A Ideia de morte: do medo à libertação
(...) a morte não tem "ser"; (...) embora a morte não tenha "ser", não deixa
por isso de ser real, ela acontece (...).
Edgar Morin ([1988]:26)
1. O mistério da Morte
Considera Silva Soares (1986: 407 e 409): "A morte (...) é um dos temas mais
difíceis de tratar, dada a sua complexidade e a ambivalência dos nossos
sentimentos acerca dela. (...) Qualquer tipo de discurso sobre a Morte é cheio
de ambivalência, de fugas, de condicionamentos e de contradições.".
Conceito obscuro, numa primeira reação, a Morte é algo de irracional e de
absurdo;[1] mas talvez seja imortalidade, talvez fim, talvez nada. Partida,
viagem, a Morte não remete apenas para si mesma; remete para uma pós-morte,
para um "além". O desaparecimento de um indivíduo neste mundo "implica" a sua
entrada num outro.[2] Daí que o homem tenha procurado nos mitos e na religião
alguma resposta ou forma de explicar a Morte e, se possível, o seu sentido, num
confronto da razão com uma experiência-limite. Seja qual for a sua origem
sócio-geográfico-cultural, o homem não pode suportar a ideia de que, depois de
morrer, não existe nada. Assim, como forma de luta contra o nada, socorreu-se
de mitologias, ritos e outros processos mágicos e pragmáticos para transfigurar
e ocultar a mudança na natureza do corpo, evitando confrontar-se com a sua
decomposição, destruição irreversível que lhe revela a sua finitude.[3]
Pensar e refletir sobre o fim da vida revela a perplexidade do homem perante a
morte. A visão e a conceção da ideia de Morte assentam na elaboração de um
pensamento descritivo que tenta conhecer e compreender o limite do que pode ser
pensado ou imaginado, ato que se realiza sem qualquer experiência física do
acontecimento "morte". Logo, o seu conteúdo será uma tentativa de fazer
desaparecer a angústia da própria morte.
Configurando um "novo universo", qual a substância da Morte enquanto objeto de
pensamento? Incerta e imaginária, ela reveste-se de um cunho religioso sob a
forma de crenças que procuram atenuar o temor do fim da vida. Diminuindo a
ansiedade e as suas dúvidas, a reflexão e o pensamento da Morte poderão ser o
caminho que integre o homem no Universo de que ele faz parte e o conduza à
descoberta de uma verdade procurada.
O mistério da Morte estimula a reflexão e a apresentação de explicações
"racionais" para o seu significado e o seu sentido que, consequentemente e por
ligação, relevam para o conceito de Vida. Inúmeras são as representações que se
têm criado sobre a Morte, ou seja, a ideia que se faz da Morte, do que é a
Morte e o que ela representa, criando sempre contra o nada. As imagens da Morte
traduzem as atitudes que os homens, ao longo dos séculos, tiveram perante este
acontecimento.[4] Há, pois, uma relação entre a atitude perante a morte e a
consciência de si, de ser e da sua individualidade.
2. Representações da Morte
Atente-se nesta crença popular da Bretanha, que personifica a Morte, designada
como Ankou, alegoria da dança macabra dos mortos na Idade Média:
Trata-se de um personagem masculino: é descrito como um homem
bastante alto, magro, de compridos cabelos brancos, que usa um grande
chapéu de feltro, ou como um esqueleto embrulhado num lençol, cuja
cabeça gira incessantemente como um catavento para abraçar com a
vista toda a região que deve percorrer. Traz na mão uma gadanha que,
ao contrário das gadanhas normais, tem o gume virado para fora: por
isso não a vira para si como os ceifeiros, mas lança-a para diante.
Desloca-se numa carreta arrastada por dois cavalos atrelados um atrás
do outro (...). O Ankou está em pé na carreta; e é escoltado por dois
indivíduos que caminham a pé. O primeiro conduz pelas rédeas o cavalo
da frente, o segundo abre as cancelas dos campos, dos pátios e as
portas das casas: é ele que carrega os mortos para a carreta.
Reconhecem-no à chegada porque os eixos das rodas chiam de uma
maneira sinistra. (Cf. Belmont, 1997:55-56).
Esta representação tornar-se-ia corrente na cultura ocidental, a partir do
século XVII, desenvolvendo-se a conceção de um esqueleto envolvido numa longa
capa negra, transportando a foice para "ceifar" a vida, incutindo medo, terror
e angústia, sentimentos de aflição que fazem da ideia de Morte uma perseguição
fatal a que não se pode escapar. A representação da Morte como uma múmia ou um
cadáver semidecomposto significaria o horror da morte física, da doença, da
velhice e a decomposição "post mortem", tema familiar à poesia dos séculos XV e
XVI. Os poetas tomam consciência da presença da corrupção: está nos cadáveres,
mas também no decurso da vida os vermes não provêm da terra, mas do interior do
corpo; as matérias e os líquidos da podridão escondem-se sob a pele. A
decomposição é o sinal da ruína do homem e aí reside o sentido do macabro, cujo
fim era provocar o temor da condenação. Pretendia-se mostrar o que não se vê, o
que se passa debaixo da terra e que se ocultava dos vivos.
Para os Gregos, que chamavam à Morte "a noite dos tormentos", ela
personificava-se em Thanatos, génio masculino alado, irascível, insensível,
impiedoso, que, na Ilíada, surge como irmão do Sono e Hesíodo apresentava-os
como os dois filhos da Noite, geradora de sonhos e angústias, símbolo da
eternidade e do indeterminado, reino da morte que permite o contacto com o
Absoluto. Mas, numa visão protetora e maternal da Noite, evoca-se um retorno a
uma situação intrauterina: adormecer é como se fosse "um nascimento às
avessas", um regresso à matriz inicial.[5]
Platão defendia a ideia de que a morte era a passagem da alma para outra
"vida"; talvez um sono sem sonhos, uma transição catártica ou libertação.[6]
Que portas abrirá a Morte à nossa "consciência"? No fundo, esta conceção é a
recusa da associação do fim do ser à dissolução física – a crença num além da
morte proporcionava um complemento de duração entre a morte e o fim dos tempos.
A crença ou a descrença no Além, um mistério, uma incerteza, modifica o
comportamento humano: quando não se acredita numa "outra vida", há um
determinado tipo de atitude diante das situações quotidianas, o que se altera
num indivíduo em quem a crença religiosa lançou a semente de uma "vida post
mortem". Para o homem religioso, a vida é, também, a pós-morte num além regido
por uma entidade divina. Assim, o seu comportamento e a sua ética obedecem às
regras da religião que pratica. Veja-se como a Igreja Católica assenta o seu
poder na ideia da vida eterna e no temor do julgamento divino, Juízo Final que
se abate sobre a alma quando ela abandona o corpo na hora da morte.
O dilema da finitude humana sempre fez parte do âmbito religioso, pelo que as
religiões chamaram para si a questão da Morte e do Além, procurando, de alguma
forma, a ligação ao Transcendente. Segundo a ótica religiosa, morre-se no
momento escolhido por Deus, detentor único do conhecimento dessa hora. Mas –
questionemos – o suicida: morre na sua hora determinada? A morte é dada por si
próprio e não por qualquer intervenção divina, crendo-se, até, que se atenta
contra as suas determinações. Desenvolver-se-á esta ideia, posteriormente.
3. A experiência da Morte
Cessação irreversível e estado terminal da vida física, a morte não é um
momento, mas um processo, uma fronteira em que duas linhas se tocam, a última
em que a alma está unida ao corpo e a primeira em que pode atuar separadamente.
A morte prolonga, de uma determinada forma, a vida individual, como transpondo-
a para a eternidade. Nada cessa; tudo continua – a morte num nível é, talvez, a
condição de uma "vida" num outro nível. Depois da morte, a alma transmigra para
outro estado – não há morte. Assim, ela assume-se como um mito que é uma
metáfora da vida;[7] isto é, a ilusão do homem em querer dominar o tempo, na
imagem da "vida para além da morte", fá-lo dotar a própria alma de uma
"corporalidade". Marcando o termo da vida sensível, a morte não atinge a alma,
que é imortal.
Aniquilamento dos fenómenos vitais, a morte só pode ser definida em termos
biológicos na relação e a partir da definição de vida, que contém em si a
morte, numa atividade e esforço de adaptação permanentes, coexistindo como uma
tensão de forças contrárias: a morte é um termo para o qual o homem se
encaminha desde o nascimento, uma realidade interna que nele se opera a partir
do momento em que é dado à luz. A vida humana é uma constante experiência que
conduz a uma decadência do organismo, que esgota a sua força vital, por
enfraquecimento ou impossibilidade de se ajustar às modificações ou agressões
do meio interno e externo, obedecendo ao princípio de degradação dos seres
vivos. Paradoxalmente, a morte é a consequência da vida.[8] O homem morre desde
que nasce; morre em cada instante, porque a morte não surge no momento em que
se morre existe desde o nascimento, como processo.[9]
Ato único e irrepetível, de impossível relato, o homem tem experiência da Morte
através da morte dos outros, o que lhe permite pensar sobre esta ideia e sobre
o momento da sua morte, representando, antecipadamente, a interrupção da sua
vida ao chegar a essa situação-limite – através da morte alheia, vive-se um
pouco a nossa, fruto dos efeitos emocionais e do drama da perda de outrem. A
morte é a única experiência humana que não podemos partilhar – é impossível
representar a própria morte, a não ser como espectador, pelo que é sempre
através do que acontece aos outros que dela tomamos conhecimento ou
proximidade, pois, quando chegar a nossa vez, já não poderemos comunicá-la.[10]
É o "meu" desaparecimento como consciência.[11] Deste modo, a morte impõe a
inexorável vulnerabilidade humana e a limitação do ser. Mais do que um problema
ou uma interrogação à razão, a Morte constitui um enigma, um mistério – partida
sem regresso, ponto de interrogação no limiar do desconhecido, a angústia da
morte, a dor e o terror que esta ideia ou o seu pensamento provocam têm em
comum um temor que perturba o homem: a perda da sua individualidade. Aqui se lê
a origem de um sentimento traumático, na tomada de consciência de um vazio onde
havia plenitude individual.[12]
As teorias que, histórica e antropologicamente, tentaram explicar a experiência
da Morte resultam de um pensamento sobre o nada, sobre a finitude da vida
humana, procurando uma explicação ou uma justificação que apazigúe ou permita
racionalizar o medo, a angústia, o desespero, a revolta, o desconhecido que ela
traz consigo. Recorde-se a frase de Epicuro a Meneceu: "se tu existes, a morte
não existe; se a morte existe, tu já não existes" (apud Chorão (dir.), 2001:
648). Isto é: por a Morte não existir enquanto nós estamos vivos, o próprio
pensamento da Morte não faz sentido, não passa de um absurdo. Este "exercício
mental" permitiria dissipar o medo da Morte pela qualificação de absurdo,
porque fora da vida. Voltaire compreendeu a ideia e declarou: "Nunca se deve
pensar na morte. Semelhante pensamento serve apenas para envenenar a vida"
(ib.).
Contudo, verifica-se a situação inversa: a obsessão da Morte reflete uma quebra
de entusiasmo na afirmação do ser, identificando-se com o tédio ou o cansaço da
vida, contra a força de viver, traduzindo-se numa inadaptação. A morte
instaura, pois, uma rutura dentro da vida, ao sublinhar a vulnerabilidade da
existência, a precariedade do ser, a finitude humana. Daí, a obsessão da
sobrevivência revela no homem a preocupação de conservar a sua individualidade
para além da morte, ao que Edgar Morin (id.:35-36) chama de "triplo dado da
morte" e que revela uma inadaptação fundamental:[13] o homem tem consciência do
facto "morte", dado reconhecê-la como acontecimento perturbador, e a tomada de
consciência do aniquilamento conduz à sua negação na recusa da lei da natureza,
que lê claramente na decomposição, o que lhe provocará um sentimento traumático
– o horror da morte é a consciência da perda da individualidade. O resultado é
a afirmação de um "para além da morte", isto é: consciente e revoltado por um
acontecimento ao qual não pode escapar e ávido de uma imortalidade que aspira
alcançar, o homem afirma-se sobre a morte ao criar uma conceção de
"sobrevivência post mortem" – é a ideia de sobrevivência do duplo ou a morte-
renascimento. Estas duas visões constituem as mais antigas conceções humanas da
Morte, correspondendo à sua recusa e minorando o traumatismo que dela advém.
Através destas duas formas, imagina-se que o homem sobrevive e renasce.
Analisemos, seguidamente, estas duas ideias.
Na morte, o homem experimenta a mais profunda solidão, ao reconhecer a relação
do "eu" com o seu próprio fim; mas institui, também, uma relação com o outro,
assumindo-se como um acontecimento de alteridade: é a ideia do duplo, mito
universal que encontramos na experiência do reflexo, do espelho, da sombra,
produto da consciência de si próprio e primeira perceção de si como realidade.
[14] Por um lado, corpo gozador ou sofredor; por outro, alma imortal que a
morte liberta. Assim, o homem vai atribuir ao seu duplo toda a força da sua
afirmação individual: é o duplo que é imortal e é ele a sua individualidade
triunfante sobre a vida e a morte, ao salvar a sua integridade para além da
decomposição.
As crenças religiosas de diversos povos, desde remotas eras, apresentam uma
dupla questão (ou duas questões), fundamental para a interpretação do sentido
da Morte: qual a sua origem e o que existe "para além" do termo da vida: Deus
ou o vazio?
Quanto à sua origem, é possível identificar a recorrência de uma ideia ou mito
que coloca a humanidade, após a sua criação, num lugar de felicidade e
abundância, sem sofrimento, alcançando a imortalidade, o que se designou por
Idade de Ouro. Era de bênçãos e de fortuna moral, terá terminado devido a um
pecado, fruto da intervenção do mal que, deste modo, teria introduzido a morte
no mundo como consequência duma transgressão humana, tornando-se destino comum
da humanidade.[15] Não constituindo uma verdadeira necessidade nem formando
parte da ordem da natureza, a morte foi introduzida no mundo por um acidente
fortuito; tem o caráter de um facto acidental, como consequência e castigo do
pecado. Estamos, pois, perante um processo psicológico que remete para um tempo
primitivo a felicidade da existência e o usufruto de todos os ideais e valores
desejáveis.
Na recolha de mitos sobre a Morte, apresentada por Nicole Belmont, há uma
curiosa associação entre morte e sexualidade: "(...) a morte foi instituída
porque os homens se arriscavam a tornar-se demasiado numerosos." (Cf. Belmont,
id.:46). Introduzida a reprodução sexuada por uma entidade demiúrgica, que
seduz uma rapariga, como forma de aumento do grupo humano, perante o elevado
crescimento populacional não programado a mesma entidade é obrigada, segundo os
Índios Tahltan da América do Norte, a instituir a morte, a fim de que os
anciãos deixassem lugar para as crianças. Esta "troca" assume-se como uma
necessidade do grupo, em termos de espaço, proteção, alimentação e, sobretudo,
da sua sobrevivência, como se se concebesse um meio eficaz de regular o número
de indivíduos. A nota curiosa está na leitura de uma oposição vida/morte, como
se fosse o excesso de "vidas" que determinasse a criação da morte. Opondo-se à
tendência para o aniquilamento, a sexualidade tem como objectivo prolongar a
vida; o triunfo sobre a morte residiria na reprodução sexual da espécie, pois é
através dela que a vida se mantém. A morte não só garante a sobrevivência da
espécie, como também permite a sua evolução, através de um processo de seleção
que suprime os elementos não (ou já não) adaptados. A morte é, portanto,
condição de renovação da vida.[16]
Quanto à questão de uma "existência post mortem", de novo, somos remetidos para
o domínio de uma convicção religiosa de sobrevivência. De um modo geral, todas
as religiões, e em particular o cristianismo, concebem a Morte como uma
passagem para o Além, onde os indivíduos serão recompensados pelo bem e
julgados pelo mal que praticaram durante a vida. Assim, a Morte não é o ponto
final da existência – um elemento sobrevive: a sombra (ou duplo) ou a alma (que
é o duplo interiorizado, subjetivizado), elemento de essência aérea
representado pelo corpo que se evola com a morte. No primeiro caso, na
Antiguidade greco-latina, era enviada em viagem,[17] conduzida pelo barqueiro
Caronte, pelo rio Estige, fronteira para o interior da terra, onde se
encontrava o Hades, reino subterrâneo das sombras e cujo nome, para os Gregos,
significava, além dos Infernos e do deus que os governava, "o invisível".[18]
No segundo caso, a alma, núcleo imortal do indivíduo que aspira à salvação,
sobrevive à ruína do corpo, à morte física, e eleva-se para uma região celeste,
creem os cristãos, por exemplo, unindo à ideia de sobrevivência terrena a ideia
de retribuição pela justiça divina, assumindo uma relação com um ser superior
de cuja essência e valor dependem. Aliás, para os cristãos, existe a superação
da morte pela ressurreição de Jesus Cristo, cuja ação destruidora daquela,
através da sua própria morte, igualmente resgata e redime a humanidade do
pecado original. Assim, os justos regressarão, glorificados pela ressurreição,
à plena realidade existencial humana; ou seja, a morte existe, mas não é
definitiva. Leia-se, aqui, a substituição do sentimento de angústia perante a
Morte como uma tentativa de suplantar ou diminuir o sofrimento, uma esperança
contra a ideia da Morte como o naufrágio total, o desaparecimento no nada, com
o intuito de estimular eticamente o homem.[19]
Uma plena vitória sobre a morte implicaria a recriação do corpo: a alma
revestir-se-á de um corpo incorruptível, depois da morte, assegurando ao homem,
pela ressurreição, uma vida nova, dotada de um corpo novo, imperecível; daí, a
esperança de vida além-túmulo. São estas as duas formas de vitória sobre a
morte: a ressurreição do corpo e a imortalidade da alma. Esta ideia junta
influxos do judaísmo e cristianismo com o helenismo e noções gregas como a
imortalidade (prerrogativa exclusivamente divina), a incorruptibilidade e o
destino da alma. A fé em Jesus não livra o fiel da morte física; através do
baptismo, ele alcança uma "vida nova", prometida pela ressurreição – os
baptizados têm a garantia da ressurreição e da salvação eterna. A morte física
é absorvida pela fé na ressurreição, numa dicotomia que associa luz/vida e
trevas/morte, introduzindo a possibilidade de um para além da morte,
encontrando na fé religiosa a solução, na recusa da morte e consequente
esperança da imortalidade, que não é mais que a afirmação da individualidade
para além da morte.[20]
Idealisticamente, não é no nada que se cai após a morte, dado o indivíduo ser
absorvido pelo Todo, garantindo-lhe perenidade. Aliás, a morte dá sentido à
vida: uma vida onde a morte levasse a melhor não faria sentido; assim, o papel
da morte é o de permitir ao homem fazer a aprendizagem da sua liberdade, dando
significado à sua vida numa abertura à Transcendência ou a aspiração à
"realidade invisível" de que falava Platão, libertação suprema de todos os
sofrimentos físicos e de todos os obstáculos, passando do mundo dos homens para
a Cidade de Deus, como descrevia Santo Agostinho.
4. Viagem pela ideia de Morte
O pensamento grego (principalmente o orfismo, no século VI a.C.) via o corpo
como um cárcere, resultante de uma queda, e a morte corporal como a libertação
suprema da alma imortal, de natureza incorruptível; o pensamento cristão vê a
morte como uma maldição e a imortalidade assumir-se-ia na esperança de uma
ressurreição em Cristo, mediante uma reintegração de corpo e alma, prometendo
uma felicidade eterna, uma comunhão de vida de toda a humanidade com Deus.
Nesta oposição entre um pensamento metafísico, orientado para a imortalidade da
alma e a purificação pela eliminação do corpo, e um pensamento religioso, que
vê a restauração do homem total e a ressurreição dos corpos como a vitória
sobre a morte, promessa de um novo nascimento e negação da noção de prisão da
alma, lê-se o mesmo desejo: não só a realização da aspiração à imortalidade,
mas a realização das aspirações que a vida não pôde ou não pode satisfazer.
Façamos, agora, uma leitura diacrónica da ideia de Morte, viagem que permitirá
conhecer diferentes pontos de vista e destacar algumas formas de como esta
ideia foi "vivida" ao longo da história da humanidade.
A sabedoria estóica e o ceticismo desiludido desembocam no nada da morte. O
estoicismo afirmou-se como uma moral (o fim supremo é a virtude), uma atitude
prática, uma propedêutica da morte. Defendendo que é necessário viver sem
desejos que nos escravizem, traduz uma atitude de disponibilidade para a morte,
aceitando-a. Assim, ela não nos privará de nada. A sabedoria estóica é,
portanto, um exercício permanente de preparação para a morte. Desprezando-a ao
desprezar a vida, cria-se um método de indiferença para com o acontecimento e o
acaso. O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado ou
magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos e para não perder
a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo e único bem da
alma. O estoicismo separa o espírito do corpo, para que a miséria deste e a sua
putrefação não afetem aquele; esvazia a morte, para que, nessa desolação
imensa, o espírito se eleve, o que constitui uma prática virtuosa.
Ao pedir ao indivíduo que se desprenda de tudo o que não depende da sua
consciência, o estoicismo afirma a consciência individual como realidade
suprema – nada acontece que não seja por ele desejado. Trata-se, pois, de um
momento de afirmação do indivíduo, que se afirma duplamente: por um lado, como
consciência soberana, senhora absoluta do corpo; por outro lado, como
consciência lúcida que conhece o seu limite e a sua fraqueza. O indivíduo
assume, portanto, por si mesmo, a função inevitável da morte: anula as paixões
e os seus desejos. Assim, a virtude estóica é absolutamente negativa: quando o
homem se torna indiferente a tudo e a tudo renuncia, não lhe resta,
efetivamente, mais nada.
Já o epicurismo não permite nenhuma esperança de sobrevivência, nenhuma dúvida
quanto ao aniquilamento da morte. Contra qualquer hipótese de uma "outra vida"
após a morte, procura libertar o homem do temor de além-túmulo, que é fonte de
tormentos que "adoecem" a alma, impedindo-a de alcançar o equilíbrio necessário
a uma vida feliz. Tudo cessa com o fim da vida. Não tendo sentido o temor da
morte, ela não constitui um problema. O epicurismo corrói o conceito de Morte,
até desfazê-lo. Desagrega-o – o nada da morte é reduzido a simples nada, como,
também, em nada diz respeito ao homem. A morte, que não nos diz respeito como
vivos, porque não existe, também não dirá como mortos, porque já não existimos,
não nos diz respeito em nada, como defendia o filósofo grego Epicuro. Já Séneca
afirmara: "Depois da morte tudo acaba, mesmo a morte (...)." (apud Morin, id.:
235). A morte em si e para o homem é, assim, literalmente pulverizada. Como
disse Feuerbach: "A morte é a morte da morte (...)." (ib.).
O epicurismo conclui que, se morrer significa não mais sentir, privação de
sensações (partindo da identificação entre viver e sentir), então, nenhuma vida
sucede à morte; ela não é, logo não existe. Como último acontecimento da vida,
dele já não teremos conhecimento, dado o seu conteúdo insondável.[21] O
epicurismo adere, totalmente, à volúpia de viver e é, também, nessa plenitude
real que se baseia para desdenhar a morte. Enquanto o estoicismo desvaloriza a
vida, o epicurismo revaloriza a existência para desvalorizar a morte.
Aniquilada, pois, pelo entendimento, desprezada pela vida, a morte epicurista
não existe, solução que permite e garante o recalcamento da ideia de Morte.
Na Idade Média, o mundo era considerado um local de combate contra o Diabo pela
salvação da alma, encarando-se a Morte como a sua viagem, numa transposição do
mundo das imperfeições e das coisas corruptíveis para o mundo da perfeição e
das coisas eternas e incorruptíveis. A vida terrena era considerada como a
antecâmara da eternidade e a morte era um rito de passagem para a morada
definitiva da alma, a derradeira peregrinação. Ao pensar o Além e preocupar-se
com o "post mortem", o homem medieval via, platonicamente, o mundo dos vivos, o
mundo material como efémero, um mundo de aparências, como uma representação uma
imagem, uma ideia de algo; portanto, a vida no mundo deveria voltar-se para o
verdadeiro significado oculto por trás da matéria. Esse sentido da vida humana
era dado pelo Além e os espíritos deveriam orientar-se para Deus, salvando-os
do Inferno. O mundo sensível era apenas um caminho para se passar do sensível
ao inteligível, da sombra para a luz. Assim, a realidade encontrava-se
justamente no Além. Inferno e Paraíso existiam e eram imutáveis e eternos; o
mundo não. A Idade Média foi, pois, o tempo do Além e nenhuma outra época deu
tanta importância e ênfase à ideia de Morte.
Temida, porque era imprevisível ("Mors certa, hora incerta"), mas, no entanto,
esperada, aceite e familiar, dado o ritual fixado pelo costume e ao qual o
homem assistira, repetidamente, ao longo da sua existência, a morte anunciava-
se em sonhos ou visões, premonições que permitiam a cada indivíduo preparar-se
com tranquilidade e resignação. Num tempo em que as doenças um pouco mais
graves eram quase sempre mortais, a morte era, então, quase sempre anunciada.
Aguardada no leito de casa, em direção ao oriente, o moribundo deveria ficar
deitado de costas, porque, assim, o seu rosto estaria voltado para o céu. A
morte era uma grande cerimónia pública compartilhada por toda a família, amigos
e vizinhos, prelúdio à mudança para um estado superior, caso a alma fosse
agraciada por Deus. Tal como se nascia em público, morria-se em público. Assim,
ninguém morria só: a morte era um momento de convívio social em que todos
deveriam acompanhar a passagem do moribundo para o Além, inclusive as crianças.
Ele podia fazer uma lamentação sobre a sua vida, recordando-se dos seus bens e
dos seres amados, desde que fosse breve e discreta. Este sentimento de pesar
está associado à aceitação da morte próxima e denuncia a familiaridade que
existia e uma resignação ao destino e à natureza.
Em seguida, pedia perdão aos parentes, ordenava a reparação das faltas
cometidas, recomendava a Deus os sobreviventes que lhe eram queridos e
escolhia, por vezes, a sepultura, o que constituía um dos principais motivos da
redação (ou comunicação oral) do seu testamento[22] – se fosse rico, seria
enterrado dentro da igreja, envolto em ricos tecidos de cores e bordados a
ouro, perto do altar do santo da sua devoção ou das suas relíquias, da capela
da Virgem ou da sua imagem ou do patrono da sua confraria, mediante o pagamento
de uma determinada quantia; se era pobre, o destino mais certo era uma grande
fossa comum, chamada "vala dos pobres", onde se enterravam até seiscentos ou
setecentos corpos cosidos dentro de uma serapilheira, local que, mais tarde,
receberia a designação de "cemitério", o lugar dos pobres e das crianças. A
inumação no interior das igrejas manter-se-ia até à segunda metade do século
XVIII (quando da tomada de consciência do perigo para a saúde e higiene pública
dos fiéis presentes nas celebrações, sob a ameaça de epidemias, infeções e
pestilência), principalmente reservada a um pequeno número de privilegiados,
como os nobres, magistrados, oficiais e alta burguesia, dando lugar, no século
XIX, ao culto romântico dos túmulos e dos cemitérios, surgido na Inglaterra com
Thomas Gray e o seu poema Elegy Written in a Country Churchyard (1751). O
cemitério e a sua poesia davam entrada na literatura. O lugar do horror, no
século XVIII, tornar-se-ia objeto de elevação e de respeito, manifestação de
uma nova sensibilidade que, a partir do final daquele século, se expressava na
intolerância pela morte do outro.
Ao adeus ao mundo sucedia a oração: o moribundo começava por falar da sua
culpa, com o gesto dos penitentes, de mãos postas e erguidas ao céu. Depois,
recitava uma prece muito antiga que a Igreja herdou da Sinagoga, a oração judia
para os dias de jejum a que se deu o nome de "commendatio animae" (encomendação
das almas). Se estivesse presente, o padre dava a "absolutio", sob a forma de
um sinal da cruz e da aspersão com água benta. Se a morte fosse lenta, o
moribundo esperava-a em silêncio, não mais comunicando com quem o rodeasse.[23]
As manifestações mais violentas de dor desencadeavam-se logo após a morte,
expressão do sentimento de luto. Lágrimas e choro competiam às mulheres,
agentes essenciais do rito funerário: elas deveriam ficar perto do corpo e
gritar, rasgar as vestes, arrancar os cabelos. Era a sua função pública.
Portanto, a preocupação, a angústia maior, não era com a morte e, sim, com a
salvação da alma. Acreditava-se que o Destino se revelava pela morte e que cada
indivíduo revia toda a sua vida, num único relance, ao morrer; a sua atitude,
nesse momento, daria à sua biografia o sentido definitivo, a conclusão. A
partir do século XII, assiste-se ao desenvolvimento da ideia de que toda a
gente possui uma biografia própria e que pode, até ao último momento, atuar
sobre ela. Escreve-se a conclusão no momento da morte, o destino da alma
imortal é decidido no momento da morte física, criando-se, deste modo, uma
relação fundamental entre a ideia de Morte e a ideia da própria biografia. A
morte era o momento das contas, em que se fazia o balanço de uma vida, de onde
nascerá a ideia de Juízo Final, em que a vida é pesada e avaliada numa
audiência solene, na presença de todas as forças do céu e do inferno. A morte
converteu-se, então, no lugar onde o homem tomou melhor consciência de si
mesmo. Estabelece-se uma relação, anteriormente desconhecida, entre a morte e a
consciência que cada indivíduo possuía da sua individualidade, reconhecendo-se
a si mesmo na sua morte, descobrindo a morte de si próprio.[24]
Será no final da Idade Média (c. século XV) que aparecem novas formas, de
caráter negativo, de representação da Morte, como, por exemplo, o conceito de
macabro e a dança da Morte,[25] que exprimia a profunda angústia dos tempos da
Peste Negra e da Guerra dos Cem Anos e evocava a corruptibilidade de todas as
coisas.[26] Estas imagens, representações realistas do corpo humano em
decomposição e do seu interior ignóbil, não significavam medo da morte nem do
além. "São o sinal de um amor apaixonado por este mundo, e de uma consciência
dolorosa do fracasso ao qual a vida de cada homem está condenada (...)." (Cf.
Ariès, 2000:156). A arte macabra representava a corrupção subterrânea dos
corpos, o contrário da vida, que era tanto mais amarga quanto era amada: entre
as imagens da doença e da decomposição e a fragilidade das ambições estabelece-
se uma aproximação que traduz um sentimento agudo de frustração individual e
uma melancolia intensa e pungente, reflexo do amor pelos bens materiais e pelos
entes queridos que se abandonavam, designado por "avaritia" (que não é avareza,
mas o amor imoderado do mundo e do gozo da vida). "O homem do final da Idade
Média identificava a sua impotência com a sua destruição física, a sua morte.
Via-se ao mesmo tempo frustrado e morto, frustrado porque mortal e portador de
morte." (Cf. Ariès, 1988:95).[27] Assim, a morte deixa de ser "finis vitae",
liquidação de contas, e torna-se a morte física, fim e decomposição, cadáver e
podridão, a morte macabra.
No Renascimento, releva-se o interesse geral pela cultura da Grécia e de Roma e
o florescimento dos estudos greco-latinos, que se misturam com o pensamento
cristão, destacando-se a ascensão até Deus via contemplação, a imortalidade da
alma e a doutrina do amor platónico. Embora seja finito, o homem é senhor da
sua sorte e do seu destino. O Humanismo exalta a razão humana, a lógica e a
experiência no plano do conhecimento e a vontade no plano da ação, isto é, o
poder para dominar, controlar e governar os apetites e as paixões. O homem é,
pois, capaz de guiar-se a si mesmo, desde que, por meio da razão e da vontade,
estabeleça normas de conduta e códigos para todos os aspetos da vida prática. O
avanço dos conhecimentos trouxe novas técnicas e as pesquisas em todos os
campos do saber tinham como finalidade prolongar a vida, manter a juventude e
retardar o envelhecimento, curar doenças tidas como incuráveis, aumentar a
capacidade cerebral, alargar os espíritos, aumentar os prazeres dos sentidos e,
se possível, impedir a morte.
Ícone do Renascimento, o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci é símbolo do
universo como um todo. Colocado no centro do mundo, o homem tem perante si o
caminho livre para chegar a si mesmo e, ou, a qualquer lugar. O lugar do homem
não está circunscrito; o seu lugar é o próprio universo, o homem é o ser
universal. Regendo-se pela razão, procura-se salvar o homem, não pelo
reconhecimento e submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela ciência. No que
serão seguidos pelos filósofos do Iluminismo, os humanistas da Renascença
projetam a sua ilimitada confiança no futuro, para o qual tende o progresso da
Humanidade. Estão convencidos de que iniciam uma nova idade, encontrado o
caminho que conduz à verdade, à liberdade e à felicidade do género humano. A
Idade Média, dominada pelo cristianismo, não é mais que sombras, barbaria,
trevas e tirania. Contrastando com ela, surge um tempo novo: o homem é
autossuficiente e pode aperfeiçoar-se através das suas próprias forças.
Mas a tentativa de conciliar o espiritualismo medieval e o humanismo
renascentista iria resultar numa tensão que se revela no Barroco.Expressão do
conceito de vida dinamizado pela Contrarreforma, a ideologia tridentina
comunicou à época e à arte uma fisionomia trágica, dilacerada entre os polos
celeste e terrestre, entre a carne e o espírito, procurando incutir no homem o
horror do mundo, o medo da morte, o pavor do inferno, conquistando-o para o céu
pela captação da imaginação e dos seus sentidos, recorrendo ao ornamento e ao
espetáculo.
O tema central do Barroco encontra-se na antítese entre a vida e a morte. Daí
decorre o sentimento da brevidade da vida, a angústia da passagem do tempo, que
tudo destrói. Assim, o homem da época barroca oscila entre a renúncia e o gozo
dos prazeres da vida. Quando pensa no julgamento de Deus, foge dos prazeres e
procura apoio na fé. Quando a fé é insuficiente, a atração dos prazeres
envolve-o e cresce o desejo de desfrutar da vida. Por isso, a expressão latina
"carpe diem", que significa "aproveita o dia (presente)", é um dos temas
frequentes da arte barroca. A juventude é, frequentemente, comparada a uma
flor, que é bonita por pouco tempo e logo morre. Este tema era já versado na
Antiguidade, mas, no Barroco, foi desenvolvido de forma angustiada, pois era
uma tentativa de fundir os opostos, de conciliar o que, no fundo, é
inconciliável: a razão e a fé, a matéria e o espírito, a vida carnal e a vida
espiritual.
A Morte torna-se, pois, uma meditação metafísica sobre a fragilidade da vida,
exprimindo-se pela separação da alma e do corpo, pelo que a vida terrestre se
torna uma preparação para a vida eterna – como se acreditava na Idade Média,
não é o momento da morte que dará à vida o seu justo valor e que decidirá do
destino do homem no outro mundo; é necessária toda a vida para que ele se
prepare para uma "boa morte", a morte do justo, aquele que pensou nela durante
toda a vida e que a aceita em paz e serenidade. Consideração serena da
mortalidade, oposta à ideia da conversão medieval no último momento, a arte de
bem morrer assenta, a partir de agora, na meditação sobre a melancolia da
brevidade da vida.
Curiosamente, ou por contraponto a uma atitude dominadora e repressiva da
religião e dos seus agentes, ou exprimindo uma rutura com a ordem habitual, a
partir do final do século XV, o tema da morte carrega-se de um sentido erótico.
[28] O erotismo surge pela mistura do amor e da morte, do sofrimento e do
prazer. Do século XVI ao século XVIII, inúmeras cenas ou motivos, na arte e na
literatura, evocam a união dos mitos Eros e Thanatos, carregando-se de uma
sensualidade outrora desconhecida: temas erótico-macabros ou temas mórbidos
documentam uma complacência com os espetáculos da morte e do sofrimento,
traduzindo um novo sentimento do nada, exprimindo um sentido novo da
individualidade, da consciência individual e uma rutura com a familiaridade
quotidiana da relação com a morte. Entre o desejo de viver e o medo exacerbado
de morrer, descobre-se o prazer da fruição sexual; daí que o Barroco tenha a
inclinação de situar o amor tão próximo quanto possível da morte – recorde-se o
êxtase místico de virgens santas, êxtase de amor e morte, morte de amor em que
a pequena morte do prazer se confunde com a grande morte corporal. O corpo
morto torna-se objeto de desejo.[29]
No final do século XVII e no século XVIII, assiste-se a uma vontade de
simplicidade na morte, de simplificar os ritos da morte, procurando desviar a
atenção do fim da vida, dada a crença na sua fragilidade e na corrupção do
corpo, revelando um sentimento inquietante do nada, fruto do vazio que a morte
traz ao coração e ao amor da vida, dos seres e das coisas. Se a morte é
dolorosa não é porque prive do gozo e dos bens da vida, como se pensava na
Idade Média, mas porque significa a separação dos entes queridos.
O tema macabro é assumido, agora, pelo esqueleto limpo, a "morte secca", "finis
vitae", expressão da natureza do indivíduo amanhã, o último estado do homem. O
pensamento da Morte alimenta o sentimento de melancolia da precariedade e da
incerteza da vida e traduz a permanência dessa presença constante. A ideia do
nada torna-se dominante, como expressão do aniquilamento do corpo e do regresso
à natureza-origem, à sombra da noite e da terra. O corpo sem alma já nada é;
privado da alma, o corpo torna-se poeira, restituída à natureza. É a partir do
século XVII que se difunde a crença na dualidade da alma e do corpo e na sua
separação com a morte.
Em finais do século XVIII, afirma-se um novo pensamento que renovará o problema
da Morte: o desenvolvimento gradual dos métodos das ciências da natureza e das
ciências do homem desacreditarão as atitudes religiosas. O recalcamento da
ideia de Morte permitirá à filosofia moderna interrogar o mundo. Esse
recalcamento explica-se não só pela intensa atividade filosófica e científica,
pelas conquistas ininterruptas das ciências, mas também porque essa atividade
participa de um maior desejo de saber e o seu consequente progresso. O mundo
humano está em transformação. Considera Edgar Morin (id.:242-243):
A imortalidade é, pela primeira vez, não afirmada, mas sim
reivindicada, postulada, isto é, admitida claramente como uma
necessidade antropológica. (...) a morte adquirirá um significado
grandioso: deixará de ser o ‘nada’ dos filósofos antigos e tornar-se-
á uma função racional, biológica, social e espiritual.
Há a aceitação consciente da morte e da finitude humana como necessidade do
devir do mundo e da humanidade. Enquanto o entendimento epicurista pulverizava
a morte, regista-se, agora, um reconhecimento da realidade da morte, apreendida
como algo efetivo, que acontece, que transforma e desempenha um papel no
processo da vida, tal como o nascimento. É a preocupação de integrar a morte na
razão, de a compreender como função e necessidade.[30]
A complacência com a ideia de Morte é uma grande modificação que surge no final
do século XVIII e que se converterá num dos traços do Romantismo, tornando-a o
lugar da dor lancinante pela perda do outro e da afirmação dos grandes afetos e
dos grandes amores. O Romantismo caracteriza-se por uma sensibilidade de
paixões sem limites nem razão, pelo que a atitude dos presentes junto do
moribundo modifica-se: eles já não são os figurantes de outrora, passivos,
refugiados na oração. A emoção agita-os, eles choram, rezam, gesticulam,
manifestações de uma separação não suportada e de uma crise dramática que
denuncia a sua própria fragilidade: a morte do outro. Desde o século XVIII,
aumenta a necessidade de gritar a dor, de a revelar sobre o túmulo (no
epitáfio), lugar privilegiado da recordação do lamento.
Libertadora, a morte não surge com o aspeto funesto que o medo incutia ao
homem, anteriormente. A esperança acompanha o defunto para o Além luminoso,
recusando superstições e não temendo a morte: no Além, mundo dos espíritos, já
não há mal, razão pela qual a morte é desejada, vista como consoladora e
portadora de paz. A morte romântica significará felicidade e a união familiar,
no reencontro com os familiares que já partiram. A morte era desejada, porque
conduzia à eternidade, encontrando-se no Céu a felicidade, o amor, o afeto, a
família. A morte seria, então, um estado da vida e não paragem da vida.[31]
Esta ideia significa que a morte deixa de ser triste, para ser exaltada e não
mais associada ao mal: perde-se a identificação da morte com a dor moral e
espiritual e o pecado, logo, a crença no Inferno, sentimentos de culpabilidade
e medo do Além, tornado o lugar dos (re)encontros daqueles que a morte afastou
e que nunca aceitaram esta separação.
A partir da segunda metade do século XIX, inicia-se uma crise de morte,
resultante de uma consciência em crise que corrói os conceitos, mina os pontos
de apoio do intelecto, derruba as verdades, agita a própria vida e liberta
angústias privadas. Nessa impotência da razão perante a morte, o homem vive num
clima de angústia, de nevrose, de niilismo, assumindo o aspeto de uma crise da
individualidade, fruto de uma intolerância nova em relação à separação não
admitida dos entes queridos, dificilmente aceitando a morte do próximo mais do
que noutros tempos. A morte temida não é a morte de si mesmo, mas a morte do
outro. Considera Philippe Ariès (1988:45): "A simples ideia da morte é
comovente.".
Mas essa crise não pode ser abstraída da crise geral do mundo contemporâneo: a
crise do indivíduo revela-se perante a morte num clima de angústias e nevroses
que põe a nu o conteúdo da individualidade, sendo, pois, sintoma da decadência
da civilização burguesa.[32] Esta crise da civilização burguesa é uma
reivindicação resultante do desenvolvimento da individualidade, que exige um
mundo humano em que o valor supremo seja o próprio indivíduo, afirmando a
irredutibilidade da sua pessoa e revelando, igualmente, a sua inadaptação à
morte, sentida como um fracasso insuportável. A inadaptação à civilização
burguesa, que se revela no Romantismo, é fruto de uma evocação do passado, de
uma declaração de infelicidade e da perseguição da morte e da vida efémera. Não
é de estranhar o (re)aparecimento da figura do duplo, companheiro de viagem da
vida, rodeado de uma aura de melancolia, evocando a morte que a consciência
moderna não consegue subjugar. Esta não-resignação à morte determinará o
desenvolvimento da angústia do nada. A Morte passa a ser vista como o não-
sentido da vida e o indivíduo sente-se desamparado perante um acontecimento que
não vê como uma purificação ou uma libertação, mas como uma destruição
irreversível e inevitável do ser. Morrer já não evoca um além, mas o vazio e o
nada.
A recusa do presente e a vivência do mal do século provocam o desespero e um
isolamento cada vez mais hermético – a solidão é o frente a frente consigo
próprio, isto é, com o duplo, isto é, com a morte. O indivíduo vê-se cada vez
mais desequilibrado, brutalizado, logo, infeliz. Daí, a sua recusa, expressa
num fosso que se alarga cada vez mais entre ele e o mundo em crise. A abdicação
de um envolvimento ou participação e o isolamento transformam-se em desespero.
Deste dilema nasce uma "consciência infeliz", sem apoio, sem suportes, cara a
cara consigo mesma, com a vida e com a morte. "Será no cerne desse isolamento,
(...) perante a asfixia burguesa, que se exprimirá a dor absoluta, porque
absolutamente impotente, do ‘Eu’ apanhado na armadilha (...)." (Cf. Morin, id.:
265). Sozinho, o indivíduo só se tem a si mesmo, desesperadamente preso a si
mesmo, surgindo a angústia que, com Kierkgaard, se torna metáfora do pecado
original, a partir da noção de culpabilidade. Sublinhando o absurdo da condição
humana, o conceito de angústia revela a indecisão do homem, o "pathos" em que o
indivíduo chega à consciência de si mesmo e se declara face ao nada,
reconhecendo o seu destino inexorável de mortal e, precisamente porque é a
"rutura do mundo", a morte. O isolamento atrai a obsessão da morte e a obsessão
da morte traz o isolamento.
O espectro da morte assediará a literatura: o escritor "em crise" confessa-se e
obras inteiras serão marcadas pela obsessão da morte. Tudo remete o indivíduo
solitário para uma solidão cada vez maior no vazio de um nada ilimitado, o que,
logicamente, faz com que não se possa basear seja o que for na sua
individualidade condenada ao nada. A individualidade desagrega-se. A morte
conclui a niilização da consciência. Absurdo o mundo, absurda a morte, absurdo
o indivíduo, tudo é absurdo, formando o clima da angústia moderna. Nessa
decomposição, uma única presença: a morte, o impossível viver. No meio dessa
morbidez coletiva, que sustenta e desenvolve a doença do século, reaparece,
vivificada, a salvação. Os desesperados navegam rumo à salvação. O desespero
converte-se em fé.
Heidegger vem defender a manutenção na angústia, a fim de procurar nela a
verdade da vida e da morte, para pressentir o seu próprio destino, permitindo
conhecer-se como ser votado à morte (logo, ser decadente que enfrenta o vazio)
e assumindo-a na e através da experiência vivida da angústia. Para Heidegger, a
angústia é a nossa experiência do nada, revelando a estrutura fundamental da
morte na existência humana; isto é, na antecipação da morte, experiencia-se a
existência como finitude. A morte é o próprio núcleo da vida, é o sentido da
vida (mas um sentido sem sentido). Viver nunca é mais do que viver a morte.
Daí, a afirmação de Heidegger: "Desde que nasce, um homem é suficientemente
velho para morrer." (apud Morin, id.:277).
A morte é a estrutura da vida humana, que é ser-para-a-morte. Assim, a
angústia, e, por consequência, a própria morte, é o fundamento mais certo da
individualidade. Essa inadaptação é o que se chama o ser-para-a-morte: a vida
autêntica é a que, a todo o instante, se sabe condenada à morte e a aceita,
corajosa e honestamente. É necessário deixar de fugir à ideia de Morte, deixar
de proceder como se nunca se tivesse de morrer, como se não houvesse morte.
Trata-se de estar "livre para a morte", aceitá-la como um acontecimento de
liberdade. Só se aceitarmos a morte, aceitaremos a vida como ela é, na sua
totalidade. Parte da nossa existência, deve ser nela integrada desde o início
da vida. Possibilidade limite em cada instante da vida, dar-lhe-á significado,
como algo de único e irrepetível. Só a aceitação do próprio "ser-para-a-morte"
dá à vida e a cada instante dela, na sua totalidade, a plenitude absoluta de
ato livre e humano.[33]
Sendo a morte inevitável, para que servem as afirmações religiosas de
imortalidade senão para mergulhar um pouco mais na angústia o homem que não
pode acreditar nessas promessas? Esta questão é colocada por Sartre, para quem
a morte é um absurdo e algo exterior, um facto que não se diferencia do
nascimento. Não é a "minha" possibilidade, mas sim a negação das "minhas"
possibilidades, a anulação, a "nadização" das minhas possibilidades, está fora
das minhas possibilidades: "Assim, a morte nunca é o que dá sentido à vida;
pelo contrário, é o que lhe tira todo o significado. (...) Se devemos morrer, a
nossa vida não tem sentido" (apud Morin, id.:280).
A morte suprime todo o sentido à vida humana; daí, o conceito de liberdade
sartriana seria uma tentativa de fugir à morte, como se o indivíduo encontrasse
a sua salvação e o seu refúgio contra a morte nas estruturas primitivas e
elementares do ser, onde rejubilam o indeterminável e o indestrutível. A morte
é a única certeza da existência; tudo o resto é indeterminado, dada a
inexistência de (uma) solução.
Nos dias de hoje, a sociedade tenta cada vez mais prolongar a vida, recorrendo
a fórmulas que lhe permitam não envelhecer, distanciando-se, assim, da morte ou
procurando afastá-la ou afastar-se e, principalmente, não pensar nela, esquecê-
la. A morte tornou-se vergonhosa e objeto de um interdito, apelidada de "a
inominável": o medo provocado tem, como consequência, não se pronunciar sequer
o seu nome. Considera-se mórbida qualquer referência à morte; fala-se como se
ela não existisse.[34] Aplica-se à morte e à proibição de falar dela o exemplo
que Freud deu a propósito do sexo e dos seus interditos.[35] Ilude-se,
escondendo ou mascarando o terror e a ameaça constante da "realidade viva da
vida", como lhe chama João Barrento (2004:46), acrescentando: "É preciso
aprender a morrer (...)." (ib.). Ou "(...) reaprender a viver, a fim de melhor
saber morrer." (Cf. Thomas, id.:22).
Considera Philippe Ariès (1988:150): "A morte de outros tempos era uma tragédia
– muitas vezes cómica – em que se desempenhava o papel daquele que vai morrer.
A morte de hoje é uma comédia – sempre dramática – em que se desempenha o papel
daquele que não sabe que vai morrer.".
Hoje em dia, morre-se na plena ignorância da própria morte, porque a família
não tolera o golpe da perda do ser amado, recusando a separação definitiva e o
sofrimento da emoção provocada pela visão ou pela ideia de Morte. A partir do
momento em que um risco grave ameaça um membro da família, ela priva-o da
informação, escondendo o seu verdadeiro estado de saúde. Veja-se, por exemplo,
alguns casos de cancro, que assume, hoje, os traços repugnantes e assustadores
das antigas representações da Morte. Melhor do que as representações macabras
do esqueleto ou da múmia dos séculos XIV e XV, o cancro é, hoje em dia, a
morte. Daí que o moribundo se tenha tornado naquele que não deve saber, por
oposição, por exemplo, ao homem medieval, a figura central e principal do
ritual da morte, fixado em livros que são tratados sobre a maneira de bem
morrer: as "artes moriendi" dos séculos XV e XVI. Assume-se, por aqueles que
rodeiam o doente que vai morrer, o dever de mantê-lo na ignorância do seu
estado, instalando-se a dissimulação e subentendendo-se que lhe poupam, assim,
a angústia da morte, escondendo-lhe, até ao fim a gravidade do seu estado.
Ariès (id.:186) descreve, desta forma, a consideração atual da morte: "O
moribundo já não tem estatuto porque já não tem valor social (...).". Encerrada
no corpo, a morte é identificada com o cadáver que, por não ser nada de bom nem
de útil (cf. imagem do esqueleto e da decomposição nos séculos XV e XVI), há
que afastar dos nossos olhos. Afirma Louis-Vincent Thomas (id.:62): "Hoje, a
morte é a antivida, limiar absoluto aberto sobre o vazio, negação total da
existência.". Note-se, também, a mudança do local: hoje, morre-se menos em casa
e mais no hospital, que se tornou o lugar moderno da morte, lugar de uma morte
solitária.
Um pesado silêncio estende-se sobre a morte. Esta atitude não a aniquila nem o
medo que ela pode provocar ou inspirar. Sem a ilusão de ser infinito e imortal,
como pode(rá) o homem ter ou sentir segurança num mundo de enigmas e mistérios
como é a Morte, em que a verdade é uma ideia de absoluto, mas constantemente
repensada, logo, relativa? Assim, o discurso sobre a Morte confunde-se e
converte-se em angústia. Sem a esperança de uma "segunda vida", só resta a
angústia e a imagem do nada. Qual a resposta? "A morte deve apenas tornar-se a
saída discreta, mas digna, de um vivo apaziguado, fora de uma sociedade
compassiva em que a ideia de uma passagem biológica, sem significado, sem dor
nem sofrimento, já não despedaça nem perturba, e finalmente sem angústia." (Cf.
Ariès, [1998]:373).
5. A "morte voluntária"
É importante, também, aqui considerar a "morte voluntária", fazendo referência
ao "(...) ‘suicidante’ (aquele que corta o fio da própria vida) e 'suicidário’
(aquele que traz em si o projecto de suicídio, a sério ou não) (...)." (Cf.
Barrento, id.:45), evocando a dimensão da liberdade no ato de se "dar a morte".
Isto é, o sujeito torna-se um elemento ativo da decisão e do gesto livre de
"cortar o fio" que o liga à vida, não dependendo o fim da sua existência de uma
situação ou circunstância como o avançar do tempo, uma doença ou um conflito
bélico, substituindo o facto inevitável, biologicamente dado, por um
acontecimento que "nos podemos dar". Traça-se uma linha divisória entre morrer
e "escolher a morte": no primeiro caso, ela chega, chama, apodera-se; no
segundo caso, o sujeito é o agente, o ator que aceita e escolhe a morte como
resposta, como um "(...) salto do corpo para o além de si." (id.:47). Trata-se
de uma opção final capaz de dar (um) sentido à vida.
Rigorosamente proibido pela Igreja, por se revelar imagem de uma alma
irremediavelmente corrompida, até ao século XVIII, em França, o suicídio era
considerado um crime e o suicida era alvo de um processo, que podia chegar à
própria execução do cadáver e à confiscação dos seus bens. O cadáver do suicida
era banido, excomungado, e, após o processo, seguia-se uma procissão e uma
exposição ignominiosa em praça pública, onde o suicida era condenado a uma
"segunda morte" pelo fogo. Depois, as suas cinzas eram espalhadas ao vento ou
em terra não consagrada.[36] Na Idade Média, o cadáver do suicida era recusado
no cemitério, ou seja, não lhe era permitido ser enterrado em terra abençoada,
pelo que foram criados cemitérios só para suicidas (cf. Bretanha, até ao início
do século XX) onde o caixão passava por cima de um muro sem abertura, não
entrando em cortejo fúnebre, como é costume.
O suicídio não é um ato de cobardia; é uma decisão tomada face ao sofrimento e
ao desespero de um indivíduo que não encontra solução para o seu mal, lançando-
se, voluntariamente, na morte. É nesse mal que ele encontra a força para
ultrapassar o medo da morte e só aquele que não tem medo da morte é que é
livre. O isolamento do mundo, desligando-se de tudo, e a solidão de um
indivíduo assumem-se como uma contestação à sociedade, que se apresenta
separada da sua vida. Assim, do temor extremo da morte, o indivíduo passa à
tentação extrema da morte. Rutura suprema, que revela a disjunção total do
individual e do cívico, o suicídio manifesta não somente que a sociedade não
conseguiu expulsar a morte, não conseguiu incutir o gosto pela vida no
indivíduo, como também está vencida, negada; nada pode por e contra a morte.
Morrer incontrolado e contestatário, mais libertação do que aniquilamento, a
afirmação individual, liberta de todas as prisões, obtém a sua vitória extrema
na "suspensão do mundo", que é, simultaneamente, uma catástrofe irremediável.
[37]
Evoquemos um "suicida imposto" (a diferença está entre quem escolhe a morte
livre ou aceita a morte dada): Sócrates. Ele quis a morte, porque não se pode
querer contra a morte. Numa leitura do que pode ser o tema da fatalidade e do
destino, a ideia de Morte sempre pende sobre a vida humana, seja como realidade
silenciosa que a acompanha e segue diariamente, seja como obsessão e
perseguição que a atormenta. No entanto, o homem não pode fugir dela e a sua
aceitação é um ato revelador de uma atividade intelectual que domina o medo da
morte, recalcando ou suprimindo o irracional. Desprezando a contingência, a
particularidade, isto é, o que morre, Sócrates valoriza a vitória e o triunfo
da libertação, pois o que morre é precisamente o que não é da essência do
espírito, desvalorizando a morte em relação à vida do espírito, como se
autodeterminando-se diante dela. A ideia socrática é a crença de que a
consciência e a inteligência do homem tudo podem superar e dominar – a
sabedoria racional pode, por si só, reprimir as angústias da morte. "Na medida
em que o indivíduo cristaliza as suas energias no seu entendimento – isto é, em
que é antes de mais nada sábio, filósofo –, nessa medida pode triunfar da ideia
da morte." (Cf. Morin, id:238).
6. "sendo a Morte, sou a liberdade"
A Morte é condição natural do homem, como de todo o ser vivo corpóreo, dotado
da condição de ser sexuado e de "ser para a morte". São, pois, vários os
significados que se associam ou que traduzem a ideia de Morte, criações
discursivas, mitológicas e filosóficas sobre a incognoscível experiência de
morrer, fruto da adaptação a diferentes ângulos de visão: evolução,
transformação, mudança, fatalidade inelutável, absurdo, desilusão,
desprendimento, estoicismo, pessimismo. O facto é que, recusando ou não
admitindo a possibilidade de morrer, de desaparecer, de ser nada, para o
indivíduo não deveria ser possível a representação da ideia de Morte. Estamos
perante a relação do homem com o seu próprio corpo e a imagem de uma horrenda
degradação, de um desgaste funcional, substituindo o "ser-para-a-vida" (que,
submetido aos efeitos da passagem do tempo, era feito "ser-para-amorte") por um
"ser-para-a-sobrevivência" e continuamente durar.
A Morte é uma característica determinante do homem que, como todos os seres
vivos, também morre, mas é o único que tem consciência da inevitabilidade da
morte e de uma vida finita no tempo. Assim, a Morte não se limita a um
derradeiro acontecimento, mas compreende toda a vida, condicionando-a num drama
de perda e separação, mas que só será plena se incorporar a morte em liberdade.
A atitude de fuga perante a (ideia de) Morte, a ameaça do nada, a iminência do
fim, não faz desaparecer a angústia: reforça-a e amplia-a. Libertadora de penas
e preocupações, a Morte é revelação e introdução no reino do espírito. A Morte
é a própria condição do progresso e da vida.[38] Conclui Edgar Morin (id.:324):
"A morte é antes de mais nada o risco permanente, o acaso que surge a cada
transformação do mundo e a cada salto em frente da vida (...).".
Antero de Quental, poeta para quem a ideia de Morte se assumia numa dupla face,
pessimista e negativa, mas, também, como aspiração positiva, renovadora e
libertadora ("Firo mas salvo... Prostro e desbarato,/Mas consolo... Subverto,
mas resgato.../E, sendo a Morte, sou a liberdade.". Quental, 2002:116)
aconselhava: "Saibamos compreender a Morte, que é a única maneira de sabermos
compreender a Vida e de sabermos viver." (Quental, 1991:79).