Agricultores, trabalhadores: os trinta anos do novo sindicalismo rural no
Brasil
Introdução
Dados da Pesquisa Sindical do IBGE (2001) indicavam que, na virada do século,
dos 10.286 sindicatos de trabalhadores existentes no Brasil, 3.911 eram rurais,
algo em torno de 38% do total. Estavam nesses sindicatos 9,1 milhão de
associados, o que corresponde a 47% do total de trabalhadores associados no
país à época, perfazendo uma média de 2.336 trabalhadores por sindicato. Dessas
3.911 organizações, 37% estavam filiadas a uma central sindical, com 33%
reunidos na Central Única dos Trabalhadores (CUT), e os 4% restantes nas
demais. São dados, enfim, que dão uma mostra tanto do enorme peso da vertente
rural do sindicalismo brasileiro como, particularmente, da importância do
chamado novo sindicalismo nesse universo.
Sob o ângulo teórico, a importância do novo sindicalismo rural não é menor.
Como se verá ao longo deste artigo, a principal base social e os principais
quadros dirigentes que se firmaram ao longo dos trinta anos de trajetória desse
movimento foram os produtores familiares de diferentes origens, e não os
assalariados rurais. Ao contrário da experiência da maioria dos países
desenvolvidos e dos países da periferia, no Brasil essa representação se deu de
uma maneira muito particular. Enquanto os europeus se reuniram em cooperativas
ou organizações profissionais, e enquanto em boa parte da América Latina essa
associação se deu mediante os movimentos camponeses ou frentes agrárias, no
Brasil tais grupos sociais aglutinaram-se em torno dos sindicatos. Essa
particularidade, por si só suficiente para permitir uma série de interrogações
sociológicas, tem o seu interesse ampliado quando se observa que a CUT se
constituiu, em seu nascedouro, como herdeira da tradição dos movimentos sociais
de esquerda, inspirada no ideário socialista; um alinhamento ideológico que,
portanto, não é uma característica obrigatória.
Este artigo reúne informações e análises resultantes de uma ampla pesquisa que
cobre desde a gênese do novo sindicalismo rural, na metade dos anos de 1970,
passando pela constituição da CUT, o momento da crise nos fins dos anos de
1980, a junção com a Contag, até o início da presente década, com destaque para
a crescente disseminação de organizações específicas de representação de
agricultores familiares, completando assim os trinta anos de trajetória deste
movimento social. Analisa-se a teia de dependências e condicionantes que
sustentam a origem, a evolução e a configuração atual do novo sindicalismo
rural brasileiro, reconstituindo as características da base social desse
movimento, o perfil dos dirigentes, os temas e as formas de ação privilegiadas
em cada um dos três momentos em que é estruturada a periodização adotada. Saber
por quais razões se constituiu no Brasil uma experiência tão singular de
organização de produtores rurais autônomos no interior de uma central sindical
herdeira da tradição socialista é a pergunta que subjaz neste texto. Através
dela pretende-se evidenciar as fraturas e as articulações ocorridas no decorrer
dessa trajetória e interrogar os significados desse percurso para se pensar a
configuração dos movimentos sociais rurais no Brasil.
A hipótese que guia e sustenta esta exposição rejeita duas idéias extremas
presentes na literatura sobre movimentos sociais. Eles não podem ser
devidamente interpretados como mero desdobramento da condição social de seus
protagonistas, dada por sua posição na estrutura de classes numa espécie de
automatismo político e ideológico; nem tampouco podem ser concebidos de maneira
abstrata, como resultado somente de interações construídas racionalmente por
seus membros em função dos interesses envolvidos.1 Como lembra Charles Tilly
(1988), o balanço da literatura sugere que, apesar das diferentes vertentes e
ênfases existentes, há uma convergência crescente nos estudos sobre o tema de
que uma apreensão a contento da estrutura e da dinâmica dos movimentos sociais
precisaria levar em conta a maneira como se compõem quatro instâncias
fundamentais: as redes sociais que envolvem seus participantes; as identidades
desdobradas em conflitos coletivos; as estruturas dadas pela acumulação de
compreensões partilhadas; e, finalmente, as estruturas de oportunidades
políticas, significativas para a história dos movimentos sociais e, a um só
tempo, transformadas pela atuação desses mesmos movimentos.
No caso específico do novo sindicalismo rural, isso equivale a dizer que: i)
uma conjunção de fatores, que envolveu as características mais marcantes do
conflito agrário brasileiro, a composição dos mediadores e o sistema de
identidades e oposições forjado entre esses agricultores, levou a que, em
meados dos anos de 1970, se constituísse uma experiência organizativa dos
produtores familiares do espaço rural brasileiro em diálogo com outros
segmentos de trabalhadores urbanos, e fortemente influenciada por correntes de
inspiração socialista; ii) a evolução dessa experiência particular pouco a
pouco gerou certas tensões originárias justamente dessa(s) determinada(s)
tradição(ções) política(s) e intelectual(is), sobretudo aquelas relacionadas ao
lugar destinado a essas formas não-assalariadas de trabalho num projeto
político de contestação ao desenvolvimento capitalista; iii) algumas
características da crise que se abateu sobre o mundo do trabalho na virada para
os anos de 1990 abrandou parte dessas tensões, como a impossibilidade ou a
dificuldade em combinar a representação dos segmentos assalariados com a
representação das formas não-assalariadas de trabalho; iv) por outro lado,
outras tensões formaram-se neste novo quadro, principalmente aquelas
relacionadas ao caráter da ação dos agentes do movimento sindical; mais
precisamente, muitos conflitos surgiram a partir das tentativas,
características desse novo período, de equacionar crítica social e proposição,
mobilização e participação institucional. Nesse novo contexto, os agentes do
meio sindical brasileiro foram progressivamente confrontados com a necessidade
de formular não apenas a crítica e a reivindicação, mas também de colaborar
mais ativamente na elaboração de políticas, de ocupar postos em instâncias do
Estado, de mediar reivindicações clássicas e a geração de alternativas
inovadoras de desenvolvimento para o espaço rural brasileiro. Pressionados, de
um lado, pelas demandas sociais e, de outro, pelo Estado, esses agentes se
depararam tanto com a necessidade de procurar estabelecer rupturas estruturais,
papel tradicionalmente esperado desses sujeitos, como de fazer proposições
tecnicamente competentes, realistas e plausíveis no horizonte de tempo
imediato. Essa nova configuração de constrangimentos influenciou os debates no
meio sindical e as práticas de seus agentes, entre elas a composição da
"agenda", a definição das bandeiras de luta e a escolha de segmentos sociais a
serem privilegiados, impondo uma verdadeira redefinição no conteúdo do seu
projeto político e, conseqüentemente, inaugurando uma nova etapa na história
dos movimentos sociais rurais no Brasil.
Para desenvolver este argumento, o artigo é dividido em três partes, além desta
introdução. A primeira reconstitui a gênese do novo sindicalismo rural por meio
da recomposição da teia de relações sociais que envolveu a modernização
agrícola brasileira pós-golpe, a constituição da Contag e, anos mais tarde, o
surgimento das oposições sindicais. A segunda refere-se ao momento de
consolidação do novo sindicalismo, com a criação da CUT e o desenrolar dos
debates sobre o lugar dos trabalhadores rurais nessa estrutura. A terceira é
dedicada à análise das tentativas de superação da crise do sindicalismo rural
nos meados da década de 1990, quando se explicitam o equacionamento de velhas
tensões e o surgimento de novas. Ao final, são retomadas as questões originais
e traçados alguns apontamentos levando em consideração aspectos determinantes
do cenário atual, em particular a perspectiva de reforma da legislação sindical
e o movimento em curso de criação de organizações específicas de representação
da agricultura familiar.
A gênese do novo sindicalismo rural
O termo novo sindicalismo foi inicialmente cunhado para designar a passagem do
tradicional sindicalismo de ofício para o industrial union, na Inglaterra dos
fins do século XIX. Hobsbawm assim o define:
Quando aplicado a seu período de origem, a década de 1880 e o início
da década de 1890, o termo novo sindicalismo pode sugerir três
idéias. [ ] um novo conjunto de estratégias políticas e formas de
organização para os sindicatos em oposição àquelas já existentes no
"antigo sindicalismo". Em segundo lugar, sugere um posicionamento
social e político mais radical por parte dos sindicatos dentro do
contexto do movimento operário socialista e, em terceiro, a criação
de novos sindicatos de trabalhadores até então não organizados ou não
organizáveis, bem como a transformação de velhos sindicatos segundo
as linhas seguidas pelos inovadores. Conseqüentemente, também sugere
um crescimento explosivo da organização sindical (1989: 221).
No caso brasileiro, a expressão "novo sindicalismo" também se aplica a
situações similares àquelas assinaladas por Hobsbawm. Ela serviu para nomear o
vigoroso movimento de retomada das lutas e da mobilização social em pleno
contexto de ditadura, a emergência de lideranças fortes e de experiências
inovadoras que questionaram a tradição sindical anterior e, ainda, a explosão
no número de trabalhadores filiados. As razões e as questões relacionadas a
essa emergência e consolidação foram objeto de importantes trabalhos. Para
Antunes (1995), o surgimento do novo sindicalismo pode ser explicado pela
constituição tardia de uma expropriação da mão-de-obra operária, cuja
manifestação mais eloqüente aconteceu na região do ABC paulista, dando origem
às greves ocorridas nos últimos anos da década de 1970, de onde seriam
projetadas lideranças que mais tarde estariam à frente da criação do Partido
dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Nessa
condição, o sindicalismo operário do ABC capitaneou outras correntes políticas
de contestação ao regime militar, dando contornos heterogêneos e multifacetados
a essa experiência que então se moldava. Num outro trabalho bastante conhecido,
Rodrigues (1997) reconstitui a trajetória da CUT para mostrar como o surgimento
e a expressividade alcançados por essa central devem-se à sua inserção em um
movimento mais amplo por cidadania no país. Aqui a ênfase não recai sobre as
condições inerentes ao processo de desenvolvimento capitalista no Brasil e suas
implicações para o trabalho e os trabalhadores, mas sim sobre ações sociais
relativas à luta por direitos. Numa linha diferente dos dois anteriores, Boito
(1991) destaca as características do antigo modelo que permanecem. Em sua
análise, a permanência da estrutura sindical corporativa e determinados traços
da ação sindical são indícios de que as velhas práticas e mecanismos de
controle dos sindicatos pelo Estado continuaram presentes. Em todas essas
análises a base empírica repousa predominantemente sobre o sindicalismo
operário ' a porção urbana da central sindical. Mas, não obstante essa
importância de fato devida, a força do viés operário do novo sindicalismo que
então se instituía acabou por obscurecer ' ao menos na literatura produzida
pelas ciências sociais ' a influência que a vertente rural dessa nova tradição
viria a desempenhar.
Os trabalhos de Medeiros (1988; 1997) e Novaes (1987; 1991) preenchem parte
importante dessa lacuna e tornaram-se uma referência obrigatória no estudo dos
movimentos sociais rurais.2 No primeiro caso, a autora analisa, em um dos
trabalhos, a história dos movimentos sociais do campo, destacando as várias
etapas do conflito social agrário no Brasil e suas correspondências com a
constituição de identidades específicas em articulação com a evolução das
formas de representação. A persistência do conflito agrário e suas diferentes
formas de manifestação ao longo do tempo são o pano de fundo para o
entendimento do sucessivo retorno de bandeiras de luta como a reforma agrária.
É nessa dialética que as organizações surgem e ressurgem, como expressões do
conflito e portadoras de promessas de sua superação. No segundo caso, a autora
enfatiza o peso da vertente rural do novo sindicalismo, com ênfase para suas
tensões em relação à estrutura sindical oficial capitaneada pela Contag, e,
ainda, chama a atenção para a peculiaridade das formas de trabalho existentes
nessa porção rural da CUT. Na pista aberta por esses trabalhos, a abordagem
aqui desenvolvida vê esta vertente do movimento sindical brasileiro como
situada entre constrangimentos derivados de duas ordens: a evolução na
qualidade do conflito social agrário, de um lado, e os arranjos e tensões
internos ao campo sindical, de outro.
A década de 1960 representou um ponto de virada na história da agricultura
brasileira no século XX e engendrou um quadro de referências inescapável para a
atuação dos movimentos sociais rurais, com a emergência da chamada modernização
conservadora e sua expressão regulativa, o padrão corporativista Como há uma
razoável bibliografia sobre o período e seus significados, importa aqui apenas
relembrar que tal padrão se apoiou numa tríade que envolveu: a mudança na base
técnica e produtiva da agricultura brasileira, com todo o processo de
tecnificação e de articulação dos complexos agroindustriais; a arquitetura das
classes sociais, com uma maior e intensa integração entre os capitais agrário,
industrial e financeiro; e uma mudança relativa ao papel do Estado e das
políticas públicas. Com essa tríade, que envolveu revolução verde/caificação/
corporativismo, deram-se os parâmetros para as novas formas de acumulação na
agricultura brasileira e para as novas formas de dominação sobre as populações
rurais, num padrão que viria a vigorar até meados da década de 1980 (Sorj,
1980; Mueller, 1986). O Estado tornava-se assim, a um só tempo, repressor dos
conflitos e indutor e regulador do processo de modernização.
Os anos que se seguiram ao golpe militar e nos quais se deu a estruturação da
Contag e da ampla rede de sindicatos que a compõem se deram dentro desses
marcos, amplamente desfavoráveis a uma ação sindical de contestação e crítica.
Como mostra Medeiros (1988), os conflitos continuavam a ocorrer; entretanto,
seu caráter marcadamente isolado não permitia fazer frente à dura repressão do
período. Diante desse quadro, a Contag procurou criar formas de conduzir essa
multiplicidade de conflitos. O projeto político-sindical que então se forjava
já trazia algumas heranças do período anterior. A mais importante foi a defesa
da reforma agrária como bandeira de luta unificadora das reivindicações do
conjunto de segmentos subordinados do meio rural. Isso foi particularmente
importante, pois permitiu também à Contag se firmar como porta-voz de uma
bandeira de forte significação para os setores progressistas da sociedade
brasileira. A reforma agrária e a defesa dos direitos trabalhistas passaram a
ser as principais bandeiras do sindicalismo rural. Essas duas bandeiras
traduziram a leitura que esse sindicalismo fazia do conflito agrário no período
e unificaram pelas duas décadas seguintes as reivindicações dos trabalhadores
rurais. Um segundo traço fundamental foi a constituição de um padrão de ação
sindical marcado por uma certa prudência e pelo respeito aos limites dados pela
lei. De um lado, a legislação, por meio do Estatuto do Trabalhador Rural,
reconhecia o conflito social agrário e determinava formas de encaminhamento
desses conflitos. De outro, essa mesma legislação instituía um limite bastante
rígido para a ação sindical no encaminhamento desses conflitos, cuja
transgressão ou questionamento resultava em dura repressão. Nesse momento
iniciou-se uma tradição de encaminhamento dos problemas por meio de denúncia e
de cobrança de providências para o cumprimento de direitos previstos em lei. A
prudência sindical e o legalismo foram duas faces desse padrão de ação
sindical, o que possibilitou à Contag dar visibilidade e tratamento
institucional aos conflitos e, principalmente, conseguir ampliar a malha
organizativa no campo brasileiro (Medeiros, 1988). Por sua vez, o terceiro e o
quarto traços fundamentais do sindicalismo pós-golpe ' o autonomismo que a
Contag passou a cultivar em relação a outras organizações e a ampla
capilaridade que ela conseguiu atingir ' deram-se de forma conjugada, e tiveram
como contrapartida a formatação de um modelo organizativo altamente
verticalizado e rígido (Novaes, 1991). O próprio aparato institucional de
regulação da representação sindical determinava as condições para este desenho
do projeto político-sindical da Contag e, por extensão, do sindicalismo rural
pós-golpe: a unicidade sindical e a instituição do imposto sindical compulsório
permitiram, a um só tempo, um impulso e uma limitação à constituição do
sindicalismo rural brasileiro do período. A unicidade sindical instituiu a
obrigatoriedade de representação do conjunto de segmentos do campo em um único
sindicato, de base municipal. Esse sindicato único é que viria a deter o
monopólio de representação dos agricultores e trabalhadores rurais. Além do
aspecto institucional, a concorrência com outras forças pela direção da
organização e das luta reforçava um discurso ainda mais corporativista, que
servia também de proteção à disputa e à preservação de um sistema de lealdade
inerente a regras internas de formação e reprodução de lideranças (Ricci,
1994). Já a cobrança do imposto sindical instituiu um mecanismo permanente de
sustentação, cujo caráter compulsório contribuiu decisivamente para uma certa
acomodação de boa parcela dos sindicatos que então se constituíam. O Funrural
completou aquela tríade institucional ao permitir que as entidades de
representação celebrassem convênios para a prestação de assistência médica e de
saúde, contribuindo fortemente para a ampliação do número de sindicatos e, mais
que isso, para moldar uma prática sindical que, em muitos casos, se resumia ao
assistencialismo. A luta por direitos e o que ela representou para tornar
públicos os conflitos agrários e para a continuidade das lutas no pós-golpe, a
visibilidade da luta pela reforma agrária e a capilaridade da estrutura
sindical de representação dos trabalhadores rurais brasileiros foram ganhos que
tiveram como contrapartida uma relativa domesticação da ação sindical e um
fechamento de sua organização em relação a outras forças, temas e problemas do
país naquele período.
O papel da igreja, particularmente da igreja católica, foi determinante para a
consolidação de uma crítica a essa tradição sindical que se formava no campo
brasileiro à época. Já nos anos de 1950, a presença do sindicalismo cristão
era, sem dúvida, significativa. Sob a influência das encíclicas sociais, a
igreja incentivou a corrida pelas cartas de reconhecimento dos sindicatos, a
ponto de ser a força mais influente em algumas regiões, como o Nordeste, à
época do golpe (Novaes, 1987). E mesmo no momento imediatamente posterior ao
golpe a presença da igreja persistiu, ainda que sob várias formas, dependendo
da região, o que acabou por contribuir para o estabelecimento de fios de
continuidade no sindicalismo dos períodos pré e pós-golpe, já que o manto
protetor da igreja fazia com que lideranças fossem poupadas e denúncias
adquirissem maior visibilidade (Novaes, 1991). Na virada dos anos de 1960 para
os anos de 1970, dá-se um novo sentido para a atuação da igreja junto ao
sindicalismo rural, com as resoluções do Concílio Vaticano II, realizado em
1965, em que a igreja assumiu uma posição de "opção pelos pobres"; e,
principalmente, as resoluções da Conferência Episcopal de Medellín, em 1968,
cujo intuito era adaptar para a América Latina as orientações do Vaticano. Foi
a partir dessas referências que a corrente posteriormente autodenominada
Teologia da Libertação se tornou responsável por uma politização e engajamento
dos agentes eclesiais, se propagando tanto no campo como nas cidades (Novaes,
1987; Iokoi, 1996).
A criação da Comissão Pastoral da Terra 'CPT, em 1975, a partir do Encontro
Pastoral das Igrejas da Amazônia Legal, deu um impulso determinante para a
ampliação desse tipo de ação da igreja no meio rural. Tendo por objetivo
"interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem-
terra e dos trabalhadores rurais", a CPT passou a se fazer presente nas áreas
de conflito, com os agentes pastorais tornando-se parte da própria comunidade.
Novaes (1987) destaca que, com esses agentes, a igreja fornecia uma linguagem
ao movimento, por intermédio de rituais (celebrações, vigílias, caminhadas) e
de práticas comunitárias (roçados, acampamentos etc.). Nessa linguagem, aqueles
elementos antes sublinhados ' participação, mobilização, consciência da
realidade social ' forjavam uma determinada identidade entre os membros da
comunidade. As inúmeras situações de conflito, que se multiplicavam com a mesma
velocidade que a intensificação do processo modernizante, tornaram-se locus
privilegiado de atuação das comunidades eclesiais de base. A CPT expandiu-se
rapidamente, convergindo com ações de outros agentes pastorais no restante do
país, e apenas quatro anos depois já existiam quinze regionais organizadas. Com
isso, a igreja oferecia uma alternativa organizativa aos pobres do campo; e com
suas metodologias de trabalho de organização de comunidades e, principalmente,
com a concepção de ação social nelas embutida, gestava-se também uma aguda
crítica a uma determinada forma de ação sindical que vinha se consolidando.
A análise dos documentos e dos discursos de agentes e organizações vinculadas a
esse trabalho da igreja na época em questão mostra a grande diferença entre os
elementos que compõem este discurso, que toma forma nas oposições sindicais, e
os elementos que conformaram o discurso e a prática do sindicalismo oficial.
Num exemplo significativo, Sader (1988) aponta as similaridades que a noção de
libertação, tal qual aparece nas falas pastorais, apresenta em relação à noção
de revolução, tal qual aparece nos discursos de inspiração socialista:
"referidas à realidade social, as duas noções ocupam o mesmo lugar nas
respectivas matrizes discursivas. Elas indicam um acontecimento totalizante que
subverte e refunda a vida social a partir dos ideais de justiça movidos pelo
povo em ação". Em primeiro lugar, aparece aqui a aposta na necessidade de
transformação social a partir da mobilização social guiada por ideais de maior
justiça e solidariedade. Em segundo lugar, nesse enfrentamento das
desigualdades e da opressão, que se faria necessariamente pela mobilização
social, o auto-reconhecimento e o conhecimento da realidade constituíam-se como
pontos de partida para afirmar a identidade do grupo social (pastoral, CEB,
sindicato) e, ao mesmo tempo, desvelar na realidade os mecanismos originários
da desigualdade e da opressão.
No que diz respeito à sua base social, o novo sindicalismo rural abrangia uma
diversidade de situações de trabalho no campo ' da agricultura de base familiar
com alguma inserção no mercado e nas políticas públicas a situações de
convivência direta com a violência física e a privação de bens e equipamentos
sociais dos mais básicos ' e um conjunto de situações que geograficamente
cobria boa parte do país, dando-lhe um porte nacional. Mas é preciso notar,
entretanto, que esse conjunto de regiões e de categorias acabou não tendo o
mesmo peso na formulação das linhas políticas desse novo sindicalismo e na
composição dos seus cargos de direção. Quando visto sob esse aspecto, pode-se
afirmar que o projeto político do sindicalismo rural da CUT teve por base
privilegiada os agricultores familiares do eixo noroeste riograndense/oeste
catarinense/sudoeste do Paraná, e os produtores de base familiar da Amazônia,
em particular do Pará, num primeiro momento aqueles próximos da Transamazônica.
Essas duas regiões viriam a ocupar os principais postos de direção até os anos
de 1990. Participaram ainda, em posição de destaque, porém secundariamente, os
agricultores do Nordeste; ali também os agricultores eram de base familiar e,
sobretudo, originários do sertão.Da mesma forma, os agricultores de São Paulo,
Centro-Oeste, e outros estados ou regiões, em sua maioria assalariados ou
posseiros, estiveram presentes, mas sua participação nunca se deu nas
proporções e com a influência dos grupos anteriores. Essa conformação da base
social determinou fortemente a constituição da agenda e das bandeiras de luta
no período.
Quanto ao projeto político, portanto, desde o início a diversidade de situações
encontradas na base social do novo sindicalismo no campo apontava para uma
potencial dispersão de temas e frentes de luta. Mas a conjuntura do período,
que trouxe em seu desenrolar um enfraquecimento progressivo da ditadura e uma
ascensão da crítica social e das forças dela portadoras, propiciou as condições
para que essa diversidade fosse amalgamada em uma agenda e em bandeiras de luta
unificadoras que, a um só tempo, faziam sentido para quem vivia e experimentava
os conflitos, e traduziam as reivindicações básicas daquele conjunto de
segmentos. O fim da ditadura impunha-se como uma bandeira fundamental e
unificadora. O Estado ditatorial era identificado como opressor e, ao mesmo
tempo, como indutor da modernização que causara a exclusão. Reforma agrária,
direitos trabalhistas e fim da violência no campo eram, assim, as
reivindicações básicas e traziam para o mesmo campo de oposições o latifúndio,
o patronato, e os agentes da violência, como as empresas colonizadoras. Por
fim, a crítica à estrutura sindical oficial, vista como instrumento de
restrição e manipulação dos trabalhadores, completava o conjunto de temas
fundamentais e bandeiras que guiaram a constituição e a consolidação do novo
sindicalismo rural. Essas bandeiras e esse campo de oposições deram também a
substância para a junção dessa porção rural do novo sindicalismo às demais
correntes que viriam a compor e criar a CUT. Oposição ao Estado e ao patronato,
crítica à estrutura sindical e a perspectiva de uma sociedade de inspiração
socialista, eram elementos comuns às demais correntes então presentes no
sindicalismo urbano. Some-se a esses elementos a perspectiva de forte crítica
social e de privilégio da mobilização como forma de encaminhamento dos
conflitos, e têm-se aí os principais referenciais do projeto político do novo
sindicalismo.
Em relação ao modelo organizativo, desde seu início essa vertente sindical teve
que operar com uma contradição fundamental: constituir-se em oposição e crítica
a uma tradição e a um modelo organizativo rígido e restritivo, mas
reconhecendo-o como legítimo e importante e assumindo-o como instrumento
privilegiado. Mas há ainda uma segunda contradição marcante no modelo
organizativo que então se constituía: a presença majoritária de agricultores
autônomos, de base familiar, nas ações e na direção do novo sindicalismo. A
contradição não está na presença, em si, desse tipo de trabalho no interior da
central sindical, como tanto se discutiu nos anos de 1980, mas na presença
dessa forma social de trabalho em uma estrutura de representação absolutamente
rígida e com pretensão a representar um conjunto de categorias em crescente
especialização.
Quando essas características se somam à análise das trajetórias de vida das
principais lideranças sindicais do período (Favareto, 2001), algo que não pode
se reproduzido nos limites deste artigo, fica claro que essa vertente sindical
se constituiu como resultado de um conjunto de práticas sociais estabelecidas
desde a primeira metade da década de 1970, desencadeadas por um bloqueio às
possibilidades de reprodução dos produtores familiares, e que se desdobraram em
um projeto político-sindical partilhado por um movimento mais amplo que
culminaria na criação da central em 1983.
Da constituição da CUT à crise do novo sindicalismo
Os anos de 1980 ficaram conhecidos como a "década perdida", numa referência
direta à baixa dinâmica da economia brasileira no período, ao que muitos
adicionam o desperdício de oportunidades para promover rupturas com alguns dos
dilemas históricos do país ' entre eles a questão agrária. Mas foi também nesse
período que se consolidou uma institucionalidade democrática, depois de duas
décadas de ditadura. Esse período foi palco de um expressivo crescimento da
organização sindical e de um aumento no poder de influência dos trabalhadores:
a criação das centrais sindicais e a explosão no número de greves são
indicadores disso (Pochmann et al., 1998).
Em 1983, no congresso realizado em São Bernardo do Campo, foi fundada a Central
Única dos Trabalhadores ' CUT. Apesar de ter participado de todo o processo de
articulação, chegando inclusive a sediar várias das reuniões preparatórias, a
Contag optou por não referendar a criação da Central. O estopim para a cisão
entre esses grupos foi a resolução adotada pelo grupo organizador do congresso
que permitia a participação das oposições sindicais, o que a Contag entendia
como uma afronta ao princípio da unidade sindical. Ao longo dos anos seguintes,
a Contag optou por não se filiar a nenhuma central sindical, embora seu
presidente, José Francisco da Silva, tenha assumido a vice-presidência da CGT,
criada poucos anos depois. Isso provocou um acirramento da polarização entre a
CUT e a Contag. O I Congresso da CUT teve a participação expressiva de 5.222
delegados. O setor rural foi responsável pela maior representação setorial,
superando inclusive os trabalhadores na indústria. A direção nacional da
Central foi composta por 149 dirigentes, o que incluía o corpo responsável
pelas ações nacionais da central ' sua Executiva Nacional ' e os responsáveis
pela construção da Central nos estados. Desse grupo, aproximadamente um terço
eram trabalhadores rurais. Se excetuarmos os estados do Rio de Janeiro e de São
Paulo, que juntos tinham 36 dirigentes compondo a direção nacional (nenhum
rural), chega-se à conclusão de que, no restante do país, algo em torno de 40%
dos dirigentes responsáveis pela construção da CUT eram rurais. Para a
Executiva Nacional foram indicadas lideranças da Amazônia (Avelino Ganzer, STR
Santarém-PA) e do Nordeste (José Gomes Novaes, STR Choça-BA e Luis Silva, STR
São Sebastião do Umbuzeiro-PB). A participação do setor rural nos congressos e
sua presença nos cargos de direção mantiveram-se neste mesmo patamar ao longo
de todos os congressos realizados nesta década, indicando a importância desse
segmento para o conjunto da central sindical que então se organizava em bases
nacionais.
As bandeiras de luta adotadas nesse Congresso são uma amostra suficiente do
caráter eminentemente político do novo sindicalismo que então começava a se
consolidar: "rompimento com o Fundo Monetário Internacional, fim do arrocho
salarial; redução da jornada de trabalho sem redução de salários; liberdade e
autonomia sindical; atendimento das necessidades básicas da população; política
de habitação; revogação da Lei de Segurança Nacional; ampla e livre organização
política e partidária; contra a privatização; contra qualquer tipo de
discriminação; defesa das populações indígenas; pelo reconhecimento da CUT como
órgão máximo dos trabalhadores". Para além das resoluções adotadas, o conjunto
dos debates ali ocorridos denota um forte tom organizativo e um destaque para
temas de grande impacto na agenda política nacional: as resoluções afirmam "a
centralidade da reforma agrária, ampla, massiva e sob controle dos
trabalhadores, a luta pelas eleições diretas, e a defesa da liberdade e
autonomia sindical". Especificamente quanto à questão agrária, o Congresso
destacou a importância estratégica da reforma agrária, o que aparecia em várias
partes do texto aprovado. Quando se tratava de detalhar essas proposições, a
maioria dos itens relacionados dizia respeito a propostas destinadas a demandas
importantes de outros segmentos que compõem o meio rural, como: i) lutar por
reforma agrária e pelo atendimento das reivindicações imediatas dos camponeses,
tais como preço mínimo, armazenamento e distribuição, assistência técnica; ii)
direitos trabalhistas, previdenciários, salários; iii) vincular "Diretas já e
luta pela reforma agrária"; iv) incentivo às ocupações e à exploração coletiva
de terras; v) criação da Secretaria Rural para articular a diversidade das
lutas no campo; vi) questão indígena; vii) extrativismo sob controle dos
trabalhadores; viii) cumprimento do decreto que garante dois hectares de terras
para trabalhadores dos canaviais; ix) bóias-frias, organização nos locais de
moradia e integração na luta pela terra. O texto das resoluções trazia ainda
outros vinte itens abordando: uso de agrotóxicos, mulher, previdência, seguro
agrícola, limite à propriedade, desvios de verbas no Nordeste, infra-estrutura,
direção das lutas, comercialização e cooperativismo, assentamentos,
garimpeiros, mais espaço no congresso, comissões de educação nos sindicatos,
dívidas, financiamento, assentamentos. Como se pode observar, também aqui o
teor organizativo é bastante acentuado. Junto a isso, uma presença destacada de
temas de forte ideologização e o reconhecimento de situações de trabalho
bastante diversas (questão indígena, extrativismo, assalariamento, pequenos
agricultores), mas com uma ênfase nas políticas fundiárias.
O terceiro congresso, o último da década de 1980, reuniu 6.244 delegados, entre
os quais aproximadamente 32% eram trabalhadores rurais. Porém, a partir daí, a
participação desse segmento na direção nacional e também nos congressos e
encontros da Central passa a apresentar uma significativa queda. Dos 124
dirigentes eleitos, apenas 23 eram rurais. Para a Executiva Nacional foram
eleitos Avelino Ganzer (Santarém/PA) ' novamente na vice-presidência ' e Adelmo
Escher (Francisco Beltrão/PR), como suplente. O eixo das resoluções pela
primeira vez não considerava o socialismo a perspectiva principal.
Diversamente, no texto aprovado as análises eram tecidas em termos de
"desenvolvimento capitalista e luta de resistência". Isso se devia, de um lado,
aos impactos dos acontecimentos que começavam a percorrer o Leste europeu,
pondo fim a décadas de socialismo burocrático, de outro, a uma atenuação do
discurso motivada pela proximidade das primeiras eleições presidenciais após a
ditadura, em que a candidatura apoiada pelos sindicalistas nutria alguma
expectativa. Nesse mesmo congresso aparece também formulada, agora com mais
ênfase, a preocupação com a "diversidade dos trabalhadores do campo", e entra
em pauta o grande desafio da organização sindical da CUT: construir "a unidade
na diversidade". Esse ficaria sendo o lema que sintetizava a missão da CUT no
meio rural. A parte do texto que trata da questão agrária faz uma classificação
dos segmentos existentes no campo. Segundo esse texto, no Sul do país estariam
os "agricultores integrados", ali qualificados como "assalariados disfarçados e
a domicílio"; no Norte, posseiros; no Nordeste, Centro-Oeste e também no Norte,
pequenos proprietários; ainda no Norte, pescadores e seringueiros; no Sul e no
Sudeste, por fim, os assalariados temporários (bóias-frias). Um pouco mais
adiante o texto adverte que "esse quadro complexo está presente na vida
associativa dos sindicatos, onde convivem interesses concretos diferenciados de
pequenos proprietários, assalariados, posseiros e sem-terra".
Com o novo desenho institucional da Central adotado em 1988, a estrutura de
representação dos trabalhadores rurais deixou de ser a Secretaria Rural e
passou a ser o Departamento Rural, o que significava maior autonomia para esse
segmento. A criação do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais (DNTR) foi
também o lance mais ousado do novo sindicalismo na confrontação à estrutura
sindical oficial. No mesmo movimento que levou à sua criação foram sendo
disseminadas novas experiências de organização sindical em dissonância com a
estrutura oficial, por intermédio das quais os agricultores ligados à CUT
buscavam afirmar os melhores instrumentos para instituir sua representação.
Neste mesmo congresso de 1988 deu-se a definição por um perfil organizativo da
central mais voltado para a mediação capital/trabalho. Embora pareça paradoxal,
isso se justificou por tratar-se de um momento de afirmação da organização
cutista. Assim, ao privilegiar a representação dos assalariados, mas também ao
procurar se diferenciar da estrutura sindical oficial, a CUT abriu espaço para
acomodar institucionalmente sua porção rural num departamento específico.
Afinal, a Contag nesse momento defendia o Plano Nacional de Reforma Agrária
alinhando-se com o Governo Sarney e apoiava medidas da Nova República.
Da fundação do Departamento Rural participaram 419 sindicatos. O conjunto de
definições tomadas nesse momento fundamental para o novo sindicalismo rural
tinha uma marca fundamental: a crítica ácida à estrutura corporativa. Essa
crítica era fortalecida pelo acentuado crescimento das chamadas organizações
diferenciadas (Cedi, 1991a e b; CUT/Contag, 1998a) ' aquelas que se constituíam
burlando os parâmetros definidos por lei ' e pelo crescimento dos sindicatos
filiados à CUT. Mas ainda dessa vez não foi resolvida aquela ambigüidade já
ressaltada em relação à estrutura sindical ' a negação da estrutura oficial,
mas uma aceitação dos sindicatos oficiais na base. Tal ambigüidade era
resolvida no plano do discurso com propostas de diferenciação e regionalização
(diferenciação de organizações específicas de representação de assalariados e
pequenos agricultores e regionalização da base dos sindicatos então organizados
por município, propostas que, na prática, acabavam com o enquadramento e a
delimitação territorial imposta por lei). No que diz respeito às demandas e às
reivindicações, a criação do Departamento Rural trouxe inovações perceptíveis.
Como já foi dito, sua criação reservou um lugar institucionalmente definido no
interior da central aos trabalhadores rurais. Com isso, foram criadas
determinadas condições para que esse segmento se organizasse seguindo os rumos
determinados pelos seus próprios representantes, e não de forma diluída no
conjunto de demandas e definições processados pelo conjunto da central, muitas
vezes influenciado por uma visão pouco precisa da real diversidade da sua base
social. Isso significava tratar mais afirmativamente as demandas dos segmentos
não assalariados, os mais numerosos e influentes na porção rural da central.
Um primeiro terreno onde se pode sentir o teor do projeto político-sindical dos
"rurais da CUT" é a percepção de sua base social e da maneira como nele estão
organizadas as reivindicações fundamentais. No documento que origina o
Departamento Rural há um tratamento de temas organizados nos seguintes
segmentos: assalariados, pequenos agricultores, pescadores, povos da floresta,
povos indígenas, atingidos por barragens, mulheres, atingidos pela seca. Esse
conjunto de situações de conflito e de produção era articulado pela noção de
trabalhador rural, numa referência à categoria "instituída" com o Estatuto da
Terra, consagrada pelo sindicalismo rural oficial, e adotada tanto pelo
sindicalismo urbano como pelo sindicalismo rural influenciado pela esquerda
católica. A forma de organizar institucionalmente esses segmentos se fez por
meio da criação de secretarias específicas. Apesar de algumas secretarias serem
destinadas a esses segmentos, é importante notar que a quase totalidade delas
era ocupada por pequenos agricultores.
Um segundo terreno importante a ser considerado no projeto político-sindical
capitaneado pelo DNTR é a forma de representação dos produtores autônomos.
Sobre isso, tanto nos depoimentos de dirigentes como em passagens das
resoluções se pode enxergar o tratamento do tema pelo Departamento Rural. De
início, quando se justifica a existência do Departamento, a situação dos
produtores autônomos é tratada como mais uma manifestação das várias formas de
expropriação do trabalho promovida sob o capitalismo. Tal idéia entende os
produtores autônomos como sujeitos aos mesmos conflitos e oposições que os
demais segmentos subordinados ao capital e, por que não dizer, considera-os
membros de uma mesma classe. Em outro trecho, e de forma condizente com esse
entendimento do lugar dos produtores autônomos sob o desenvolvimento
capitalista, o texto afirma uma série de políticas necessárias à sua reprodução
social ' financiamento à produção, modelo tecnológico, condições de
competitividade e comercialização. Nas considerações acerca desse conjunto de
medidas, as oposições são sempre endereçadas ao Estado e ao latifúndio, como os
agentes opostos aos interesses dos trabalhadores assalariados e autônomos do
campo brasileiro.
O saldo dos anos de 1980 para o novo sindicalismo rural é, por assim dizer, a
soma das contradições sentidas nesses dois campos. No terreno político-
organizativo conseguiu-se construir bases sólidas, consolidando a CUT como
central sindical de expressão nacional e enraizamento em todo o território
nacional, cobrindo uma larga diversidade de situações produtivas, das modernas
lavouras do centro-sul ao campesinato das zonas mais pobres do país. Porém, não
se conseguiu romper com o modelo organizativo do sindicalismo corporativo. Em
outras palavras, a CUT passou a ocupar um lugar de destaque no cenário
político, seus sindicatos passaram a partilhar de uma mesma identidade, mas não
se superou os limites do sindicato único, de base municipal, sem enraizamento
no local de trabalho. No terreno das lutas sociais, o novo sindicalismo rural
deixa os anos de 1980 ainda com as glórias de ter-se constituído num movimento
de confrontação ao Estado ditatorial e ao latifúndio, gozando, por isso, de
forte reconhecimento social. Entretanto, era do passado a bandeira da luta pela
democratização, e progressivamente perdia força. Pior que isso, a transição do
regime ditatorial para a abertura chegava ao fim com um desfecho conservador. A
candidatura de Lula, que encarnava a utopia de mudança social em curto prazo,
perde para Collor de Mello e, com isso, o horizonte de rupturas projetado no
imaginário do novo sindicalismo sumiu de vista, exigindo a adoção de novos
referenciais, um novo equilíbrio entre o que era imediato e o que era
estrutural na agenda sindical. Como conseqüência, os órgãos de assessoria e os
próprios dirigentes sindicais rurais passaram a falar em uma crise do
sindicalismo. No caso do novo sindicalismo rural, essa leitura da situação por
que passava o mundo do trabalho e o espaço rural brasileiro deram origem a um
processo de reflexão que acabou por levar a uma tentativa de atualização do
projeto político-sindical da CUT para esse novo quadro de referências.
Uma nova etapa na história dos movimentos sociais rurais
As transformações no mundo do trabalho que se disseminaram no Brasil a partir
dos anos de 1990 ' a introdução de novas tecnologias de produção e de gestão, o
desemprego estrutural, a desregulamentação do trabalho, o trabalho temporário e
a terceirização ' significaram uma crescente heterogeneização, fragmentação e
complexificação da forma de ser e de viver da classe trabalhadora, com impacto
direto na ação sindical (Antunes, 1995). No que diz respeito aos interesses
históricos dos trabalhadores, essas transformações implicaram em impactos no
plano da "subjetividade, da consciência do ser social que trabalha", e impactos
em suas "ações de classe, nas ações de seus órgãos de representação". Quanto às
questões imediatas, a década de 1990 reservou sérias dificuldades ao movimento
sindical: com a abertura comercial inúmeros setores da indústria doméstica
quebraram diante da competição com os produtos importados. O ajuste
implementado abruptamente, sem regras e processos de transição, provocou um
drástico corte dos postos de trabalho, fato agravado pelo período de recessão
em que se operaram tais mudanças. Essas tendências foram aprofundadas com a
instituição do Plano Real, quando se optou pela estabilização mediante a
sobrevalorização cambial, a elevação das taxas de juros e a aceleração da
abertura comercial, com impactos diretos no setor produtivo e no mercado de
trabalho. Com isso, o emprego e o trabalho passaram a ocupar o lugar de
destaque antes ocupado pela luta por salários. Isso marcou uma inflexão na
agenda sindical em relação à década anterior. As marcas principais dessa
tentativa de reorientação do paradigma de ação sindical foram: i) a necessidade
de horizontalizar a ação política, em contraposição ao verticalismo constituído
de acordo com a organização por ramos de atividade, característica do período
anterior; ii) a necessidade de reconsiderar a base social desse sindicalismo,
sobretudo incluindo uma multiplicidade de formas sociais de trabalho, para além
da tradicional situação de assalariamento; e iii) a necessidade de conferir um
tom mais "propositivo" à ação sindical, em contraposição ao caráter
marcadamente reivindicatório do período anterior.
O espaço rural viveu esse mesmo leque de condicionantes, acrescido de alguns
outros aspectos que lhe são específicos. Como foi abordado anteriormente, com a
crise dos anos de 1980 o padrão de organização da agricultura brasileira
forjado desde o período da modernização conservadora teve suas bases erodidas.
Com isso, em vez de um padrão em que o Estado assumia e canalizava para si a
mediação das situações de conflito e das situações de produção, passa a haver
uma seleção das demandas, definida tanto pela articulação que elas representam
para os rumos da economia como pelo poder de pressão dos portadores de tais
demandas. Mas não foi somente no ambiente institucional que se processaram
mudanças fundamentais para o espaço rural brasileiro. Algumas tendências
socioeconômicas na base dos processos agrários modificaram substancialmente as
relações sociais de sustentação dos padrões de dominação e de acumulação:
acentuada diminuição da importância da agricultura na formação das rendas das
famílias de agricultores (Graziano da Silva, 1999); um processo de concentração
e especialização na agricultura de commodities; o desemprego acompanhado da
flexibilização do trabalho assalariado; um adensamento da malha de municípios
brasileiros, com uma aproximação entre os espaços urbanos e rurais motivada
tanto pela busca de novas atividades e produtos por parte de segmentos da
população urbana como pela evolução do padrão de urbanização em determinadas
partes do país (Veiga et al., 2001); a descentralização de várias políticas
públicas com impacto para a qualidade de vida das populações dos pequenos
municípios e para a participação social nos mecanismos de gestão dessas
políticas (Abramovay, 2000; Favareto e Demarco, 2004).
Após anos de debates, polêmicas, idas e vindas ' e numa resposta à crise
identificada ', a porção rural da CUT, no início dos anos de 1990, faz uma
importante redefinição sobre seu projeto político. Quanto às dubiedades da
estrutura sindical, o novo sindicalismo resolve assumir a importância da
estrutura sindical oficial e, deixando de lado o posicionamento ambíguo, afirma
a necessidade premente de conquista e transformação da Contag. Com relação às
bandeiras de luta, o novo sindicalismo abandona as antigas ' reforma agrária e
direitos trabalhistas, ou reforma agrária, política agrícola e direitos
trabalhistas ' e assume outras ' "um Projeto Alternativo de Desenvolvimento
Rural, ancorado na expansão e fortalecimento da agricultura familiar", segmento
que passa a ser considerado prioritário nessa nova estratégia para o meio rural
que o sindicalismo se propõe a construir (Favareto e Bittencourt, 2000;
Medeiros, 1997).
A Contag cutista
A criação do DNTR havia ocorrido num momento de forte abalo na hegemonia da
Contag entre os movimentos sociais rurais no Brasil. Esse declínio no papel da
Contag pode ser creditado: i) ao desgaste resultante de sua aproximação com o
Estado, e principalmente com o governo da Nova República, já citado; ii) ao seu
distanciamento da CUT, não só com a não filiação à central, mas também pela
rejeição dos princípios de liberdade e autonomia sindical expressos na
Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho, durante o IV Congresso,
de 1985; e iii) ao episódio relativo à eleição da direção de 1988, realizada de
forma indireta apesar das disposições contrárias que indicavam a eleição em
Congresso, e sobre a qual foram feitas acusações de fraude.3
Ocorre que, como já foi dito, também o sindicalismo da CUT se
institucionalizava e começava a viver suas contradições. Em primeiro lugar, as
oposições sindicais evoluíram no sentido de ganhar as direções dos sindicatos.
Em pouco tempo isso se refletiu também na composição das Federações (instâncias
de âmbito estadual que congregam os STRs e que, juntas, conformam a Contag). Em
conseqüência desse processo, ocorreu certo acomodamento à estrutura até então
acidamente criticada. Em segundo lugar, o Estado da década de 1990 guarda suas
diferenças em relação ao Estado ditatorial. Com a Constituição de 1988 e o
gradativo processo de abertura, formou-se, ainda que com fortes limitações,
canais e espaços de diálogo ou participação dos atores sociais com poder de
pressão e reconhecimento social. Esse espaço de expressão e interlocução das
demandas dos trabalhadores rurais, porém, historicamente havia sido ocupado
pela Contag. Esses dois aspectos ' ambigüidade do corporativismo e legitimidade
social da Contag ' possivelmente não são os únicos a merecer destaque, mas
minaram a estratégia definida em meados dos anos de 1980 de construir o
sindicalismo cutista "por fora" da estrutura oficial.
Em síntese, no início dos anos de 1990, cada um dos dois projetos se encontrava
em situação de crise, vivendo dilemas que exigiam readequações e atualizações.
A Contag chegava nessa década com uma estrutura de invejável capilaridade
(3.280 sindicatos oficialmente existentes, dos quais 2 mil aproximadamente
participavam de alguma forma da vida sindical), reconhecimento social como
organização sindical progressista, capacidade de interlocução com o Estado em
diversos níveis. Essa mesma Contag, entretanto, inicia esse período sofrendo o
desgaste de sua forma de se relacionar com o Estado e a dificuldade em promover
atualizações mais profundas naquele seu projeto sindical, seja nas suas
bandeiras de luta, seja nas suas formas organizativas, seja nas características
da ação sindical ainda em muito pautada pelo legalismo. O novo sindicalismo,
por sua vez, também gozava de forte reconhecimento social, grande capacidade de
expressão e mobilização, apresentava conteúdos e práticas renovadores da
tradição sindical anterior. No caso da vertente cutista, os limitadores estavam
na dificuldade em firmar-se como o interlocutor privilegiado perante o Estado e
em ampliar sua inserção entre os sindicatos da base contaguiana.
A filiação da Contag à CUT acontece no congresso de 1995. Embora tivessem
maioria no encontro, os delegados vinculados à central optaram por uma
composição com as forças já presentes na Confederação. Para estabelecer esse
arranjo contribuíram, de um lado, a pressão de dirigentes sindicais urbanos,
preocupados em ampliar a influência da CUT sobre um leque mais amplo de
sindicatos e de forças políticas que aquele já reunido no interior da central
e, de outro lado, por parte das próprias lideranças rurais da central, o medo
de assumir a direção da Contag sob o signo do divisionismo. Essa opção marcaria
definitivamente o caráter da transição da Contag para os quadros da CUT, uma
transição em que as transformações da confederação ficaram subordinadas ' mais
tarde se veria que elas foram, na verdade, limitadas ' a um pacto de unidade
com setores tradicionais da Contag.
A opção pela agricultura familiar
A afirmação da agricultura familiar como público prioritário, segundo elemento
da atualização do projeto sindical cutista no meio rural, sempre aparecia nos
documentos sindicais associada a uma certa interpretação do papel do
sindicalismo diante da situação agrícola e agrária do Brasil dos anos de 1990.
Nessa análise, apareciam com ênfase dois argumentos: a necessidade de dar mais
visibilidade e de tratar afirmativamente a diversidade de segmentos que compõem
o rural, numa crítica à generalidade da categoria "trabalhador rural", e a
busca por um conteúdo mais propositivo, discutindo e propondo um projeto, e não
medidas pontuais. Essa leitura incorporava, à sua maneira, o diagnóstico de
fragmentação da realidade rural brasileira e as mudanças sociais e político-
institucionais que o país vivia com o início da década. A partir desse
diagnóstico, a porção rural da CUT afirmava ser sua prioridade a "construção de
um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural" que teria por base o
fortalecimento da agricultura familiar e a luta por uma ampla e massiva reforma
agrária. Com isso os sindicalistas procuravam uma definição que sinalizasse um
projeto mais amplo, de caráter menos reivindicatório e mais afirmativo, onde se
buscava equacionar as demandas dos demais segmentos que compõem o rural '
agricultores familiares, sem-terras, assalariados, aposentados etc.
Na base dessa nova orientação estavam as experiências que vinham sendo levadas
adiante na organização das lutas nas regiões Sul e Norte do país, por meio das
quais foi se desenhando um determinado jeito de compor alianças e construir as
pautas de reivindicação; o papel de novos mediadores como as organizações não
governamentais e outros órgãos de assessoria, por intermédio do qual se
introduziu o debate sobre agricultura familiar e modelos de desenvolvimento; a
derrota da candidatura Lula em 1989, que tirou do horizonte próximo a
possibilidade de transformação radical da realidade; e uma certa crise do
modelo de desenvolvimento agrícola, que abria uma brecha para se discutir e
propor projetos alternativos (Favareto e Bittencourt, 2000).
Esse conjunto de resoluções, associado ao contexto dos anos de 1990,
representou uma virada no debate sobre o lugar desses agricultores na central.
Se na década de 1980 a polêmica se situava em saber se era ou não papel de uma
central sindical organizar produtores autônomos, na condição de pequenos
proprietários, o debate que aparece nos documentos sindicais na década seguinte
trata da dificuldade oposta, a de atender às demandas dos assalariados rurais e
criar mecanismos que aumentem sua participação numa estrutura sindical em que a
larga maioria dos cargos de direção é ocupada por agricultores familiares, e na
qual as principais políticas desenvolvidas são também direcionadas a esse
público. A inversão nesse terreno foi tão forte que ao longo dos anos de 1990
passou a ser comum entre os sindicalistas citar a experiência de organização
dos pequenos agricultores no interior da central como exemplo exitoso de como é
possível trabalhar com outras dimensões do mundo do trabalho que não aquelas
restritas à relação formal capital/trabalho. Era uma clara referência aos
desafios do movimento operário daquele período diante da crise do emprego e dos
novos padrões de acumulação.
No que se refere a Contag, por sua vez, a adoção do termo agricultura familiar
deu-se num momento em que suas históricas bandeiras de luta eram
progressivamente esvaziadas ou tomadas por outro protagonista. A luta pela
reforma agrária foi, ao longo dos anos de 1990, sendo diretamente associada a
outro movimento social rural ' o MST ', o que se deve tanto aos méritos
inerentes a esse movimento, suas estratégias, sua vitalidade e
representatividade, como também ao excessivo legalismo com que federações e a
própria Contag tratavam o tema. Isso muitas vezes obscureceu o fato de que
parte das ocupações de terra vinha sendo, na verdade, conduzida também por
sindicatos de trabalhadores rurais. Outra das antigas bandeiras da Contag ' a
defesa dos direitos trabalhistas ' perdeu parte daquela relevância histórica de
outrora, embora obviamente não tenha se transformado em banalidade. Boa parte
da população rural ainda não exerce seus mais elementares direitos sociais e
trabalhistas. Porém, o ascenso dessa bandeira de luta está relacionada ao
período em que a categoria "trabalhador rural" não existia, onde o
reconhecimento dessa condição de trabalhador em igualdade perante o trabalhador
urbano era a principal questão. Foi isso, inclusive, que justificou a criação
do Estatuto do Trabalhador Rural, que proporcionou a base para a constituição
de um sindicalismo de trabalhadores rurais, e não de lavradores, produtores
autônomos etc. Com os direitos fundamentais reconhecidos e a crise enfrentada
pelo segmento dos assalariados agrícolas ' apesar do problema gerado com a
criação das falsas cooperativas ', essa bandeira perde a capacidade de unificar
reivindicações de vários segmentos, abrindo espaço para a afirmação de demandas
e de identidades mais específicas.
Com essa opção, o sindicalismo brasileiro estava numa encruzilhada. De um lado
deu mais concretude, visibilidade e operacionalidade ao que há de específico em
sua base sindical ' o fato de tratar-se de agricultores, produtores diretos
que, sob várias modalidades, cultivam a terra e organizam seu próprio trabalho.
De outro lado, para dar efetividade ao tratamento das demandas de sua base
sindical, o sindicalismo precisaria transformar-se também em suas formas
organizativas, no perfil de seus dirigentes e técnicos, em sua agenda, e aí a
diversidade de situações que se encontra em sua base torna essa opção mais
complexa do que poderia parecer à primeira vista.
A nova orientação expressa nessas duas mudanças tem um significado profundo
para o percurso que o novo sindicalismo viria a trilhar: elas significaram o
abandono de características fundamentais que estavam na sua origem e a adoção
de novas referências, pelas quais se modificam as maneiras de ver os desafios
inerentes ao conflito agrário e as formas de seu equacionamento ou superação;
elas significaram também um realinhamento do sindicalismo rural da CUT em
relação ao conjunto dos movimentos sociais rurais, marcadamente um
distanciamento do novo sindicalismo em relação a parceiros históricos ' como a
esquerda católica representada pela CPT e seus agentes, e como o MST, nascido
no mesmo contexto e sob as mesmas inspirações ' e uma aproximação com o
sindicalismo contaguiano, até então seu mais ferrenho oponente.
Os congressos da central realizados na segunda metade dos anos de 1990 e início
da década seguinte reafirmam esse movimento. As resoluções passam a enfatizar
cada vez mais a especificidade da agricultura familiar, em particular o fato de
tratar-se de produtores autônomos ' e a luta pelo "projeto alternativo de
desenvolvimento rural" como principal proposição. Os termos "camponês" e
"trabalhador rural" praticamente desaparecem dos documentos sindicais. Altemir
Tortelli, agricultor gaúcho, consolida-se como liderança nacional do
sindicalismo rural cutista, ocupando inicialmente a vice-presidência nacional
da central e, posteriormente, a presidência da Federação dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar da Região Sul do Brasil. Juntamente com este agricultor,
compuseram ainda a direção nacional da central nesse período lideranças
femininas da Bahia e do Pará, ambas agricultoras/produtoras familiares,
revelando um outro traço de alta relevância: a crescente organização feminina
no interior dos movimentos sociais rurais.
Conclusão
Como foi indicado na introdução deste artigo, o principal intuito residia em
demonstrar as articulações e as fraturas ocorridas ao longo de trinta anos de
trajetória do novo sindicalismo rural. Com os rumos adotados no decorrer dos
anos de 1990, abriu-se uma nova etapa marcada por deslocamentos observáveis
tanto no campo das proposições que o novo sindicalismo procura expressar como
nos seus parceiros e aliados. Mais do que questões internas a essa vertente
sindical, as readequações ocorridas em seu projeto sindical ' sobretudo a
filiação da Contag à CUT e a adoção da agricultura familiar como identidade e
público prioritário das ações ' implicaram em rearranjos no conjunto das forças
que compõem os movimentos sociais rurais. Daí a importância desses dois eventos
para a história da representação política dos agricultores familiares
brasileiros.
Todavia, como qualquer tentativa de adequação ou atualização de projetos
políticos, as contradições que estiveram na sua raiz não são exatamente
aplacadas, mas sim recompostas, reequacionadas. Nesse movimento, é certo que
parece ter havido um deslizamento de uma perspectiva de ruptura para uma
posição mais pragmática. Mas é certo também que continua a haver uma
ideologização no tratamento dos temas imediatos, o que gera uma ambigüidade nos
sujeitos da ação sindical, pendendo ora para a crítica e a mobilização, ora
para a proposição e a negociação. Sob o aspecto da representação da diversidade
de situações, se aquela ambigüidade envolvendo a representação dos assalariados
se resolve encaminhando a construção de organizações específicas desse
segmento, no caso da agricultura familiar ela permanece. Isto fica evidente
quando se observa a sobreposição do mapa sindical a esse mapa do Brasil rural:
a) a presença do novo sindicalismo é praticamente nula naquelas regiões em que
predominam os agricultores familiares mais capitalizados ' aqueles que, em
geral, empregam mão-de-obra permanente; b) apesar disso, sua presença é
significativa nas regiões de predomínio da agricultura familiar "de transição";
c) os mapas mostram também que a crescente entrada do novo sindicalismo no
Nordeste vem se dando tanto na região do agreste (de predomínio de agricultura
familiar), como no sertão (de predomínio da agricultura patronal); d) na região
Norte o sindicalismo cutista praticamente atingiu o teto de sua penetração,
abrangendo boa parte dos sindicatos com vida real; e) as maiores possibilidades
de crescimento futuro, se considerado o número de sindicatos a conquistar, são
as regiões Sudeste e Nordeste; f) no caso da região Sul, há uma incógnita, já
que ali a disputa entre novo sindicalismo e sindicalismo oficial ainda é muito
acirrada, sendo que no último período o crescimento da CUT diminui de ritmo.
Para a constituição das reivindicações, esse quadro indica uma situação
bastante complexa, com uma multiplicidade de demandas. Tão importante quanto
essa multiplicidade é o fato de que determinadas situações reunidas sob a
organização do novo sindicalismo exigem ações políticas de contestação e
ruptura ' caso da estrutura fundiária, questão fundamental para uma parcela
expressiva dos agricultores nordestinos. Ao mesmo tempo, outras situações
exigem o aprofundamento de políticas e processos sociais de inserção dos
agricultores no mercado, caso de parcela dos agricultores do Sul e do Sudeste,
principalmente, mas também de todas as outras regiões, em menor peso. Nesse
segundo caso, a potencialização e viabilização da agricultura familiar passam
pelo aprimoramento e pelo aprofundamento de instrumentos de políticas públicas
hoje em curso, como o Pronaf.
O movimento crescente de criação de organizações específicas da agricultura
familiar ' incentivado desde a virada dos anos de 1980 para os de 1990, mas
intensificado somente nos últimos cinco anos ' pode estar gerando uma ainda
maior ruptura do que a vinculação da Contag à CUT. Não se dispõe de números
confiáveis sobre o número de sindicatos diferenciados hoje existentes, mas em
âmbito estadual, em 2004 já existiam federações da agricultura familiar em dez
estados. Em julho deste mesmo ano um Encontro Nacional da Agricultura Familiar
reuniu aproximadamente 1.500 agricultores de todo o país em Brasília,
anunciando a criação de uma Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Familiar, o que ocorreu num congresso realizado em 2005 e no qual Elisângela
Araújo, agricultora baiana, foi eleita presidente. Todas essas organizações são
vinculadas à central e passam a dividir com a Contag a representação das
categorias de trabalhadores rurais. Além da representatividade expressiva dessa
organização, ainda que minoritária em relação à Contag, merece destaque a
participação enfática do presidente da República na abertura do encontro que
levou à sua fundação, assim como a presença de ministros e representantes de
outras sete autarquias ou estruturas ministeriais, o que simboliza, de alguma
forma, um reconhecimento político por parte do Estado. O encerramento do
encontro, com a benção do bispo Dom Mauro Morelli, também é significativo: seja
por sua presença ativa diante de uma das mais propagandeadas políticas
governamentais, a política de segurança alimentar e nutricional, seja por sua
conhecida proximidade com os movimentos sociais rurais mais à esquerda no
espectro político. Essa nova organização da agricultura familiar pode
significar, em síntese, uma ainda maior aproximação do novo sindicalismo rural
em relação ao Estado ' quando em sua origem tal postura era de oposição ', uma
efetiva ruptura do monopólio de representação dos trabalhadores rurais em
âmbito nacional, há trinta anos sob o comando da Contag, e, ainda, um
realinhamento com outros movimentos sociais rurais, distanciados desde o início
dos anos de 1990. Isto repercutiu na balança de forças interna à Contag, e teve
como uma de suas conseqüências o resgate de uma proposta tantas vezes
apresentada por seus setores mais conservadores de transformar a confederação
em uma central camponesa autônoma, desvinculando-a da CUT.
Finalmente, uma proposta de reformulação da legislação sindical foi elaborada
pelo Fórum Nacional do Trabalho e aguarda análise e votação pelo Congresso
Nacional. A grande novidade ali presente é a definição de critérios mínimos de
representatividade para o reconhecimento das organizações sindicais. Contudo, a
reforma deixa entreaberta a porta para a manutenção da unicidade sindical, uma
vez que prevê o direito de exclusividade de representação para as organizações
já constituídas, desde que elas comprovem, dentro de um prazo a ser definido, a
existência da representatividade mínima de 20% da base. Uma conseqüência
possível, portanto, é que ocorra uma corrida pela disputa da representação.
Desde já três polêmicas estão estabelecidas: a primeira diz respeito à fonte a
ser adotada para o cálculo do tamanho da base e do número de associados ' dados
da CUT apontam em 33% o percentual médio de filiação, enquanto os dados da
Pesquisa Sindical do IBGE falam em 53%, e a PEA aponta um percentual de 62%; a
segunda diz respeito à inclusão ou não dos aposentados associados neste cálculo
' se a tendência de excluí-los do cálculo se mantiver, os percentuais desabam,
aumentando o número de sindicatos sob disputa; a terceira polêmica situa-se na
interpretação do que é ramo e setor de atividade no caso rural ' o Decreto Lei
1161/71, o Artigo 570 e seguintes da CLT e o Artigo 8º da Constituição são
conflitantes entre si e abrem margem para que a agricultura familiar seja
considerada uma categoria específica, o que justificaria, de saída, a criação
de uma estrutura de representação de seus interesses, paralelamente a uma
estrutura voltada para a organização dos assalariados rurais.
A década de 1990 foi o período de consolidação da agricultura familiar como
público específico de políticas públicas e de políticas sindicais e palco de
importantes eventos como a filiação da Contag à CUT e a própria instituição do
Pronaf. A primeira década do novo século parece se desenrolar com a
possibilidade de uma reforma sindical, com o arrefecimento da idéia de uma
reforma agrária ampla, cada vez mais substituída pela idéia de se fazer poucos
e bons assentamentos, e com a disseminação de organizações específicas de
representação da agricultura familiar, dividindo com a Contag o protagonismo da
representação desse segmento, ambas sob a bandeira da central sindical. Como se
vê, passadas três décadas desde sua gênese, os elementos que respondem pela
estrutura e pela dinâmica do novo sindicalismo rural mudaram substancialmente.
Será a partir dessa nova configuração do campo de identidades, oposições e
possibilidades que suas lideranças construirão as futuras etapas.