesse sentido, as diferenças
no gap racial registradas para as categorias que se distribuem entre os setores
privado e público refletem uma diferença média7.
Os coeficientes do gap racial foram estimados, como explicado na parte
metodológica, por meio da estratégia de "recodificação das variáveis
binárias", o que implica gerar uma regressão para cada estimativa,
obtendo-se desse modo todas as estatísticas relevantes. O Modelo 7 representa a
base dessas estimativas e as demais regressões são dele derivadas, com os
coeficientes de interesse obtidos mediante a recodificação das categorias de
referência das variáveis binárias pertinentes (classe e setor). Quando são
especificados termos interativos em uma equação de regressão, "os
coeficientes para o conjunto original de variáveis [...] referem-se a
comparações envolvendo as categorias de referência" (Hardy, 1993:36). Na
situação mostrada no Modelo 7 (ver Anexo_Estatístico), o coeficiente de branco,
devido à introdução dos termos interativos entre classe/raça e setor/raça,
corresponde à vantagem de renda do branco trabalhador elementar (categoria de
referência de classe) no setor privado (categoria de referência de setor),
sobre o trabalhador elementar não-branco. O coeficiente do gap racial médio
geral (privado/público) para os empregados que se distribuem entre os dois
setores foi estimado sem a introdução do termo interativo entre setor e raça,
mas com o controle de setor. No caso das categorias de classe que existem
apenas no setor privado, o coeficiente desse setor obviamente representa a sua
média geral.
A situação encontrada entre os capitalistas revelou-se o principal desafio
colocado pela análise de regressão, com as interações entre classe e raça, ao
revelar um gap racial estatisticamente não significativo entre capitalistas
brancos e não-brancos8. Essa situação registrada pela regressão, com a
transformação logarítmica da variável dependente, ainda que um tanto
desconcertante, aparentaria ser uma conseqüência lógica das menores diferenças
de renda média encontradas nessa categoria entre os grupos raciais, conforme
constatado na Tabela_1. Essa diferença desaparece principalmente devido ao
controle por região geográfica, onde os não-brancos sofrem prejuízos, visto que
estão mais concentrados nas regiões menos desenvolvidas e de menores rendas
médias. Sem o controle por região geográfica verifica-se um gap racial de 24% a
favor dos capitalistas brancos estatisticamente significativo ao nível de 1%,
conforme demonstra o resultado de uma regressão similar ao Modelo 7, porém sem
o controle de região.
Os não-brancos representam apenas 11,6% da categoria dos capitalistas, embora
conformem 44,6% do conjunto das posições constituídas. Isso mostra que são
muitas as barreiras que dificultam o acesso dos não-brancos a essa condição de
classe. Entretanto, na medida em que isso ocorre, a condição de classe parece
anular o efeito da desigualdade racial. O processo de determinação de renda em
uma empresa capitalista, com onze empregados ou mais, de acordo com a solução
operacional permitida pela base de dados, talvez seja mais
"despersonalizado", e dependa, fundamentalmente, do montante de
capital e das circunstâncias do mercado, de modo que a raça do seu dono não
afeta a capacidade de geração de lucros da empresa. Além disso, o maior
montante de capital, que se corporifica em uma empresa de maior porte, pode
tornar o componente racial menos "visível" ou, quem sabe, afetar a
maneira de julgar a "cor" do seu dono.
A comparação dos capitalistas com os detentores de ativos de capital em menor
escala revela-se elucidativa. As diferenças raciais situam-se acima de 21%
entre os pequenos empregadores e os conta própria não agrícolas. O menor
montante de capital e a maior dependência do engajamento direto do
proprietário, com as suas implicações em termos de menor
"despersonalização" da atividade e maior visibilidade do titular do
negócio, faz com que o gap racial apareça em um patamar elevado. Já o gap
racial entre os conta própria agrícolas, que detêm ativos de terra, mantém-se
igualmente em uma faixa próxima a 24%, sendo que estes possuem uma das rendas
médias mais baixas entre todas as registradas, o que representa uma forma de
dissociação entre o gap racial e a renda média.
A diferença racial entre os auto-empregados especialistas, que combinam ativos
de capital e perícia, revela-se maior que aquela verificada entre os demais
auto-empregados, mas fica abaixo da diferença entre os empregados especialistas
no setor privado. Trata-se de um contraste relevante, que demonstraria que a
desigualdade racial age com mais força no contexto da relação de emprego e no
local de trabalho, em vez de no mercado e nas relações com a clientela, que
marcam as atividades dos especialistas autônomos.
Os empregos assalariados de classe média revelam as maiores discrepâncias de
renda entre os grupos raciais. Apenas em torno de um quarto desses empregos são
ocupados por não-brancos, mas em um contexto de maior desvantagem relativa. O
gap de renda a favor dos brancos entre os empregados especialistas revela-se
bastante grande apesar do controle estatístico da educação dos indivíduos. Os
especialistas possuem um maior privilégio de classe, em relação aos gerentes,
mas os gerentes brancos, por sua vez, obtêm uma maior vantagem racial sobre os
não-brancos, o que reflete as relações mais exacerbadas entre raça e autoridade
no local de trabalho. O destaque que o gap racial assume entre os gerentes
chama a atenção para as fortes "afinidades" entre autoridade e raça
(branca) e o papel de classe "crítico" das hierarquias gerenciais na
garantia da extração do esforço de trabalho. Pode-se levantar como hipótese
explicativa da "lógica" desse elevado gap racial entre os gerentes,
no contexto das interações entre classe e raça, a idéia de que os não-brancos,
em uma espécie de mistura de ideologia racial e cálculo econômico, seriam
considerados menos "adequados" para executar a função
"vital" de dominação sobre ativos humanos, de modo que o seu acesso a
tais funções implicaria um "abatimento" salarial efetuado pelos
empregadores.
Esses resultados, entretanto, seriam vulneráveis ao problema da heterogeneidade
de localização para os estratos médios, conforme alerta Erik Olin Wright (1997:
527). Este é notoriamente o caso dos "gerentes" como categoria ampla.
Um gerente de uma empresa familiar média e um gerente de um grupo econômico
seriam ambos "gerentes". O forte gap racial constatado entre os
gerentes, pondera Wright, poderia ser o resultado não de algo especial acerca
do modo como o mecanismo de renda do gerente opera, mas simplesmente que a
categoria seria bastante heterogênea com respeito ao mecanismo em questão.
Nesta hipótese, o resultado decorreria mais de diferenças de alocação dos
grupos raciais entre gerências de médias e grandes empresas ou entre distintos
níveis de gerência, em vez de diferenças de recompensas dentro de segmentos
específicos da categoria ampla de gerentes. O resultado obtido suscita um
problema de pesquisa para investigação adicional. Em certa medida, este seria
um problema perene desse tipo de exercício, vinculado à heterogeneidade do
sistema de classificação com respeito aos mecanismos de interesse (Wright,
2004). A desagregação da categoria ampla de gerentes em alta e média gerência
permite responder em parte a esse problema. Os gerentes não-brancos estão
distribuídos em uma proporção semelhante entre a alta gerência e a gerência
intermediária, o que excluiria um efeito de composição racial da categoria
nesse nível de desagregação9. Além disso, as estimativas específicas de gap
racial para essas subcategorias mostram uma vantagem racial de renda do grupo
branco em relação ao não-branco, da ordem de 57,62%, para a alta gerência como
um todo, e de 69,34%, para aqueles inseridos apenas no setor privado. A média
gerência, por sua vez, revela um gap racial geral de 35,53% e um gap racial de
37,71% para aqueles do setor privado, ou seja, mostra valores bem próximos aos
registrados para a categoria ampla de gerentes, conforme mostra a Tabela_5. Os
dados adicionais não contradizem o resultado anterior, ao contrário, mostram,
fundamentalmente, que quanto mais complexa e elevada a posição na hierarquia
gerencial, com mais força apresenta-se o gap racial.
As diferenças apresentam-se em um patamar próximo a 20% entre os empregados
qualificados e os supervisores, que comporiam uma classe trabalhadora ampliada.
Os componentes de qualificação e autoridade, incorporados nas estruturas do
trabalho, ainda que em níveis menores de poder social, acentuam claramente o
efeito da assimetria racial.
No grande contingente dos trabalhadores a discrepância racial geral perfaz
10,41%, não muito distante do nível encontrado no setor privado (11,85%),
apesar de o gap racial praticamente desaparecer no interior do setor público
para essa categoria, pois a ínfima porcentagem de 2,02 mostra-se
estatisticamente não significativa. Essa categoria possui um perfil racial
bastante próximo da distribuição geral dos grupos raciais no conjunto da
população com uma posição de classe assinalada, pois os brancos somam 57,7% e
os não-brancos 42,3% (ver Tabela_3).
Entre as categorias de trabalhadores assalariados mais destituídos o gap racial
ocorre em um patamar entre 5% e 8%, sendo um pouco maior entre os empregados
domésticos e menor entres os trabalhadores elementares, mesmo quando são
considerados apenas aqueles no setor privado. O setor público joga um papel
coadjuvante interessante na situação dessa categoria, ajudando a formar o único
contexto em que os brancos estão em desvantagem, devido ao fato de o gap racial
para essa categoria de classe ser menor que a vantagem setorial relativa do
não-branco no setor público. Os efeitos somados de classe e setor mudam o
sentido do gap racial, ainda que no restrito universo do emprego dos
trabalhadores elementares do setor público. Neste caso, como pode ser observado
no Modelo 7 (ver Anexo_Estatístico), a vantagem do trabalhador elementar branco
no setor privado, de 5,02% (0,049 em log), expressa no coeficiente de branco,
será transformada em uma desvantagem de -4,21% (-0,043 em log) no setor
público, devido justamente ao coeficiente negativo de branco público (-,092 em
log). O setor público tem um papel coadjuvante, pois as variações mais
significativas entre as categorias devem-se ao fator classe, como fica claro no
contraste entre gerentes e trabalhadores elementares.
Os conta própria precários mostram um gap salarial similar aos outros
trabalhadores destituídos. O auto-emprego, nessas circunstâncias, não parece
favorecer nem a vantagem de classe nem o gap racial.
Em relação ao papel geral da divisão privado/público, a Tabela_5 mostra que o
setor público gera um efeito moderador coadjuvante, ao reduzir o gap racial
para as categorias nele inseridas. O Modelo 7 revela que a vantagem de estar no
setor público, em relação ao privado, é maior para os não-brancos (23%), como
registra o coeficiente para setor público, do que para os brancos (12,19%),
como indica a soma dos coeficientes setor público e branco público (expressão
percentual dos coeficientes já convertidos). Entretanto, os não-brancos possuem
uma representação de 41,1% no setor público, que é inferior ao seu peso no
conjunto da população com posição de classe definida (44,6%), o que perfaz um
Índice de Representação de 0,92. Já o confronto vis-à-vis dos dois grupos
raciais, realizado através do cálculo do Índice de Vantagem Relativa, mostra
que os não-brancos, em comparação aos brancos, têm um déficit de representação
no setor público (índice de 0,87) e uma distribuição comparativa próxima da
paridade no setor privado (índice de 1,02)10. Constata-se, então, a existência
de uma desigualdade racial de acesso ao setor público.
CONCLUSÃO
Algumas observações de sentido mais geral concluem esta análise das interações
entre classe e raça. Os gerentes e os empregados especialistas registram os
gaps raciais mais pronunciados entre todas as categorias que existem no setor
privado. Esses empregos seriam ocupados e remunerados, supostamente, de acordo
com os critérios de racionalidade e eficiência que orientariam a operação da
empresa capitalista. O resultado encontrado, no entanto, mostra que a interação
entre classe e raça produz um quadro diferente: a ampliação do valor
quantitativo relativo das diferenças "qualitativas" de raça entre os
empregados. As localizações privilegiadas de apropriação aparecem, igualmente,
como os sítios privilegiados da desigualdade racial. Em um circuito de auto-
reforço, essa vantagem racial diferenciada por classe contribui para a
manutenção das distâncias de renda entre as categorias de classe e reforça a
reprodução da desigualdade racial. Em outras palavras, entre esses assalariados
de classe média maior vantagem de classe significa maior vantagem racial e
vice-versa, o que reforça o privilégio de conjunto dessas posições.
Os dados apresentados fornecem certas indicações sobre a situação de classe dos
supervisores e empregados qualificados. A julgar pelas diferenças comparativas
de renda, conforme mostradas na Tabela_3, os empregados qualificados e
supervisores estão mais próximos dos trabalhadores do que dos empregados
especialistas e gerentes, o que reforça a idéia da sua inclusão em uma noção de
classe trabalhadora ampliada. Uma certa ambigüidade da sua condição, no
entanto, manifesta-se igualmente nas interações entre classe e raça, pois os
assalariados brancos nessa condição se beneficiam mais da divisão racial.
A existência de um menor gap racial entre as categorias de trabalhadores
proletarizados corresponde à expectativa da teoria marxista de que a condição
de exploração de classe comum restringe, em certa medida, o impacto das
divisões raciais no interior da classe trabalhadora restrita. A categoria de
trabalhador elementar mostra que quanto maior a destituição no interior do
trabalho assalariado mais homogêneo torna-se o grupo em termos das
conseqüências das divisões raciais sobre a renda. No pólo oposto da classe
capitalista, a condição de classe produz uma conseqüência ainda mais
niveladora, ao tornar não significativo o gap racial, ainda que por outras
razões. A supressão do gap racial deve-se, nessa situação, ao controle de
ativos relevantes de capital e aos mecanismos geradores de renda
característicos da classe capitalista, que parecem tornar ineficazes os
"procedimentos" da discriminação racial, ainda que se mantenham vivas
as motivações raciais dos atores. Uma indicação adicional disso pode ser
inferida do fato de o gap racial aparecer, com uma certa força, entre os
pequenos empregadores, ao ocorrer justamente uma redução no montante do capital
controlado.
Uma visão de conjunto dos resultados obtidos mostra que no Brasil o gap racial
a favor dos brancos está presente em quase todas as categorias de classe, porém
o seu efeito é significativamente moderado pela condição de classe. O trabalho
trata a combinação entre indivíduos e posições de classe como o resultado do
processo de alocação de classe, ainda que não modele diretamente o próprio
processo. As variações do gap racial de acordo com as categorias de classe
ocorrem mesmo após o controle dos vários mecanismos de alocação que podem
explicar a distribuição dos grupos raciais entre as posições de classe. Os
resultados mostram, igualmente, que as diferenças raciais de renda, ao serem
moderadas pelo pertencimento de classe, não dependem apenas dos níveis de renda
média, pois podem ser elevadas ou baixas com níveis altos ou baixos de renda
média. A investigação empreendida demonstrou, com êxito, relevância dessa
classificação socioeconômica, baseada no conceito de classe social, para o
estudo das divisões estruturais da sociedade brasileira e suas conseqüências
para a renda das pessoas. De modo particular, o estudo mostrou a importância de
introduzir o "critério de classe", por via dessa classificação, na
análise da desigualdade racial no Brasil.
NOTAS
1. Nesta análise, com todos os controles, apenas o coeficiente para os auto-
empregados especialistas pretos foi estatisticamente significativo ao nível de
5%, e mostra uma menor vantagem de renda do auto-especialista preto na
comparação com o pardo.
2. O pressuposto de normalidade pode ser checado examinando-se a distribuição
dos resíduos calculados pela equação de regressão. O gráfico de probabilidade
normal dos "studentized residuals"permite testar visualmente o ajuste
dos dados à distribuição normal. Esses resíduos são calculados dividindo-se
cada resíduo comum por uma estimativa do seu desvio-padrão que varia ponto a
ponto (Noruis, 2003:229-230 e 262-266).
3. A correlação intraclasse mede o grau de agrupamento dos dados, ou seja, o
grau de correlação ou não independência entre um conjunto de observações, ao
aferir "a proporção da variância total da variável que é explicada pelo
agrupamento (pertencimento de grupo) dos casos" (Cohen et alii, 2003:537).
4. A exclusão dos casos com renda zero subestima a participação dos não-
brancos, particularmente entre os conta própria agrícolas, devido ao peso dos
trabalhadores não remunerados e dos trabalhadores de autoconsumo na
agricultura, caso se opte por dar a estes últimos esta classificação. Essa
subestimação, por outro lado, equivale a uma superestimação da sua distribuição
entre as outras categorias. Uma distribuição mais acurada, que exige uma
reclassificação dos casos de trabalhadores não remunerados e a inclusão dos
trabalhadores de autoconsumo, pode ser encontrada em Figueiredo Santos (2004).
Vale ponderar, no entanto, que a distribuição dos dois grupos raciais entre
aqueles com posições de classe assinaladas se apresenta em uma proporção
próxima àquela encontrada no conjunto da população. Excluindo a ínfima parcela
de amarelos e indígenas, o Censo de 2000 mostra, em dados arredondados, que os
brancos são 54% da população e os não-brancos 46% (Telles, 2003:47). Já a
última linha da Tabela_2 registra que os brancos representam 55,4% das posições
de classe constituídas, contra 44,6% dos não-brancos.
5. Estimativa do Modelo 1, usando o logaritmo natural das horas trabalhadas,
produziu resultado similar (75,1%).
6. No universo feminino, as mulheres brancas são 92% das auto-empregadas
especialistas, 88,8% das capitalistas, 79,1% das empregadas especialistas,
76,9% das gerentes, 75,7% das pequenas empregadoras, 71,4% das supervisoras e
65% das conta própria não agrícolas. A única exceção fica por conta dos
empregados qualificados, que abarcam técnicos de nível médio e professores,
pois as mulheres brancas são 66,3%, enquanto os homens brancos são 66,6%. As
mulheres brancas representam 57,7% do conjunto das posições assinaladas e os
homens brancos 54%, nos seus respectivos universos.
7. Esta diferença média decorre do fato de que foram estimados dois termos
interativos separados e não um termo interativo de três níveis entre classe,
raça e setor. Ocorre uma variação entre as categorias de classe por setor ao
ser feita a aplicação do antilog para aferir o impacto percentual, pois o
efeito dessa transposição varia conforme a magnitude do coeficiente em unidades
log.
8. O resultado não é estatisticamente significativo nem mesmo ao nível de 10%,
ou seja, quando existe mais de 10% de chance de ele ter sido produzido por erro
amostral. Sabe-se que em amostras grandes como a PNAD mesmo os resultados mais
triviais podem ser estatisticamente significativos, o que recomendaria o uso de
um nível de significância ainda menor que o padrão de 5%. O problema não
decorreria do insuficiente número de casos no cruzamento de classe e raça para
a categoria de capitalistas, que poderia afetar o erro padrão da estimativa,
pois existem na amostra 102 casos de capitalistas não-brancos e 780 casos de
capitalistas brancos. A forma funcional de renda em log foi utilizada para
corrigir a forte assimetria positiva da distribuição de renda. Entretanto,
sabe-se que o uso da forma logarítmica pode gerar certas distorções na
interpretação das diferenças entre grupos. Hodson alerta que o embaralhamento
entre os retornos de rendimentos e os níveis médios de rendimentos, associado
ao emprego da forma logarítmica, pode ser muito difícil de separar e, nesse
sentido, gerar interpretações artificiais de diferenças entre grupos (Hodson,
1985). Este alerta talvez não seja pertinente para a presente situação, já que
as diferenças entre grupos, consideradas aqui, dizem respeito às diferenças
entre grupos raciais no interior da categoria de classe capitalista, cuja
assimetria interna se reduz fortemente com o uso do rendimento em log.
9. A alta gerência compõe-se, fundamentalmente, de diretores (códigos
ocupacionais de 1210 a 1230) em empresas com onze empregados ou mais e de
dirigentes da administração pública; já a média gerência compõe-se de diretores
em empresas com menos de onze empregados, administradores em organizações de
interesse público (sem fins lucrativos etc.) e gerentes de produção, operações
e de áreas de apoio do setor privado. Os não-brancos representam 25,9% dos
gerentes; entre os gerentes, por sua vez, formam 26,3% da alta gerência e 25,8%
da média gerência. A regressão controla o efeito de composição setorial
privado/público, mas a título de registro observa-se que 69,5% dos gerentes
não-brancos estão no setor privado, mas os gerentes brancos estão ainda mais
concentrados no setor privado (74,8%), que é mais favorável ao seu grupo
racial.
10. O Índice de Representação mostra o quanto um grupo está representado em um
setor em comparação à sua representação global na população ocupada. Já o
Índice de Vantagem Relativa mede o grau de representação de um grupo racial
vis-à-vis outro grupo, controlando previamente a distribuição diferenciada de
cada grupo tanto no setor quanto no conjunto da população ocupada. A paridade
perfeita de representação equivale a 1 e os índices variam para menos ou para
mais conforme o sentido da desproporção (ver Sokoloff, 1992:30 e 69).