Realidades e imagens do especismo: impactos da indústria (agro)pecuária e
representações publicitárias de animais não-humanos sencientes
1. (Agro)pecuária: evolução, processos e impactos
1.1. Produção/consumo de animais não-humanos sencientes: evolução da
(agro)pecuária
A partir da segunda metade do século XX, a relação dos animais não-humanos3
sencientes com a espécie humana alterou-se consideravelmente nos países mais
desenvolvidos, sobretudo devido às repercussões da otimização tecnológica e das
mudanças económicas, políticas e socioculturais no setor da (agro)pecuária. Com
efeito, a industrialização modificou os dez mil anos de agricultura de base da
civilização humana. Das primeiras máquinas debulhadoras de 1830 aos tratores
modernos do pós-guerra, dos antibióticos aos rentáveis modelos de negócios
corporativos, a industrialização tem vindo a dominar as mentalidades e as
práticas da agricultura e da agropecuária.
Os/As criadores/as de gado do mundo ocidental adotaram critérios de métodos de
produção fundados num mercado livre, competitivo e em crescendo. O paradigma de
criação de animais não-humanos sencientes baseado num modelo de subsistência
local transformou-se num tipo de distribuição mais intensiva e mais vasta em
termos territoriais. Este novo modelo consiste na criação industrial ou no
factory farming, cujo abate de animais para serem convertidos em carne4
aumentou substancialmente desde 1961 (71 milhões de toneladas), chegando, em
2007, aos 275 milhões de toneladas. Peritas/os preveem que, em 2050, a produção
de animais não-humanos sencientes para abate duplicará, superando as 465
milhões de toneladas (Cf. Halweil, 2008).
Portugal tende a revelar padrões de produção e de consumo idênticos aos países
mais desenvolvidos. O Instituto Nacional de Estatística (INE) confirma esta
tendência: as/os consumidoras/es portuguesas/es têm uma dieta com índices
excessivos em proteínas de origem animal, em detrimento de frutos, legumes e
leguminosas secas. Entre 2005 e 2010, carne, peixe, ovos, óleos e gorduras
registaram um consumo excedentário em 11% para além do recomendado. Em
relação ao grupo dos hortícolas, a população portuguesa apresenta um consumo
deficitário em 10%. Ao longo dos cinco anos em análise, o consumo de carne
aumentou cerca de 7%, a uma taxa média anual de 1,1%. De acordo com o INE, esta
tendência começou a verificar-se a partir de 1990 (Cf. Base de Dados de
Qualidade e Segurança Alimentar, 2010).
1.2. Impactos da produção/consumo de animais não-humanos sencientes
Desde 1950, a produção e o consumo de animais não-humanos sencientes aumentou
substancialmente nos países mais desenvolvidos. Todavia, a sua produção para
abate tem impactos registados a vários níveis: ' Malefícios na Saúde Pública.
O consumo de animais não-humanos sencientes está diretamente relacionado com
obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes e cancros (com maior incidência
no cólon e próstata), que são, de resto, as principais causas de morte nos
países mais ricos. No panorama nacional, o INE certifica que a disponibilidade
para o consumo de gorduras saturadas excede as recomendações internacionais e é
um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças
cardiovasculares (Balança Alimentar Portuguesa, 2010: 4). Estudos
referenciados internacionalmente têm relacionado o consumo da carne vermelha
ou de carnes processadas com o aumento de riscos de várias doenças: o World
Cancer Research aponta a carne vermelha como um dos fatores de risco de
cancro (acima dos 20%) do pulmão e do colo-retal.
De acordo com estudos no Nutrition, Metabolism and Cardiovascular Diseases, o
consumo de carnes vermelhas está associado ao aumento em 24% de doenças
cardiovasculares, em particular, ataques cardíacos.
No jornal Diabetologia (Cf. Daniell, 2009), cientistas da Universidade de Oslo
concluem que o elevado consumo de carne vermelha ou de carne processada
aumenta o risco de desenvolver diabetes tipo 2 em 40%. Antibióticos
provenientes de rações químicas, vacinas, pesticidas, drogas alopáticas
variadas, carapaticidas, toxinas como o escatol, histamina, putrescina,
cadaverina, notrosaminas, nitritos e nitratos, químicos como o formol,
adrenalina, adrenocomo e adrenolutina, benzopireno, sagihate (verme intestinal
perigoso); bactérias e vírus diversos; brucelose, tuberculose bovina;
substâncias linfocitárias alergenos, antigenos, benzoqureno, e as hormonas
sintéticas (dietiletilobestrol e sulfato de sódio) são administrados a animais
não-humanos para prevenir doenças, aumentar a produção de leite e acelerar o
crescimento. Estes constam no conjunto de químicos nocivos assimilados pelo
organismo humano aquando da ingestão de animais nãohumanos sencientes ou de
lacticínios (Cf. Barreto, 2007).
' Distribuição não equitativa de recursos: má nutrição.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 3 biliões de
pessoas apresentam má nutrição. Inúmeros estudos apontam que a produção
intensiva de animais não-humanos sencientes constitui uma das causas para este
facto, pois o factory farming encerra graves problemas de insustentabilidade
atinentes ao uso de recursos naturais (e.g. água, solo e energia).
A produção de grão e de cereais tem sido um pilar fundamental no sustento
humano. Porém, a distribuição destes alimentos é desigual na rede económica
global das sociedades contemporâneas: não atende às necessidades das populações
mundiais, apenas às dos países desenvolvidos. Quem tem acesso à produção de
animais não-humanos sencientes são os países mais ricos e as elites dos países
mais pobres. Cerca de 70% da produção mundial de grão e de cereais é utilizada
para a produção de carne. A produção de proteína animal é demasiado exigente
ao nível de recursos. Em termos concretos, uma dieta à base de carne exige
sete vezes mais solo que uma dieta à base de vegetais (Cf. Leckie, 2002);
produzir 1kg de carne requer cerca de 13kg de grão, 30kg de feno e 100,000L
de água (Cf. Pimentel et al., 2003). Em comparação, 900L de água são
necessários para produzir 1kg de milho e precisa-se de 3,000L de água para
produzir 1kg de arroz (Cf. Footprint UNESCO-IHE, 2008). Na produção de 1kg de
soja, são necessários 2,000L de água e apenas 500L para produzir 1kg de
batatas. Por exemplo, as populações de animais não-humanos sencientes para
abate consomem sete vezes mais grão/cereais que a população norte-americana
(idem). Assim, se a produção industrial de animais não-humanos sencientes fosse
reduzida a cerca de 70%, o alimento básico produzido atualmente seria
suficiente para colmatar as necessidades das populações mundiais,
integralmente.
' Degradação ambiental.
Em consonância com o relatório Livestock´s Long Shadow ' Environmental Issues
and Options (2006), a indústria da pecuária é um dos maiores responsáveis pela
degradação ambiental, nomeadamente pela poluição da água, degradação dos solos
e perda de biodiversidade (Cf. FAO United Nations, 2006: 408). O documento
mostra que o setor da agropecuária emerge como um dos dois ou três maiores
contribuidores de problemas ambientais sérios, às escalas local e global
(idem). O setor da agropecuária é responsável pela emissão de 18% de gases
poluentes, taxa ainda mais elevada que o setor dos transportes (Cf. FAO United
Nations, 2006: 408).
A produção de proteína animal requer oito vezes mais energias fósseis do que a
de origem vegetal. De acordo com Daniele Fanelli, a produção de 1kg de carne
equivale à distância percorrida por um automóvel de 250 km e queima energia
suficiente para acender uma lâmpada de 100W durante quase vinte dias (Cf.
Fanelli, 2007).
Os animais não-humanos sencientes geram uma quantidade de excrementos três
vezes superior àquela gerada por humanas/os. A Ribeira dos Milagres, no
concelho de Leiria, trata-se de um dos casos paradigmáticos em Portugal:
apresenta espuma abundante e cheiro característico das suiniculturas, em
virtude do excesso de produção de suínos, cujos dejetos são lançados para as
águas, dizimando peixes e afetando as populações circundantes (Cf. FAO United
Nations, 2006: 408).
' Consumo de animais não-humanos e a monopolização do mercado nacional Portugal
é palco para que grandes cadeias de fast-food possam expandir-se. Em 2008, a
Burger King gerou 12 milhões de euros, uma subida de 34,9%, ao passo que a KFC
conseguiu seis milhões (+2%) (Cf. Madeira, 2008). A maior cadeia de
restaurantes de fast-food do mundo ' McDonalds ' divulgou um aumento dos lucros
da empresa em 10% no terceiro trimestre de 2010, tendo lucrado 1,39 mil milhões
de dólares (Cf. Garcia, 2010). Em contraste, a Associação da Hotelaria,
Restauração e Similares de Portugal indica uma quebra média do volume de
negócios do setor entre 30 e 35%, no terceiro trimestre, em 2008 (Cf. Madeira,
2008).
' Violação dos direitos dos animais não-humanos sencientes.
A senciência consiste na capacidade de sentir emoções e sensações (e.g. dor,
prazer, fome, sede, calor, frio, etc.). O animal não-humano senciente é capaz
de interpretar informação, compreender o seu contexto, estabelecer relações com
os seus pares, analisar perigos. A senciência não significa, necessariamente, a
posse de capacidades complexas de entendimento, aprendizagem e/ou
intelectualidade, embora também as possa incluir (Cf. Compassion in World
Farming Trust, 2006: 6).
O reconhecimento dos direitos dos animais não-humanos depende de assumpções
ideológicas e socioculturais, que legitimam a chacina de uns e não a de outros.
No Ocidente, por exemplo, há uma maior preocupação social em proteger cães e
gatos, já que estes são pensados como animais de companhia (Cf. Compassion in
World Farming Trust, 2006: 9). Por outro lado, a vaca, o porco, a galinha ou a
ovelha são consideradas/ os animais comestíveis ou food animals. São
coisificadas/os, fragmentadas/os e consumidas/os. Porém, antes ainda da sua
objectificação, fragmentação e consumo, estes seres sencientes são expostos às
mais diversas formas de opressão, exploração e violência durante os processos
industriais.
Com efeito, os animais não-humanos sencientes fabricados sofrem com a privação
de liberdades e ações. Milhões vivem fechados, acorrentados e circunscritos a
espaços exíguos, insalubres e, muitas vezes, sem luz solar ou artificial. É
frequente o desenvolvimento de infeções e/ou doenças, automutilação, etc. (Cf.
Compassion in World Farming Trust, 2006: 30).
Os comportamentos naturais são mecanicamente regulados (e.g. procriação,
aleitamento, etc.) e o tipo, frequência e modo de alimentação são definidos
apenas com vista à maximização dos lucros das empresas pecuárias (Cf.
Compassion in World Farming Trust, 2006: 40). Mutilam-nos (e.g. castração,
corte de cauda, debicar, descornar, etc.) sem uso de anestesiantes; são-lhes
injetados hormonas, vacinas e antibióticos para acelerar o crescimento e
desenvolver massa corporal (Cf. Harfeld, 2010: 143). As fêmeas tendem a
desenvolver problemas de saúde graves, pois são obrigadas a procriar
reiteradamente de forma a maximizar a produção; as vacas, por exemplo, sofrem
de claudicação crónica, inflamações mamárias/infeções nos úberes; os bezerros
machos, considerados inúteis na indústria de lacticínios, são geralmente mortos
(Cf. Compassion in World Farming, 2006: 40).
Os animais não-humanos sencientes produzidos são ainda impedidos de criar e
participar em atividades lúdicas específicas da sua espécie, são-lhes quebradas
as relações de parentesco desde a tenra idade, estabelecem relações sociais
muito limitadas, não conseguem comunicar idoneamente com membros do seu grupo
ou família (Cf. Compassion in World Farming Trust, 2006).
O transporte dos food animals provoca-lhes, frequentemente, dor e doenças, na
medida em que são deslocados em grande número, carregados, descarregados e
mantidos em espaços pequenos, sob o uso de violência (Cf. Compassion in World
Farming, 2006: 33).
Estas realidades esbatem, em parte, nas provisões reguladoras da produção
industrial de animais não-humanos na Europa. Por exemplo, a Convenção Europeia
sobre a Protecção dos Animais nas Explorações de Criação (1976), aprovada pelo
Conselho da Europa, prevê que as condições de alojamento, alimentação e
cuidados devem ter em conta as necessidades dos animais (Cf. conselho da
Europa, 1976).
Também a Directiva da União Europeia de 1998 distingue a importância do bem-
estar dos animais explorados para fins agropecuários (Cf. União Europeia,
1998).
Há ainda a Convenção Europeia sobre a Protecção dos Animais de Abate (1979),
que determina a aplicação de métodos de abate que poupem aos animais, na
medida do possível, o sofrimento e as dores (Cf. Conselho da Europa, 1979).
Não obstante, o sofrimento físico e psicológico, medo, stress e ansiedade são
presenças constantes no quotidiano dos food animals.
2. O reconhecimento do sistema carnista
2.1. Carnismo: a emergência demorada de um conceito
De acordo com Melani Joy, o carnismo consiste num sistema ideológico que induz
as pessoas a comer (determinados) animais não-humanos; sustenta o consumo de
animais não-humanos como um dado adquirido e não como uma opção/construção
sociocultural (Cf. Joy, 2011). Este sistema ideológico assenta na presunção de
que a/o comedor/a de carne tem o direito de beneficiar do estatuto mais baixo
da vítima que é o animal não-humano. Além do mais, expõe o facto de que, embora
nem sempre de forma explícita, as/os comedoras/es de carne receiam sacrificar o
seu gosto (Adams, 2010: 12).
O vegetarianismo reconhece-se, há séculos, como prática consciente: nunca se
refere as/os vegetarianas/os como consumidoras/es de plantas porque está
subjacente que esta escolha dietética pretende vetar o consumo de animais não-
humanos. Por outro lado, o termo carnismo surgiu apenas recentemente, mostrando
a complexidade de rotular ideologias dominantes, amplamente assimiladas,
consideradas senso comum. Quem come animais não-humanos é sempre referido
como consumidor/a de carne e não como carnista, o que sugere que o seu ato
não está anexo ao seu sistema de crenças. Carnista é o termo que descreve a
pessoa que age em concordância com o carnismo, assim como capitalista e
socialista se referem àquelas/es cuja atuação é consonante com o capitalismo
e o socialismo, respetivamente. Porém, contrariamente aos istas atrás
mencionados, a maioria das/os carnistas não tem consciência da sua posição
ideológica, pois esta é edificada por via da socialização.
O carnismo sonega a senciência dos animais não-humanos, desvaloriza as
capacidades destes em estabelecer relações sociais e de parentesco, etc. Além
disso, justifica o ato de comer animais não-humanos através da criação de
mitos, mormente sobre a imprescindibilidade da carne para o organismo humano.
Normaliza, naturaliza e cria (falsas) necessidades nos indivíduos, ou seja,
sustenta que comer animais não-humanos é normal, natural e necessário.
Os agentes ideológicos ' e.g. Família, Escola, Média, Religião, Estado, etc. '
permitem disseminar e consolidar práticas carnistas, bem como assegurar a sua
continuidade.
Categorizam os animais não-humanos sencientes por graus de importância,
definindo os que são comestíveis e aqueles com os quais se desenvolvem
relações de afetividade.
Nas sociedades ocidentais, é suposto não se criarem laços com porcos, vacas,
galinhas ou coelhos (i.e. com os food animals). Estes sujeitos são
considerados utensílios para colmatar desejos humanos; ocupam uma posição
notoriamente inferior, por exemplo, em relação aos cães ou gatos; são
desprovidos de relevância ética.
Há, portanto, uma hierarquia especista opressora, que se estriba na
transformação de animais não-humanos (sencientes) em referenciais ausentes
(Adams, 1990).
2.2. Referenciais ausentes: objetificação, fragmentação e consumo
De acordo com a ecofeminista Carol J. Adams (1990: 67), referenciais ausentes
são sujeitos a quem o sentido original é arrancado para ser integrado numa
categoria diferente de significação. No caso dos animais não-humanos, o seu
sentido original é absorvido por uma hierarquia antropocêntrica.
Com efeito, os animais não-humanos sencientes são arremessados para um processo
de objetificação, fragmentação e consumo. O/A agressor/a olha o ser senciente
como uma coisa, legitimando-se a matar e a fragmentar. Desaparece o animal
não-humano e surge a carne (Adams, 1990: 66). O consumo resulta da
objetificação e da fragmentação: é o manifesto da opressão, aniquilamento de
interesses e dissecação de identidades.
A conversão de animais não-humanos sencientes em referenciais ausentes ocorre
a três níveis: presencial (chacina do animal que o torna fisicamente ausente),
linguístico (aplicação de atributos gastronómicos a cadáveres de animais) e
metafórica (ligação a experiências do/a carnista). A chacina dos animais não-
humanos arranca-lhes a individualidade; torna-os em cadáveres anónimos. A
língua/cultura abarcam múltiplas designações para cadáveres animais; mistifica
o termo carne com cunhagens gastronómicas para omitir a violência inerente à
chacina, proteger a consciência do/a consumidor/a, retirar a carga emocional ao
abandono ético. O termo carne contém um poder de significação globalizado: os
bois, vacas ou porcos são substituídos por fêvera, chouriço ou bife. Os
animais são mortos diariamente por serem em vez de por fazerem; são mortos
porque são apenas animais (Cf. Adams, 2010: 6).
Os referenciais ausentes consubstanciam-se, ainda, por via da metaforização.
Os cadáveres de animais não-humanos sencientes transformam-se em metáforas para
descrever experiências individuais e coletivas das pessoas (idem).
2.3. Publicidade: omissória nos referenciais dos animais não-humanos
sencientes
Quando as pessoas dizem que foram tratadas como animais', elas dizem: foram
tratadas como se não fossem indivíduos' (Adams, 2010:7) O modo como os animais
não-humanos sencientes são percecionados está ligado aos sistemas nos/pelos
quais são representados, como na/pela cultura, crenças e sistemas linguísticos.
A publicidade reúne, justamente, estes três componentes, sendo um terreno
prolixo na fabricação do consentimento5 em relação a práticas especistas.
Na sua dimensão estratégica, a publicidade tem como objetivo cultivar modos de
pensar, instigar necessidades, fabricar desejos em relação a determinados
produtos. A publicidade é incitadora à ação; muitas vezes, usa alusões diretas,
exerce uma função conotativa através de uma ação simbólica sobre a/
o destinatária/o, que visa modificar as suas atitudes e comportamentos (Cf.
Volli, 2003: 82).
A perceção humana relativamente aos animais não-humanos sencientes funda-se,
essencialmente, em relações utilitárias (Adams, 2006). Nestas, está implícita
uma intensa socialização, que tem início na infância através de uma incessante
integração de estruturas mentais hegemónicas partilhadas por outros membros e
instituições. Por parte das indústrias de produção intensiva de animais não-
humanos sencientes para abate, assegurar a ideologia do consumo implica exercer
o máximo controlo na conceção das mensagens publicitárias, ou seja, garantir
práticas de receção suscetíveis de proporcionar efeitos de reprodutibilidade de
valores anexos ao produto. Por isso, é crucial a conceção de anúncios
hipersedutores que associem os produtos a estímulos de felicidade, status e
signos de prestígio; que apelem à simpatia, naturalidade, energia, etc.
No âmbito de uma sociedade capitalista e patriarcal, mulheres e animais não-
humanos são representadas/os a partir do olhar masculino, ou seja, num
enquadramento no qual o observador é o consumidor homem branco. Com efeito, há
características manifestas nas fórmulas de representação na publicidade. Por um
lado, destacam-se a animalização, a domesticação e a naturalização das
mulheres; por outro, a sexualização (antropomórfica) de animais não-humanos.
Ambos os grupos partilham da condição de subordinação e objetificação na
contemporaneidade (Cf. Potts, 2010).
De acordo com Carol J. Adams, as representações da indústria pornográfica6
apresentam inúmeras similitudes com as representações publicitárias alusivas a
animais não-humanos sencientes. A primeira representa os corpos das mulheres
como disponíveis e animalizados: elas usam lingerie cujo padrão remete para
animais não-humanos selvagens, envergam casacos de peles, etc. A segunda
apropria-se de trâmites das representações de género, associando animais não-
humanos à sexualidade humana e fomentando uma naturalização de sistemas de
valores atinentes à feminilidade e ao consumo de carne (Adams, 2010).
A associação de mulheres com animais não-humanos (e vice-versa) estereotipa
ambos os grupos, definindo os parâmetros delimitadores à espécie humana,
legitimando a instrumentalização das mulheres e animais não-humanos, e
naturalizando a marginalização e degradação metafóricas (Cf. Matthews, s/d: 6).
Por outras palavras, a coisificação sexual das mulheres e a sexualização de
animais não-humanos sobrepõem-se e reforçam-se mutuamente.
No Ocidente, as representações publicitárias dos food animals transmitem a
ideia de que estes querem ser desejados, exibem-nos como se eles se
autopromovessem para consumo humano. Em regra, as fêmeas surgem sexualizadas.
Os corpos de galinhas ou vacas são apresentados como consumíveis, são
erotizados: usam maquilhagem, fatos de banho, lingerie, óculos de sol e
adereços convencionalmente femininos, opondo-se a outros animais não-humanos
que usam peúgas, calções, sapatilhas e emproam poses masculinas. Sob falsas
apoteoses de liberdade, estes animais surgem como coniventes com a sua própria
instrumentalização: manejam-se, expressam-se, vendem-se, incentivam a sua
própria exploração (Cf. Pedersen, 2010: 35). A violência contra eles cometida é
omissa, os mecanismos de opressão são obliterados, os impactos de produção
querem-se sonegados. Criam-se, por conseguinte, conceções erróneas sobre as
realidades destes sujeitos; enviesa-se a perceção visual; instaura-se uma falsa
ideia de equilíbrio entre pessoas e animais não-humanos; forja-se um mundo
inocente, neutro e natural: sustenta-se que querem ser usados sexualmente;
querem ser consumidos. E assim a violência tornou-se em sexo. (Cf. Pedersen,
2010: 35).
Em suma, as potencialidades da máquina publicitária encerram, paradoxalmente, o
seu maior perigo (Volli, 2003: 160). Com vista à maximização das receitas, os
grupos sociais mais poderosos (i.e. que detêm privilégios e o controlo da
representação simbólica) consolidam atitudes, crenças e práticas de
socialização (especistas) que se instituem como guias para a perceção social e
interação (Cf. Dijk, 1995: 249).
3. Metodologia, análise e discussão
3.1. Caracterização da metodologia utilizada
A presente secção recorre-se da abordagem sociosemiótica de Kress e van Leeuwen
(1996) para analisar a representação de animais não-humanos sencientes em
imagens publicitárias, deslindar a interação entre o/a produtor/a e o/
a observador/a e perceber se a composição de tais imagens suportam as
ideologias carnista e especista.
De acordo com Kress e van Leeuwen (1996: 17), a linguagem e a comunicação
visual expressam significados atinentes e estruturados pelas culturas de uma
determinada sociedade, mas cada uma possui formas independentes. Para os
autores, a comunicação encerra uma base social: os significados veiculados por
locutoras/ es, escritoras/es ou fotógrafas/os são sociais, ou seja, advêm da
sociedade onde os indivíduos se encontram.
Com base nas categorias de Halliday (1985), Kress e van Leeuwen (1996) sugerem
três níveis para a análise de imagens visuais: o significado representacional,
o interaccional e o composicional.
O significado representacional consiste na capacidade do sistema semiótico
representar objetos e as relações estabelecidas entre os/as participantes. Há
participantes interativas/os (i.e. participantes no ato de comunicação, que
falam, escrevem, fazem imagens ou observam-nas) e participantes representadas/
os (i.e. participantes que são os sujeitos da comunicação: pessoas, animais,
locais e coisas representados no/pelo discurso, escrita ou imagem). As imagens
podem ser narrativas e/ou conceptuais. As primeiras representam as/os
participantes em ações, acontecimentos, processos de mudança e transitoriedade
espacial; mostram as relações estabelecidas entre elas/es. As segundas
representam a classe, estrutura ou significado da/o participante; remetem para
essências generalizadas e mais ou menos estáveis e intemporais (Kress e van
Leeuwen, 1996: 79); equivalem aos processos relacional e existencial da
linguagem (idem: 114).
O significado interaccional refere-se à relação entre o/a produtor/a e o/
a observador/a da imagem, ou seja, ao modo como as/os participantes
interativas/os actuam. Os/As participantes interativos/as são pessoas que
produzem imagens no contexto de instituições sociais que, em certa medida,
determinam o tipo, canais e interpretação das mensagens veiculadas nas imagens
(Kress e van Leeuwen, 1996).
O significado composicional remete para os elementos que compõem as imagens,
relacionando os significados representacional e interaccional e integrando-os
num todo significativo (Kress e van Leeuwen, 1996: 181). Fá-lo através de três
sistemas: o valor da informação (i.e. a colocação dos elementos confere-lhes um
valor informativo específico), a saliência (i.e. os elementos da imagem são
dispostos para atrair o/a observador/a) e o enquadramento (i.e. presença ou
ausência de dispositivos de enquadramento que conectam ou desconectam elementos
da imagem) (idem: 183).
Deste modo, a semiótica social de Kress e van Leeuwen (1996) permitirá analisar
a representação de animais não-humanos sencientes em imagens publicitárias, a
interação entre o/a produtor/a e o/a observador/a e a composição de tais
imagens.
3.2. Análise e Discussão
O corpus do presente estudo inclui três imagens publicitárias veiculadas por
meios portugueses, que reúnem dois aspetos essenciais: 1-) presença de animais
não-humanos sencientes considerados food animals nas sociedades ocidentais:
duas vacas e uma porca; 2-) remetem para uma das duas áreas mais extensas da
indústria pecuária: pecuária de leite (i.e. criação de animais não-humanos
sencientes para fornecimento de lacticínios) e suinicultura (i.e. criação de
suínos para produção de carne). De seguida, apresentam-se as imagens objeto
de análise a partir da semiótica social de Kress e van Leeuwen:
Em imagens narrativas, as/os participantes representadas/os executam ações,
incluem-se em processos de mudança e transitoriedade (Kress e van Leeuwen,
1996). Em termos de significado representacional, a ilustração_1 é uma imagem
narrativa, na qual o Ator é a porca, que relaxa e descontrai. Embora a
participante seja da família dos suínos, a imagem mostra-a antropomorfizada:
está num espaço destinado a atividades de bem-estar (SPA); faz tratamento ao
rosto e ao corpo que, por norma, é aplicado a mulheres.
O Ator tem a visão vedada com duas fatias de pepino, que são comummente
aplicadas durante tratamentos de beleza. Ele não endereça diretamente o/
a observador/a com o seu olhar, não apela à participação direta no seu universo
imaginário. Oferece, mormente, informação sobre a qualidade do produto
publicitado, procurando salientar a charcutaria deliciosamente sã dos
Naturíssimos da Nobre. Com efeito, o distanciamento entre o Ator e a/
o participante interativa/o é anuente com as assumpções socioculturais que
pautam as relações das pessoas com os suínos. Nas sociedades ocidentais, o
porco integra-se na categoria dos food animals, pelo que comê-lo é legítimo.
Por convenção, é considerado um animal-coisa, cuja única função é fornecer
charcutaria e colmatar os caprichos humanos. O imaginário social/coletivo
ignora as suas capacidades sencientes, concebendo-o como um ser sujo, ignóbil,
que deve estar distante. É, justamente, nesse sentido que a Língua Portuguesa
conota pejorativamente vocábulos como porco, porca, porcada. De acordo
com o Dicionário de Língua Portuguesa (2004), porco refere-se ao mamífero
artiodáctilo, muito útil para fornecer carne para a alimentação do homem,
sendo ainda adjetivo sinónimo de sujo; imundo; obsceno; grosseiro. A palavra
porca significa não só a fêmea do porco, mas também mulher suja e
desleixada; e o substantivo porcada corresponde a vara de porcos, bem como
a trabalho mal feito. Há, ainda, outras palavras que se situam na mesma
árvore terminológica, a saber: porcalhão (i.e. sujo; imundo) e porcaria
(i.e. imundície; sujidade; termo obsceno).7 A Língua Portuguesa possui,
ainda, provérbios que, para além de sexistas, legitimam a violência sobre os
suínos, por exemplo: Mulher que assobia, ou capa porcos ou atraiçoa o marido.
A ilustração_1 é uma imagem marcadamente surrealista, onde prevalece o domínio
da significação. O comportamento natural dos suínos nada tem que ver com
sessões de relaxamento em SPA's. Este é um ambiente artificial para qualquer
animal não-humano.
O Ator e o/a observador/a estão ao mesmo nível do olhar. Porém, merece destaque
uma elevação muito subtil do ângulo, que situa o Ator numa posição ligeiramente
inferior. Não obstante a subtileza, este pormenor manifesta a tendência de
mostrar a porca como um produto à disposição do/a consumidor/a de
charcutaria.
No que concerne ao significado composicional, o lado direito indica o Novo: é a
informação nova, na qual as/os participantes interativas/os devem prestar
atenção, atribuir maior valor. Em contraste, o lado esquerdo refere-se ao Dado,
ou seja, ao conhecido e aceite. Nesta imagem publicitária, o logótipo da
Sociedade Portuguesa de Cardiologia está, justamente, colocado à direita, o que
mostra o propósito de salientar a Nobre como garante de uma alimentação
saudável.
O logótipo da Nobre e o respetivo slogan ' Naturíssimos, charcutaria
deliciosamente sã ' encontram-se colocados no topo da imagem e correspondem ao
Ideal. Este é o domínio da possibilidade, tem maior valor ideológico, apela às
emoções e expectativas (Kress e van Leeuwen, 1996: 55). Esta posição do
logótipo deve-se ao facto de os Naturíssimos serem então uma aposta nova da
Nobre, que precisava de ser difundida entre os/as consumidores/ as. Por outro
lado, a base da imagem contempla o Real, isto é, as informações específicas e
realistas. Aqui, encontra-se uma mensagem escrita que sustenta que os
Naturíssimos foram desenvolvidos para uma alimentação mais equilibrada e
saudável, visando-se certificar a qualidade da charcutaria e conduzir à
compra.
A ilustração_1 consiste numa imagem centrada, isto é, o Ator surge no centro do
espaço composicional, agrega e unifica o logótipo da Nobre e logótipo da
Sociedade Portuguesa de Cardiologia num postulado ' a Nobre Naturíssimos faz
bem à saúde.
No conjunto da composição, a porca é o elemento com maior saliência. O Ator
surge num primeiro plano, em tamanho significativo, deitado na cama
confortável, aconchegado pelo travesseiro. O fundo remete a um ambiente
paradisíaco, fresco, um excerto da natureza com o qual o Ator tem uma aparente
vida saudável ' que, juntamente com o logótipo da Fundação Portuguesa de
Cardiologia, reforçam a mensagem de que o produto é saudável e equilibrado. O
Ator surge antropomorfizado, recebendo tratamento facial aplicado
tradicionalmente a mulheres. Atribuem-lhe adereços, práticas e posturas
ancoradas em traços/papéis de género, tornando-a aprazível às preferências dos/
as consumidores/as. É carne, apresentada sob o aparato da feminilidade.
A ilustração_2 consiste numa imagem conceptual, porque se inclui num processo
simbólico, ou seja, refere-se ao significado das/os participantes. Inclui dois
elementos: o Atributo Simbólico (o/a participante que representa o significado
ou identidade em si mesmo) e o Transportador (a/o participante cujo significado
ou identidade se estabelece na relação). O primeiro corresponde ao queijo; o
segundo refere-se à vaca. O significado da vaca é definido em termos do leite
que ela produz para a fabricação de queijo; enquanto sujeito senciente, livre e
autónomo, ela não existe. O slogan Os nossos especialistas não são burros
sustenta, justamente, a função utilitária da vaca para os seres humanos:
ressaltando a competência das pessoas que fabricam o queijo, esclarece a
idoneidade das fontes de fornecimento de leite ' as vacas. O slogan encerra a
palavra burros que, para além de designar um animal, é comummente utilizada
em tom pejorativo para classificar pessoas pouco exímias nas suas capacidades.
É, também nesta medida, manifesto especista contido na imagem.
No que concerne ao significado interativo, o participante representando em
primeiro plano contacta, diretamente, os/as participantes interativos/as. O
Transportador exibe uma expressão séria e austera, procurando assegurar rigor e
competência na fabricação do produto. A expressão não-sorridente é um convite
visual à aquisição do queijo.
A escolha da distância dos/as participantes sugere as diferentes relações entre
estes/as e os/as observadores/as (Kress e van Leeuwen, 1996: 129). O
Transportador (i.e. vaca) está colocado a uma distância média, o que indica uma
relação social muito semelhante àquela do âmbito comercial. Há uma divisória de
madeira que separa o sujeito da imagem do/a observador/a. A Língua Portuguesa
sustenta, mais uma vez, estas conceções utilitárias sobre animais não-humanos.
Segundo o dicionário de Língua Portuguesa (2004), o vocábulo vaca corresponde
ao mamífero ruminante da família dos bovídeos de grande utilidade para o homem
pelo leite que produz, assim como carne de gado vacum.
Na ilustração_2 o corpo do sujeito da imagem (i.e. a vaca em primeiro plano)
está frontalmente dirigido para o/a observador/a, a sua cabeça está desviada
para outro ponto. Este facto resulta numa dupla mensagem: 1-) embora o/
a observador/a não faça parte do mundo da participante representada, contacta
com ela a partir da sua realidade distinta; ou 2-) ainda que o sujeito da
imagem pertença ao mundo do/a observador/a, é mostrado como objeto de uma
reflexão desapaixonada (Kress e van Leeuwen, 1996:47). Os/As participantes
interativos/as e representados/as envolvem-se, assim, apenas em termos de uma
relação explorador/a-explorado/a.
Quanto ao significado composicional, a ilustração_2 situa o Transportador no
Centro, sendo que recolhe maior proeminência e valor informativo. O logótipo da
Agros e a imagem do produto publicitado estão colocados à direita do Centro,
que corresponde ao lado da informação a ser assimilada. Neste espaço, promove-
se o produto maximamente: instiga à identificação e ao reconhecimento do/
a consumidor/a com a marca e o produto publicitado. Os elementos colocados à
esquerda do centro não incluem conteúdo novo: sustenta-se que a mensagem já é
assumida e do conhecimento do/a observador/a. Neste espaço, surge o slogan '
Os nossos especialistas não são burros ' o que sugere que o/a (possível)
comprador/a já reconhece a especialidade da marca e produto, é senso comum.
No lado inferior esquerdo, encontra-se a frase Bom leite, nas mãos de quem
sabe, dá bom queijo, que destaca a qualidade do leite e a eficiência da
produção queijeira. Uma vez que surge em ponto menor, é também manifesto de que
esta informação é conhecida.
O elemento que acolhe maior saliência é a vaca em primeiro plano. Destaca-se
visualmente pelo tamanho maior, melhor definição nos traços e cores e
disposição no espaço. Estes aspetos surgem em anuência com as funções primárias
deste elemento: estabelecer contacto visual e envolver o/a observador/a, bem
como assegurar a qualidade do produto publicitado.
A ilustração_3 não inclui protagonistas reais; ao invés, apresenta-os, em forma
de desenho-animado, o que é um recurso comummente usado por marcas que têm as
crianças como o seu público-alvo. É uma imagem narrativa, na qual as/os
participantes representadas/os agem, atuam, movem-se. A participante em
primeiro plano (a vaca que ri) constitui o Ator nesta imagem, que exibe o
produto publicitado, vende, sorri, erguendo os membros superiores para
manifestar o seu contentamento. Surge efeminizada, possuindo adereços (e.g.
brincos) que são convencionalmente atribuídos às mulheres. Encontra-se atrás de
uma pipa de madeira que exibe o queijo no formato em que é comercializado. No
membro superior esquerdo, sustenta uma fatia de queijo, que exibe ao/à
observador/a em tom de convite para a degustação.
Nesta imagem, o Objetivo consiste no produto que o Ator segura, ou seja, o
queijo. Porém, uma vez que este não reenvia qualquer ação ao Ator, a imagem
representa uma ação transitória unidirecional.
Os Interatores (i.e. as/os participantes a partir dos/as quais o vetor poderia
emanar ou ser dirigido) situam-se à direita e à esquerda do Ator. A
participante do lado direito está ocupada com a preparação do leite. É uma vaca
que aparece também efeminizada, executando uma tarefa que remete para papéis
tradicionalmente atribuídos às mulheres no espaço doméstico, como a preparação
dos alimentos, refeições, etc. No lado esquerdo, encontra-se também um membro
da classe dos bovinos, que é representado de forma masculinizada. Usa
ferramentas de corte, uma atividade que é apresentada como máscula e exigente
em termos de capacidade física.
Os participantes representados estão num ambiente campestre, sob um céu azul e
rodeados por montanhas, o que cria uma atmosfera de tranquilidade e instiga
emoções positivas. Mais uma vez, este é um cenário idílico que se afasta das
arenas de produção industrial/massiva de lacticínios. Refira-se, também, que
todos os participantes aparecem antropomorfizados: desempenham funções
inexequíveis para a sua espécie, surgem verticalizados, possuem adereços e
apetrechos exclusivamente atinentes às sociedades humanas.
Em relação ao significado interativo, o Ator da ilustração_3 não olha
diretamente o/observador/a, mas apresenta um olhar ligeiramente desviado. Este
facto indica que o Ator oferece, fundamentalmente, informação acerca do produto
que, anuente com o slogan, passará por: Quando A VACA QUE RI ri, é MUUUITO BOM
para ti. Para além de suscitar a atenção das crianças, o slogan destaca, em
maiúscula, dois aspetos com cariz informativo: a marca (a vaca que ri) e a
qualidade/sabor do produto publicitado (muuuito bom).
Para além de indicar oferta, a ilustração_3 encerra, também, um cariz de
demanda. Na verdade, os Interatores olham diretamente o/a observador/a. A
participante do lado direito tem uma expressão amistosa, enquanto o
participante à esquerda mostra uma expressão séria. Ambos os participantes
induzem o/a observador/a a participar no seu universo, visando que ele/
a empreenda uma ação: a compra do produto. Por outro lado, tendo em conta que a
marca se dirige mormente a crianças, os participantes implicam-nas num cenário
de fantasia, lúdico e recreativo, promovendo a identificação destas com o
produto.
O Ator surge a uma distância pessoal/íntima do/a observador/a, na qual poderia
ter lugar o toque, o diálogo ou a troca direta. A vaca que ri é representada
como sendo afável e confiável. Esta proximidade quebra as fronteiras de
estatutos; inclui o/a observador/a no cenário da produção de queijo, onde
predomina a animação, a alegria e a boa-disposição; fomenta cumplicidade entre
o Ator e os/as participantes interativos/ as. Os Interatores, por seu turno,
situam-se a uma distância média, o que indica uma relação meramente social.
Este facto é, de resto, consonante com as notas anteriores: os Interatores
demandam por meio de um olhar direto, exigem a compra; o Ator oferece
informação, instiga ao reconhecimento. O produto publicitado está muito perto
do/a observador/a, plenamente integrado na imagem e surgindo inúmeras vezes no
seu formato de comercialização (e.g. nos brincos da vaca que ri e colocado
sobre a pipa).
É uma imagem subjetiva; a perspetiva em que as/os participantes surgem foi
escolhida pelo/a produtor/a, que optou por uma representação fantasiosa e
antropomorfizada de animais não-humanos. Apresenta um ângulo horizontal
frontal, sugerindo envolvimento entre as/os participantes representadas/os e
interativas/os. A imagem é, sobretudo, dirigida a crianças que, contactando com
figuras de animais não-humanos através de filmes animados, brinquedos e contos
infantis, detêm um fascínio particular por este grupo. Envolvem-se no cenário
fantasioso da vaca que ri, identificam-se e desejam o produto publicitado, o
que potenciará a compra. E, dado que a imagem sustenta um envolvimento sincero
entre as/os participantes representados/as e interativos/as, estes/ as aparecem
ao mesmo nível do olhar; detêm um estatuto de igualdade.
Por fim, no que concerne ao significado composicional, refira-se que a
ilustração_3 mostra a vaca que ri no Centro, junto ao produto publicitado, os
quais possuem uma maior importância no conjunto).
O logótipo situa-se à direita do Centro para ser assimilado ao primeiro
contacto com a imagem. No lado superior direito, está também colocado o site da
marca. Este espaço na WEB é inteiramente dedicado às crianças, possuindo jogos
infantis e informações atinentes à marca. É crucial porque constitui um meio de
envolver as/os mais jovens com a marca, granjear o seu apoio e promover a
compra do queijo. À esquerda, aparece o slogan ' Quando A VACA QUE RI ri, é
MUUUITO BOM para ti ', sustentando que a marca e a qualidade do produto são já
assumidas.
O site da marca constitui o Ideal. É uma ferramenta concebida para aproximar
emocionalmente as crianças da vaca que ri e fomentar a criação de
expectativas e desejos em relação ao produto. Por outro lado, o slogan e o
logótipo constituem o Real, pois encerram, meramente, um valor informativo. Em
termos de saliência, a vaca que ri é o elemento mais enfatizado, apresenta-se
em primeiro plano com rosto e figura mais incisivos. Os seus lábios,
sobrancelhas e olhos estão contornados a preto intenso, o que acentuam a sua
expressão amistosa.
Encontra-se atrás de uma pipa que é utilizada, sobretudo, na indústria
vinícola. Incluindo este recipiente na imagem, sugere-se que o leite é obtido
por colheita natural, como os vinhos, sem que isso signifique exploração.
Notas finais
A mitificação da imprescindibilidade da carne, bem como a dificuldade de as/
os consumidoras/es acederem aos processos de produção industrial de animais
não-humanos redundam na legitimação do carnismo e do especismo. A promoção de
uma ordem social especista faz-se, mormente, através dos media. Estes asseguram
a produção massiva de ideologias de consumo e dão consistência às
representações sociais partilhadas por atores sociais. Em particular, a
publicidade tende a representar animais não-humanos sencientes como coniventes
com a sua própria instrumentalização, promovendo a invisibilidade da violência
contra eles exercida. O conjunto das imagens analisadas neste estudo é
revelador a esse nível: as imagens narrativas predominam, ou seja, os animais
não-humanos surgem como sujeitos ativos. No entanto, mostram-nos
antropomorfizados, ora incluídos em ações apenas existentes na espécie humana,
ora adotando vestes, maneirismos e condutas jamais concretizáveis neste grupo
de seres sencientes. A única imagem conceptual mostra vacas num cenário
natural. Surgem, porém, apassivadas e apáticas. Ora, talvez não seja imprudente
avançar com a nota de que a publicidade tende a mostrar os animais não-humanos
como ativos apenas quando estes vestem comportamentos humanos. Aqueles que são
próprios da sua espécie têm uma visibilidade quase nula ou são encarados como
desprovidos de sentido, abandonados. Apenas uma imagem (ilustração_3) indica
uma relação muito próxima entre os/as participantes representados/as e as/os
interativas/os. Isto acontece porque a imagem se refere especialmente a
crianças, cujo imaginário é povoado por figuras de animais não-humanos.
Excluindo este facto, os restantes animais (i.e. porca e vaca) estabelecem uma
relação distanciada com as/os participantes interativas/os. É, portanto, marco
comum nas imagens que os animais não-humanos (considerados food animals no
Ocidente) servem apenas para se usar e consumir. Não são livres; são reféns dos
ditames industriais do sistema capitalista. Tende-se a subverter as realidades
dos animais não-humanos sencientes, a enviesar-se a perceção visual e a
consolidar mitos e sistemas de valores especistas.
De acordo com a Vegan Society (2006), o veganismo recusa a opressão/exploração
de animais não-humanos, em absoluto. Boicota a pecuária; erradica da dieta
alimentar carnes, gelatina, lacticínios, ovos, mel e quaisquer produtos de
origem animal; opõe-se ao carnismo; veta a indústria de peles; exclui
vestuário, medicamentos, cosmética, contracetivos, ornamentação e produtos de
higiene e limpeza que contenham substâncias de origem animal ou testem a sua
viabilidade de uso para humanos em animais não humanos; repudia o uso de
animais não-humanos em circos, touradas, rodeios, vaquejadas, jardins
zoológicos, equitação, caça e pesca desportivas, etc. Nessa medida, as/os
veganas/os visam promover a criação, o desenvolvimento e o uso de produtos de
origem não-animal, com vista a proteger os direitos dos sujeitos humanos e não-
humanos (sencientes), bem como a preservar o meio ambiente. Em sentido lato, o
veganismo opõe-se ao especismo, assim como o vegetarianismo antagoniza com o
carnismo.
Para o veganismo, os animais não-humanos detêm autonomia própria e liberdades
invioláveis; não existem para alimentar, vestir e entreter os animais humanos.
O animal não-humano não é concebido como propriedade, herança ou objeto; é tão-
só dono de si mesmo. Objectificá-lo e/ou comê-lo é promover o especismo, ou
seja, uma ideologia discriminatória como o sexismo, o racismo, a transfobia, a
lesbofobia, a islamofobia, etc., (Cf. Earthlings).
Secundando a ecofeminista Carol J. Adams, é necessário um rompimento com a
história dominante (Cf. Adams, 2010: 315). O caminho em direção a sociedades
mais sustentáveis deve fazer-se, então, pela adoção de práticas veganas, porque
estas são imprescindíveis na redução da violência contra animais não-humanos,
na proteção do meio ambiente, no travamento de crises alimentares e na promoção
da saúde pública.
Notas
1 Mestranda em Ciência Política na Universidade Estatal de Estudos Humanísticos
da Rússia (Rússia). E-mail:judith_anabela_santos@hotmail.com
2 Doutorando em Sociologia da Arte e da Cultura na Faculdade de Belas Artes da
Universidade do País Basco (Biscaia, Espanha), associado ao Instituto de
Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) (Porto,
Portugal). E-mail: ruipedro.fons@gmail.com
3 Utiliza se a expressão animais não humanos como recusa à atribuição não
adequada de animais irracionais. Seria ainda impreciso usar apenas animais,
pois esta categoria inclui também pessoas
4 Os vocábulos carne, bifes e chouriço são atribuições gastronómicas. São
utilizados entre aspas segundo um posicionamento não especista.
5 Expressão retirada do livro tornado documentário Manufacturing Consent: The
Political Economy of the Mass Media (1988) de Noam Chomsky e Edward S. Herman.
6 Na Língua Portuguesa, há vocábulos atribuídos a mulheres que consistem em
designações de animais não humanos: e.g., cabra, mula, vaca, toura,
pombinha, galinha, sardinha, etc. O seu uso aplicado a mulheres encerra
comummente intenções de crítica, depreciação, ofensa e insulto.
7 Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2004).