Halitose: estudo de prevalência e factores de risco associados numa Unidade de
Saúde Familiar
INTRODUÇÃO
A halitose é o termo empregue para descrever qualquer alteração do hálito;
deriva do latim halitos (ar expirado) e osis (alteração patológica).1 A
halitose é multifactorial e pode envolver condições orais e extra-orais. Mais
de 75% dos casos têm origem na cavidade oral. As causas mais frequentes são: má
higiene, língua saburrosa, patologia periodontal (gengivite, periodontite) e
hiposalivação.2,3 O processo fisiopatológico comum corresponde à degradação
microbiana de substratos orgânicos. As etiologias extra-orais da halitose
incluem maioritariamente: patologias do aparelho respiratório superior e
inferior (amigdalite, rinosinusite e bronquiectasias), patologias do aparelho
gastrointestinal (doença do refluxo gastro-esofágico, diverticulose faringo-
esofágica, úlcera péptica), doenças metabólicas (trimetilaminúria, diabetes
mellitus) terapêutica farmacológica com compostos ricos em enxofre
(dissulfiram) e hábitos alimentares (jejum prolongado, ingestão de alimentos
ricos em odor).2,3
Na sociedade actual observa-se a atribuição de uma importância crescente à
imagem pessoal e às relações interpessoais. A halitose pode conduzir à
diminuição da auto-estima e ser inclusivamente um factor perturbador das
actividades sociais.4
Os valores de prevalência da halitose nos escassos estudos internacionais
publicados variam entre 2 e 44%.5,6 Esta disparidade de valores justifica-se
pela subjectividade dos critérios de diagnóstico, dos métodos de avaliação e
das técnicas de amostragem.3
Vários factores de risco têm sido associados a halitose, nomeadamente: o sexo
masculino, a idade mais avançada, a ausência do uso regular de fio dentário e
falta de limpeza regular da língua.7,8
O presente estudo visa determinar a prevalência de halitose numa consulta de
Medicina Geral e Familiar e determinar variáveis associadas à halitose,
colmatando a inexistência, a nível nacional, de trabalhos de investigação nesta
área.
Os objectivos propostos consistiram em:
• determinar a prevalência de halitose nos utentes de uma Unidade de Saúde
Familiar;
• verificar se existe associação entre halitose e as variáveis: sexo, idade,
hábitos de higiene oral, uso de antidepressivos, hábitos tabágicos e hábitos
alcoólicos;
• apurar se existe associação entre halitose e auto-percepção de mau hálito;
• averiguar a importância atribuída pelos utentes ao médico de família na
abordagem da halitose.
MÉTODOS
Foi efectuado um estudo observacional, transversal, analítico, com recolha de
dados no dia 5 de Novembro de 2008, na USF S. Félix da Marinha, pertencente ao
Agrupamento de Centros de Saúde Espinho/Gaia.
A população do estudo correspondeu aos utentes inscritos na USF, com idade
igual ou superior a 3 anos.
Foi utilizada uma técnica de amostragem não aleatória, de conveniência.
Os utentes que recorreram à USF no período de recolha dos dados foram
informados pelos funcionários administrativos da realização do trabalho de
investigação e convidados a participarem no mesmo.
A recolha dos dados foi efectuada através da aplicação de um primeiro
questionário de auto-preenchimento, seguindo-se a aplicação de um segundo
questionário por entrevista pessoal e avaliação da halitose com um cromatógrafo
gasoso (Oralcroma®, Abilit Corp.,Japão – concedido pelo Instituto do Hálito –
Breath Research). A cromatografia gasosa é um exame recentemente aplicado em
estudos epidemiológicos que permite a medição dos compostos sulfurados voláteis
(CSV).9 A medição de CSV em concentração superiores a 110 ppb é indicativa da
presença de halitose.10
Foram excluídos os utentes que, nas duas horas anteriores ao exame objectivo,
tinham fumado, mastigado pastilhas elásticas, ingerido alimentos, escovado os
dentes ou tinham usado elixires orais.11
No caso de crianças menores de 12 anos, o questionário foi preenchido pelos
pais. Ambos os questionários foram desenvolvidos pelos autores, baseados nos
utilizados em estudos epidemiológicos prévios.5-7 Foi efectuado um teste piloto
com 5% do tamanho da amostra para avaliar a facilidade de leitura da informação
contida nos questionários, tendo-se verificado a viabilidade deste. Foram
garantidos o anonimato e a confidencialidade dos dados.
As variáveis avaliadas foram as seguintes:
• idade – por segmentação em quatro grupos etários para tratamento estatístico
(3-20 anos, 21-40, 41-60 e ≥ 61 anos);
• sexo – género do indivíduo;
• halitose – presença de compostos sulfurados voláteis acima de 110 ppb;
• escovagem frequente dos dentes – definida como o hábito de escovar os dentes
pelo menos duas vezes por dia;
• limpeza regular da língua – definida como o hábito de limpar a língua pelo
menos uma vez por dia;
• uso regular de fio dentário – definida como o hábito de usar o fio dentário
pelo menos três vezes por semana;
• hábitos tabágicos – consumo actual de pelo menos um cigarro por dia;
• hábitos alcoólicos – consumo actual de pelo menos uma bebida com álcool por
dia;
• uso de antidepressivos – terapêutica actual com antidepressivos com início há
mais de um mês;
• auto-percepção de mau hálito – sensação de halitose no momento da observação;
• importância atribuída ao médico de família – o utente foi questionado sobre
qual o profissional de saúde que consultaria em primeiro lugar caso tivesse
halitose.
Os dados recolhidos foram codificados e registados em base de dados informática
recorrendo ao Software Microsoft Excel® e tratados com o software SPSS®,
versão16.0®. Foram determinados resultados referentes à estatística descritiva
e inferencial. Foi utilizado o teste de Qui-quadrado para comparação de
proporções. Foi adoptado um nível de significância de 0,05.
RESULTADOS
Caracterização da amostra
Foram convidados a participar no estudo 144 utentes utilizadores da USF. Em 30
utentes verificaram-se factores de exclusão. A taxa de resposta foi de 86,8%,
pelo que o tamanho amostral perfez 99 utentes, dos quais 66,7% do sexo feminino
e 33,3% do sexo masculino. A distribuição etária variou entre os três e os 77
anos, com uma idade média de 40 anos e um desvio padrão de 17 anos.
Prevalência de halitose
A prevalência de halitose encontrada foi de 49,5% (IC 95%: 39,8 a 59,2%).
Factores associados à halitose
A prevalência de halitose no sexo masculino foi de 69,7% versus 39,4% no sexo
feminino, diferença esta que se reputa estatisticamente significativa. A
prevalência de halitose nos diferentes grupos etários também revelou diferenças
estatisticamente significativas, aumentando a sua prevalência com a idade
(Quadro_I).
Os resultados do estudo dos hábitos de higiene oral em associação à halitose
encontram-se resumidos nos Quadro_II, III e IV. Verificou-se associação
estatisticamente significativa entre halitose e ausência dos seguintes hábitos:
uso regular de fio dentário e limpeza regular da língua. Não foi encontrada
associação estatisticamente significativa entre halitose e escovagem pouco
frequente dos dentes.
Em relação à caracterização dos hábitos tabágicos e alcoólicos não se
verificaram diferenças estatisticamente significativas (Quadro_V e VI).
Relativamente à toma de medicamentos, observou-se uma prevalência muito
superior nos doentes sob terapêutica actual com fármacos antidepressivos, sendo
esta diferença estatisticamente significativa (Quadro_VII).
Não foi encontrada associação entre halitose e auto-percepção de mau hálito de
acordo com os resultados descriminados no Quadro_VIII.
Aos participantes do estudo foi colocada a seguinte questão: «qual o médico que
procuraria em primeiro lugar caso tivesse mau hálito?» Por ordem decrescente,
foram escolhidos os seguintes profissionais de saúde: o médico dentista
(41,4%), o médico de família (36,4%), o gastrenterologista (13,1%) e o
otorrinolaringologista (9,1%).
DISCUSSÃO
O presente estudo é pioneiro em Portugal no âmbito da halitose. Salienta-se o
facto de ter sido utilizado um método objectivo de determinação da halitose – a
cromatografia gasosa. A taxa de participação foi mais alta do que a esperada,
tendo-se observado um interesse geral por parte dos participantes acerca do
tema em foco.
No entanto, este estudo apresenta certas limitações. A inexistência de um
diagnóstico bem definido e universal de halitose pode ter originado um viés de
classificação. A aplicação de questionários não validados e de auto-
preenchimento pode ter gerado viéses de medição e de informação,
respectivamente. Além disso, a amostra foi de conveniência e não foi efectuado
o cálculo da amostra prévio, o que pode ter condicionado um erro aleatório e
viés. Por último, o facto de a amostragem ter sido não aleatória impossibilita
a inferência para a população do estudo.
A prevalência de halitose encontrada neste estudo foi de 49,5%. Nos demais
estudos que também utilizaram aparelhos de medição de CSV, a prevalência
apurada variou de 0,9 a 42,6%.12 Tem-se atribuído esta discrepância às
diferenças de características das populações estudadas no concernente aos
hábitos regulares de higiene oral e às consultas regulares com o profissional
de saúde oral.12-14 É de referir que o nosso estudo foi realizado numa área com
uma mescla de características urbanas e rurais, com predomínio das segundas e
com um nível socioeconómico médio-baixo.
Neste estudo, identificou-se o sexo masculino como factor de risco de halitose.
Pelo contrário, na maioria dos estudos encontrados não foram detectadas
diferenças significativas entre sexo e halitose.10 Alguns estudos sugerem que
as mulheres são as que mais procuram ajuda e tratamento pois são as que mais
valorizam a halitose.10,13
A idade superior a 61 anos também foi identificada como factor de risco. Um
factor contribuinte poderá advir do aumento, com a idade, da doença
periodontal.6 Todavia os três estudos encontrados que incluíram indivíduos com
idade avançada não constataram haver diferenças significativas.7,9,14
De forma semelhante a outros estudos, a ausência do uso regular de fio dentário
e a ausência de limpeza regular da língua foram identificados como factores de
risco de halitose. Por seu turno, não foi encontrada associação entre halitose
e ausência do hábito de escovagem regular dos dentes. Note-se que os locais
predominantes de produção de CSV de origem bacteriana são o dorso da língua e o
sulco gengival, tendo a superfície dentária uma menor relevância.15,16
De forma concordante com a bibliografia, não se verificou associação entre
halitose e hábitos tabágicos e alcoólicos.10,14 Convém assinalar que foram
excluídos os indivíduos que, nas duas horas anteriores ao exame objectivo,
tinham fumado ou ingerido bebidas alcoólicas.
Foi encontrada associação entre terapêutica com antidepressivos e halitose.
Este foi o primeiro estudo a nível internacional que investigou estas
variáveis. Duas explicações podem justificar este resultado. Por um lado, sabe-
se que o uso continuado de antidepressivos poderá diminuir o fluxo salivar.2 A
hipossalivação é um factor etiológico de halitose, uma vez que a saliva exerce
uma função de limpeza dos substratos orgânicos presentes na boca. Por outro
lado, a depressão pode diminuir a motivação para uma correcta higiene oral. São
necessários mais estudos que apoiem estes resultados.
Não se verificou associação entre halitose e a auto-percepção de halitose. Este
resultado é apoiado pela literatura: o facto de uma pessoa exalar um mau odor
real (apurado por terceiros – provas organolépticas – ou averiguado por
cromatografia gasosa) não significa necessariamente que percepcione o próprio
hálito como desagradável (auto-percepção). Alguns autores apontam os fenómenos
relacionados com a habituação olfactiva ao próprio odor como uma explicação
para este facto.3,6 A ocorrência de halitose nestes doentes constitui um
problema pois a sua presença é frequentemente um indicador de actividade
bacteriana anormal ou de um mecanismo fisiológico alterado. A detecção e a
identificação da etiologia da halitose podem contribuir para o diagnóstico
precoce de certas doenças com efeitos prejudiciais (por exemplo, a doença
periodontal que pode resultar na perda prematura dos dentes).2-3 Deste modo, é
importante que estes doentes sejam informados sobre a existência de halitose
real.
A situação inversa, isto é, a auto-percepção de halitose sem confirmação por
cromatografia ou por terceiros (pseudohalitose) também pode representar um
problema. A mera suspeita de ser portador de mau hálito geralmente provoca um
impacto na qualidade de vida, sobretudo ao nível psicológico, com manifestações
comportamentais visíveis (cobrir a boca ao falar, manter uma maior distância
interpessoal ou evitar relações sociais).4 Existem diversos factores que podem
contribuir para uma percepção irreal de halitose (pseudohalitose),
concretamente: disgeusias e a doença do refluxo gastroesofágico.4,10,17 Para um
correcto diagnóstico (halitose real versus pseudohalitose) e elaboração do
plano de tratamento, é importante indagar se as queixas por parte do paciente
estão fundamentadas apenas na sua auto-percepção ou se houve confirmação por
parte de terceiros ou através de instrumentos de medição (ex. cromatógrafos
gasosos).
O médico de família foi o profissional de saúde escolhido em segundo lugar
pelos utentes com vista à abordagem inicial da halitose. Este resultado alerta
para a necessidade da formação médica contínua ao nível da saúde oral. Ademais,
a ausência de hábitos regulares de higiene oral, como o uso de fio dentário e a
limpeza da língua, são factores de risco susceptíveis de maior intervenção nas
consultas programadas. O reconhecimento da associação entre halitose e
antidepressivos é importante no acompanhamento clínico dos doentes sob
terapêutica crónica com estes fármacos.
Na prática clínica, o médico de família reúne competências acrescidas na
abordagem da halitose e da pseudohalitose. Para tal contribuem a relação de
proximidade e confiança médico-doente, bem como a possibilidade de envolver os
familiares no diagnóstico e tratamento do problema em causa. Presentemente, a
cromatografia gasosa é um exame disponível apenas no âmbito da Medicina
privada. Assim sendo, a anamnese e o exame objectivo (com ênfase particular da
orofaringe) permanecem fundamentais na avaliação inicial dos doentes com
queixas de halitose. A referenciação hospitalar (por exemplo, para a consulta
de estomatologia) e, eventualmente, a orientação para uma consulta específica
do hálito a nível da Medicina privada, devem ser ponderadas de acordo com a
gravidade clínica, o impacto das queixas na qualidade de vida e o nível
socioeconómico de cada doente.
O presente estudo veio colmatar a inexistência de trabalhos de investigação
acerca de uma patologia com elevada prevalência. No entanto, reveste-se de
capital importância a realização de novos estudos com indivíduos pertencentes a
diferentes localizações geográficas e mais representativos do nível
socioeconómico da população portuguesa. Sugerem-se futuras linhas de
investigação que avaliem outras variáveis, tais como: o nível socioeconómico, a
terapêutica com outros medicamentos xerostómicos (inibidores da bomba de
protões, ansiolíticos e anti-histamínicos) e variáveis emocionais e
comportamentais relacionadas com o impacto da halitose na qualidade da vida.