Discinesia ciliar primária revisitada: A propósito de três casos clínicos
Introdução
A discinesia ciliar primária (DCP) é uma doença genética rara, associada
predominantemente a um padrão de hereditariedade autossómico recessivo, embora
tenha sido documentada, em alguns casos, transmissão ligada ao cromossoma X1-3.
A apresentação clínica é heterogénea e a etiopatogenia caracterizada por
alterações estruturais e/ou funcionais ciliares que condicionam disfunção da
mobilidade dos cílios das células epiteliais respiratórias, cílios ganglionares
embrionários e flagelos dos espermatozóides4,5.
Estima-se em 1:15 000-30 000 nados-vivos a prevalência de DCP, embora se
considere que a prevalência real possa ser superior, atribuível ao
subdiagnóstico6,7.
A DCP cursa com um espectro fenotípico alargado e heterogéneo que inclui
combinações variáveis de manifestações clinicoima giológicas1,8 com atingimento
multiórgão e expressividade individual variável (Quadro I).
Quadro I ' Manifestações clínicas de discinesia ciliar primária
A repercussão da discinesia ciliar primária a nível pulmonar assume particular
relevância prognóstica9. A ineficácia da clearancemucociliar determina
infecções respiratórias recorrentes associadas a processo inflamatório crónico
predominantemente neutrofílico com progressão habitual para lesão pulmonar
irreversível com bronquiectasias, culminando nalguns casos em insuficiência
respiratória crónica4,10.
A apresentação clínica pode ser inespecífica, sobreponível à clínica de
bronquiectasias, o que frequentemente leva à necessidade de diagnóstico
diferencial com fibrose quística. A associação com envolvimento de outros
órgãos ou sistemas, nomeadamente situs inversustotal ou atingimento do aparelho
respiratório superior, com ocorrência de otite média serosa persistente,
hipoacusia de transmissão (particularmente prevalente em idade pediátrica) e
sinusite conduzem de forma mais fácil à suspeição diagnóstica7,11.
Quando ocorre simultaneamente, a tríade de situs inversustotal, bronquiectasias
e sinusite, esta é conhecida como síndroma de Kartagener1,12.
Outros órgãos atingidos, por disfunção dos cílios não móveis em doentes com
DCP, são o rim, o fígado e o olho, com aparecimento de doença poliquística
renal/hepática, atresia biliar ou patologia da retina11,13. As manifestações
clínicas e imagiológicas incaracterísticas determinam a necessidade de
estabelecimento de diagnóstico definitivo através de microscopia electrónica de
transmissão ou videomicroscopia de alta velocidade para confirmação,
respectivamente, de alteração ultraestrutural ciliar e/ou compromisso funcional
ciliar1,7.
Apresentam-se três casos clínicos que, pela diversidade da apresentação
clínica, da idade no diagnóstico e da extensão das lesões, poderão contribuir
para a melhoria dos critérios de suspeição e orientação nesta doença rara.
Casos clínicos
Caso clínico 1
Adolescente do sexo masculino, actualmente com 12 anos, referenciado à consulta
de Pneumologia Pediátrica aos 5 anos por hipótese de DCP.
Gestação de termo, sem consanguinidade parental ou outros antecedentes
familiares de relevo. Foi internado após o nascimento numa unidade neonatal por
síndroma de dificuldade respiratória nas primeiras horas de vida,com
necessidade de instituição de oxigenoterapia suplementar. Manteve necessidade
de oxigenoterapia suplementar no domicílio até aos 1,5 meses de idade. O
ecocardiograma realizado nesta altura documentou dextrocardia, sem cardiopatia
estrutural associada. A ecografia abdominal confirmou o diagnóstico de situs
inversustotal.
Aos 3 meses teve novo internamento hospitalar de curta duração por bronquiolite
aguda. Posteriormente, verificou-se início de episódios recorrentes de tosse
produtiva. Por diminuição da acuidade auditiva iniciou seguimento regular em
consulta de Otorrinolaringologia aos 3,5 anos, tendo sido diagnosticada
hipoacusia de transmissão no contexto de otite média serosa bilateral.
Apresentava bom estado geral e parâmetros antropométricos adequados (peso P75 -
90 e estatura P90), saturação percutânea de oxigénio (SpO2) de 94% e ausência
de dispneia ou sinais de dificuldade respiratória, deformação torácica ou
hipocratismo digital. À auscultação pulmonar verificava-se existência de
murmúrio vesicular simétrico sem ruídos adventícios.
Foi realizado estudo imunoalergológico, tendo os doseamentos de imunoglobulina
(Ig) E total, IgE específicas para alergénios inalantes, IgA, IgM e IgG
(incluindo subclasses) sido normais.
O estudo ultraestutural de cílios do epitélio efectuou-se com ecovagens da
mucosa nasal ao nível do corneto inferior, tendo o exame ultraestrutural dos
cílios revelado ausência de braços externos e internos de dineína, confirmando
definitivamente o diagnóstico de discinesia ciliar primária.
Verificou-se evolução clínica subsequente favorável, destacando-se ocorrência
de apenas três episódios de exacerbação respiratória, com boa resposta à
antibioticoterapia oral instituída em ambulatório e progressão estatural e
ponderal nos percentis 90 e 75-90, respectivamente, e índice de massa corporal
(IMC) P50-75.
O estudo funcional respiratório efectuado aos 6 anos revelou padrão de
insuflação e de obstrução brônquica e bronquiolar com ausência de
reversibilidade na prova de broncodilatação, que se mantiveram, tendo
actualmente capacidade vital forçada (CVF) 2,62 L (79,9%), volume expiratório
máximo por segundo (VEMS) 1,82 L (66,7%), débito expiratório máximo entre 25% e
75% da CVF (FEF 25-75) 1,19 L/s (36,9%) e volume residual (VR) 1,55 L (159%).
A tomografia computorizada de alta resolução (TC-AR) torácica, realizada aos 6
anos, documentou espessamento da parede dos brônquios centrais e atelectasia
subsegmentar anterior na base esquerda. Relativamente à evolução sob o ponto de
vista imagiológico, a TC-AR torácica efectuada aos 12 anos evidenciava
insuflação pulmonar global, bronquiectasias cilíndricas com distribuição
central e bilateral com espessamento da parede brônquica associado, atelectasia
parcial do andar médio do pulmão esquerdo, com bronquiectasias no interior e
alguns nódulos centrilobulares no lobo inferior do pulmão direito, em provável
relação com infiltrado inflamatório e impactações bronquiolares (Fig. 1).
Fig. 1 ' Bronquiectasias cilíndricas com distribuição central (tomografia
computorizada de alta resolução torácica).
Caso clínico 2
Criança do sexo feminino, actualmente com 3 anos, primeira filha de pais não
consanguíneos, sem antecedentes familiares relevantes. Gravidez medicamente
assistida (inseminação artificial) por infertilidade materna primária, tendo o
período gestacional decorrido sem intercorrências.
Parto eutócico às 37 semanas no Hospital de Santa Maria, sem necessidade de
reanimação. Ao terceiro dia de vida verificou-se início de rinorreia anterior
mucosa abundante, a que se associou, no dia seguinte, quadro de tosse e tiragem
infracostal ligeira. Nessa altura realizou radiografia de tórax que evidenciou
dextrocardia e avaliação analítica, cujos resultados não eram sugestivos de
infecção bacteriana.
Verificou-se agravamento progressivo do quadro de dificuldade respiratória, com
necessidade de aportesuplementar de oxigénio na incubadora (FiO2 22-27%) entre
o 5.º e o 9.º dias de vida. Manteve ainda rinorreia anterior abundante,
salientando-se aquisição gradual de aspecto purulento e necessidade de
aspiração frequente de secreções nasais até à altura da alta (1 mês).
A prova de suor realizada por método semiquantitativo foi normal.
Efectuou também ecocardiograma e ecografia abdominal, que confirmaram situs
inversustotal.
Por hipótese diagnóstica de DCP iniciou acompanhamento na Unidade de
Pneumologia Pediátrica do HSM aos 1,5 meses.
Nessa altura apresentava progressão estaturoponderal adequada (peso P50 e
estatura P3-P10), ausência de sinais de dificuldade respiratória ou alterações
relevantes à auscultação pulmonar, destacando-se ainda melhoria importante do
quadro de rinorreia mucopurulenta.
O exame ultraestrutural dos cílios (amostra obtida mediante escovagens da
mucosa nasal ao nível do corneto inferior) revelou ausência de braços externos
e internos de dineína, tendo confirmado o diagnóstico de discinesia ciliar
primária (Fig. 2).
Fig. 2 ' Ausência de braços internos e externos de dineína (microscopia
electrónica).
A evolução clínica subsequente foi favorável, marcada por progressão
estaturoponderal adequada e ausência de episódios de sibilância, tosse
produtiva ou pneumonia até à data.
A radiografia de tórax realizada aos 13 meses revelou reforço do interstício
peri-hilar bilateralmente.
Salienta-se ocorrência de episódio único de otite média aguda aos 2 anos e
diagnóstico de otite média serosa bilateral aos 2,5 anos, no contexto de
seguimento em consulta de Otorrinolaringologia previamente iniciado.
Caso clínico 3
Adolescente do sexo masculino, actualmente com 16 anos, sem antecedentes de
consanguinidade parental ou outros antecedentes familiares relevantes. Gestação
de termo, vigiada, sem intercorrências ou factores de risco infeccioso no
período perinatal. Ao segundo dia de vida verificou-se início de quadro de
dificuldade respiratória com necessidade de oxigenoterapia suplementar e
broncorreia, no contexto de evidência radiológica de pneumonia. Por
persistência de broncorreia foram realizados, ainda no período neonatal, prova
de suor, pHmetria e doseamento de imunoglobulinas séricas, cujos resultados não
apresentaram alterações relevantes.
Foi também realizado ecocardiograma que não evidenciou alterações estruturais
e/ou funcionais.
A evolução clínica posterior cursou com episódios recorrentes de pneumonia e
sibilância e sintomatologia sugestiva de sinusite. Aos 6 anos foi realizado
estudo alergológico (negativo) e TC torácica, descrita como normal. Repetiu
prova de suor, que foi normal, e espirometria que revelou padrão obstrutivo com
resposta parcial na prova de broncodilatação. Face a persistência de episódios
frequentes de pneumonia e sibilância recorrente sem melhoria após diferentes
estratégias terapêuticas, foi referenciado à consulta de Pneumologia Pediátrica
do HSM aos 12 anos.
À observação destacava-se bom estado geral, parâmetros antropométricos
adequados (Peso P25 -50 e estatura P50-75), ausência de sinais de dificuldade
respiratória ou hipocratismo digital. À auscultação pulmonar objectivaram-se
sibilos inspiratórios e expiratórios e fervores crepitantes mobilizáveis com a
tosse dispersos bilateralmente.
Foi realizada avaliação imunoalergológica (doseamentos de IgE total, IgE
específicas para alergénios inalantes, IgG, IgM e IgA), que não apresentou
alterações relevantes.
O estudo da ultraestrutura ciliar (cílios da mucosa nasal) por microscopia
electrónica evidenciou ausência dos braços internos de dineína e
irregularidades frequentes na configuração dos pares de microtúbulos,
diagnósticas de DCP.
Verificou-se diminuição da frequência de episódios de agudização respiratória
broncospástica, apresentando actualmente um a dois episódios anuais, não se
tendo verificado necessidade de internamento.
O estudo funcional respiratório efectuado aos 12 anos revelou padrão de
insuflação e de obstrução predominantemente bronquiolar com ausência de
reversibilidade na prova de broncodilatação. Nos anos subsequentes manteve o
padrão descrito, tendo actualmente CVF 4,53 L (107,5%t), VEMS 2,79 L (80,1%t),
FEF 25-75 1,26 L/s (31,9%t) e VR 2,6 L (226,1%t).
A TC torácica realizada aos 12 anos documentou bronquiectasias na vertente
inferior e interna da língula.
As estratégias preventivas e terapêuticasinstituídas incluíram para todos os
doentes: programa de reeducação funcional respiratória (manobras de percussão e
vibração torácica nos casos clínicos 1 e 2 e técnica de vibração torácica
interna associada a pressão expiratória positiva no caso clínico 3); incentivo
da prática regular de exercício físico; imunizações antigipal anual e antipneu
mocócica e início precoce de antibioticoterapia no contexto de agudização
respiratória (Quadro II).
Quadro II ' Quadro-resumo dos casos clínicos
Discussão
Os casos clínicos apresentados relatam doentes cujo quadro clínico teve início
no período neonatal precoce. A síndroma de dificuldade respiratória, com
necessidade de oxigenoterapia suplementar em recém-nascidos sem factor de risco
identificável, constituiu a manifestação clínica inaugural nestes doentes.
No caso clínico 2, o quadro de dificuldade respiratória associou-se a rinorreia
mucopurulenta contínua, que constitui uma manifestação característica de DCP no
grupo etário em questão1,7.
Relativamente ao caso clínico 3, a síndroma de dificuldade respiratória
neonatal enquadrava-se no diagnóstico de pneumonia sem factores de risco
infeccioso identificáveis. Este é também considerado um padrão clínico
evocativo de DCP1,7.
A síndroma de dificuldade respiratória neonatal não é classicamente englobada
na descrição do fenótipo clínico característico da discinesia ciliar primária.
Todavia, vários estudos de carácter retrospectivo documentam que uma proporção
significativa dos doentes com esta patologia apresenta história pregressa de
dificuldade respiratória neonatal (67% numa das séries), pelo que esta é
actualmente reconhecida como forma de apresentação clínica frequente14.
Em dois dos casos clínicos descritos, foi ainda diagnosticado, no período
neonatal, situs inversus total, sem cardiopatia estrutural associada.
No caso clínico 1, apesar da constelação de sintomas inaugurais sugestiva
associada a situs inversustotal, este diagnóstico foi equacionado tardiamente.
Já no caso clínico 2, um quadro clinicoimagio lógico inaugural análogo,
distinguindo-se apenas pela associação de rinorreia anterior contínua, foi
valorizado precocemente como sendo sugestivo de discinesia ciliar primária.
Os autores especulam que o facto de este segundo caso ter sido abordado, desde
o início, no contexto de uma unidade terciária, tenha contribuído de forma
decisiva para o diagnóstico precoce.
Num estudo retrospectivo realizado por Coren et al(publicado em 2002) foi
avaliada a idade de diagnóstico e sintomatologia que antecedeu o diagnóstico em
55 crianças com discinesia ciliar primária11. Constatou-se que o diagnóstico de
discinesia ciliar primária foi estabelecido antes dos 12 meses de idade em
apenas 13 das 25 crianças com quadro de síndroma de dificuldade respiratória
neonatal e situs inversus11.
Os autores desse artigo consideram que o diagnóstico tão frequentemente tardio
de discinesia ciliar primária, mesmo no contexto de quadro clínico sugestivo de
início precoce, assenta na raridade desta patologia e na ausência de
conhecimento da mesma, agravada pela complexidade da sua confirmação
diagnóstica11.
O facto de numa proporção significativa de doentes com discinesia ciliar
primária o diagnóstico ser apenas estabelecido na idade adulta implica que o
desafio diagnóstico não cessa na idade pediátrica e que é fundamental manter um
índice de suspeição diagnóstica elevado aquando da observação de doentes
adultos.
No doente do caso descrito 3, o fenótipo clínico, também fortemente sugestivo
de discinesia ciliar primária era dominado por sintomatologia do foro
respiratório, designadamente episódios recorrentes de pneumonia e de
dificuldade respiratória. Este caso distinguia-se dos restantes devido à
inexistência de situs inversustotal concomitante.
Os autores consideram provável que esse facto tenha contribuído decisivamente
para o diagnóstico tardio de discinesia ciliar primária constatado neste caso.
De facto, apesar de apenas 50% dos doentes com DCP apresentarem situs
inversustotal, a sua ausência eleva significativamente a dificuldade
diagnóstica, uma vez que é reconhecido como um dos achados mais característicos
desta patologia11.
Dada a raridade e heterogeneidade fenotípica da DCP, é fundamental que esteja
sempre patente um elevado índice de suspeição diagnóstica4,7,15.
Face à inespecificidade da sintomatologia respiratória e à sua sobreposição a
outras doenças com atingimento pulmonar crónico (essencialmente fibrose
quística e imunodeficiência), a investigação de DCP frequentemente só é
iniciada após exclusão destes diagnósticos, tal como sucedeu nos casos clínicos
apresentados.
A determinação da ultraestrutura ciliar (epitélio nasal ou brônquico) por
microscopia electrónica de transmisão constitui actualmente o método
diagnóstico gold standardde DCP1.
Foram identificados diferentes defeitos ultraestruturais, sendo os mais
frequentes a ausência dos braços externos de dineína, dos braços internos de
dineína ou de ambos4,16.
Numa proporção de cerca de 15% de doentes com quadro imagiológico sugestivo de
DCP, não se encontra evidência de alteração na ultraestrutura ciliar4,16.
Nesses casos assume particular importância a identificação de disfunção ciliar,
também diagnóstica de DCP, através do estudo da frequência e padrão de
batimento ciliar, mediante videomicroscopia de alta velocidade1.
Noutras situações, o diagnóstico definitivo de DCP pode ser dificultado pela
ocorrência concomitante de infecção ou inflamação respiratórias, que por
constituírem causas secundárias e transitórias de disfunção ciliar poderão
resultar em resultados falsos positivos1,17. Para minimizar a obtenção de
resultados falsos positivos, é fundamental que a determinação da ultraestrutura
e/ou função ciliares só seja realizada no contexto de quadro clínico fortemente
sugestivo de DCP e sempre na ausência de infecção respiratória evidente7. Em
caso equívocos, poder-se-á ainda recorrer à realização de ciliogénese em
cultura celular, que possibilita a eliminação de eventuais lesões secundárias1.
Numa perspectiva histórica, o teste da sacarina constituiu durante décadas o
método mais popular de rastreio de DCP1,17. O seu uso é bastante limitado em
pediatria, uma vez que implica uma elevada capacidade de colaboração,
nomeadamente a capacidade de permanecer sentado durante pelo menos uma hora7.
Por outro lado, é um método pouco específico e que não permite a diferenciação
entre disfunção ciliar primária ou secundária, não lhe sendo actualmente
reconhecida utilidade diagnóstica8,14.
A medição do óxido nítrico (NO) nasal assume-se actualmente como a ferramenta
de rastreio mais sensível e reprodutível, tendo ainda as vantagens adicionais
de ser um método pouco invasivo e passível de ser realizado em crianças
pequenas4,18. De facto, foram já realizados estudos em crianças com idade
superior a 5 anos, que revelaram boa colaboração e reprodutibilidade de
resultados elevada4,8. Nos doentes com DCP a produção de NO nasal encontra-se
marcadamente diminuída. Considera-se que este achado aparentemente paradoxal
(face à presença invariável de inflamação crónica na DCP) possa estar
relacionado com a própria alteração da actividade ciliar ou expressão de
isoformas de NO sintase alteradas4,8. A medição do NO nasal, significativamente
diminuído nestes doentes, é então perspectivada como uma estratégia de rastreio
promissora4,18.
Todavia, existe alguma sobreposição entre os valores de NO nasal encontrados em
doentes com fibrose quística e DCP, pelo que o diagnóstico definitivo desta
última requer sempre a realização de um dos métodos de diagnóstico descritos8.
A literatura actual é escassa em ensaios clínicos que avaliem a eficácia da
maioria dos fármacos com benefício terapêutico potencial na discinesia ciliar
primária15,19. De facto, a abordagem terapêutica da discinesia ciliar primária
tem sido largamente extrapolada a partir da terapêutica de outras patologias
que cursam com o aparecimento de bronquiectasias, nomeadamente da fibrose
quística1,20.
Não existe tratamento curativo que permita corrigir ou reduzir a disfunção
ciliar17,20, pelo que o objectivo primordial da terapêutica é adiar e, se
possível, evitar o desenvolvimento de bronquiectasias e o declínio progressivo
da função pulmonar9,10.
As estratégias terapêuticas habitualmente preconizadas centram-se, por um lado,
em potenciar a clearanacemucociliar mediante o recurso a técnicas de
cinesiterapia respiratória adaptadas individualmente e a promoção da prática
regular de exercício físico e, por outro lado, no tratamento precoce e eficaz
de exacerbações respiratórias1,7,15,17.
Outro pilar fundamental da abordagem terapêutica destes doentes é a prevenção
de exacerbações respiratórias, mediante a imunização com vacinas antigripal e
antipneumocócica1,15 e a evicção da exposição a agentes patogénicos
respiratórios, tabagismo e a outros agentes irritantes inalantes que
reconhecidamente se associem ao aumento de produção de muco15,17.
A abordagem terapêutica dos doentes apresentados neste artigo englobou as
várias estratégias terapêuticas descritas.
Vários estudos sugerem que o início do compromisso da função respiratória em
doentes com discinesia ciliar primária tem um início precoce na idade
pediátrica9,21, pelo que a progressão da doença não tratada cursa com um
declínio progressivo e significativo da função respiratória, que poderá
culminar com instalação de insuficiência respiratória crónica4,10.
Na altura do diagnóstico do 1.º e 3.º doentes (aos 5 e 12 anos,
respectivamente), estes apresentavam já compromisso funcional respiratório com
padrão obstrutivo e insuflação.
Existe evidência crescente de que a implementação precoce de estratégias
terapêuticas em centros especializados permite estabilizar a função pulmonar em
doentes com bronquiectasias não relacionadas com FQ22, e nos doentes com DCP em
particular9,23.
De facto, verificou-se estabilização da função pulmonar após a instituição de
estratégias terapêuticas adequadas nestes dois doentes. A evolução constatada é
sobreponível à de outras doenças respiratórias crónicas que cursam com o
aparecimento de bronquiectasias não relacionadas com FQ22.
No caso clínico 2, diagnosticado antes do primeiro ano de vida, é expectável
que a função pulmonar não sofra um declínio tão precoce e acentuado como
constatado nos outros doentes, face ao início precoce de cinesiterapia
respiratória e restantes atitudes preventivas e terapêuticas descritas.
Mesmo não existindo terapêutica curativa disponível, o estabelecimento precoce
do diagnóstico de DCP repercute-se favoravelmente no seu prognóstico9,23.
São múltiplos os desafios inerentes ao diagnóstico e seguimento ulterior destes
doentes, desafios esses que devem ser sempre abordados numa perspectiva
multidisciplinar (pneumologia, otorrinolaringologia, fisiatria, genética e,
noutra faixa etária, consulta de infertilidade), aproveitando a experiência e
estrutura de centros especializados de fibrose quística.