Trabalhos de margem no centro da urbe: o arrumador de automóveis
Os consumos problemáticos de drogas, sobretudo quando adquirem uma dimensão
fortemente visível no espaço público, são um fenómeno que se tornou corrente
nos sistemas urbanos. Mas nem por serem correntes perderam a carga com que são
encarados, seja enquanto tema do debate social, seja enquanto preocupação de
diferentes instâncias de controlo. Nas sociedades urbanas complexas os consumos
problemáticos de drogas podem assumir expressões variadas, dizer respeito a
grupos sociais muito distintos e a zonas muito diferentes entre si no que toca
à sua visibilidade e ao modo como são percebidas como problema.
A construção do seu estatuto como problemático tem uma longa história, que
poderíamos remontar à conquista espanhola da região que tem ainda hoje um
grande protagonismo no panorama internacional das drogas: a região andina da
folha de coca, reprimida então pelos espanhóis pela sua associação a
cerimoniais religiosos incas (Diaz 1998; Escohotado 1996). Não traçaremos aqui
o longo percurso que culminou com a ilegalização das substâncias a que hoje
chamamos drogas e que teve como grandes eixos construtores os dispositivos
jurídico-penal e médico-sanitário (Fernandes 1998; Lamo de Espinosa 1989;
Romaní 1999). Pretendemos apenas sublinhar o atual estatuto problemático de
certos produtos e de indivíduos, grupos sociais e zonas urbanas a eles
associadas, normalmente referidos no seu conjunto no debate público como o
problema da droga.
Em Portugal, a visibilidade pública do drogado começou a ganhar contornos nos
anos 70 do século XX e tornou-se presença constante na comunicação social a
partir de meados dos anos 80, acompanhando o aumento do consumo de heroína e a
fixação dos seus principais mercados de retalho nas periferias degradadas.
Diríamos que a comunicação social explorou o potencial fílmico de novas figuras
que emergiam no espaço urbano, difundindo imagens e debates que erigiriam a
droga como um dos mais preocupantes problemas com que Portugal se debatia. A
melhor demonstração do alarme social assim gerado foi o rápido crescimento dos
dispositivos de controlo em seu torno (cf. Agra 1993; Fernandes 2009, 2011).
O problema da droga teria assim, de acordo com a sua evolução na interface
entre consumos de psicoativos ilegais e reação social, figuras que se iam
tornando centrais: primeiro o toxicómano juvenil e o traficante, depois o
toxicodependente, que por sua vez se desdobrava em figuras como o
heroinómano ou a prostituta-toxicodependente, passando também a distinguir-
se entre o traficante e o traficante-consumidor. Pelo meio destas figuras
que concentravam as atenções dos mass media e do dispositivo de combate à
droga surge, bem no centro de Lisboa e do Porto, um novo ator que depressa se
percebeu estar também ligado ao problema da droga: o arrumador de automóveis.
É justamente a figura do arrumador aquela que concentrará a nossa atenção neste
texto. Ele é o ator que materializou no contacto diário da rua a figura do
drogado, que o cidadão comum desenhava sobretudo a partir do relato da
comunicação social. O arrumador é a interface com o comum utilizador da cidade;
tem por isso um grande peso na produção de representações sociais sobre o
drogado, o excluído, o marginal. É uma personagem relativamente nova nos
espaços urbanos ' começamos a cruzar-nos com ela em Lisboa ou no Porto no
início dos anos 90 ', proliferou rapidamente, mas nem por isso mereceu a
atenção dos cientistas sociais que estudam a cidade ou o desvio. No final dessa
década, as autoridades municipais estimaram em cerca de 700 o seu número nas
ruas do Porto; em Lisboa, embora não houvesse números oficiais, calcula-se que
seriam mais de 1500.
A inquietude provocada pela aparição dos arrumadores no quotidiano das cidades
portuguesas deu origem, no final dos anos 90 no Porto, a uma primeira
intervenção social, no quadro do contrato-cidade para o combate à exclusão
social, o programa Há Porto contigo; a partir de 2002 iniciar-se-ia o Porto
Feliz, também de iniciativa autárquica, cujo primeiro objetivo era o de os
retirar das ruas e praças, de modo a restaurar a normalidade da cidade
dominante. No debate público da altura, o arrumador aparecia como um
potenciador do sentimento de insegurança: seria em regra um toxicodependente, e
este era tido nos relatos diários da comunicação social como o principal
responsável pelo aumento da criminalidade. Viemos agora encontrá-lo em
Guimarães. Esclareceremos na secção seguinte o porquê de ser nesta cidade e não
em qualquer outra da mesma escala urbana.
Delimitação do objeto e escolhas metodológicas
A investigação que nos conduziria a centrar-nos sobre os arrumadores de
automóveis teve origem numa solicitação por parte duma autarquia. Com efeito, a
Câmara Municipal de Guimarães quis aprofundar o conhecimento sobre os consumos
e os utilizadores problemáticos de drogas, de modo a potenciar as ações
interventivas, tanto do seu departamento de ação social como das organizações
que integram a rede social. Estávamos, portanto, perante o desafio de
empreender um trabalho etnográfico junto dos atores e dos territórios das
drogas em Guimarães.[1]
Delimitação do objeto
Tarefa primeira: delimitar o objeto da pesquisa. Circunscrevemos os consumos
problemáticos às franjas de indivíduos mais marginalizadas, que são normalmente
aquelas em que os problemas sanitários e sociais atingem maior gravidade, sendo
também as que se tornam mais visíveis nas dinâmicas diárias dos espaços
urbanos. Do conjunto de dados que o trabalho de campo gerou isolaremos a parte
que diz respeito aos indivíduos que optaram pela atividade de arrumador de
carros como estratégia para tornar viável o financiamento dos consumos da(s)
droga(s) a que estão adictos.
A unidade de estudo
Tarefa segunda: escolher a unidade de estudo. A opção pela pesquisa de terreno
em contexto natural exige o contacto prolongado com atores e respetivos
territórios. A existência dum território com grande centralidade, tanto face ao
fenómeno droga como face à própria cidade, estava já previamente identificada
por uma equipa de redução de riscos e minimização de danos.[2]
Recorremos então à equipa de rua como âncora de terreno, de modo a irradiar
posteriormente a partir do seu local habitual de permanência, situado no centro
histórico. Apesar da sua centralidade no mapa da cidade, tratava-se dum espaço
intersticial: ao fundo duma viela, num pequeno largo fora das vistas dos
transeuntes, com um túnel rodoviário que oferecia o recato de consumir
resguardado dos outros e protegido do vento, o que se reveste de utilidade
prática quando têm de acender-se isqueiros e aspirar finas colunas de fumo, que
qualquer aragem faz dispersar. O decorrer do trabalho de campo confirmaria a
importância deste território psicotrópico na organização diária dos
utilizadores: local de consumo, de compra e venda de produto, de
relacionamentos e contactos, uma vez ou outra de pernoita (havia quem dormisse
no túnel), de recurso aos serviços da unidade móvel de redução de riscos.
O trabalho de campo
A etnografia foi o método escolhido para levar a cabo os objetivos definidos
para a investigação. Tem provado ser uma das estratégias metodológicas com
maior capacidade de se acercar de realidades em relação às quais os grupos
dominantes produzem distância social e simbólica. Esta distância redu-las a
imagens simplificadas e simplistas ' os estereótipos, que circulam como
verdades de senso comum. Vários estudos têm caracterizado estes estereótipos a
propósito da droga e dos drogados, mostrando o seu reducionismo e o modo
como funcionam como sentenças valorativas a priori (cf. Quintas 1997; Ribeiro
2004; Romaní 2009). A tarefa inicial do etnógrafo é suspender tais
estereótipos, abordando os atores no seu contexto natural, nos lugares onde
desenrolam a sua atividade quotidiana, procurando adotar a postura de quem
pouco ou nada sabe do que vê e ouve.
A profundidade com que vem a poder conhecer-se um mundo social específico, nas
pesquisas em contexto natural, depende do sucesso com que se processa a
aproximação do investigador às zonas e aos grupos e indivíduos que quer
conhecer. E esta proximidade dá-se pela conquista progressiva da sua confiança,
pelo que a evolução é necessariamente lenta.
O primeiro problema a resolver é, desde logo, o de como entrar na zona que se
escolhe, o de como abordar os indivíduos, o de como fazer-se aceitar por quem
nada tem, aparentemente, a ganhar com a sua presença ali.
Ter a equipa de redução de riscos como âncora inicial permitiu beneficiar do
capital de confiança que os seus técnicos já tinham construído no trabalho de
proximidade com os utilizadores de rua. Mas o papel do investigador não deve,
por razões éticas, ser ocultado, nem, por razões técnicas, pode ser confundido
com o dos profissionais que trabalham na unidade móvel. Não estivemos ali,
portanto, fazendo-nos passar por alguns deles. De resto, não estávamos sequer
dentro da carrinha. Ela constituiu a possibilidade de, sem grande trabalho de
aproximação prévio, aparecermos no meio dum primeiro conjunto de utilizadores
de drogas, constituído pelos utentes mais ou menos regulares desta unidade
móvel. À medida que fomos ganhando proximidade com alguns dos mais assíduos,
foi então possível alargar a nossa observação a todo o centro da cidade, já que
passámos a reconhecê-los em vários espaços e pudemos ir ficando por ali '
pelas ruas centrais, pelas praças, pelas esquinas e, principalmente, pelos
parques, à medida que constatávamos que os indivíduos que conhecíamos da
unidade móvel eram os mesmos que arrumavam carros nesses parques. Sobre o que
são e como estes funcionam, teremos tempo de ver já adiante.
Assim, os tempos iniciais duma pesquisa deste tipo são de negociação do
estatuto do investigador, tanto junto dos técnicos como, principalmente, junto
dos atores das drogas, etapa fundamental para que a sua presença não seja um
obstáculo ao livre curso dos fenómenos nos seus settings naturais, sob pena de
alterarmos irremediavelmente aquilo que queremos conhecer.
Fazer etnografia é, deste modo, estar sempre no começo: porque a unidade de
estudo é nova, porque os atores são outros, porque o contexto exige novas
adaptações. Os primeiros passos são sempre de incerteza, os primeiros contactos
são sempre de descoberta:
Entretanto o Renato (técnico da equipa de rua) diz, virando-se para
mim, Este é aquele colega de que tínhamos falado que vinha uns
tempos connosco', frisando bem que eu não pertencia à equipa, que
estava a fazer um estudo para a universidade. O F., ainda no chão,
com uma prata usada na mão, diz: É um estágio, não é, jovem? É um
estágio ' Eu respondo: É mais ou menos isso [entre risos], é uma
pesquisa para a Universidade do Porto , dizendo o F.: É isso, é
isso ' Quando o Renato diz o meu nome, eu estendo a mão ao F., que ma
aperta [diário de campo, primeiro dia].
O etnógrafo é apresentado aos primeiros utilizadores com quem se cruza. Inicia-
se o processo de definição do seu estatuto naquele contexto, funcionando a
intermediação do técnico de redução de riscos e a frase é para a universidade
como apaziguadores da desconfiança que a sua presença causa.
O R. está a desembrulhar com muito cuidado uma prata, e o Renato
diz: Queres vir ver aqui o R., que ele não se importa que o vejamos
a consumir?' O R. acrescenta: Eu não, não me importo nada ' Eu
agradeço e aproximo-me deles. Vão falando, mas eu concentro-me
naquilo que o R. está a fazer, acaba de desembrulhar a prata e no seu
centro está uma mancha, que parece uma mancha de café coagulada. Com
muito cuidado ele descola-a da prata e tomba-a para outra prata nova,
depois raspa os restos, como que a tentar aproveitar ao máximo todos
os bocadinhos que estavam na prata [diário de campo, primeiro dia].
O etnógrafo obtém as primeiras autorizações para participar, observando
diretamente a cena drug, ainda com a intermediação do técnico de redução de
danos. São os primeiros passos para que o vínculo que este já criou com os
utilizadores de drogas seja transmitido ao investigador. A continuidade deste
processo acabará por autonomizá-lo do intermediário, passando a ter acesso
direto aos lugares e aos indivíduos, explicando uma e outra vez porque se
encontra ali, caso note interrogação ou estranheza em algum deles. Verá então o
utilizador no momento da consumação do interdito, ou o desvendar da privacidade
que os mundos de rua também encerram:
Chegamos perto da parede e o R. acende o isqueiro e dá uma passa.
Observo que a mancha se liquidificou, se moveu e largou fumo, que foi
aspirado pelo cano de prata. O R. pergunta-me, agachando-se de
cócoras encostado à parede: Mas nunca tinha visto, é?' Eu respondo
que não, e ele diz: Quer dizer, sabia o que é mas nunca tinha
visto ' Eu volto a dizer que sim, e reparo que o Renato se afasta um
pouco, percebo que era para não apanhar com o fumo. Eu também me
afasto, mas consegui sentir o cheiro, era adocicado e esquisito
[diário de campo, primeiro dia].
Observar é uma experiência sensorial plena: há também odores, o etnógrafo
regista como quem vê pela primeira vez. E nada do que vê é trivial, tudo
interessa, precisamos de tudo quanto se ofereça diante de nós ' porque, mais à
frente, com o acumular dos dados, aquilo que parecia mero pormenor pode revelar
grande valor informativo. Resistir às definições prévias, deixar para trás o
estereótipo, fazem parte da arte de ver quando se está no terreno. São também
as condições que permitem a emergência da novidade.
Ser arrumador
A figura do arrumador de automóveis viria a ganhar, à medida que o trabalho de
campo decorria, progressiva centralidade. Procuremos uma compreensão da sua
presença nos espaços de rua que nos leve para além das evidências de senso
comum. Quando chegamos perto dele, o que constatamos sobre este ator que se
tornou presença diária em várias das nossas cidades? Que trajetória o trouxe
até à rua? Que faz, em que consiste a sua atividade? Como se relaciona com o
automobilista e com os comerciantes das imediações do seu parque? Quanto
rende a atividade? Que faz ao dinheiro que vai recolhendo? E como reagem à sua
presença constante os que têm de interagir com ele?
Não era, já o dissemos, nossa intenção inicial tomar o arrumador de automóveis
como objeto de pesquisa. Fomos conduzidos até ele pela fidelidade a um dos
princípios da investigação etnográfica: não impor ao objeto de estudo uma
delimitação prévia. Estar, ao invés, preparados para nos adaptarmos às suas
peculiaridades, seguir-lhe a pista, ir para onde ele nos for levando. E o que
este princípio ditou foi que, começando a relacionar-nos com indivíduos que
utilizavam a rua como local de compra e consumo da(s) sua(s) droga(s) preferida
(s), acabámos por ir dar aos parques: os lugares onde alguns deles passam uma
grande parte da jornada a angariar dinheiro para poder comprar a substância a
que estão adictos.
Que faz ele por ali no parque horas a fio? Num olhar superficial, no
comentário do senso comum, parece não fazer mais do que entreter o tempo,
tentando arranjar umas moedas para a droga. O arrumador seria um indivíduo em
errância, uma espécie de herdeiro atual da velha figura do vadio. Quando nos
acercamos, porém, assemelha-se mais a uma figura do trabalho informal. O vadio
está longamente inscrito na história das sociedades que consagraram o trabalho
como a sua moral dominante, algo que foi ocorrendo com muito maior intensidade
a partir da revolução industrial. Em Portugal, o século XIX é o século do
vadio, do vagabundo, do ocioso, do pária ' o outro lado da moeda do
operariado industrial, constituído sobretudo na segunda metade desse século a
partir da migração maciça do campo para a grande cidade (Fatela 1999; Vaz
2006).
O código penal de 1886 define assim o vadio:
Aquele que não tem domicílio certo em que habite, nem meios de
subsistência, nem exercita habitualmente alguma profissão, ou ofício,
ou outro mester em que ganhe a sua vida, não provando necessidade de
força maior que o justifique de se achar nestas circunstâncias (cit.
em Fatela 1989: 89).
Em comum com o vadio, o arrumador tem também a circunstância de ser uma das
vítimas da profunda transformação em curso, que já nos habituámos a chamar
globalização e cujos efeitos nos mais variados setores da vida vão sendo
descobertos sucessivamente. Esta transformação tem vindo a produzir novas
desinserções, novas errâncias e novas marginalidades. A diferença em relação
àquela época é que estas não são constituídas por aqueles que a lógica do
trabalho deixou de lado, mas resultam da degradação deste nos países do
capitalismo avançado (deslocalizações maciças, desregulação laboral, exploração
de migrantes clandestinos, trabalho temporário, recrutamento ao dia, degradação
salarial, desemprego ).
Quando traçamos a sociografia dos arrumadores que fomos conhecendo ao longo do
trabalho de campo, todos eles do sexo masculino, notamos como têm,
invariavelmente, percursos laborais intermitentes (entrecortados com
desocupação), quase sempre em trabalhos pouco qualificados ' os únicos a que
podem ter acesso em função da baixa escolaridade de todos eles. É frequente a
permanência pouco prolongada numa dada ocupação, com transições de trabalho em
trabalho. Por exemplo, passar da construção civil a uma tinturaria, desta a uma
tipografia; ou de talhante a operário fabril, da fábrica para a construção
civil.
É também comum entre quase todos uma situação familiar, tanto da família de
origem como da que formaram, marcada por conflito e roturas. A convergência
entre esta e a degradação da situação face ao trabalho acaba por ter um
desfecho também frequente entre os arrumadores com quem contactámos: a
precariedade do alojamento, oscilando entre quartos de pensão, passagem
temporária por casas de familiares e, não raramente, a situação de sem-abrigo.
O protagonista deste tipo de trajetória não é hoje, necessariamente, aquele que
não se integrou na ordem da sociedade industrial, é o que vai sendo aos poucos
vítima da desintegração do antigo mundo operário, da sua fragmentação, da
subproletarização, que torna a relação entre as franjas populacionais mais
expostas a estes processos e o trabalho cada vez mais improvável.[3]
Ao longo desta secção veremos como o arrumador traz a marca, ao nível
individual, do processo a que acabamos de aludir: ele é a expressão de
mecanismos macroestruturais que operam muito longe da sua vida, mas que a
afetam profundamente. E é um exemplo de como os níveis macro e micro se ligam
na análise social, e de como é difícil, no plano interventivo, operar mudanças
no nível micro quando nada se altera no macro. Mas o paralelo entre o
consumidor problemático / arrumador e o vadio para aqui. De facto, o que o
arrumador faz assemelha-se mais ao trabalho do que àquilo que fazia o vadio '
não fazia nada, definia-se pelo apego à ociosidade.
Arrumar carros como atividade do trabalho informal
Esta preocupação com o bem-estar dos clientes, com a adoção duma
atitude agradável que conquiste a confiança dos automobilistas, é um
dos princípios mais respeitados pelos arrumadores com mais anos de
carreira. Veem-se como profissionais que prezam a sua atividade e que
procuram, de facto, prestar um serviço que consideram útil
(Fernandes e Pinto 2004).
Escrevíamos estas linhas há alguns anos, a propósito dos indivíduos,
maioritariamente toxicodependentes, que arrumavam carros no Porto. Arrumar
carros é um trabalho? José Machado Pais, numa das raras investigações que deram
ao arrumador estatuto de objeto científico, diz-nos:
Entre estes sujeitos existe uma consciência de grupo, um agir
coletivo que se rege por um saber próprio e por uma ética de trabalho
baseada no brio profissional, pelo que a preocupação expressa por
alguns em respeitar os locais pertencentes a cada um e manter o seu
território limpo' é disso exemplo (Pais 2001: 245).
Também nós verificámos que os arrumadores com presença assídua nas ruas do
centro de Guimarães se autopercecionavam como estando a prestar um serviço ao
automobilista, comportando-se como quem executa um trabalho. Já não parece tão
claro poder afirmar que o automobilista o percecione como um trabalhador, a
avaliar pela quantidade dos que não pagavam o serviço
O arrumador inscreve assim a sua presença numa espécie de trabalho informal, à
semelhança do que acontece com outras atividades que, a despeito de serem
olhadas como desviantes, marginais ou mesmo criminais, correspondem a
verdadeiras ocupações, centrais na estruturação de modos de vida. Dê-se o
exemplo da prostituição de rua, revelada na sua dimensão de atividade
comercial, definindo a prostituta como trabalhadora sexual (cf., para o
contexto do Porto, a etnografia conduzida por Alexandra Oliveira, apresentada
em Oliveira 2011); dê-se ainda o exemplo da venda ambulante levada a cabo por
ciganos, estudada por Daniel Seabra (2006) em Lisboa. O facto de, no caso dos
arrumadores, ser um serviço que não foi solicitado pelo cliente não lhe retira,
pelo menos aos olhos de quem o realiza, o caráter de trabalho ' também aqui à
semelhança doutros, como as vendas por telefone ou porta a porta, muitas vezes,
de resto, correspondendo a atividades do trabalho reconhecido e formal.
Não é este o lugar para aprofundarmos o conceito de trabalho informal. Mesmo
assim, dada a centralidade que o arrumar carros desempenha enquanto atividade
estruturadora da vida do indivíduo e, digamos, remunerada, vale a pena situar o
conceito. Que o trabalho acabou por ocupar um lugar absolutamente fulcral à
medida que a Modernidade avançou é algo que, pela exaustividade das análises
que o demonstram, dispensa mais argumentação. E que as profundas mutações a que
ele está sujeito na contemporaneidade estão a ter amplos reflexos nos
equilíbrios sociais constitui um campo de análise de grande importância. Ora, o
arrumador é disto um objeto-analisador: quase sempre um desempregado de longa
duração, não perdeu o emprego duma vez. Foi, sim, resvalando nas posições que
eram mais ou menos estáveis há umas décadas e que correspondiam a trabalhos
pouco qualificados mas enquadrados na categoria social do operariado, sendo o
produto da desagregação desta categoria nas sociedades pós-industriais. O mundo
laboral a que pertencia ou foi desaparecendo como consequência da automação e
da deslocalização ou se foi tornando instável, a sua baixa escolaridade
constitui uma desvantagem muito maior do que há poucas décadas, saltar de
ocupação em ocupação tornou-se comum, ficar sem trabalho também. A consequência
foi a pauperização, e as tentativas de saída passaram pela emigração, ou pelo
desempenho de tarefas em economias subterrâneas como a do mercado de retalho de
drogas ilegais. Estas expectativas de saída de uma situação pessoal de grande
vulnerabilidade revelaram-se com frequência apenas mais uma etapa no
desenraizamento e na precarização.
Conseguir angariar o mínimo através dum empreendedorismo de margem
correspondeu, no caso dos arrumadores, a uma reentrada no circuito da cidade. E
é provavelmente por isso que se torna importante, olhado a partir do seu
próprio ponto de vista, considerar que se está a realizar uma atividade, algo
parecido com um trabalho. É o que mostra o terreno, quando analisamos em
pormenor aquilo que fazem e como o fazem dia após dia no seu parque. São, a
nosso ver, uma figura emergente do trabalho informal. No quadro da atual
desregulação, o trabalho informal começa a aparecer como uma categoria
importante. Manuela Ivone Cunha situa o conceito de economia informal como
tendo sido avançado há cerca de duas décadas
[ ] para qualificar [ ] os rendimentos instáveis provenientes de
atividades económicas fora do alcance regulamentar do Estado. Porém
[ ] convém precisar que Hart (o autor que propôs o conceito) se
referia não a um setor definido de antemão e separável de outros, mas
a fontes ou oportunidades de rendimento [ ]. [Desde então,] a noção
de informalidade tem sido profusamente utilizada em várias
disciplinas (a sociologia, a antropologia, a economia, a geografia, a
ciência política ) (Cunha 2006: 220).
À luz do que o trabalho de campo nos revelou, propomos o arrumador como figura
emergente do trabalho informal. Para além da ausência de regulação das
atividades económicas pelo Estado, a ausência duma lógica de mercado e / ou a
ausência de legalidade seriam ainda características do trabalho informal,
segundo a mesma autora. Este é suscetível, assim, de englobar uma
multiplicidade de modalidades à margem do mercado formal. Inscritas onde,
então? Na reciprocidade, parece-nos. Veremos adiante como a relação entre
arrumador e automobilista pode revestir esta forma ancestral na troca económica
e social. O que o arrumador evidencia, aplicando os termos de Manuela Ivone
Cunha, é um encastramento particular do económico nas relações sociais (Cunha
2006: 221). Cheguemo-nos de novo à focagem de perto ' vejamos os arrumadores do
centro de Guimarães.
Pedi um éclair e, ao pagar, perguntei à funcionária se ela tinha
visto hoje o arrumador de carros que costuma estar ali. Ela disse que
não e que ainda era cedo para ele, que deveria vir por volta das três
e meia [diário de campo].
A presença continuada dos arrumadores tornou-os familiares. As empregadas da
confeitaria sabem a que horas entra o Manel. Porque trabalhar num parque
tem bastantes parecenças com trabalhar noutro sítio qualquer do trabalho
formal: atenção à tarefa (há alguma vaga para indicar ao automobilista que quer
parar?), competências relacionais (interagir com o automobilista), fornecimento
do serviço (por exemplo, ir à máquina, trazer o ticket, receber a moeda). De
manhã, no mesmo parque, está o Canija. Horas certas para chegar, tal como o
Manel de tarde ' não há relógio de ponto, mas há o relógio biológico da
ressaca, que é férrea a exigir pontualidade.
A máquina, nas economias formais, revelou-se devastadora dos postos de
trabalho. Aqui, tanto pode ser aliada (dá mais rendimento arrumar em zona de
parquímetros) como concorrente:
O automobilista retirou o ticket e veio pô-lo dentro do carro.
Parecia não ter intenções de dar nada ao Manel e este pergunta se ele
não tem uma moeda. O homem disse-lhe que não tinha, que ia levantar e
depois quando viesse que lhe dava. Quando se afastou de nós, o Manel
disse, sorrindo: Vai levantar! Granda grupo, prefere dar dinheiro à
puta da máquina em vez de a nós ' [diário de campo].
O arrumador que tem presença assídua num parque ' geralmente o seu parque '
conhece os ritmos dos utentes da zona, podendo assim tirar partido desses
ritmos. O Barbas, por exemplo, sabe que à quinta-feira o seu parque está fraco
quase toda a tarde, mas entre as 18h30 e as 19h30 há uma boa movimentação de
automóveis que lhe permite, só nessa hora, fazer 6 ou 7 euros ' o suficiente
para a dose necessária para passar a noite. Ser arrumador implica portanto, a
seu modo, um conhecimento do quotidiano da cidade:
O Barbas disse que aquele sítio não era bom, que do outro lado é que
era. Eu disse que do outro lado tinha parquímetros e que pensava que
era pior. Ele respondeu que não, que o facto de ter parquímetros
ajudava, pois as pessoas davam sempre 50 ou 20 cêntimos para eles
tirarem os tickets. Disse que ali em uma ou duas horas se fazia 20
euros à vontade.
Perguntei-lhe ainda qual era o dia que dava mais dinheiro. Ele disse
que era o sábado, porque as pessoas iam todas às compras e então os
carros estavam sempre a sair e a entrar [diário de campo].
Há porém outros horários bem menos lucrativos. Vimos locais igualmente centrais
onde o arrumador que estava de manhã, entre as 8 e as 10 horas, apenas tinha
amealhado dois euros. E quem dá mais moedas? Também aqui os arrumadores têm um
saber feito de experiência. Vejamos a teoria explicativa do Rujo:
Depois o Rujo ainda disse que os carros bons não davam nada e que
podia aparecer um carro velho e a pessoa dava uma boa moeda. Ele
justificou a sua teoria: As pessoas têm um carro e tudo, mas já o
têm há muitos anos, não é, e sabem o que é viver com necessidades e
dão uma boa moeda, agora os outros com mais posses não sabem e não
dão nada ' [diário de campo].
A ajuda ao arrumador pode, na interpretação deste, radicar numa espécie de
solidariedade saída da experiência direta das dificuldades.
Arrumar carros tem em comum com outros ofícios obrigar a perseverança e
esforço, por vezes em condições severas do ambiente de trabalho. Os dias
frios e chuvosos são disso exemplo ' e há que trabalhar, porque a ressaca não
hiberna Quando o dia está a correr mesmo mal, quando está difícil juntar a
quantia para o pacote de heroína ou de base, lança-se mão, por vezes, da
criatividade. Vejamos como é que o Canija resolveu o problema:
O dia está a correr mal ao Canija, os carros não saem, os poucos que
chegam não dão moeda. Chega então um, ele vai metê-lo' e, quando
regressa, diz: Já tive que espetar uma mentira', dando a entender
que era assim que se ia safando. Contou que tinha dito ao homem que
hoje fazia anos e que ainda não tinha comido nada. Disse ainda que
eram mentiras inofensivas e eu acrescentei que era uma estratégia,
que ele tentou comover o automobilista para este lhe dar dinheiro.
Ele concordou e disse que o senhor lhe tinha dado 2 euros [diário de
campo].
A vida na heroína cansa, arrumar carros também, as duas juntas desgastam.
Estou farto desta vida! é uma frase corrente. Para a semana vou começar um
tratamento também. E no dia seguinte estão no mesmo posto a arrumar os mesmos
carros, vão trocar as moedas aos mesmos sítios, correm então a entregar a nota
ao dealer para obter o pó do alívio imediato. Tanto cansaço pede descanso, todo
o trabalho precisa de férias. Quando é que são as férias dum arrumador? Quando
finalmente recolhe a uma comunidade terapêutica, quando é internado para uma
desintoxicação. Às vezes, as férias vão passar-se a um estabelecimento
prisional, quando finalmente há o desfecho dum processo por tráfico ' algo que
não é nada raro na trajetória de muitos.
O olhar distraído do habitante citadino achará provavelmente os arrumadores
todos iguais ' como temos tendência a fazer quando reduzimos a um estereótipo
um grupo em relação ao qual produzimos distância social e simbólica. Mas, como
em qualquer outra ocupação, os arrumadores exibem estilos pessoais ao executá-
la. Estes estilos têm relação com a personalidade de cada um. Vejamos o que o
etnógrafo anotou quando foi ver o Rujo a trabalhar no seu parque:
Nós estávamos na entrada do parque encostados ao tal carro. E
entretanto tive a oportunidade de ver o Rujo trabalhar. Vagou um
lugar mesmo ao nosso lado e ainda demorou uns minutos até aparecer um
carro que lá estacionasse. Pensei que o Rujo se ia pôr à entrada do
parque ou na rua principal a angariar, como o Manel, mas não, ele
manteve-se ali perto do lugar. Foi um facto que constatei, o Manel é
muito mais pró-ativo do que o Rujo, que não pressionava nada os
condutores, não angariava carros para o lugar, esperando que
aparecessem, e não corria para os lugares para ajudar as pessoas a
estacionar.
[ ] O Rujo estava a arrumar um carro quando cheguei perto dele, e
pude vê-lo durante alguns segundos a trabalhar sem que ele me visse.
Não notei diferença das vezes em que ele sabia que eu estava ali,
pelo que deduzo que o estilo dele é mesmo aquele. É um estilo
retraído e calmo, sem causar pressão nos condutores [diário de
campo].
Também o Barbas, que arruma num parque perto do Rujo, apresenta um estilo low
profile:
Eu fiquei ali com o Barbas e ele ia metendo' uns carros e
conversando comigo. Fiquei parado e mantinha alguma distância quando
ele interagia com os condutores. Tal como o Rujo, ele era bastante
comedido, não pressionava os condutores e não era inconveniente
[diário de campo].
A vida no parque é rotineira. Uma das operações de rotina é a troca das
inúmeras moedas que se vão acumulando nos bolsos por uma nota, pois é prática
corrente os dealers não aceitarem moedas quando o arrumador lhes vai comprar a
dose. O comércio local é o entreposto em que o arrumador faz a sua troca:
O balcão do café era cinzento claro e tinha alguns utensílios de
trabalho em cima. O Rujo despejou o porta-moedas, espalhando as
moedas de forma a que não ficassem sobrepostas. E quando a empregada
passou por nós ele tratou-a pelo nome e pediu um café. [ ] O Rujo
acabou de contar e ficou inquieto. Queria que lhe trocassem logo o
dinheiro, pois podia perder o dealer. Olhou várias vezes para as
funcionárias que andavam atarefadas com serviço de outros clientes.
Os olhares dele eram como uma súplica para que se despachassem
[diário de campo].
Outras vezes, o arrumador tenta enganar-se nos trocos. Poucos cêntimos têm um
grande valor, sobretudo se são os que faltam para perfazer o preço que paga por
um pacote de heroína:
Depois de estacionar, o Manel pediu-lhe uma moeda e o condutor, já
fora do carro, disse-lhe que não tinha troco. O Manel disse que lhe
trocava, se ele tinha uma nota de 5 euros. O rapaz disse-lhe que só
tinha uma nota de 10 euros e o Manel, sorrindo, disse que também lhe
trocava. Começou a contar as moedas e deu-lhe uma nota de 5 euros e
algumas moedas para a mão e já estava a virar costas quando o rapaz
lhe chamou a atenção, olhando para as moedas na palma da mão. O Manel
voltou-se e meteu lá mais uma moeda, guardando depois no bolso da
camisa a nota de 10 euros. Depois de o rapaz se ter ido embora, antes
mesmo de lhe perguntar o que se tinha passado, o Manel disse: Estava
a ver se lhe comia um euro, mas o cabrão reparou e assim só me deu 50
cêntimos!' [diário de campo].
Mas, em geral, a relação é cordial e o arrumador tem oportunidade de mostrar as
suas competências:
Quando eu estava a pagar ao balcão, o Manel apareceu lá com uma nota
de 5 euros para trocar. Brinquei com ele e disse-lhe que ele estava
cheio de dinheiro. Ele disse que não era dele, que era de uma senhora
que tinha estacionado o carro. Estava a pedir à funcionária para lhe
trocar em moedas de 1 euro, que era para a condutora lhe dar 1 euro.
[ ] O Manel, a condutora e a filha desta falavam sobre deixar ou não
a janela do Mercedes um pouco aberta, pois lá dentro estava um animal
numa jaula de plástico que precisava de respirar. A senhora deixou a
janela com um friso de ar aberto e o Manel passou lá os dedos e
disse-lhe que não havia problema [diário de campo].
A atividade até poderia tornar-se lucrativa, caso o arrumador conseguisse
abandonar os consumos:
O Barbas comentou acerca do indivíduo que estava naquele momento a
trabalhar' naquele parque'. Disse que o indivíduo já não consumia,
que estava a tomar metadona e que agora aquilo que ele fazia lá era
tudo lucro. Que devia fazer uma pasta do caraças'. Disse o Barbas
que o indivíduo lhe terá dito que em breve também ia deixar a
metadona, que todos os meses reduzia um pouco quando ia à consulta
[diário de campo].
No entanto, esta situação não parece ser comum: a metadona não afasta
necessariamente o indivíduo dos consumos de heroína, muito menos o afasta dos
de base de coca, mantendo-se por isso a necessidade de financiamento para a sua
compra. Uma visita ao terreno já depois de termos dado por terminada a
observação sistemática mostrou-nos um Rujo à espera de ser chamado para um
internamento, em mais uma tentativa de, não apenas parar com as drogas, como de
mudar de vida, desgastado pelo cansaço. E disse que nessa altura poderia então,
aí sim, juntar umas moedas e quando lá voltássemos seria ele a pagar um almoço.
Quanto rende esta atividade? Precisemos um pouco mais:
Perguntei-lhe como tinha corrido o dia e ele disse que tinha corrido
muito bem, que tinha feito 13 euros durante a manhã [diário de
campo].
Se se começar a atividade cedo, tem-se o dinheiro suficiente para o consumo
imediato de heroína ainda antes do meio-dia. À tarde, o ciclo recomeça '
porque a ressaca virá pontualmente e há que lhe impedir a chegada. Mas os
ganhos são muito variáveis, dependendo da localização do parque, do facto de
haver ou não parquímetros, dos ritmos de certas atividades que trazem gente ao
local, das condições meteorológicas ' e, claro, das competências do arrumador,
embora seja por enquanto inconclusivo sabermos qual dos vários estilos na
relação com o automobilista se revela mais rentável.
Vários episódios têm-nos mostrado repetidamente que muitos dos arrumadores
evidenciam responsabilidade na execução da tarefa, como se de um trabalho
formal se tratasse. Vejamos o episódio em que o etnógrafo tenta obter do Manel
uma entrevista sobre a sua trajetória nas drogas:
Perguntei-lhe se podíamos fazer já a entrevista e ele ficou meio
calado. Eu disse-lhe que lhe dava uns 3 euros pelo tempo que ele não
ia arrumar carros. Respondeu-me que não era pelo dinheiro, mas sim
pelos carros que lá estavam, que podiam apanhar uma multa. Perguntou
quanto tempo demorava e eu disse-lhe que eram uns 20 minutos. Pediu
então que esperasse um pouco para ele controlar os carros [diário de
campo].
Do repertório de competências faz também parte a cortesia:
Perguntei ao Manel como é que ele fazia a abordagem. Ele disse que
chegava lá e dizia boa tarde'. Num caso como o de agora ' tinha
acabado de receber moeda dum Mercedes ' , ele dizia: Boa tarde,
doutor'. Eu disse--lhe que perguntava aquilo pois havia outros tipos
de abordagem em que contavam histórias intermináveis sobre acidentes
de percurso e etc. Ele disse que era sempre bem-educado e que sabia
falar, e que, quando as pessoas não iam na cantiga dele, também usava
outros métodos para lhes dar a volta. Eu já assisti a esses métodos
mais persuasivos por parte do Manel, enrola a conversa e diz que está
tudo controlado, que controla a polícia, que podem confiar nele,
etc. [diário de campo].
No trabalho formal há um equilíbrio entre a competição e a cooperação. Também
aqui identificamos este binómio. Sobre a competição falaremos mais à frente a
propósito dos territórios; a cooperação também acontece, porque a vida na rua
também é relacional e cria laços:
Pelo caminho perguntei-lhe se ele tinha deixado o tal rapaz arrumar
na rua dele. Ele disse que sim, que habitualmente deixava que esse
tal indivíduo fosse para lá das 5 às 6. Disse o Manel: Eu gosto de
repartir a riqueza pelos pobres ' [diário de campo].
A pobreza é, de facto, um estado que apresenta uma certa relatividade
A relação com o automobilista
A exploração etnográfica que José Machado Pais levou a cabo entre os
arrumadores de Lisboa sintetiza numa frase o essencial do modo de vida de
arrumador: o seu caráter relacional, a sua dinâmica reguladora de quotidianos
da marginalidade urbana e a sua função de subsistência económica (Pais 2001:
247).
Também nós, nas notas de terreno, dávamos conta duma economia de subsistência,
inspirando-nos na expressão que era utilizada para o campesinato pobre do
interior norte de Portugal, em que o trabalho da terra dava apenas para o
estritamente necessário à sobrevivência. Também anotávamos a função reguladora
que o estar no parque a arrumar carros tem no quotidiano destes indivíduos '
porque o trabalho é ocupação, e a ocupação estrutura o tempo objetivo e o
subjetivo. E anotávamos com abundância o caráter relacional do estar na rua
arrumando carros, como que devolvendo à cidade quem, doutro modo, poderia bem
estar numa rota de isolamento e de invisibilidade. Este lado relacional aparece
nas frequentes interações que os atores estabelecem com os automobilistas, com
comerciantes da zona, com companheiros do ofício, com outros consumidores, com
dealers. E, no caso de muitos deles, com a equipa de rua de redução de riscos e
minimização de danos, com os técnicos do Centro de Respostas Integradas (a que
ainda chamam CAT) e com outros serviços da rede formal de instituições. Dum
modo muito sintético, diremos que este lado relacional se desenvolve segundo
duas modalidades: a confiança e a tensão.
Esperei mais um pouco até às 15h30 e depois resolvi ir embora da
confeitaria, mas ia perguntar algumas coisas às funcionárias. Quando
estava a pagar perguntei se o Manel se dava bem com elas e
apresentei-me como estando a fazer um trabalho sobre a
toxicodependência para a universidade. Elas disseram que ele se dava
muito bem com elas e que era muito prestável, que as ajudava com as
compras, tendo uma delas piscado o olho e dito: Para poder comer!'
Disseram também que lhes arranjava lugar para estacionar e que ele
andava sempre apresentável, limpinho e que sabia falar. De vez em
quando ia lá trocar dinheiro [diário de campo].
A confiança é aquilo que permite o vínculo social, estando portanto na base da
vida coletiva. Os grandes espaços urbanos geraram padrões interativos
defensivos, mais caracterizados pela indiferença e pelo anonimato do que pela
confiança. Mesmo assim, os indivíduos e os grupos desenvolvem estratégias para
minimizar o efeito desse traço da vida urbana, pois apesar da grande cidade
continuamos a ser animais de pequeno grupo e de relação face a face.
Ora, o arrumador parece ter-se tornado um especialista deste relacionamento
face a face, personalizando um espaço que doutro modo seria um mero sítio de
passagem e para-arranca de automóveis. É certo que força com frequência a
interação, é certo que é da experiência de qualquer pessoa sentir que preferia
não ter de trocar alguma frase e, ainda menos, dar uma moeda. Mas é certo
também que esta postura do arrumador contribui para quebrar o anonimato e a
indiferença: com o passar dos dias conhece muitos automobilistas mais ou menos
frequentes no seu parque e, com alguns, desenvolveu mesmo uma relação de
confiança:
Disse que um automobilista que tinha estacionado num dos lugares que
estavam afastados de nós lhe pagava o pequeno-almoço de vez em
quando. Disse que ele o deixava pago e que depois ele ia lá comer. Às
vezes não comia nesse dia e comia no outro [diário de campo].
Com alguns automobilistas a relação de confiança mútua vai ao ponto de ser o
arrumador a realizar a gestão do aparcamento:
Vi esse indivíduo dirigir-se a um carro que acabou de estacionar, a
condutora pela janela aberta disse-lhe algo e ele foi à máquina
tirar um ticket. A mulher não lhe deu dinheiro algum. Fiz essa
observação ao Barbas e ele disse que era assim. A pessoa estacionava
e depois dizia ao arrumador quanto tempo queria e este ia tirar o
ticket, pagando do bolso dele. Depois a pessoa dava-lhe uma moeda que
cobrisse o investimento e que desse mais algum. Imaginemos que a
pessoa pedia um tempo que custava 50 cêntimos, depois podia dar ao
arrumador 1 euro e este lucrava 50 cêntimos. O Barbas disse que até
podia ser mais. E se o arrumador tivesse já um talão ainda com tempo
de validade, que era só lucro [diário de campo].
A confiança pode exprimir-se sob a forma de solidariedade, sobretudo quando o
contexto envolvente apela a este comportamento social:
Depois perguntei como é que estava a correr o dia e ele sorriu
dizendo que estava a correr muito bem, que já tinha feito 20 euros
desde as 14 horas. Eu sorri e fiquei espantado, mas depois disse, ao
mesmo tempo que o Manel, que era por ser Natal. Ele disse que as
pessoas diziam: Pegue lá um euro, que é Natal' [diário de campo].
O Natal é para todos; em menos de duas horas o Manel juntou 20 euros.
A tensão
A relação com o automobilista é por vezes sentida por este como incomodativa:
Um dos carros que ele arrumou chamou-me a atenção, não pelo carro,
mas pela atitude do Manel, que é a sua forma de estar. Era uma jovem
condutora. O Manel dava-lhe as orientações dizendo: Assim, jovem,
assim, anda assim, anda'. Ele estava à frente do carro, e como a
condutora estava a fazer a manobra de outra forma ele insistia e não
saía da frente do carro. Elevou o tom da voz nas suas indicações. A
jovem, no interior do carro, passou-se' e gritou para ele sair da
frente do carro, levando as mãos ao ar. Ele acabou por sair e a
condutora acabou de estacionar. Não lhe deu nada, tendo ido à máquina
tirar um ticket [diário de campo].
Os nossos dados de terreno não mostram o centro de Guimarães como palco de
tensões entre arrumadores e automobilistas. Se bem que pontualmente a interação
possa ser confrontativa, no geral ocorre num clima que releva mais da confiança
do que da tensão. Não conhecemos o histórico da atividade na cidade. Mas
levantamos a hipótese, que seria necessário testar com dados empíricos, de que
o estilo dos arrumadores se modificou em relação aos tempos em que começaram a
aparecer pelas ruas ' tomamos aqui como referência os do Porto, baseando-nos na
nossa experiência de frequentadores da cidade e numa investigação etnográfica
com arrumadores cujo parque era a Loja do Cidadão das Antas (Matias e
Fernandes 2009). Com efeito, inicialmente, o estilo de abordagem era com
frequência confrontativo, no caso de negada a moeda podia tornar-se hostil e
abundavam os relatos de ter sido danificada a pintura do automóvel como
retaliação. Vem provavelmente daqui a associação da figura do arrumador com o
sentimento de insegurança, algo que os próprios reconhecem quando dizem saber
que são temidos como uma ameaça para o automóvel, enquanto o toxicodependente
(que também são ) seria sentido como uma ameaça para as pessoas (Matias e
Fernandes 2009).
Parece hoje diferente a interação dos arrumadores com os automobilistas, o que
provavelmente se relaciona com dois fatores: por um lado, o cidadão foi-se
habituando à sua presença e não confirmou os receios iniciais que esta figura,
por ser tida como drogado, inspirava; por outro lado, os próprios arrumadores
foram constatando que era mais eficaz, porque mais rentável, uma abordagem
pautada pela cordialidade, desincentivando deste modo tanto neles como nos
colegas de ofício atitudes que possam gerar desconfiança ou receio no
automobilista.
A observação mostrou-nos, no Porto, como alguns não iam para o parque antes
de cuidar minimamente da apresentação (por exemplo, fazendo a barba), e como
repreendiam colegas que enganassem ou tentassem roubar algum cliente
(Fernandes e Pinto 2004; Matias e Fernandes 2009). Pois bem, também agora
verificámos o mesmo. E acrescentaremos que, se o cuidar da apresentação é uma
estratégia calculada, também o apresentar-se com um aspeto descuidado, sujo ou
a indiciar más condições de vida é considerado por alguns como uma estratégia
eficaz para obter ajuda. Os asseados, digamos, criticam os sujos por darem
má imagem da atividade e estes defendem-se da acusação invocando o pragmatismo
da sua estratégia Afinal, verifica-se o mesmo que em qualquer outra atividade
laboral em que a maioria dos seus profissionais tenta minimizar a má imagem
causada por uns poucos, coisa que temos verificado, por exemplo, numa outra
figura típica de qualquer cidade, o taxista.
Territórios
Quando chegámos perto da rua do Manel vi que estava lá um outro
indivíduo a arrumar carros, conseguia ver a sua silhueta curvada e os
gestos característicos. Pensei que o Manel ia disparar para recuperar
o seu território, mas ele não reagiu, parecia que já sabia. Antes de
chegarmos mais perto perguntei-lhe e ele apenas disse que estava lá
esse rapaz, que o tinha deixado arrumar uns carros mas que ele se ia
já embora.
Ao chegarmos perto do rapaz, o Manel falou com ele. Eu fui um pouco
mais para longe. O Manel foi logo para o início da rua e começou a
angariar carros, pois havia um lugar vazio, ele assobiava e apontava
[diário de campo].
A distribuição espacial dos arrumadores não é casual nem aleatória. Pelo
contrário, os espaços têm valores estratégicos diferentes, uns rendem mais do
que outros, pelo que os indivíduos exercem um controlo sobre o seu território,
de modo a não o deixar apropriar por outros. A rua, para os arrumadores, tem
dono ' e cada um manda no seu parque. É, aliás, da experiência comum de quem
usa a cidade diariamente notar que os arrumadores são sensivelmente os mesmos
nos mesmos sítios, contribuindo com esta constância para a rotina urbana. O que
a observação detalhada mostra é que não estão ali passivamente, como quem se
limita a esperar que da sucessão dos automóveis que vão estacionando resulte o
pecúlio que precisam de amealhar para cada dose. Ser arrumador é ser ativo:
angariar automobilistas, estar atento aos lugares que vão vagando, interagir
com o dono da viatura, exercer domínio sobre aquele espaço que não querem
largar para a concorrência:
O Manel ia dizendo para ele ir embora, para ir para outro sítio. E
ele respondeu-lhe que dava para os dois, que metiam um carro cada um.
O Manel disse-lhe que não dava, que às vezes nem para um dava, quanto
mais para dois. Depois apareceu um carro e o rapaz começou a correr
em direção ao lugar. O Manel também ia para lá, mas depois ficou a
meio do caminho e deixou-o ir. Veio ter comigo meio a resmungar, a
dizer que se davam abébias' e que depois o pessoal abusava. Eu
perguntei-lhe se o rapaz era amigo dele e ele disse que sim, e que
era por isso que ele ainda ali estava, se não já o tinha corrido
[diário de campo].
E porque estava ali aquele arrumador? Não tinha território e procurava ocupar
um? A resposta veio logo a seguir:
Perguntei-lhe se o ADM era novo e ele disse que devia ter cerca de
25 anos, e que o conhecia por viverem perto. Depois perguntei-lhe se
o ADM não tinha uma rua dele para estacionar e ele disse que sim, que
era num parque perto da estação, só que um automobilista andava atrás
dele porque o ADM ficou de vigiar para tirar um ticket caso viesse a
polícia e depois o homem foi multado. O ADM saiu de lá sem tirar o
ticket [diário de campo].
E porque se ausentou o ADM, desleixando o capital de confiança que o cliente
tinha depositado nele? Porque completou a quantia para a dose e a ansiedade da
compra, a pressa de consumir, se sobrepôs ao dever profissional. Quem é que
ainda não se escapou alguma vez mais cedo do trabalho?
Como se consegue um território, como se fica sem ele? Não pudemos aprofundar
estas circunstâncias, mas sempre ficamos com uma pista ao ouvir o caso do
Manel:
Continuamos a falar acerca dos lugares de estacionamento. Eu
perguntei se, quando ele tinha ido para aquela rua, não estava lá
ninguém. Ele disse que não, que costumava estar lá um fulano, mas que
depois desapareceu. Ele tomou a rua e depois, passado um ano, o
fulano apareceu e queria a rua outra vez. Combinaram que um ficava de
manhã e o outro ficava de tarde, sendo que o Manel ficava de tarde.
Depois perguntei-lhe quanto tempo é que era preciso uma pessoa não
aparecer para lhe poderem tomar o lugar. Ele respondeu que era uma
semana. Eu disse-lhe então que se ele ficasse doente uma semana era
um risco. Ele depois reconsiderou e disse que uma semana se calhar
era pouco tempo, mas que se fosse um mês ou dois, ou seis meses, aí
já não havia hipótese [diário de campo].
Eis aqui um importante inconveniente do trabalho informal: não dá direito a
baixa médica
Ter-se apropriado dum território apresenta, para além da vantagem óbvia de
saber que se tem um sítio, a vantagem de poder criar uma relação com pessoas
habituais na zona:
Perguntei-lhe como era ao sábado e ele disse que ali era muito fraco
e lembrei-me que o Barbas me tinha dito que na rua ao lado era o
melhor dia. Perguntei-lhe porque é que não tentava outros sítios e
ele disse que não, que preferia ir para o mesmo sítio porque era mau
mudar, já que se estivesse sempre no mesmo sítio as pessoas iam-no
conhecendo e que assim ele estabelecia uma relação com as pessoas e
deste modo já davam boas moedas. Perguntei como é que ele tinha
chegado a essa conclusão, se tinha experimentado outros sítios e ele
disse que sim, que começou a pensar que, se ficasse sempre no mesmo
sítio, as pessoas começavam a ganhar confiança com ele [diário de
campo].
O território é também um espaço de interconhecimento, fornece uma base para as
relações, mesmo que minimalistas. Apropriação, interconhecimento e relação
aproximam o parque do lugar, no sentido antropológico do termo: muito mais do
que um espaço neutro, é um sítio investido e significativo.
Ao chegar lá avistei logo o Speedy Gonzalez e o Rujo. Estavam em
sítios diferentes, sendo que estavam trocados, ou seja, o Rujo estava
no sítio do Speedy Gonzalez e o Speedy Gonzalez no local onde costuma
estar o Rujo. [ ] Fui ter com ele e quando lá cheguei cumprimentámo-
nos. Fiz-lhe a observação da troca de lugares e ele disse que ali não
havia lugares fixos, que tanto podia estar ele como o Speedy
Gonzalez, que era quem chegasse primeiro. Que agora estava ele ali
naquele lugar, e que daqui a cinco minutos podia ir para lá o Speedy
Gonzalez [diário de campo].
Os parques dos arrumadores podem, portanto, configurar-se como territórios
secundários: não são exclusivos, são ocupados segundo a regra primeiro a
chegar, primeiro a usar. Esta regra exacerba a concorrência, obrigando quem
quer manter o seu posto a não se desleixar no horário e na continuidade. O
trabalho informal exige iniciativa, o indivíduo tem de defender o seu próprio
interesse, ninguém o faz por si ' neste aspeto, o arrumador assemelha-se a um
profissional liberal
Arrumadores e controlo social formal
Arrumadores e polícias municipais trabalham ambos no mesmo setor: a regulação
do aparcamento urbano. É natural, portanto, o modo pouco simpático como os
arrumadores olham os polícias:
O Manel começou por fazer queixa de um polícia que o andava a
aborrecer por ele estar a arrumar carros. Disse ele que o polícia lhe
disse: Não podem estar arrumadores onde está a polícia'. Ele diz que
disse ao polícia: Olhe, então vá dar uma volta que eu fico aqui '
[diário de campo].
Olham para os polícias como tendo critérios discricionários em relação a quem
pode estar estacionado, numa espécie de sistema de privilégios que mostra aos
arrumadores o quanto estão afastados do verdadeiro controlo da rua que pensavam
sua:
O D+ foi à máquina dos tickets, presumo para tirar um ticket para
pôr em algum carro, depois quando estava ao pé de nós disse: Queres
ver que o gajo vai me foder os tickets vai ser direitinho, foda-se'.
Vi que depois o polícia estava a chamá-lo à atenção acerca de um dos
carros. O D+ não mostrou grande reação, apenas falou com ele e vi que
sorriu.
O Canija começou a resmungar, dizendo: Filhos da puta, só multam a
quem lhes interessa, esteve ali um Opel Corsa a manhã toda, só porque
era do [ ]'. Ele disse que havia carros que eram dos polícias, que
estavam estacionados o dia todo, mas que nunca tiravam o ticket.
Disse também que estava ali um carro, que era do café onde eles iam
tomar o pequeno-almoço, e que também não multavam [diário de campo].
Encontramos nos arrumadores do centro de Guimarães um dado que é recorrente nos
grupos que se dedicam a atividades desviantes, ou ajuizadas dum modo negativo
pelo discurso dominante: a desconfiança perante as instâncias e as figuras do
controlo social, imputando-lhes frequentemente o desfrutar de privilégios
ilegítimos, ou seja, a ideia de que mesmo os que seria suposto defenderem a
ordem quebram as normas. Também nos arrumadores detetamos o uso da condenação
dos condenadores, uma das cinco técnicas de neutralização que Matza (1964)
identificou.
Tendo a polícia o mandato de assegurar a ordem nos espaços públicos, tendo o
ordenamento jurídico as atividades ligadas a determinadas substâncias
psicoativas como ilícitas e tendo tantos consumidores problemáticos a rua como
contexto privilegiado, os (des)encontros entre ordem e desvio, entre lei
e crime não são apenas inevitáveis ' são frequentes e expectados de parte a
parte. O tema foi surgindo nos relatos espontâneos ao longo do nosso trabalho
de campo, tendo como argumento as detenções seguidas de revista, a descoberta
de um ou vários pacotes (conforme se é consumidor ou também se anda a vender),
a ida para a esquadra. E, por vezes, um desfecho que os utilizadores consideram
negativo e sobre o qual falam com alguma revolta: a destruição do produto mesmo
à sua frente quando estavam a precisar dele como de pão para a boca. A
situação mais extrema é, porém, a agressão física. Registemos a seguinte
passagem do diário de campo:
Depois eles falavam de alguém que andava todo partido, que tinha
sido agredido. Uns diziam que tinha sido a polícia, outros diziam que
tinha sido o gajo que lhe metia as cenas para ele vender ' um dos
ciganos ou outros.
Passado pouco tempo desta conversa chegou o Manetas e eu percebi pela
cara dele que era dele que falavam. Tinha um olho todo esmurrado e
uma sobrancelha inchada. Vinha com um boné que tapava a maior parte.
Quando chegou fez uma entrada catita, anunciando a sua chegada,
dizendo:
Boa tarde pessoal, que aqui vem o homem!
Perguntaram-lhe logo o que se passava e ele disse:
É para verem a autoridade que a gente tem, é a autoridade
portuguesa!
Mostrou as mazelas ao pessoal, e o Andrúsio perguntou se ele tinha
apresentado queixa, se ele tinha ido ao juiz. Ele disse que sim, mas
que os polícias disseram à juíza que tiveram de o agarrar, porque ele
estava a ressacar e a dar com a cabeça na parede. À volta o pessoal
falava sobre o sucedido [diário de campo].[4]
O exercício da violência sobre indivíduos ou grupos marginalizados é a faceta
mais aguda das consequências do estigma social. Viver na margem é sofrer de
invisibilidade ' mesmo que se esteja, como é o caso dos arrumadores, em espaços
altamente visíveis. E é esta invisibilidade que torna invisível a violência de
que são alvo. O arrumador está consciente da sua situação de desacreditado '
para tomar a expressão de Erving Goffman a propósito daquele que é atingido
pelo estigma:
Enquanto subíamos a rua, o Rujo continuou a conversa que estávamos a
ter e disse que as pessoas depois podiam comentar por me verem com
ele. Eu disse-lhe que não havia problema, que não me importava com o
que as pessoas pensavam, e ele disse: Muito bem, o que importa é o
que fazes e não o que as pessoas dizem e pensam acho bem, acho bem!
É que nestes sítios pequenos ' [diário de campo].
Fica por esclarecer se esta autoconsciência do estigma social deve a sua maior
quota-parte ao ser arrumador ou ao ser toxicodependente ' o que, como se foi
tornando claro com os nossos dados de terreno, são estatutos que andam
próximos.
Nota final: a emergência dum novo utilizador da cidade
Se compararmos a reação inicial que os arrumadores de automóveis suscitaram,
bem traduzida no acionamento dos planos autárquicos para lhes fazer face que
referimos na secção introdutória, com a aparente normalidade com que estão hoje
integrados nas rotinas do espaço público, aplicar-lhes-emos a frase que
Fernando Pessoa criou para a Coca-Cola: primeiro estranha-se, depois entranha-
se. É isso: a sua presença inicial é um corpo estranho ' no sentido literal. Um
corpo que carrega a marca a partir da qual construímos os nossos estereótipos
de marginalidade, um corpo atingido pela droga, que lhe inscreve sinais
visíveis e reconhecíveis.
Mas a sua presença continuada impõe o arrumador à cidade, que, se primeiro o
estranha, depois entranha-o. Eis o que parecem revelar os dados da investigação
que conduzimos em Guimarães: mostram a sua naturalização na paisagem urbana,
evidenciando-o como um novo tipo de utilizador da cidade.
O utilizador da cidade (city user) é um conceito dos estudos urbanos para
designar o indivíduo típico da fase de metropolização das cidades, responsável
pelas suas novas centralidades: o turista, o homem de negócios que circula
entre centros financeiros, o consumidor de cultura e de ciência ' circuito dos
congressos, das exposições, dos festivais (cf., por exemplo, Baptista e
Pujadas 2000). O utilizador da cidade vem do centro para construir centro.
Ora, o arrumador, o sem-abrigo, o migrante clandestino são também
característicos da metropolização, ocupam e usam a cidade ' e mostram como o
centro também se constrói a partir da margem.
Os arrumadores fazem parte, portanto, dos circuitos relacional e económico da
cidade ' eis algo que a nossa investigação não descobriu, posto que qualquer
frequentador atento da urbe pode concluir o mesmo, sem recurso a mais nada para
além do seu poder de observação. Pertencem ao circuito relacional porque
estabelecem interface com o cidadão que frequenta as ruas e praças onde se
desenrola a vida ordinária; ao circuito económico, porque são atores do
trabalho informal: dedicam-se a arrumar carros, é o seu tipo de
empreendedorismo; e aplicam parte desse dinheiro a comprar drogas, contribuindo
para um outro tipo de empreendedorismo, o dos dealers. Funcionam, portanto,
como intermediários entre o dinheiro do cidadão comum que estaciona o seu carro
e os atores das economias subterrâneas: o arrumador branqueia o dinheiro ao
contrário, leva-o do lado legal para o ilegal. É a metáfora do lado pobre do
neo-liberalismo: têm um trabalho flexível e incerto, fazem circular a moeda,
e o capital que lhes passa pelas mãos não passa pelas mãos do fisco
Os especialistas dos estudos urbanos, como Hannerz ou Martinotti (cit. em
Baptista e Pujadas 2000), sinalizam as principais categorias de atores sociais
na cena urbana metropolitana contemporânea. Mas, se excetuarmos o migrante do
terceiro mundo, pouco ou nada se referem a figuras da margem. Os especialistas
da cidade interessam-se mais pelo diurno do que pela sombra? Estendamos nós o
conceito de utilizador da cidade àqueles que, embora sem reconhecimento, embora
desinscritos das existências valorizadas, também constroem a paisagem com que a
cidade se oferece.